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História dos Hebreus
História dos Hebreus

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ter arriscado a vida para proporcionar uma felicidade tão geral e auspiciosa. Foi
Chereas, entretanto, quem dentre eles se empenhou com mais ardor, quer pelo
desejo de conquistar fama, quer porque o seu cargo lhe dava mais ocasião de se
aproximar de Caio.
Era o tempo das corridas de cavalos, que se realizam no hipódromo, e dos
jogos chamados circenses, tão ao gosto dos romanos. Como o povo que lá se
encontrava, em grande número, tinha o costume de pedir graças ao imperador
com a certeza de as obter, toda aquela multidão rogou a Caio, com grande
insistência, que os aliviasse de uma parte dos impostos. Mas ele, em vez de
atendê-los, ficou tão irritado que ordenou aos guardas que matassem os que se
manifestavam mais ruidosamente. Eles assim fizeram no mesmo instante, e,
como a vida é mais preciosa que os bens, o povo ficou tão espantado ao ver
tanto sangue que não insistiu mais.
Esse horrível espetáculo animou Chereas ainda mais a executar o seu
projeto de libertar os homens daquele animal feroz, que de homem tinha
apenas o nome. Pensara muitas vezes em matá-lo quando estava à mesa e só
não o fizera na expectativa de uma ocasião mais propícia. Havia muito tempo
que ele estava no cargo, e o imperador o encarregara de receber os tributos.
Mas como muitos dos contribuintes eram tão pobres que já deviam mais de um
ano de impostos e a compaixão que tinha deles não lhe permitia insistir, Caio
se irritava e fazia-lhe constantes censuras, chamando-o de indolente e
efeminado. Quando ele vinha perguntar ao imperador qual era a senha do dia,
ele, por gracejo, escolhia uma palavra que só se poderia adaptar a uma mulher
de natureza reprovável, embora o próprio Caio não tivesse vergonha de se vestir
de mulher em algumas cerimônias que havia instituído ou de se pintar e
adornar com os enfeites delas, de modo que podia mesmo se passar por uma
mulher.
O ressentimento de Chereas por esse ultraje aumentava ainda por causa
das zombarias de seus companheiros, que não podiam deixar de rir quando ele
lhes trazia a senha, já sabendo de antemão que seria algo daquela qualidade.
Assim, não podendo mais suportar semelhante opróbrio, ele atreveu-se a
declarar o seu intento a alguns companheiros. A primeira pessoa a quem ele
revelou as suas intenções foi um senador, de nome Pompédio, que já havia
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passado por todos os cargos de maior honra. Ele era da seita de Epicuro e por
isso pensava apenas em viver com tranqüilidade.
No entanto, um inimigo seu, de nome Timídio, acusou-o de ultrajar com
palavras o imperador, alegando como testemunha uma comediante muito
famosa, de nome Quintília, pela qual Pompédio estava apaixonado. Mas a
acusação era falsa, e a mulher recusou-se a mentir, pois estava em jogo a vida
de um pessoa que a amava, isso obrigou Timídio a pedir que ela fosse
torturada. Caio, que jamais deixava de se enfurecer em tais circunstâncias,
ordenou a Chereas que o fizesse imediatamente. Ele costumava encarregar
Chereas de semelhantes tarefas, convencido de que, em função das censuras
que lhe movia por causa de sua frouxidão, ele as executaria com mais rigor que
qualquer outro.
Quando levavam Quintília para ser torturada, ela encontrou um daqueles
que sabiam da conspiração e pisou-lhe no pé, para animá-lo a ter coragem e o
certificar de que nenhum tormento seria capaz de fazê-la confessar. Chereas,
embora contra a vontade, porque era obrigado, torturou-a rudemente. A mulher
sofreu com uma serenidade extraordinária, e ele depois levou-a até o
imperador, num estado tão deplorável que, embora Caio tivesse um coração de
bronze, não pôde deixar de ficar comovido. Assim, ele a declarou inocente — e
também a Pompédio — e ainda mandou que lhe dessem dinheiro, para consolá-
la pelo que havia sofrido, pois demonstrara não menos coragem nos tormentos
que felicidade nos seus dias mais prósperos. Essa atitude de Caio causou
sensível dor a Chereas, porque o fazia passar por cruel, obrigando-o a reduzir
uma pessoa a tal estado que causara compaixão ao mais desumano dos
homens.
Incapaz de conter-se, ele resolveu falar a Papiniano, que desempenhava
um cargo semelhante ao seu, e a Clemente, que também tinha um cargo no
exército. Disse ele, dirigindo-se a Clemente: "Vós sabeis com que afeto e
fidelidade velamos pela conservação do imperador e como, graças aos nossos
cuidados e esforços tantas conspirações contra ele foram descobertas, as quais
custaram a vida a uns e levaram outros a tormentos tão cruéis que ele mesmo
chegou a ficar compadecido. Mas seriam essas tarefas dignas de nossa
profissão e de nossa coragem?" Clemente nada respondeu, mas o rubor que lhe
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apareceu no rosto demonstrava muito bem o quanto ele se sentia envergonhado
por estar desempenhando semelhante mister e que somente o medo o impedia
de condenar a loucura e o furor de Caio.
Chereas retomou o seu discurso com mais veemência e, depois de
mencionar todos os males com que Roma e o império eram oprimidos,
acrescentou: "Eu sei que a causa disso tudo é atribuída ao imperador, mas na
verdade é a Papiniano, a mim e a vós, Clemente, que Roma e toda a terra
deveriam responsabilizar por tudo o que sofrem, pois somos os executores das
cruéis determinações de Caio. E, podendo fazer cessar os efeitos de sua raiva
contra os nossos concidadãos e contra todos aqueles que lhe são sujeitos, não
temos vergonha de sermos nós mesmos os seus ministros, agindo como
carrascos, e não como soldados, e de usar armas não para a conservação de
Roma e do império, mas para a manutenção desse tirano que não se contenta
em subjugar os corpos, mas quer também tirar aos homens a liberdade de
pensamento, obrigando-nos a manchar continuamente as nossas mãos com
sangue deles e a fazê-los sofrer tormentos nos quais não se pode pensar sem
horror. Vamos esperar que ele exerça sobre nós a mesma crueldade com que
nos faz tratar os outros? Ou julgamos que dela nos poderemos esquivar, pela
obediência que lhe prestamos? Em vez de nos agradecer, ele suspeita de que
fazemos tais coisas obrigados e está tão acostumado aos assassínios que estes
se tornaram o seu maior divertimento. Por que então imaginaríamos que, nessa
multidão de inocentes vítimas de sua crueldade, seríamos os únicos capazes de
escapar ao seu furor? Não nos enganemos: consideremo-nos já condenados, a
menos que asseguremos a nossa vida com a morte dele e, salvando-nos,
salvemos todo o império".
Clemente aprovou os desígnios de Chereas, mas o aconselhou a mantê-los
em segredo, pois, se alguém os descobrisse antes que fossem postos em prática,
a morte deles seria certa. Era de opinião que aguardassem, até que o tempo
fizesse aparecer uma oportunidade favorável. E, ainda que a velhice, que lhe
começava a gelar o sangue nas veias, o fizesse abraçar conselhos mais seguros,
confessava que não podia haver argumentos mais honestos nem mais
generosos que aqueles que acabavam de ser expostos. Depois dessa resposta,
Clemente retirou-se para a sua casa, refletindo naquilo que lhe fora dito e
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também no que ele próprio dissera.
Chereas, porém, estava muito preocupado com a possibilidade de vazar o
segredo, por isso foi naquele mesmo instante procurar Cornélio Sabino, que
também era comandante de uma companhia de guardas do imperador. Sabedor
de que ele era um homem muito valente e apaixonado pelo bem público, e que
sofria com impaciência o estado deplorável a que estava reduzido o império,
julgou conveniente contar-lhe o seu intento, para obter a sua opinião em um
assunto tão importante. Ele não se enganou em seu julgamento, pois Sabino
experimentava os mesmos sentimentos, porém nada manifestava por não se
atrever a confessá-los a ninguém. Ele escutou as palavras de Chereas com
prazer, prometendo guardar segredo e até mesmo ajudá-lo.
Estavam todos de acordo em que não havia tempo a perder e foram
imediatamente procurar Minuciano, cuja virtude e generosidade era deles bem
conhecida. Ciente de que era suspeito a Caio, por causa da morte de Lépido,
seu amigo íntimo, ele era muito sensato para não perceber que correriam
grande perigo, ainda que não houvesse outro motivo senão o próprio mérito
deles, mas isso já era o suficiente para se temer o maligno príncipe. Todavia,
era seguro confiar em Minuciano, pois, ainda que a magnitude do perigo
impedisse que qualquer um deles manifestasse abertamente o ódio sentido por
Caio, todos eles já haviam, em outras circunstâncias, dado a conhecer que a
tirania do imperador lhes era insuportável, e essa conformidade de sentimentos
já estabelecera entre eles uma certa amizade.
O respeito de Chereas e de Sabino pela nobreza e pela extraordinária
virtude de Minuciano os fez decidir que, em vez lhe falar diretamente sobre o
assunto, iriam esperar que ele lhes desse oportunidade para isso. A idéia deu
resultado. Como todos sabiam que o imperador tinha o costume de dar como
senha a Chereas uma palavra ultrajosa, Minuciano perguntou-lhe qual a
palavra que lhe fora dada naquele dia. Chereas, alegre por aquela oportunidade
tão favorável e sem nada temer da probidade de um homem como Minuciano,
respondeu-lhe: "Dai-me, por favor, a palavra liberdade!"
Ele acrescentou: "Como sou feliz e como vos sou grato, pois me fazeis
notar em vosso semblante que estais me exortando a empreender uma coisa
pela qual estou inflamado de ardor. Não é preciso mais para me levar a
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executá-la. E-me suficiente ver que a aprovais e que antes mesmo de falarmos
já tínhamos o mesmo modo de pensar. Esta espada que vedes será suficiente
para vós e para mim. Não há tempo a perder, e estou pronto a empreender
qualquer coisa sob o vosso comando. Ordenai, somente, e sereis obedecido. Não
importa que não tenhais espada, pois tendes aquela grandeza de alma de onde
o ferro tira toda a sua força. Desejo entrar em ação, e não me preocupo com o
que me poderá acontecer. Poderia eu pensar, sem vexame, em minha segurança
pessoal quando vejo a liberdade pública oprimida, as leis violadas e todos os
homens do império expostos ao furor desse tirano? Ouso mesmo crer que não
sou indigno de ser o executor de um tão grande missão, pois tenho os mesmos
sentimentos que vós".
Minuciano, ao ouvir Chereas falar desse modo, abraçou-o, louvou a sua
generosidade e exortou-o a perseverar, e ambos separaram-se, rogando aos
deuses que lhes fossem favoráveis. Alguns afirmam que um outro fato animou
Chereas ainda mais: quando ele entrava no palácio, ouviu uma voz que lhe
dizia para não temer executar o que havia resolvido e tivesse a certeza da
assistência dos deuses. Essas palavras de início o assustaram, pois julgou que
o plano fora descoberto, mas depois não duvidou de que era algum dos
conjurados que assim lhe falava para animá-lo ainda mais ou uma voz do céu a
testemunhar que Deus não deixa de cuidar dos interesses dos homens.
Nesse meio tempo, todavia, estavam todos convencidos de que da morte
de Caio dependia a salvação do império, e cada qual, à porfia, conspirava para
dele livrar o mundo. O número de conjurados então já era grande, pois havia
também senadores e cavaleiros envolvidos. Uniu-se também a eles Calixto, um
liberto de Calígula que, mais que qualquer outro, estava junto dele e que se
tornara tão temível que podia ser chamado companheiro de tirania do
imperador. Ele não somente era muito poderoso pelo seu prestígio, mas
também pelas grandes riquezas que havia adquirido, vendendo o seu favor aos
que o corrompiam com presentes. E assim, ele usava de modo muito insolente o
seu poder.
Ele, porém, conhecia o espírito de Caio e sabia que quando o imperador
começava a suspeitar de alguém jamais o perdoava. E, mesmo que não
houvesse outra razão para temer, os muitos bens que possuía eram suficientes
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para
 que
 esse
 temível
 senhor
 desejasse
 matá-lo.
 Assim,
 trabalhava
secretamente para se colocar nas boas graças de Cláudio, que talvez sucedesse
a Caio no império. Disse-lhe que o imperador lhe havia ordenado que o
envenenasse, mas ele se havia servido de diversos pretextos para diferir a
execução daquela ordem tão cruel. Para mim, creio que era invenção com o
propósito de granjear mérito perante Cláudio, pois, se Caio tivesse dado essa
ordem, não havia probabilidade de Calixto não ser castigado em seguida, por
ter deixado de cumpri-la. Cláudio, no entanto, ficou convencido de que os
deuses usaram Calixto para salvá-lo do furor de Caio e agradeceu-lhe muito por
se recusar a executar aquele serviço.
A realização dos desígnios de Chereas estava sendo adiada por causa da
morosidade de alguns conjurados, embora ele afirmasse que todo tempo era
próprio para levar a efeito o que pretendiam, quer enquanto Caio se dirigia ao
Capitólio para oferecer sacrifícios por sua filha, quer no momento em que do
alto de seu palácio lançava ao povo, na praça, moedas de ouro e de prata, quer
durante a celebração de certas cerimônias que ele mesmo havia instituído.
Embora estivesse sempre rodeado de pessoas prontas a defender a sua vida, o
imperador de nada desconfiava e julgava-se em perfeita segurança. Desse
modo, Chereas, aflito por tão longa demora e com medo de que a ocasião viesse
a faltar, perguntou aos parceiros se eles julgavam que os deuses haviam
tornado o tirano invulnerável. E dizia que, quanto a ele, não teria nenhuma
dificuldade em matá-lo, mesmo que não tivesse uma espada.
Todos louvavam o seu amor pelo bem público, mas julgavam necessário
protelar um pouco, de modo que, diziam eles, se a coisa não saísse bem, a
cidade não se pusesse em rebuliço, e também por causa das investigações que
se fariam contra eles, tirando aos outros o meio de executar esse intento
enquanto ainda tinham a coragem de tentá-lo. Eles achavam mais conveniente
aproveitar a ocasião dos jogos instituídos em honra a César* — o qual, para se
elevar ao soberano poder, foi o primeiro a suprimir a liberdade dos romanos,
mudando a república em monarquia — porque, além da grande multidão de
povo que acorria ao teatro, que então se situava em frente ao palácio, todas as
pessoas pertencentes à nobreza de Roma para lá se dirigiam com as suas
mulheres e filhos. O imperador lá se encontraria também, e seria difícil, em tão
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grande aperto, que aqueles que velavam pela sua segurança pudessem então
protegê-lo do ataque dos conspiradores.
Chereas aceitou a sugestão e adiou a execução para o primeiro dia dos
jogos, porém o destino prevaleceu sobre essa deliberação e, com dificuldade, só
o puderam fazer no terceiro dia, que era o último desses espetáculos. Antes,
Chereas reuniu os conjurados e falou-lhes: "Que censuras não merecemos por
esse tempo que passou sem que tentássemos executar o nosso plano! Pois
temos motivos para temer que, se formos descobertos, Caio venha a redobrar o
seu furor, e, em vez de darmos liberdade ao império pela sua morte, iremos
apenas, com a nossa fraqueza, contribuir para lhe fortalecer a tirania. É assim
que devemos trabalhar pela nossa segurança e pela de tantos povos? Será esse
o meio de adquirirmos fama e glória imortais?" Ninguém ousou contradizer um
discurso tão corajoso: estavam todos tão atônitos que ficaram em silêncio.
Ele acrescentou: "Acaso pretendeis adiar ainda mais? Não sabeis que hoje
é o terceiro dia — o último — destes jogos e que Caio está prestes a embarcar
para Alexandria, a fim de conhecer o Egito? julgais então que devemos deixar
escapar esse monstro, que causa horror à natureza, ou permitir que ele triunfe
tanto por mar quanto por terra, sobre a fraqueza dos romanos? Ou desejais que
algum egípcio mais corajoso que todos nós tenha a honra de restaurar, pela
morte desse tirano, a liberdade oprimida? Quanto a mim, estou resolvido a não
perder mais tempo em vãs deliberações, e o dia não passará sem que eu me
desobrigue do que devo à minha pátria. O que a sorte determinar, receberei
com alegria. Prefiro isso a tolerar que um outro me arrebate a glória de libertar
o mundo de um homem que a todos aterroriza".
_________________________
* A continuação nos dá a entender que é de Augusto que ele está falando.
Chereas, assim falando, fortaleceu-se ainda mais em sua resolução e
entusiasmou de tal modo os outros que todos se sentiram arder no desejo de
cumpri-la, sem mais adiamentos. Aconteceu que por acaso aquele era o dia em
que Chereas devia pedir a senha ao imperador, e assim ele entrou no palácio
com a espada erguida, segundo o costume, que obriga o comandante da guarda
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a assim fazer quando em cumprimento de um dever do cargo. Uma grande
multidão de povo já se encontrava no palácio, e todos procuravam obter um
lugar, porque não havia reservas nem para os senadores nem para os
cavaleiros: cada qual se punha onde queria, misturando-se homens com
mulheres e senhores com escravos — o imperador sentia prazer em ver essa
desordem. Em seguida, fez um sacrifício a Augusto, em honra do qual os jogos
eram celebrados;
Aconteceu que uma gota de sangue da vítima caiu sobre as vestes de
Asprenas, que era um dos senadores, o que lhe serviu de péssimo augúrio, pois
ele foi morto no tumulto que se levantou em seguida. Caio riu-se à vontade, e
notou-se, com espanto, como uma coisa extraordinária, que o imperador,
contra a sua natureza, naquele dia demonstrava grande afabilidade e bom
humor. Terminado o sacrifício, Caio, acompanhado por aqueles a quem mais
estimava, foi sentar-se no teatro, no lugar que lhe fora preparado. O teatro era
de madeira e construído todos os anos. Tinha duas portas: uma no exterior,
que dava para a grande praça, e outra em frente ao pórtico, por onde os atores
entravam e saíam sem incomodar os espectadores. Fizera-se também uma
passagem dividida por uma cerca de madeira, onde os atores e os músicos se
colocavam.
Depois que todos tomaram os seus lugares, Chereas e os demais
comandantes da guarda ficaram bem próximos do imperador, que se havia
posto do lado direito do teatro. Batívio, senador, que havia sido pretor,
perguntou baixinho a Clívio, que já fora cônsul e que estava sentado perto dele,
se não tinha ouvido falar de nada. Tendo este respondido que não, Batívio
acrescentou: "Vereis hoje representar-se uma peça que acabará com a tirania".
Clívio retrucou: "Cale-se, para que algum grego não nos venha a escutar". Com
essas palavras, ele fazia alusão a um verso de Homero. Em seguida, foi atirada
ao público grande quantidade de frutas, e pássaros muito belos e raros também
foram soltos. Caio sentia prazer em ver os pássaros disputando as frutas e o
modo como o povo se esforçava para apanhá-los.
Aconteceram
 em
 seguida
 duas
 coisas
 que
 poderiam
 passar
 por
presságios: a primeira, que no teatro se representava um juiz, o qual, tendo
sido acusado de um crime, fora punido com a pena de morte; a outra, que se
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apresentava a tragédia de Cinira, na qual ela e Mirra, sua filha, eram mortas.
Ao redor dessas três pessoas, foi espalhada uma grande quantidade de sangue,
que se havia trazido para esse fim, ao se lhes representar a morte. Acrescente-
se a isso que fora naquele mesmo dia que Filipe, filho de Amintas, rei da
Macedônia, tinha sido outrora morto por Pausânias, um de seus amigos,
quando ia para o teatro.
Como aquele era o último dia da festa, Caio estava para resolver se ficaria
até o fim ou se iria tomar o seu banho e cear, para regressar em seguida, como
de costume. Minuciano, que estava sentado perto dele e tinha visto Chereas
sair, temendo que viesse a faltar a oportunidade de se executar o plano,
levantou-se para ir animá-lo. Mas Caio o agarrou pelo manto e disse-lhe, de
maneira obsequiosa: "Onde vais agora, homem de bem?" Essas palavras o
detiveram, e ele tornou a sentar-se. Porém, não podendo vencer aquele temor,
levantou-se uma segunda vez, e Caio não tentou mais retê-lo, pois imaginou
que ele tivesse alguma necessidade urgente, que o obrigava a sair. Logo em
seguida, Asprenas, que estava ciente de tudo, convenceu o imperador de que
era melhor ir ao banho e cear, para depois voltar ao espetáculo.
Chereas, no entanto, havia colocado cúmplices nos lugares mais próprios
para o seu intento e, ansioso por causa da demora, pois já era a nona hora do
dia, resolveu voltar ao teatro e terminar logo o trabalho. E, ainda que soubesse
que esse gesto poderia custar a vida de algum senador ou cavaleiro, considerou
que a liberdade pública era preferível à conservação da vida de alguns cidadãos.
Mas quando ele se dirigia para o teatro, um rumor que ouviu deu-lhe a
entender que Caio havia saído para ir ao palácio. Os conspiradores, nesse
momento, romperam a multidão, como se fosse por ordem do imperador, mas
na realidade era para matá-lo mais facilmente, quando ninguém mais estivesse
entre eles e o soberano. Cláudio, seu tio, Marcos Vinício, que desposara a sua
irmã, e Valério Asiático, procônsul, os quais, pela sua condição, não podiam ser
impedidos de se retirar, caminhavam diante dele. Paulo Arúncio ia atrás dele.
Depois de entrar no palácio, Caio deixou o caminho comum, que Cláudio
e os que iam diante dele haviam tomado, onde os oficiais da casa esperavam
para ir ao banho, e seguiu por um caminho escondido, a fim de ver a exibição
de uns moços que lhe haviam trazido da Ásia para cantar hinos nas cerimônias
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e nos sacrifícios que ele havia instituído e para dançar no teatro as danças das
quais Pirro é o autor. Chereas então aproximou-se para pedir-lhe a senha, e
Caio não deixou de lhe dar, segundo o costume, uma palavra para ridicularizá-
lo. Chereas revidou a injúria com outra e com um golpe de espada, que no
entanto não foi mortal.
Alguns querem crer que ele o fez de propósito, a fim de que, antes de
morrer, Caio pudesse receber ainda outros golpes e para que o castigo pelos
seus crimes lhe fosse mais doloroso. Isso, todavia, me parece pouco provável,
pois não se costuma raciocinar em semelhantes ações. Se Chereas tinha
mesmo essa intenção, estimo que ele tenha sido o mais tolo de todos os
homens, deixando-se levar desse modo pelo ódio que nutria por Caio e
preferindo essa vã satisfação a livrar a si mesmo e a todos os seus cúmplices do
perigo em que se encontravam. Enquanto vivesse, Caio não ficaria sem
defensores, ao passo que, estando morto, os conjurados poderiam escapar à
sua vingança antes que houvesse ocasião de serem descobertos. Deixo, porém,
a cada qual que faça o juízo que bem quiser.
O golpe que Caio recebeu atingiu-o entre o pescoço e o ombro, e teria
avançado mais se não tivesse encontrado o osso. Ele sentiu grande dor, mas
não gritou nem chamou ninguém em seu auxílio. Soltou apenas um suspiro,
talvez porque o medo o tenha feito perder a fala, ou porque desconfiava de
todos ou ainda por causa de sua natural altivez. Gemendo, ele tentava fugir,
quando Cornélio Sabino o segurou e o fez cair de joelhos. Os outros
conspiradores então rodearam-no gritando: "Mais um! Mais um!" E acabaram
de matá-lo.
Dentre os muitos golpes que recebeu, diz-se que Áqüila desferiu o que
livrou o império, por sua morte, daquela intolerável tirania. No entanto, cabe a
Chereas a principal glória, pois ainda que vários outros tivessem tomado parte
na empresa, ele foi o primeiro a conceber a idéia, a infundi-la nos outros e a
propor os meios de executá-la. E depois, vendo-os assustados com a grandeza
do perigo, renovou-lhes a coragem. Por fim, logo que se apresentou a ocasião,
atacou o tirano, deu-lhe o primeiro golpe e o deixou semimorto aos demais,
para que lhe tirassem o que ainda restava de vida. Assim, podemos dizer com
verdade que se deve atribuir à sua coragem e à sua ação toda a honra que os
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seus cúmplices mereceram.
Depois de tão grande feito, por causa do perigo em que os punha a morte
de um imperador loucamente querido pela populaça e que mantinha muitos
soldados, a dificuldade era retirar-se. Como lhes pareceu impossível voltar por
onde haviam entrado, porque aquelas passagens eram muito estreitas e
estavam cheias de oficiais e de guardas, que o dever do ofício reunira naquele
dia de festa, saíram por outro caminho para o palácio de Germânico, cujo filho
haviam acabado de matar. Esse palácio estava muito perto do palácio do
imperador, ou melhor, fazia parte dele, tal como outros, construídos pelos
imperadores precedentes, sendo que cada qual traziam o nome de seu
construtor. Assim, tendo escapado da multidão, saíram com segurança, antes
que a notícia da morte de Caio se houvesse divulgado.
Os primeiros a perceber que Caio havia sido assassinado foram os
alemães da guarda — a chamada a legião céltica. Eram todos soldados que ele
havia escolhido entre os daquela nação para estar perto de sua pessoa. Dentre
os povos bárbaros, eles são os mais coléricos porque, na maioria das vezes, não
compreendem o que se passa. São homens extremamente robustos e, como de
ordinário enfrentam os maiores ataques dos inimigos, contribuem não pouco
para fazer pender a vitória para o lado daquele por quem combatem. A morte do
imperador lhes foi muito sentida. Não porque lhe consideravam os méritos, mas
pelo seu próprio interesse, pois ninguém era mais bem tratado que eles. Caio,
para lhes conquistar o afeto, usava para com eles de grande prodigalidade.
Eram então comandados por Sabino, que não fora elevado àquele cargo
por sua virtude nem pela de seus antepassados, pois ele havia sido gladiador,
mas por causa de sua força extraordinária. Tendo-o à frente, os soldados
correram para todos os lados, de espada na mão, a fim de matar os que haviam
assassinado o imperador. O primeiro que encontraram foi Asprenas, para o
qual, como já dissemos, havia ocorrido um mau presságio, aquela gota de
sangue da vítima que caíra sobre a sua túnica, e o fizeram em pedaços.
Em seguida encontraram Norbano, cuja origem era tão ilustre que ele
contava entre os seus antepassados vários generais. E, como não era menos
forte que corajoso, quando viu que aqueles bárbaros não respeitariam a sua
condição, arrancou a espada da mão de um deles, decidido a não morrer sem
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vender muito caro a vida, pois eles o haviam rodeado de todos os lados. Por fim,
vencido pelo número, caiu varado de golpes.
O terceiro dos senadores a experimentar a raiva dos alemães foi Anteio, o
qual pagou com a vida o desejo de ver o corpo de Caio. Como o ódio que lhe
votava não podia ser maior nem mais justo, porque esse cruel príncipe, não se
contentando em lhe exilar o pai, mandara-o matar no seu desterro, ele saciava
os olhos com aquele espetáculo, que lhe era assaz agradável, quando vários
soldados vieram em sua direção. Fugiu para se esconder, mas não pôde evitar
de cair nas mãos daqueles homens furiosos, que não poupavam nem os
inocentes nem os culpados.
Quando se espalhou a notícia de que o imperador acabara de ser morto,
havia em todos os espíritos mais espanto que crédito. Os que havia muito
tempo desejavam ardentemente a sua morte tinham dificuldade em acreditar,
pois desconfiavam que a informação partira do próprio Caio. Outros não
queriam crer porque não desejavam que fosse verdade e nem podiam imaginar
que alguém tivesse pensado e muito menos executado tão temerário
empreendimento.
O número desses últimos era composto de soldados, mulheres, moços e
escravos. De soldados porque, além do soldo, eles tinham parte na tirania e nos
roubos do detestável imperador, que lhes permitia ofender impune e insolente-
mente os mais ilustres cidadãos; de mulheres e moços porque eles se divertiam
com os espetáculos, os combates de gladiadores e outros divertimentos em que
Caio era pródigo, sob pretexto de querer contentar o povo, mas na verdade o
fazia para satisfazer à própria crueldade e loucura; de escravos porque ele lhes
dava liberdade não somente para desprezar, mas também para acusar
falsamente os seus senhores, sem temor de qualquer castigo, pois nada era
mais fácil que obter desse príncipe o perdão pelas calúnias — e eles sabiam
que, dando notícia do dinheiro que os seus senhores possuíam, obteriam a
liberdade e a oitava parte do confisco, destinada aos denunciadores.
797. As pessoas da nobreza — embora algumas, ou porque desejavam a
morte do imperador ou porque tinham algum conhecimento da conspiração,
acreditassem que a notícia era verdadeira — não ousavam manifestar a sua ale-
gria nem mesmo demonstrar que escutavam o que se dizia, de modo que, se
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fossem enganados em suas esperanças, não pagassem caro pela exposição de
seus sentimentos. Os mais bem informados sobre a conspiração eram os mais
reservados, porque não se queriam tornar suspeitos àqueles que desejavam que
Caio ainda vivesse, os quais não os deixariam viver se a notícia fosse falsa.
Correu também insistentemente o boato de que o imperador havia sido ferido,
mas não estava morto.
Não se sabia, portanto, em que acreditar, pois os que davam as notícias
ou eram suspeitos de favorecer a tirania ou a odiavam tanto que não se podia
prestar fé ao que eles diziam, pois estes eram movidos, mais que qualquer outra
coisa, pelo desejo de que fosse verdade. Aquele boato sucedeu outra notícia,
que perturbou ainda mais a nobreza, pois dizia que Caio, sem permitir que lhe
tratassem as feridas, se dirigia ensangüentado à praça, para falar ao povo.
Essas notícias suscitaram movimentos diferentes, segundo as disposições de
cada espírito, e ninguém ousava sair do lugar com medo de ser caluniado,
porque todos sabiam que não se julgavam as ações conforme os pensamentos
que se tinham verdadeiramente, mas pela maneira como os delatores e os juizes
as interpretavam.
Estando as coisas nesse pé, vieram os alemães e cercaram o teatro. Todos
então imaginaram-se perdidos, acreditando que seriam degolados em seguida e
julgando que corriam o mesmo perigo, tanto se permanecessem onde estavam
quanto se optassem pela fuga. Assim, não sabiam o que fazer. Quando os
alemães venceram a massa e chegaram ao teatro, ouviram-se os rumores
confusos de mil vozes de pessoas, as quais rogavam que não lhes fizessem mal,
pois, não importando de que modo acontecera a morte do imperador, eles não
haviam absolutamente
 tomado parte
 nela. As lágrimas e
 os gemidos
acompanhavam as palavras do povo, e eles tomavam os deuses como
testemunhas de sua inocência. Nada esqueciam diante do temor que aquele
iminente perigo lhes inspirava.
Por maior que fosse o furor dos alemães, eles não conseguiram
permanecer insensíveis a tantos gritos e lágrimas. Comoveram-se também ao
ver a cabeça de Asprenas e as dos outros que eles haviam matado colocadas
sobre um altar — por eles mesmos, porque as haviam trazido de onde se
encontravam. O horrível espetáculo da infelicidade de tantas pessoas de classe
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não somente causava compaixão às pessoas da nobreza e ao povo como os fazia
tremer, porque não tinham a certeza de que sairiam ilesos de tão grande perigo,
enquanto a alegria daqueles que tinham motivo para odiar Caio era perturbada
pelo temor de não saberem se continuariam vivos.
Nesse mesmo tempo, um pregoeiro público, de nome Arúncio, que tinha
uma voz muito forte e era muito rico e querido pelo povo, apareceu no teatro em
vestes de luto e com todas as demonstrações de grande dor. Embora ele odiasse
Caio, dissimulava a alegria que estava sentindo. E, juigando que importava dar
a conhecer a todos que o príncipe realmente havia morrido, fez o anúncio em
alta voz, a fim de que ninguém mais pudesse duvidar. Dessa maneira, ele
conseguiu deter os alemães, e os oficiais ordenaram-lhes que recolocassem a
espada na bainha.
Essa declaração pública da morte do imperador foi a salvação de um
grande número de pessoas. Até ali havia o risco de morrerem, pois a fúria dos
alemães e a sua dedicação a Caio eram tão grandes que enquanto lhes restasse
alguma esperança de lhe salvar a vida não haveria violência ou crueldade que
não estivessem dispostos a praticar para vingar a conspiração. Mas a certeza de
sua morte desarmou-lhes a cólera, porque não podiam mais lhe dar provas de
seu afeto nem receber dele os costumeiros favores. Além disso, tinham agora
motivo para temer um castigo da parte do senado, caso este viesse a governar.
Nesse ínterim, Chereas, temendo que Minuciano sofresse alguma
violência dos alemães, rogou com tanta insistência aos soldados que tivessem
cuidado pela conservação de sua vida que eles o trouxeram até ele, vindo
também Clemente. Então essa grande personagem e também outros senadores
disseram a Chereas que a ação que ele acabava de praticar não podia ser mais
justa; que não se podia louvar o suficiente o fato de ele haver organizado com
tanta coragem aquele grande empreendimento e tê-lo tão valorosamente
executado; que a tirania tem de próprio crescer em pouco tempo pelo prazer
que sente em poder impunemente fazer mal a todos; que o ódio dos homens de
bem que se insurgem contra ela, todavia, faz com que os tiranos percam
repentina e miseravelmente a vida; que bem se via um exemplo disso na pessoa
de Caio, pois não tinha receio de violar as leis nem de ofender os amigos,
tornando-os inimigos; e que, assim, ainda que ele tivesse recebido a morte de
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suas mãos, na verdade ele próprio provocara o seu fim.
Os guardas se retiraram do teatro, e os que se haviam reunido em grande
número para assistir aos jogos, após tão grande tribulação, começaram a se
levantar, a fim de se colocarem em segurança. Tiveram essa oportunidade
quando um médico, de nome Arciom, ao qual haviam obrigado a curar alguns
dos feridos, fez sair os seus amigos, sob o pretexto de que iriam buscar
medicamentos, mas na realidade os estava afastando do perigo.
798. O senado reuniu-se em seguida no palácio. O povo acorreu em
massa e com tumulto para a grande praça do mercado. Um e outro pediam
castigo para os que haviam matado o imperador — o povo com ardor, e o
senado, apenas na aparência. Uma tão grande comoção obrigou o senado a
mandar buscar Valério Asiático, que fora cônsul. O povo lhe dizia, com
impaciência, que não compreendiam como ainda não estavam presos os
conspiradores. E, perguntando-lhe quem havia sido o autor do assassinato, ele
respondeu: “Desejaria ter sido eu”.
O senado publicou em seguida um decreto, pelo qual condenava a
memória de Caio e ordenava a todos que se retirassem: os cidadãos romanos
para as suas casas e os soldados para os seus quartéis. Prometiam aos
primeiros uma grande diminuição de impostos, e aos últimos, recompensas, se
eles permanecessem em seu dever. Isso porque havia o temor de que eles, caso
se sentissem desgostosos, praticassem em Roma toda espécie de violência e,
não se contentando em saquear as casas particulares, fossem levados a
cometer sacrilégios, não poupando nem mesmo os Templos. Os senadores
assistiram todos a essas deliberações, e os que haviam feito parte da
conspiração não somente foram os primeiros a chegar como também tinham
esperanças de que o senado retomasse a sua antiga autoridade.
CAPÍTULO 2
OS SOLDADOS DELIBERAM ELEVAR CLÁUDIO, TIO DE CAIO, AO TRONO DO
IMPÉRIO.
 DISCURSO DE SATURNINO NO SENADO EM FAVOR DA LIBERDADE.
CHEREAS MANDA MATAR A IMPERATRIZ CESÔNIA, MULHER DE CAIO, E
SUA FILHA.
 BOAS E MÁS QUALIDADES DE CAIO. OS SOLDADOS RESOLVEM
CONSTITUIR
 CLÁUDIO IMPERADOR E LEVAM-NO AO CAMPO. O SENADO
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ENVIA DEPUTADOS PARA ROGAR-LHE QUE DESISTA DESSA INTENÇÃO .
799. Enquanto o senado deliberava, os soldados, por seu lado, também
trocavam idéias. Consideradas todas as coisas, pareceu-lhes que, se o governo
popular fosse restabelecido, seria incapaz de sustentar o peso da direção de
tantos reinos e províncias. E, mesmo que fosse possível, eles não teriam
nenhuma vantagem. Além disso, se acontecesse de algum dos principais do
senado ser eleito imperador sem que eles tivessem contribuído para elevá-lo a
esse supremo grau de honra, seriam considerados inimigos.
Assim, julgando que nenhum outro era tão merecedor, escolheram
Cláudio, tanto pela nobreza da origem, pois era tio de Caio, quanto pela
maneira nobre como fora educado. E, convictos de que ele lhes demonstraria a
sua gratidão com benefícios proporcionais à obrigação de que lhes seria
devedor, resolveram ir buscá-lo em sua casa. Gneu Sentio Saturnino disso teve
ciência no senado e, julgando que não havia tempo a perder, para demonstrar
virtude e coragem, ergueu-se como se fora impelido por alguém — mas na
verdade era por iniciativa própria — e falou com uma ousadia digna dos
grandes homens que fizeram brilhar por toda a terra a glória da generosidade
romana.
Ele disse: "Estamos vendo, por fim, senhores, após uma servidão de
tantos anos, despontar hoje, contra toda a esperança, a nossa liberdade. É
verdade que não sabemos o quanto há de durar, porque depende da vontade de
Deus a sua conservação, depois de Ele no-la conceder. Mas, ainda que tão
grande ventura logo desapareça, não devemos deixar de estimá-la, pois não há
homem de coragem que não sinta alegria em viver livre, num país livre, e
desfrutar
 pelo
 menos
 durante
 algumas
 horas
 a
 doçura
 que
 nossos
antepassados gozavam nos séculos em que a república florescia em todo o seu
esplendor. Como nasci após essa liberdade haver sido suprimida, não vi esse
tempo feliz, quando se estudavam as letras e se era treinado nos exercícios que
podem formar o espírito e erguer o ânimo. Assim, tudo o que posso fazer é
manifestar o meu amor por aquela que hoje se nos apresenta. Eis por que julgo
que, abaixo dos deuses imortais, não há honra que não devamos tributar
àqueles cuja generosidade e virtude nos fizeram rever a luz tão doce da
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liberdade. Pois, mesmo que a desfrutássemos durante um só dia, não seria isso
para cada um de nós um grande bem? Para os velhos, porque morreriam sem
tristeza, após uma mudança tão inesperada. Para os jovens, porque é para eles
um exemplo que não poderiam deixar de imitar sem degenerar da virtude de
seus antepassados, pois somente por meio de ações virtuosas podemos
conquistar a liberdade. Das coisas passadas, posso falar apenas por referências
de outros, mas as que vi não me permitem ignorar os males causados pela
tirania. Sei que ela faz guerra aberta à virtude e não tolera os que possuem
coragem e mérito, infunde o medo nos espíritos e leva-os à covarde bajulação,
pois é quando não se administra mais pelas leis, e sim pelo humor do príncipe.
Depois que Júlio César, calcando aos pés a ordem tão religiosamente observada
por nossos pais, estabeleceu a sua injusta monarquia sobre as ruínas da
República, não há calamidade que não tenha afligido a cidade de Roma. Os que
a ele sucederam no soberano poder demonstraram também não ter outro
propósito senão subverter a antiga disciplina. E, como só acreditavam que
encontrariam segurança entre homens dispostos a cometer toda espécie de
crimes para lhes obedecer, não há meios bárbaros de que não se tenham
servido para oprimir as pessoas mais ilustres e mesmo para lhes tirar a vida.
Entre esses intoleráveis senhores que nos fizeram gemer sob tão tirânica
dominação, Caio podia vangloriar-se de superar a todos, pois não exercitava o
seu furor apenas sobre os nossos cidadãos, mas também sobre os parentes e
amigos, e não era menos ímpio para com os deuses. Pois é próprio dos tiranos
não se contentarem em ser avaros, voluptuosos e soberbos. O seu maior prazer
é exterminar os inimigos, e eles consideram como tais todos os que têm alma
nobre. Nenhuma ponderação é capaz de os acalmar, pois, sabendo o quanto são
odiosos aos que lhes estão sujeitos, acham que não se conservarão em
segurança senão oprimin-do-os de tal modo que eles não possam livrar-se de
tantas misérias. Agora, então, que disso nos livramos, com a vantagem de só
dependermos de nós mesmos, a nossa união presente pode gerar segurança
para o futuro. Quem nos impede de reerguer a glória de Roma e dar à República
o seu antigo brilho e o primeiro esplendor? Podemos falar com liberdade contra
as desordens e propor sem perigo tudo o que julgamos mais vantajoso para o
bem público, pois sacudimos o jugo desses senhores prepotentes. Lembremo-
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nos de que nada favoreceu tanto a tirania em seu início quanto a covardia
daqueles que a ela não se ousaram opor e que foram essa fraqueza e a
mesquinhez de se preferir, como escravos, uma vida vergonhosa a uma morte
honrosa que lançaram Roma neste abismo de infinitos males. Mas antes de
todas as coisas, senhores, prestemos a honra devida aos que nos libertaram da
escravidão, particularmente a Chereas, cujo proceder e cujo braço, com o
auxílio dos deuses, nos deram a liberdade. Que recompensa não merece receber
daqueles pelos quais não receou se expor a tal perigo? Ele tem mesmo
vantagem sobre Bruto e Cássio, cuja virtude imitou, pois, enquanto a ação
daqueles foi seguida de uma guerra que perturbou todo o império e o mundo
inteiro, este, pela morte de um só homem, libertou-nos de todos os males".
O discurso de Saturnino foi ouvido com grande prazer por todos os sena-
dores e cavaleiros presentes, e o ardor com que falou o fez esquecer de que
trazia no dedo um anel, onde havia uma pedra na qual estava gravada a
imagem de Caio. Trebélio Máximo arrancou-o então, e no mesmo instante a
pedra foi feita em pedaços.
800. A noite já ia adiantada, e Chereas pediu a senha aos cônsules. E eles
a deram: "Liberdade". E não se cansavam de se rejubilar por haverem tornado a
entrar no gozo daquele sinal de sua antiga autoridade. Chereas em seguida deu
a senha aos oficiais de quatro coortes, os quais, preferindo a dominação
legítima à tirania, haviam abraçado o partido do senado.
801. Pouco depois, o povo, por efeito da inconstância que lhe é peculiar,
externou muita alegria pela esperança de reconquistar, com a liberdade, o
poder que outrora havia desfrutado, e Chereas tornou-se deles muito estimado.
802. Como chefe do empreendimento que acabava de mudar a face do
império, Chereas, julgando que haveria sempre motivo de temor enquanto
existisse alguém da família de Caio, ordenou a Júlio Lupo, um dos oficiais da
guarda, que fosse matar a imperatriz Cesônia e sua filha. Ele foi escolhido
porque tinha parentesco com Clemente e também porque havia participado da
conspiração. Alguns acharam crueldade assassinar uma mulher como se ela
fosse culpada do sangue dos ilustres romanos que Caio — e ele somente, em
seu furor — mandara derramar. Outros diziam, ao contrário, que ela era a
causa principal dos males do império, pois fizera Caio tomar uma bebida, a fim
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de prendê-lo pelo amor, e a poção lhe perturbara o juízo. Por isso deviam
considerá-la culpada de haver ministrado um veneno mortal a muitas pessoas
de eminente virtude.
Esse último sentimento prevaleceu, e Lupo partiu para matá-la.
Encontrou Cesônia estendida por terra, junto ao corpo do marido — o qual
estava privado de tudo, até mesmo do que não se recusa aos mortos — e
manchada com o sangue que corria de suas feridas. A filha estava ao lado dela
e a ouvia queixar-se amargamente de que Caio não quisera atender aos seus
muitos
 avisos.
 Essas
 palavras
 foram
 e
 são
 ainda
 hoje
 diversamente
interpretadas. Uns acreditam que ela queria dizer que havia aconselhado o
imperador seu marido a mudar de proceder, adotando um estilo mais
moderado, a fim de reconquistar o afeto dos romanos e para não levá-los, pelo
desespero, a atentar contra a sua vida. Outros, ao contrário, julgam que essas
palavras significavam que, tendo ouvido alguma notícia da conspiração, ela
havia
 insistido
 com
 ele
 para
 que
 matasse
 imediatamente
 todos
 os
conspiradores.
A princesa, oprimida pela dor, julgava que Lupo viera ver o corpo do
marido. Disse-lhe então, com lágrimas, suspirando, que se aproximasse um
pouco mais. Mas quando percebeu que ele não respondia, não teve dificuldade
para compreender o motivo que o trouxera ali. Deplorando a própria condição,
apresentou-lhe o pescoço e insistiu que se consumasse logo o último ato
daquela sanguinolenta tragédia. Esperou em seguida o golpe de morte com
fortaleza admirável. Sua filha, que era ainda apenas uma criança, foi morta
depois dela.
803. Foi esse o fim de Caio, após reinar durante três anos e oito meses.
Ele já havia demonstrado, mesmo antes de ser imperador, o quanto era brutal,
malvado, voluptuoso, protetor dos caluniadores, covarde e, por conseguinte,
cruel. Considerava a maior vantagem da autoridade soberana poder abusar
dela contra os inocentes e enriquecer-se com os despojos deles depois de os
fazer injustamente perder a vida. Não podia tolerar que o considerassem apenas
um homem, mas desejava loucamente ser reverenciado como um deus e
vangloriava-se das tolas bajulações do povo. O freio que as leis e a virtude
impõem às paixões desregradas era-lhe insuportável. Não havia amizade, por
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maior ou mais antiga que fosse, que lhe pudesse impedir de manchar as mãos
no sangue, quando encolerizado. Todos os homens de bem passavam em seu
espírito por inimigos.
Por mais injustas que fossem as suas ordens, queria que fossem
executadas imediatamente, sem a menor oposição. E, dentre os tantos vícios
que o tornaram odioso, aquela abominável impudicícia, inaudita até então, que
o levou a cometer incesto com a própria irmã, tornou-o detestável a todos.
Durante o seu reinado, nada empreendeu de importante ou magnífico ou de
que o império pudesse haurir alguma vantagem, exceto alguns portos e cais
perto de Régio e na Sicília, para receber os navios que traziam trigo do Egito
para a Itália, e que eram sem dúvida muito úteis ao povo. Ainda assim, eles não
foram terminados, tanto pelo desleixo daqueles aos quais ele dera tal
incumbência quanto porque ele preferia empregar o dinheiro em despesas vãs,
entregando-se mais ao prazer que à realização de obras dignas de um grande
imperador, que iria preferir o bem de seus súditos à sua satisfação particular.
Quanto ao resto, era muito eloqüente, muito instruído nas letras gregas e
romanas e compreendia facilmente todas as coisas. Respondia imediatamente
aos questionamentos que lhe eram feitos, e, mesmo nos assuntos mais
importantes, ninguém mais que ele era capaz de incutir o que empreendia
sustentar, porque possuía uma grande inteligência e se havia preparado para
não ser inferior a Germânico, seu pai, nem a Tibério, o qual a esse respeito
excedia a todos os outros e tomara grande cuidado em instruí-lo. Mas essa boa
educação não o impediu de perder-se quando subiu ao trono, pois é difícil para
aquele que detém um poder absoluto conter a própria maldade. No começo de
seu reinado, ele tinha como amigos pessoas de grande mérito, que o estavam
levando a ações que lhe poderiam granjear boa reputação e glória. Mas ele os
afastou pouco a pouco e, quando se abandonou a uma licenciosidade
desenfreada, sentiu de tal modo aversão por eles que não teve vergonha de
empregar os meios mais infames para causar-lhes a morte e satisfazer assim a
sua ingratidão e crueldade.
804. Devemos agora falar de Cláudio, que, como dissemos, ia adiante de
Caio quando este saía do teatro. Sabendo da morte do imperador e vendo
aquela grande perturbação, ele foi esconder-se num canto muito escuro do
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palácio. No entanto, nenhum outro motivo senão a grandeza de sua origem lhe
provocava temor, pois ele vivera até ali como um cidadão comum e procedera
sempre com muita modéstia. Longe do barulho e do tumulto, ocupava-se com o
estudo, principalmente dos autores gregos, sem se imiscuir de maneira alguma
na política.
A confusão, todavia, aumentava cada vez mais. O palácio estava cheio de
soldados, que corriam para todos os lados com furor, sem saber o que queriam,
e o povo também para lá acorria em massa. Então os guardas pretorianos, que
estavam na primeira linha entre os soldados, se reuniram para deliberar sobre
o que deviam fazer. A morte do imperador não lhes causava pesar, até achavam
que ele bem a havia merecido, mas pensavam em tomar resoluções que lhes
fossem vantajosas. Quanto aos alemães, não era a consideração do bem público
que os incitava contra os que haviam assassinado Caio, e sim a própria paixão.
O temor de Cláudio aumentou quando ele viu as cabeças de Asprenas e
dos outros que os bárbaros haviam sacrificado à sua vingança. Manteve-se em
seu esconderijo, onde só se podia chegar subindo alguns degraus. Um dos
guardas do imperador, de nome Grato, avistou-o, mas, por causa da escuridão,
não pôde reconhecê-lo, por isso aproximou-se e ordenou-lhe que saísse dali.
Cláudio não quis obedecer. O guardou tirou-o à força e então o reconheceu,
gritando aos companheiros: "Eis aqui Germânico.* Façamo-lo imperador". Ante
essas palavras, o guarda o agarrou, para levá-lo, e Cláudio pensou que iria ser
morto, em razão do ódio à memória de Caio. Assim, rogou-lhe que considerasse
a sua inocência e lembrasse que ele não tivera absolutamente parte no que
havia acontecido. Grato, nesse momento, tomou-o pela mão e, sorrindo, disse-
lhe: "Não tenhais receio pela vossa vida, mas pensai apenas em demonstrar
uma coragem digna do império, pois os deuses, cansados dos males que Caio
causou a toda a terra, oferecem-no hoje à vossa virtude. Portanto, subi
gloriosamente ao trono de vossos antepassados".
Enquanto Grato falava, um grande número de soldados da guarda
pretoriana reuniu-se em torno dele. O combate violento que se travara em seu
coração entre o temor e a alegria não lhe permitia sequer caminhar, e então eles
o carregaram nos ombros. Muitos, vendo-o naquele estado, julgaram que iam
matá-lo. E, como sabiam que ele jamais havia tomado parte em coisa alguma e
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até mesmo algumas vezes correra perigo de vida sob o reinado de Caio, ficaram
consternados pela sua desdita e protestaram, dizendo que competia aos
cônsules julgá-lo. À medida que os soldados caminhavam, outros reuniam-se a
eles, que continuavam a levar Cláudio, porque os que carregavam a liteira,
julgando-o perdido ao vê-lo ser agarrado, haviam fugido. O povo abria caminho
àquela multidão de soldados que enchia o palácio, o qual dizem estar na parte
mais antiga de Roma.
Um número maior de soldados uniu-se ainda a eles, e a alegria deles por
ver Cláudio foi tão grande que disseram estar dispostos a tudo para elevá-lo ao
trono do império, quer pelo amor e respeito que conservavam à memória de
Germânico, seu pai, quer porque não ignoravam os males que a ambição
desmedida dos maiorais do senado havia causado quando este ainda possuía
autoridade. Crendo que era impossível restaurar aquela forma de governo,
tinham de eleger um imperador, e importava escolher alguém que lhes ficaria
devendo obrigação. Cláudio, portanto, ser-lhes-ia devedor daquele alto cargo,
com todas as suas honras, e, como recompensa, não haveria favor que ele não
lhes devesse conceder ou que não pudessem esperar dele. Depois que assim
deliberaram, comunicaram a sua opinião aos que se haviam juntado a eles, e
todos puseram-se de acordo num único desígnio: colocaram Cláudio no meio
deles
 e
 o
 levaram
 ao
 acampamento
 para
 concluir
 aquele
 assunto
importantíssimo sem que ninguém os pudesse impedir.
__________________________
* Josefo chama Cláudio de Germânico, porque o imperador era filho de
Germânico.
805. Enquanto isso se passava, o senado e o povo experimentavam senti-
mentos opostos. Aquele, vendo-se livre da servidão dos tiranos, queria retomar
a antiga autoridade. Este, invejando-lhe essa honra, considerava o poder impe-
rial um freio aos excessos dos políticos mais arrojados e uma proteção contra
as suas violências. Por isso, regozijava-se com a resolução tomada pelos
soldados em favor de Cláudio e esperava, por seu intermédio, evitar a guerra
civil e os outros males que Roma sofrerá nos tempos de Pompeu.
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806. O senado, logo que soube do que acontecia no acampamento,
mandou dizer a Cláudio que não aceitasse ser eleito imperador pela violência;
que deixasse o senado cuidar do governo e escolhesse alguém dentre eles, o
qual, com a consistência dos outros senadores, agiria conforme as leis, no que
se referia ao bem público; que ele recordasse os males que haviam afligido a
cidade de Roma durante a dominação do tiranos e os perigos que ele mesmo
correra sob o reinado de Caio; que seria estranho ele, após condenar a tirania
nos outros, querer, por ambição, recolocar a sua pátria sob o jugo insuportável
do qual acabava de ser libertada; que ele, ao contrário, se concordasse em
acatar os sentimentos do senado e em viver como antes, demonstrando a
costumeira virtude, receberia as maiores honras, porque elas lhe seriam
prestadas voluntariamente e por pessoas livres; que, sujeitando-se às leis,
obteria os louvores que bem merecem os homens de virtude; e que, caso ele não
considerasse o que acontecera a Caio e perseverasse em seu intento, o senado
estava resolvido a fazer-lhe oposição, pois, além do grande número de soldados
que este possuía, poderia ainda armar uma grande quantidade de escravos,
embora a sua confiança principal repousasse no socorro dos deuses, que
sempre auxiliam os que combatem pela justiça — e nada era mais justo que
defender a liberdade de seu país.
Verânio e Brocco, os tribunos enviados como embaixadores, depois de
falar a Cláudio, puseram-se de joelhos diante dele e suplicaram-lhe que não
lançasse Roma numa guerra civil. E, vendo-o rodeado por uma multidão de
soldados incomparavelmente mais numerosa que os partidários dos cônsules,
rogaram-lhe, uma vez que estava resolvido a subir ao trono, que ao menos
consentisse em recebê-lo das mãos do senado, pois era mais razoável e ser-Ihe-
ia mais vantajoso ser elevado ao soberano poder por um consentimento geral
que pela violência.
CAPÍTULO 3
O REI AGRIPA FORTALECE CLÁUDIO NA RESOLUÇÃO DE ACEITAR O GOVERNO. OS
SOLDADOS QUE TINHAM ABRAÇADO O PARTIDO DO SENADO, ABANDONAM-NO E SE UNEM
AOS QUE PRESTARAM JURAMENTO A
 CLÁUDIO, NÃO OBSTANTE OS ESFORÇOS DE
CHEREAS PARA IMPEDI-LOS. CLÁUDIO TORNA-SE IMPERADOR E CONDENA CHEREAS À
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MORTE.
 ELE A SOFRE COM MARAVILHOSA FIRMEZA. SABINO, UM DOS PRINCIPAIS
CONJURADOS, SUICIDA-SE.
807. Cláudio, ciente de que o senado estava convencido de poder recon-
quistar a sua primitiva autoridade, respondeu com muita modéstia, para não
chocar os sentimentos deles. Porém não demorou muito a superar os seus
temores, em parte pela proteção que lhe prometiam os soldados e em parte pelo
fato de Agripa já o haver exortado a não ser inimigo de si mesmo, recusando o
oferecimento de um poder que lhe permitiria governar a maior parte da terra.
Por fim, decidiu-se a tudo fazer, no que dependia dele, para secundar a sua boa
estrela.
Esse rei dos judeus, que devia a Caio a sua coroa, havia colocado o corpo
do imperador sobre um leito, com toda a cortesia que o tempo lhe permitiu,
dizendo aos guardas que ele não estava morto, que as feridas o faziam sofrer
muitas dores e que ele tinha necessidade urgente de médicos. E, quando soube
que os soldados haviam levado Cláudio, rompeu a multidão para ir ter com ele,
encontran-do-o em tal aflição de espírito que parecia prestes a ceder a
autoridade ao senado. Então Agripa restituiu-lhe a coragem e o animou a não
perder aquela ocasião de subir ao trono do império.
Mal havia ele inspirado em Cláudio tais sentimentos e voltado para casa,
vieram dizer-lhe que o senado o estava convidando a tomar assento na
companhia deles. Agripa perfumou a cabeça, para fazer pensar que saíra da
mesa, e, fingindo nada saber do que se passava, perguntou, ao chegar, o que
havia acontecido com Cláudio. Contaram-lhe então tudo o que havia sucedido e
rogaram que ele manifestasse a sua opinião sobre o presente estado das coisas.
Ele declarou que estava pronto a dar a vida para manter a dignidade do senado,
mas julgava que eles deviam antes considerar o que lhes seria mais útil e
agradável. Pois, se estavam resolvidos a retomar a soberana autoridade, pre-
cisariam de armas e de soldados, para não sucumbir em tão ingente empreen-
dimento. Eles responderam que o senado possuía homens e armas, bem como
dinheiro para fazer a guerra, e que poderiam ainda armar uma grande quanti-
dade de escravos, aos quais dariam a liberdade.
Agripa replicou: "É meu desejo, senhores, que o vosso intento se realize,
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tal como o desejais. Mas o cuidado que tenho pela vossa preservação me obriga
a dizer-vos que vejo uma extrema diferença entre o grande número de soldados
experientes que abraçaram o partido de Cláudio e os escravos de que falais,
porque estes são homens desacostumados à disciplina e que mal sabem
manejar uma espada. Por isso, sou de opinião que entreis em contato com
Cláudio a fim de dissuadi-lo de sua pretensão ao império. E ofereço-me para ir
com os vossos delegados". A proposta foi aprovada, e o príncipe partiu,
acompanhado por alguns senadores. E, depois de uma conversa em particular
com Cláudio a respeito da agitação que reinava no senado, aconselhou-o a falar
como um príncipe que já se julga no trono.
Cláudio respondeu aos delegados que não se admirava de ver que o
senado estava ressentido da monarquia, depois de haverem sido tão
maltratados sob a tirania dos imperadores precedentes, mas que sob o seu
governo eles experimentariam uma dominação moderada que de império teria
apenas o nome, e todas as coisas se orientariam conforme o parecer deles e a
aprovação de todos. A esse respeito não podiam duvidar de sua palavra, pois
eles mesmos eram testemunhas da maneira como ele vivera até ali, sem jamais
incorrer num ato que lhes desse motivo para censura. Após despedir os
emissários, discursou perante os soldados que se haviam unido a ele e obteve
deles juramento de fidelidade. Depois distribuiu a cada um cinco mil dracmas e
gratificou os oficiais na proporção do número de homens que comandavam,
prometendo tratar favoravelmente todas as outras tropas, onde quer que
estivessem.
808. No dia seguinte, pela manhã, antes do despontar do dia, os cônsules
reuniram o senado no Templo de Júpiter, no Capitólio. Alguns senadores,
porém, não se atreveram a sair de casa, e outros partiram para as suas casas
de campo, porque, vendo o rumo que as coisas estavam tomando, preferiam
uma servidão tranqüila a uma empresa tão perigosa como a de reconquistar a
liberdade. Apenas uns cem deles compareceram à reunião.
Enquanto deliberavam, ouviu-se à porta um grande rumor de soldados, os
quais pediam que o senado escolhesse um imperador, aquele que dentre eles
fosse o mais digno, a fim de impedir o prejuízo que o império sofreria, caso fosse
repartido entre vários governantes. Esse pedido, tão contrário à esperança que
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o senado tivera de reconquistar a liberdade e o antigo poder, perturbou-os
ainda mais, pois já estavam pressionados pelo temor de que Cláudio assumisse
o trono. Havia no entanto alguns que, pela nobreza de seu nascimento ou por
alianças matrimoniais com os césares, se achavam no direito de ansiar o
supremo poder.
Marcos Minúcio, um dos mais ilustres romanos, que desposara júlia, irmã
de Caio, ofereceu-se para governar o império. Os cônsules, em vez de lhe
responder, passaram a outros assuntos. Valério Asiático tinha o mesmo desejo
que Minúcio, mas Minuciano. aue fizera parte da conspiração contra Caio,
impediu que ele se declarasse. Isso porque se alguém chegasse a disputar
abertamente o império a Cláudio haveria uma das mais terríveis carnificinas de
que jamais se ouviu falar, pois, além de um grande número de gladiadores e
das companhias de sentinela mantidas para fazer a ronda na cidade durante a
noite, um grande número de remadores unir-se-ia também a eles. Essa extrema
desordem, tão fácil de se prever, afastou vários senadores da pretensão ao
império, fosse pelo temor do perigo em que Roma se encontrava, fosse pelo risco
que eles mesmos correriam.
809. O dia apenas começava a raiar quando Chereas apareceu com os
seus amigos e sinalizou aos soldados que lhes desejava falar. Em vez de atendê-
lo, no entanto, eles puseram-se a gritar, exigindo que eles sem demora lhes
dessem um imperador. Desse modo, o senado compreendeu o desprezo que
aqueles soldados tinham pela autoridade deles, e isso anulava toda a
possibilidade de se restaurar a antiga forma de governo. A falta de respeito dos
soldados por aquela assembléia tão augusta também despertou a ira de
Chereas e dos que o haviam ajudado na conspiração contra Caio. Não tolerando
mais que continuassem a insistir num imperador, disse-lhes, encolerizado, que
lhes daria um, contanto que lhe trouxessem uma ordem de Êutico.
Êutico era um cocheiro a quem Caio muito havia estimado e de que se
servia para os mais baixos serviços e o mais vis misteres. Acrescentou a isso
diversas censuras, ameaçando mesmo trazer-lhes a cabeça de Cláudio e
declarando que era coisa vergonhosa eles desejarem entregar o império a um
tolo, após ele ter sido arrancado das mãos de um louco. Os soldados, porém,
arrancaram das espadas sem se dignar escutá-lo e foram, com as suas
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bandeiras, procurar Cláudio a fim de se unirem aos demais que já lhe haviam
prestado juramento.
810. O senado, vendo-se abandonado por aqueles que o deviam defender
e sabendo que os cônsules não tinham qualquer autoridade, ficou bastante
indeciso. O fato de haverem irritado Cláudio aumentou-lhe tanto o temor que o
arrependimento por tal excesso os levou a mútuas censuras. No meio dessa
balbúr-dia, Sabino, um dos que haviam matado Caio, adiantou-se e afirmou
que os mataria todos, para não terem de suportar que Cláudio subisse ao trono
e se iniciasse uma nova escravidão. Disse a Chereas, com grande ardor, que era
estranho que ele, tendo sido o primeiro a atacar o tirano, agora se permitisse
continuar a viver sem que a sua pátria houvesse reconquistado a liberdade.
Chereas retrucou que não tinha amor à vida, mas queria antes saber quais
eram os sentimentos de Cláudio.
811.
 Enquanto isso, os soldados se dirigiam de todas as partes ao
acampamento para se unir a Cláudio. Quinto Pompeu, um dos cônsules, foi
também com eles. Mas como era odioso aos soldados, porque havia exortado o
senado a manter a liberdade, vieram a ele de espada na mão e o teriam matado
se Cláudio não os impedisse. Após livrá-lo daquele perigo, convidou-o a sentar-
se junto dele. Não houve a mesma consideração para com os senadores que o
acompanhavam, pois eles foram proibidos de se aproximar de Cláudio para
saudá-lo. Alguns chegaram a ser feridos, entre eles Apônio, e não houve um só
que não tivesse corrido grave perigo de vida. O rei Agripa, entretanto,
aconselhou Cláudio a tratar com gentileza aquelas pessoas, que eram as
principais do império, porque do contrário não haveria mais ninguém da
nobreza com quem ele pudesse governar. Ele aprovou essa advertência e pediu
imediatamente ao senado que se reunisse em seu palácio, para onde ele se fez
levar em liteira através da cidade, acompanhado pelos soldados, que afastavam
o povo.
812. Por esse mesmo tempo, Chereas e Sabino, que haviam sido os mais
influentes na conspiração, não tiveram receio de se apresentar em público,
contra a ordem de Poliom, a quem Cláudio pouco antes nomeara capitão da
guarda pretoriana. Mas Cláudio, logo que chegou ao palácio, reuniu os seus
amigos e condenou Chereas à morte. Eles não podiam, no entanto, deixar de
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reconhecer que a ação que ele havia praticado fora gloriosa, porém o acusaram
de traição e acharam que a sua morte traria segurança ao imperador. Levaram-
no então ao suplício, com Lupo e vários outros conjurados.
Conta-se que ele demonstrou maravilhosa firmeza e que, além de não
alterar o rosto, censurou a fraqueza de Lupo, ao vê-lo chorar porque lhe haviam
tirado a túnica: disse-lhe que um lobo* jamais sentia frio. No meio da grande
multidão que o rodeava, ele perguntou ao soldado que o iria executar se ele
estava bem treinado naquele ofício e se a sua espada estava bem afiada. Pediu
depois que lhe trouxessem a espada com a qual havia matado Caio. Um único
golpe decepou-lhe a cabeça. Lupo, no entanto, recebeu vários golpes, porque o
medo fazia com que a balançasse. Alguns dias depois, celebrou-se a festa na
qual os romanos fazem ofertas pelos parentes mortos, e o povo as lançou ao
fogo em honra a Chereas, pedindo que ele lhes perdoasse a ingratidão. Dessa
forma, chegou ao fim aquele que deixou célebre a sua memória por um em-
preendimento tão generosamente concebido, mantido com tanta perseverança e
tão corajosamente executado.
_________________________
* Lupo significa lobo, em latim. (N. do R.)
813. Quanto a Sabino, Cláudio não se contentou em perdoá-lo, mas o
conservou no cargo, dizendo que não podia faltar à palavra dada aos que o
haviam envolvido na conjuração. Mas esse generoso romano, incapaz de
resignar-se a sobreviver à supressão da liberdade pública, matou-se com um
golpe de espada, libertando-se de uma vida que a sua coragem tornaria
insuportável.
CAPÍTULO 4
O IMPERADOR CLÁUDIO CONFIRMA O REINO A AGRIPA E ACRESCENTA - LHE A
JUDÉIA E SAMARIA. ENTREGA O REINO DA CÁLCIDA A HERODES, IRMÃO DE
AGRIPA, E PROMULGA EDITOS FAVORÁVEIS AOS JUDEUS.
814.
 Os primeiros atos de Cláudio, após restaurar o soberano poder,
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foram a dispensa de todos os soldados que lhe eram suspeitos e a confirmação
de Agripa no reino que este havia recebido de Caio. A esse respeito, promulgou
um edito pelo qual, depois de lhe dedicar grandes honras e elogios,
acrescentava aos seus territórios a Judéia e Samaria, achando que eles lhe
pertenciam por justiça, porque haviam sido do rei Herodes, seu avô. Deu-lhe
ainda, de sua parte, o reino de Abela, que pertencera a Lisânias, com todas as
terras do monte Líbano. A aliança desse príncipe com povo romano foi gravado
em uma lâmina de cobre que se colocou no meio da grande praça do mercado
de Roma.
815. A Antíoco, que havia sido despojado de seu reino, o novo imperador
entregou Comagena e uma parte da Cilícia. A Marco, filho de Alexandre
Lisímaco, alabarche, por quem nutria um afeto particular e que tivera a direção
de todos os negócios de Antônia, sua mãe, a qual Caio mandara prender,
Cláudio deu por esposa Berenice, filha de Agripa. Marco, porém, morreu antes
das núpcias. Então Agripa deu-a em casamento a Herodes, seu irmão, para o
qual conseguiu de Cláudio o reino da Cálcida.
816. Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande divergência entre os
judeus e os gregos que moravam em Alexandria. Os primeiros, tendo sido muito
oprimidos e maltratados pelos habitantes de Alexandria durante o reinado de
Caio, logo que souberam da notícia de sua morte tomaram as armas. Caio
escreveu ao governador do Egito que acalmasse aquela agitação, e enviou, a
rogo dos reis Agripa e Herodes, um edito a Alexandria e à Síria.
Os termos eram estes: "Tibério Cláudio César Augusto Germânico,
príncipe da República, fez o edito que segue: Constando de diversos registros
que os reis do Egito há muito tempo permitiram aos judeus que moram em
Alexandria desfrutar os mesmos privilégios que os demais habitantes, Augusto,
depois de anexar essa cidade ao império, confirmou-lhes esses mesmos direitos
— e eles os usufruíram pacificamente sob Áqüila e outros governadores que lhe
sucederam —, bem como a permissão, concedida por esse mesmo imperador,
para que, quando o seu etnarca morresse, elegessem um outro. Permitiu-lhes
também viver segundo as suas leis e no exercício de sua religião sem serem
perturbados. Quando Caio quis fazer-se adorar como um deus, todavia, os
outros habitantes de Alexandria tomaram essa ocasião para incitar o príncipe
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contra eles, porque se recusavam a obedecer a uma ordem tão ímpia. E, como
nada seria mais injusto que persegui-los por esse motivo, é nosso desejo que
eles sejam mantidos em seus privilégios, e ordenamos a uns e outros que vivam
em paz, para o futuro, sem promover perturbação alguma".
Esse mesmo imperador enviou outro edito a todas as províncias do Impé-
rio Romano, cujo conteúdo era o seguinte: "Tibério Cláudio César Augusto
Germânico, sumo sacerdote da República e cônsul designado pela segunda vez.
Os reis Agripa e Herodes, que são nossos amigos muito particulares, rogaram-
nos que permitíssemos aos judeus esparsos por todo o Império Romano viver
segundo as suas leis, como de fato o permitimos. Nós, de boa mente, o
concedemos aos que moram em Alexandria, não somente em consideração a
dois tão grandes intercessores, mas também porque julgamos que o afeto e a
fidelidade que os judeus sempre demonstraram pelo povo romano os tornam
dignos de receber essa graça. Assim, é nosso desejo que nem mesmo nas
cidades gregas eles sejam impedidos de usufruir esses favores, pois o divino
Augusto os manteve, e que possam desfrutá-los no futuro em toda a extensão
do império. Desse modo, por essa prova de nossa bondade, estarão eles
também obrigados a respeitar a religião dos outros povos e a se contentar em
viver essa plena liberdade. E, para que ninguém disso possa duvidar,
ordenamos que o presente edito seja publicado não somente em toda a Itália,
mas enviado por nossos oficiais aos reis e príncipes fora dela, e afixado em
lugar visível durante trinta dias".
CAPÍTULO 5
O REI AGRIPA RETORNA AO SEU REINO, COLOCA NO TESOURO DO TEMPLO A
CADEIA DE OURO QUE ERA UMA LEMBRANÇA DE SUA PRISÃO E DESIGNA O
NOVO SUMO SACERDOTE. IRRITA-SE COM A INSOLÊNCIA DOS DÓRIOS, QUE
HAVIAM COLOCADO NA SINAGOGA UMA ESTÁTUA DO IMPERADOR.
817. Depois que esses editos, pelos quais o imperador Cláudio
demonstrava tanta afeto pelo judeus, foram publicados e enviados a Alexandria
e a todos os outros países sujeitos ao Império Romano, ele permitiu a Agripa, a
quem havia cumulado de honras e benefícios, voltar ao seu reino, e entregou-
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lhe cartas de recomendação endereçadas aos governadores e aos intendentes
das províncias. Logo que chegou a Jerusalém, Agripa cumpriu, com sacrifícios,
os votos que fizera a Deus, obrigou os nazarenos a cortar o cabelo e realizou
todas as outras coisas que a Lei determina.
Ele também mandou colocar no Templo, no lugar onde é guardado o di-
nheiro consagrado a Deus, aquela cadeia de ouro com a qual o imperador Caio
lhe presenteara e que era do mesmo peso do grilhão de ferro com que Tibério
não tivera vergonha de prender suas mãos reais, a fim de que, estando expostas
ao público, nelas se pudesse ver um ilustre exemplo das vicissitu-des da vida e
saber que, quando elas privam os homens das honras que desfrutavam, Deus
pode reerguê-los e restaurá-los, em uma prosperidade ainda maior. Não havia
ninguém a quem essa cadeia assim consagrada não desse a conhecer que o
príncipe, após ter sido posto na prisão por um motivo menor e contra o respeito
devido a alguém de uma origem como a sua, dela não somente havia saído
gloriosamente como também subira ao trono. Porque, assim como as potências
mais elevadas caem fácil e repentinamente, as que estavam caídas erguem-se
com mais glória, pela inconstância e pela revolução das coisas humanas.
818. Depois de cumprir todos os seus deveres para com Deus, o rei Agripa
tirou o sumo sacerdócio de TeóFílon, filho de Anano, e entregou-a a Simão,
cognominado Cantara, filho de Boeto, sumo sacerdote, cuja filha, como disse-
mos, Herodes, o Grande, havia desposado. Simão tivera dois irmãos que tam-
bém haviam sido sumos sacerdotes, e vimos que outrora, sob o reinado dos
macedônios, a mesma coisa aconteceu aos três filhos de Simão, sumo
sacerdote, filho de Onias, que foram sumos sacerdotes, como o pai.
Depois que Agripa dispôs tudo o que se referia ao supremo sacerdote, não
quis deixar sem agradecimento o afeto que os habitantes de Jerusalém lhe havi-
am demonstrado. E, para mostrar-lhes a sua generosidade, perdoou os
impostos que cada família devia pagar e honrou Silas, que jamais o havia
abandonado nas dificuldades, com o cargo de general de suas tropas.
819. Pouco tempo depois, alguns moços da Dórida, demonstrando a sua
temeridade e insolência, atreveram-se, sob o pretexto de piedade, a colocar uma
estátua do imperador da sinagoga. E, como nada poderia ser mais contrário e
injurioso às nossas leis, Agripa ficou tão irritado que foi imediatamente
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procurar Petrônio, que tinha o comando do exército na Síria. O governador
mostrou que estava não menos surpreendido que ele ante tão grande impiedade
e escreveu aos que haviam tido a ousadia de cometê-la nos termos que se
seguem.
CAPÍTULO 6
CARTA DE PETRÔNIO , GOVERNADOR DA SÍRIA, AOS DÓRIOS, ACERCA DA
ESTÁTUA DO IMPERADOR QUE ELES COLOCARAM NA SINAGOGA.
 O REI
AGRIPA ENTREGA O SUMO SACERDÓCIO A MATIAS.
MARCOS É CONSTITUÍDO GOVERNADOR DA SÍRIA.
820.
 "Petrônio,
 governador,
 por
 Tibério
 Cláudio
 César
 Augusto
Germânico, aos magistrados dórios. Eu soube que, após o edito de Cláudio
César Augusto Germânico, que permite aos judeus viver segundo as suas leis,
alguns dos vossos tiveram a insolência de profanar a sua sinagoga, colocando
lá uma estátua. Eles ofenderam também à sua religião e à piedade da
imperador, que deseja que cada divindade seja honrada no Templo que lhe for
consagrado. A esse respeito não falarei do desprezo que se fez de minhas
ordens, porque nisso se feriu até mesmo o respeito devido à autoridade de
César, que não somente estima que os judeus observem os costumes de seus
antepassados como ainda lhes concedeu um direito de burguesia semelhante
ao dos gregos. Por isso, ordenei ao comandante Vitélio Próculo que me traga
aqueles que dizem que foi por uma agitação popular e sem o vosso
consentimento que se cometeu esse crime, a fim de que eu escute as suas
justificativas. E não podereis dar-me testemunho melhor de que em nada
tivestes parte que declarando a Próculo quem são os culpados e impedindo que,
contra o desígnio do rei Agripa e o meu, aconteça alguma outra perturbação,
como os espíritos perversos desejariam. Porque para mim e para o rei Agripa
nada é mais importante que evitar que se dê aos judeus um motivo para
tomarem armas com o pretexto de se defender. E, para eliminarmos toda
possibilidade de dúvida quanto à vontade do imperador, anexo a esta carta a
cópia de seu edito, que se refere aos habitantes de Alexandria e que o rei Agripa
nos mostrou quando estávamos em nosso tribunal, a fim de que, conforme o
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desejo do imperador de que os judeus sejam mantidos nos favores que Augusto
lhes concedeu e que todos vivam segundo a religião de seu país, impeçais tudo
o que possa instigar alguma perturbação ou revolta".
Esse sensato procedimento de Petrônio remediou a falta que se havia
cometido, e por causa disso não mais se cometeram outras semelhantes.
821. O rei Agripa, depois disso, tirou o sumo sacerdócio de Simão Cantara
e entregou-o a Jônatas, filho de Anano, julgando-o mais digno dele. Mas ele
rogou que o rei o dispensasse do cargo, expressando-se nestes termos: "Sou-vos
muito grato por me desejardes conceder tanta honra, mas Deus não me julga
digno dela. É-me suficiente já haver recebido uma vez a veste sagrada, e eu não
poderia agora retomá-lo tão inocentemente como fiz outrora. SeVossa Majestade
desejar conceder essa dignidade a uma pessoa que a merece muito mais que eu
e cuja virtude seria muito mais agradável a Deus, eu não hesitaria em vos
propor o meu irmão". Essa resposta tão modesta comoveu Agripa de tal modo
que ele deu o sumo sacerdócio a Matias, irmão de Jônatas. Algum tempo
depois, Marcos sucedeu a Petrônio no governo da Síria.
CAPÍTULO 7
A EXTREMA IMPRUDÊNCIA DE SILAS, GENERAL DAS TROPAS DE AGRIPA, LEVA ESSE
PRÍNCIPE A PÔ-LO NUMA PRISÃO.
 FORTIFICA JERUSALÉM, MAS O
IMPERADOR
 CLÁUDIO O PROÍBE DE CONTINUAR. SUAS EXCELENTES
QUALIDADES.
 SEUS SOBERBOS EDIFÍCIOS. MOTIVO DE SUA AVERSÃO POR
MARCOS , GOVERNADOR DA SÍRIA. ELE ENTREGA O SUMO SACERDÓCIO A
ELIONEU. MORRE DE MANEIRA HORRÍVEL. DEIXA COMO SUCESSOR O SEU
FILHO
 AGRIPA. H ORRÍVEL INGRATIDÃO DOS HABITANTES DE CESARÉIA E DE
S EBASTE PARA COM A SUA MEMÓRIA. O IMPERADOR CLÁUDIO ENVIA FADO PARA
GOVERNAR AJUDÉIA, POR CAUSA DA MENORIDADE DE
 AGRIPA .
822. Silas, general das tropas do rei Agripa, como dissemos, lhe fora tão
fiel durante as adversidades, que jamais se recusou a tomar parte com ele nos
perigos e nunca deixou de se expor às situações mais arriscadas para lhe dar
provas disso. Porém o mérito adquirido junto do rei por tantos serviços
prestados concebeu nele tal confiança que ele não admitia ser tratado como
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subalterno. Esquecendo o respeito que devia ao soberano, falava-lhe sempre em
tom de reprimenda e com uma liberdade que não se usa ao falar com os reis, e
discorria sobre a sua infelicidade passada, exagerando na rememoração dos
favores que lhe prestara e dos sofrimentos que experimentara por causa dele.
Essa aborrecida e imprudente maneira de agir tornou-se insuportável ao
príncipe, porque nada é mais enfadonho que a renovação das lembranças
desagradáveis nem mais ridículo que a menção insistente dos favores e serviços
que se prestou a alguém. Por fim, o descontentamento que Agripa sentiu foi tão
grande que, cedendo à cólera mais que à razão, não somente privou Silas de
seu cargo como também o encerrou numa prisão, na cidade de seu nascimento.
Algum tempo depois, no entanto, acalmou-se, ao recordar os favores que dele
recebera, e mandou chamá-lo para tomar parte num banquete que oferecia aos
amigos.
Silas, todavia, por ser incapaz de dissimular e porque estava convencido
de que o rei lhe fizera uma grave injustiça, assim falou aos convidados: "Vós
estais vendo a honra que o rei hoje me faz, mas ela não durará muito. Dela ele
me irá privar, do mesmo modo como me destituiu — de maneira ultrajosa — do
cargo que a minha fidelidade havia conquistado. Poderá ele persuadir-se de que
eu deixarei de falar com liberdade? Como a minha consciência de nada me
censura, publicarei sempre em alta voz as dificuldades de que o livrei e as
amarguras que experimentei em prol de sua conservação e para a sua glória,
bem como as cadeias e a escuridão de um cárcere que me foram dadas como
recompensa. Tão grande injúria não é daquelas que se podem esquecer, e dela
não me recordarei somente durante o resto de minha vida, mas também após a
minha morte". Esse homem, tão imprudente quanto fiel, não se contentando em
falar desse modo aos convidados, rogou que o dissessem ao rei. E este,
percebendo então que aquela loucura era incurável, tornou a mandá-lo para a
prisão.
823. Agripa dirigiu depois os seus cuidados a Jerusalém. Empregou o
dinheiro público para aumentar e reedificar os muros da nova cidade, e a teria
tornado tão forte que ela seria inexpugnável. Porém Marcos, governador da
Síria, avisou o imperador, e este ordenou a Agripa que não continuasse o
trabalho, e ele não ousou desobedecer.
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824. Esse rei dos judeus era tão liberal e benéfico e tão afeiçoado aos
seus súditos que não lhes poupava despesa alguma. E, por suas louváveis
ações, alcançou celebridade e crédito junto deles. Era muito diferente de
Herodes, seu avô, que era cruel e preferia os gregos aos judeus, como se pode
julgar pelas vultosas somas que ele investiu para construir e embelezar cidades,
Templos, teatros, banhos e outros suntuosos edifícios fora de seu país, sem
jamais se ter dignado empreender algo semelhante na Judéia. Agripa, no
entanto, era manso e afável para com todos. Tratava bem os seus súditos e os
estrangeiros e tinha uma satisfação particular em aliviar os aflitos. Fazia a sua
moradia ordinariamente em Jerusalém, e não se passava um dia sem que ele
oferecesse sacrifícios a Deus, como ordenam as nossas leis, pois ele era muito
religioso e observava os costumes de nossos antepassados.
825.
 Durante uma viagem que ele fez a Cesaréia, um doutor da lei,
chamado Simão, teve a ousadia de acusá-lo publicamente, em Jerusalém, de
ser um viciado, ao qual se devia recusar a entrada no Templo, pois tal só era
permitida às pessoas castas. O governador da cidade avisou Agripa do ocorrido,
e ele solicitou-lhe que fosse buscar aquele homem. Simão foi avisado, e, quando
chegou a Cesaréia, o príncipe já se encontrava no teatro. Agripa convidou-o a
sentar-se junto de si e falou-lhe com voz suave e sem se irritar: "Dizei-me, eu
vos peço, quais são os vícios de que me acusais?" Aquele homem ficou tão
confuso que, não sabendo o que responder, suplicou ao rei que o perdoasse, e
este o perdoou no mesmo instante, dizendo que os reis devem preferir a
clemência ao rigor e fazer com que a cólera seja vencida pela moderação. A sua
bondade foi ainda além, pois ele despediu Simão com presentes.
826. Muitas cidades sentiram os efeitos da generosidade desse soberano.
Ele nada poupou para erigir em Berito um suntuoso teatro e um anfiteatro,
banhos e galerias que não lhe eram inferiores em beleza. Diversos concertos de
música e outros divertimentos tiveram lugar pela primeira vez nesse teatro.
Com o propósito de divertir o povo e para que se visse no meio da paz uma
imagem da guerra, mandaram vir ao anfiteatro mil e quatrocentos homens
condenados à morte, que foram divididos em dois grupos. O combate foi tão
obstinado e sangrento que, de todo esse grande número, nem um só ficou com
vida.
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827. Depois disso, ele foi de Berito a Tiberíades, cidade da Galiléia. E os
príncipes seus vizinhos — Antíoco, rei de Comagena; Sampsigeram, rei de
Emesa: Cotis, rei da Pequena Armênia; Polemom, príncipe do Ponto; Herodes,
rei da Cálcida, irmão de Agripa — vieram procurá-lo, porque muito o
estimavam. Ele, por sua vez, tratou-os com a bondade e a magnificência
correspondentes à dignidade de receber visitas tão honrosas. Quando estavam
todos reunidos, Marco, governador da Síria, veio também visitá-lo. Agripa,
querendo prestar-lhe a honra que era devida ao poder e à grandeza romana, foi
encontrá-lo sete estádios antes, o que foi a primeira causa de desentendimento
entre eles, pois aqueles reis que tinham vindo visitar Agripa estavam com ele no
mesmo carro, e Marcos considerou aquela união prejudicial ao império,
declarando que deviam todos regressar aos seus territórios. Isso deixou Agripa
muito ofendido, motivo pelo qual daí em diante se tornaram inimigos.
828.
 Nesse mesmo tempo, ele tirou o sumo sacerdócio de Matias e
entregou-a a Elioneu, filho de Citeu. E, no terceiro ano de seu reinado, celebrou
na cidade de Cesaréia, antes conhecida como a torre de Estratão, jogos solenes
em honra ao imperador. Os principais do reino e toda a nobreza da província
reuniram-se nessa festa. No segundo dia dos espetáculos, Agripa chegou bem
cedo pela manhã ao teatro. Usava uma veste trabalhada com muita arte, cujo
forro era de prata, e, quando o sol o iluminava com os seus raios, emitia tão
vivos reflexos de luz que não se podia olhar para ele sem se sentir tomado por
um respeito misto de temor. Então alguns mesquinhos bajuladores, com
palavras melífluas, mas que destilam veneno mortal sobre o coração dos
príncipes, começaram a dizer que até então haviam considerado o seu rei um
simples homem, porém dali em diante o iriam reverenciar como a um deus,
rogando-lhe que se lhes mostrasse favorável, pois parecia que ele não era como
os demais, de condição mortal.
Agripa tolerou essa impiedade, que deveria ter sido castigada com muito
rigor. E logo ele levantou os olhos e viu uma coruja por sobre a sua cabeça,
pousada numa corda estendida no ar, e lembrou-se de que aquela ave era agora
um presságio de sua desgraça, tal como outrora havia sido o prenuncio de sua
prosperidade. Soltou então um profundo suspiro, ao mesmo tempo que come-
çou a sentir as entranhas roídas por uma dor horrível. E, voltando-se para os
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seus amigos, disse-lhes: "Aquele que pretendeis fazer acreditar que é imortal
está prestes a morrer. A providência divina veio desmascarar a vossa mentira.
Mas é preciso aceitar as determinações de Deus, apesar de eu ter sido muito
feliz, a ponto de não haver príncipe de quem eu invejasse a felicidade".
Dizendo essas palavras, ele sentiu que as dores aumentavam. Levaram-no
ao palácio, e a notícia de que ele estava prestes a exalar o último suspiro
espalhou-se imediatamente. Logo todo o povo, com a cabeça coberta por um
saco, segundo o costume de nossos pais, fez orações a Deus pela sua saúde, e
todo o ar ressoava com gritos e lamentações. O príncipe, que estava no quarto
mais alto do palácio, vendo-os de lá prostrados em terra, não pôde reter as
lágrimas. As dores, porém, continuaram por cinco dias a fio e o levaram desta
vida, aos cinqüenta e quatro anos de idade e sete de reinado. Foram quatro
anos sob o imperador Caio, dos quais nos três primeiros ele governou apenas a
tetrarquia que pertencera a Filipe, sendo-lhe acrescentada no quarto ano a de
Herodes. Nos três anos em que reinou sob Cláudio, esse imperador deu-lhe
também a judéia, Samaria e Cesaréia. E, embora as suas rendas fossem muito
altas,* ele era tão liberal e magnânimo que se via obrigado a pedir emprestado
grandes somas.
___________________________
* "Mil e duzentas vezes dez mil", diz o texto grego, sem nada mais
especificar.
829. Antes que a notícia de sua morte se tivesse divulgado, Cheicias,
general das tropas, e Herodes, o príncipe da Cálcida, ambos inimigos de Silas,
mandaram que Aristo o matasse na prisão, fingido ter recebido ordem do rei
para isso.
830. O príncipe, que possuía grandes qualidades, deixou, ao morrer, um
filho de dezessete anos, chamado Agripa, como ele, e três filhas, das quais a
mais velha, de nome Berenice, que então contava dezesseis anos, havia
desposado Herodes, seu tio. Mariana, que era a segunda, de dez anos, era noiva
de Júlio Arqueiau, filho de Cheicias. E a terceira, de nome Drusila, que tinha
apenas seis anos de idade, era noiva de Epifânio, filho de Arqueiau, rei de
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Comagena.
831.
 Quando a notícia da morte do rei Agripa se tornou pública, os
habitantes de Cesaréia e de Sebaste esqueceram todos os benefícios que dele
haviam recebido. A sua horrível ingratidão levou-os a querer enxovalhar a sua
memória com injúrias e ultrajes que eu não teria coragem de referir aqui. Então
os vândalos (e entre eles alguns soldados), que eram em grande número no
meio do povo, tiveram a insolência de arrancar do palácio as estátuas das
princesas filhas do rei e levá-las a lugares infames, onde uma vergonhosa
prostituição reúne as infelizes vítimas da impudicícia pública. E, depois que
foram expostas à vista de todos, acrescentaram-lhes todas as ofensas e
indignidades que imaginaram.
Esses pérfidos indivíduos chegaram a promover banquetes nas ruas,
onde, com coroas de flores sobre a cabeça e cabelos perfumados, ofereceram
sacrifícios a Charom e beberam à saúde uns dos outros, demonstrando grande
alegria pela morte do soberano. Ações tão insolentes e ofensivas foram a prova
que eles deram de sua ingratidão, depois dos muitos benefícios que deviam a
Herodes, o Grande, seu avô, que não somente construíra aquelas cidades como
também as havia embelezado com suntuosos Templos e com aqueles portos
admiráveis que as tornaram tão célebres.
832. Nessa época, o jovem Agripa se encontrava em Roma, sendo educado
junto ao imperador. Cláudio ficou muito sentido com a morte de Agripa e
enfurecido contra os habitantes de Sebaste e Cesaréia. A fim de cumprir o seu
juramento, pensou em mandar imediatamente o jovem príncipe para tomar
posse do reino. Porém os amigos e libertos, que tinham grande autoridade
perante ele, o fizeram mudar de idéia, alertando-o de que era perigoso conceder
o governo de um reino tão extenso a um jovem que não tinha experiência
suficiente para administrá-lo, quando a tarefa já era árdua até mesmo para um
homem maduro.
Assim, ele decidiu enviar outro governador para a Judéia, o qual teria
autoridade em todo o reino. Sabedor de que Marcos e o falecido rei Agripa se
haviam desentendido, julgou que prestaria melhor essa honra à memória do
príncipe entregando o cargo a um amigo, em vez de a um inimigo. Assim,
enviou Cúspio Fado, recomendando-lhe, antes de tudo, que castigasse
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severamente os habitantes de Cesaréia e Sebaste pelos ultrajes que haviam
feito à memória de Agripa e às princesas filhas dele. Ordenou-lhe também que
enviasse ao Ponto as cinco coortes e o resto dos soldados que estavam naquelas
duas cidades e pusesse em seu lugar um corpo retirado das legiões romanas da
Síria. A última ordem, no entanto, não foi executada, pois aqueles enviaram
delegados ao imperador, os quais lhe acalmaram o espírito e obtiveram dele
permissão para ficar na Judéia. E isso foi o princípio de muitos males que
depois vieram a afligi-la e a semente da guerra que sucedeu sob o governo de
Floro. Vespasiano estava tão convencido de ser esse o motivo que, após
subjugar o país, removeu-os da província, como relataremos em seguida.
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Livro Vigésimo
CAPÍTULO 1
O IMPERADOR CLÁUDIO DESTITUI MARCOS DO CARGO DE GOVERNADOR DA SÍRIA.
LONGINO O SUBSTITUI. FADO, GOVERNADOR DA JUDÉIA, CASTIGA OS
SEDICIOSOS E LADRÕES QUE PERTURBAM A PROVÍNCIA E ORDENA AOS
JUDEUS QUE REPONHAM NA FORTALEZA
 ANTÔNIA AS VESTES SAGRADAS DO
SUMO SACERDOTE.
 O IMPERADOR REVOGA ESSA ORDEM A PEDIDO DO
JOVEM
 AGRIPA.
833. Depois da morte do rei Agripa, o Grande, de que acabamos de falar
no livro precedente, o imperador Cláudio, para honrar a sua memória e
manifestar o quanto o havia amado, tirou de Marcos o governo da Síria, como
este mesmo lhe havia muitas vezes solicitado, e o entregou a Longino.
834. Nesse mesmo tempo, Fado, que havia sido nomeado para a judéia,
foi exercer o cargo. Existia então uma séria polêmica entre os judeus que
habitavam além do Jordão e os de Filadélfia, com relação aos limites da aldeia
de Mia, cujos habitantes eram de temperamento guerreiro. Os judeus haviam
pegado em armas sem o consentimento de seus magistrados e matado vários
dentre os de Filadéfia. Ele ficou tão irritado ao vê-los querendo fazer justiça por
si mesmos, sem esperar o seu parecer, que depois de mandar prender Aníbal,
Areram e Eieazar, os principais autores da sedição, condenou à morte o
primeiro e exilou os outros dois.
835. Algum tempo depois, mandou também prender Ptolomeu, chefe dos
ladrões que tantos males haviam causado aos idumeus e aos árabes.
Condenou-o à morte e expurgou assim toda a judéia desses inimigos da
segurança pública. Reuniu depois os sacerdotes e os maiorais de Jerusalém
para ordenar-lhes, da parte do imperador, que recolocassem na fortaleza
Antônia as vestes sagradas, de que somente os sumos sacerdotes podem se
servir, a fim de que lá ficassem e fossem guardados pelos romanos, como
outrora. Com receio, porém, de que essa ordem os levasse a uma revolta, levou
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consigo algumas tropas a Jerusalém.
Os sacerdotes e os que os acompanhavam não ousaram contestar a
ordem, mas rogaram a Longino e a Fado que lhes fosse permitido enviar
embaixadores ao imperador com uma petição para que a guarda da veste
sacerdotal permanecesse com eles e que nada se mudasse enquanto
aguardavam a resposta. Eles foram atendidos, sob a condição de que deixassem
os filhos como reféns, no que eles concordaram sem dificuldade. Depois disso,
partiram os embaixadores, e o jovem Agripa, filho do rei Agripa, o Grande, que
ainda estava em Roma, ao saber o motivo que os levava até ali, rogou ao
imperador que consentisse naquele pedido e enviasse mensagem a Fado.
Cláudio mandou vir os embaixadores e disse-lhes que concedia o que eles
desejavam, mas que agradecessem a Agripa, pois era em consideração a ele e ao
seu pedido que lhes outorgava aquela graça.
Entregou-lhes em seguida uma carta, que reproduzo aqui: "Cláudio César
Germânico, príncipe da República pela quinta vez, cônsul pela quarta vez,
imperador pela décima e pai da Pátria. Aos magistrados, ao senado, ao povo de
Jerusalém e a toda a nação dos judeus, saudação. Tendo os vossos
embaixadores — que me foram apresentados por Agripa, o qual foi educado e
instruído em minha companhia, e a quem muito estimo — me agradecido pelo
cuidado que dispenso à vossa nação e me solicitado com grande insistência a
manutenção da guarda dos ornamentos de vosso sumo sacerdote e da coroa, tal
como Vitélio, que me é muito caro, fez antes de mim, consenti em seu pedido.
Fiz isso tanto por piedade quanto porque acho justo permitir a cada qual viver
conforme a religião de seu país e também pelo afeto particular que o rei
Herodes e o jovem Agripa têm por mim e pelas vossas necessidades, sendo que
tenho com eles grande amizade. Estou escrevendo sobre esse assunto a Cúspio
Fado, por Cornélio, filho de Cero, Trifo, filho de Têudio, Doroteu, filho de
Natanael, e João, filho de Jotre. Esta carta é datada do quarto ano das calendas
de julho, sendo os cônsules Rufo e Pompeu Silvano".
836. Herodes, príncipe da Cálcida e irmão do falecido rei Agripa, o
Grande, pediu então ao imperador Cláudio, e obteve dele, poder sobre o Templo
e sobre o tesouro sagrado e o direito de escolher o sumo sacerdote. Essa
autoridade permaneceu com ele e com os seus descendentes até o fim da guerra
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dos judeus. Esse príncipe tirou o sumo sacerdócio de Cantara, e entregou-o a
José, filho de Caneu.
CAPÍTULO 2
IZATE, REI DOS ADIABENIANOS, E A RAINHA HELENA, SUA MÃE, ABRAÇAM
A RELIGIÃO DOS JUDEUS.
 SUA EXCELSA PIEDADE E GRANDES FEITOS DESSE
PRÍNCIPE QUE
 DEUS PROTEGE VISIVELMENTE. FADO, GOVERNADOR DA
JUDÉIA, MANDA CASTIGAR UM HOMEM QUE ENGANAVA
O POVO E OS QUE O TINHAM SEGUIDO.
837. Por esse tempo, a rainha Helena e Izate, seu filho, rei dos
adiabenianos, abraçaram a religião dos judeus, pelo motivo que vou expor.
Monobazo, cognominado Bazeu, rei daquela nação, ficou possuído de uma
paixão violenta por aquela princesa, que era sua irmã, e a desposou. Ela ficou
grávida, e, estando ele deitado junto dela, adormecido, pôs a mão sobre o ventre
da esposa e então ouviu uma voz que lhe ordenava que a retirasse, para não
ferir a criança concebida, a qual, por uma determinação particular de Deus,
deveria ser muito feliz. Ele despertou muito perturbado e contou a esposa o que
havia escutado. Quando o menino veio ao mundo, deu-lhe o nome de Izate.
Tinha ele já outro filho daquela princesa, de nome Monobazo, como ele, e ainda
outros, de outras mulheres. Mas a sua ternura por Izate era tão grande que
todos notaram que, mesmo que fosse aquele o único filho, não o teria amado
mais.
O grande amor do rei por Izate causou inveja aos outros irmãos. Eles não
se conformavam que o pai o preferisse. E Monobazo não podia se mostrar
descontente pelo fato de eles estarem manifestando um sentimento que não
provinha de malícia, mas somente do desejo que cada qual possuía de ocupar o
primeiro lugar no seu coração. Para livrar Izate do perigo que a ira de seus
irmãos dava motivo para temer, enviou-o com ricos presentes a Abemeric, rei de
Spazim, confiando-lhe a sua proteção. Esse príncipe recebeu-o muito bem e
teve por ele grande afeto, tanto que lhe deu em casamento a princesa Samacho,
sua filha, bem como uma província de grande rendimento.
Estava Monobazo já muito velho e, percebendo que lhe restava pouco
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tempo de vida, desejou, antes de morrer, ver ainda uma vez aquele filho que lhe
era tão caro. Mandou buscá-lo e, após demonstrar-lhe toda a ternura que um
pai pode sentir, presenteou-o com uma província de nome Ceron, muito fértil e
rica de plantas odoríferas e onde se vêem ainda hoje os restos da arca que
salvou Noé do dilúvio. Izate lá ficou até a morte do rei seu pai, e então a rainha
Helena, depois de reunir todos os maiorais do reino e todos os chefes dos
soldados, disse-lhes: "Não ignorais, sem dúvida, que o falecido rei meu marido
queria Izate como seu sucessor, julgando-o o mais digno dessa honra. Mas, a
esse respeito, desejo saber a vossa opinião, porque nenhum príncipe será feliz
se não subir ao trono por um consentimento unânime, que lhe permita reinar
no coração de todos os súditos".
A sábia princesa falara assim para conhecer os sentimentos de seus
convidados. E todos eles, depois de a ouvir, prostraram-se diante dela, segundo
o costume da nação, e responderam que não podiam reprovar uma resolução
tomada pelo falecido rei. Se ele havia preferido Izate aos demais irmãos,
obedecer-Ihe-iam com alegria e, se ela quisesse, até mesmo matariam todos os
outros irmãos e parentes, a fim de que, não restando mais ninguém para odiá-
lo e invejar-lhe a coroa, ele reinasse em completa segurança. A rainha
agradeceu a dedicação que eles demonstravam a ela e a Izate, mas disse que
não julgava conveniente eliminar os outros irmãos antes de ele chegar e se
pronunciar sobre o assunto.
Todos
 aprovaram,
 mas
 disseram
 que
 era
 prudente
 conservá-los
prisioneiros até que ele retornasse, para garantir que nada tentassem contra ele
na sua ausência, e que por enquanto se desse o governo a alguém que fosse da
inteira confiança da princesa. Ela então colocou a coroa sobre a cabeça de
Monobazo, irmão mais velho de Izate, e entregou-lhe o anel sobre o qual estava
o selo do falecido rei e o veste real, a que eles chamam de sampsere,
concedendo-lhe o poder de agir na qualidade de vice-rei até a chegada do irmão.
E, logo que este chegou, Monobazo entregou-lhe imediatamente o poder.
Antes de sua ascensão ao trono, Izate morava no castelo de Spazim, e um
negociante judeu, de nome Ananias, iniciara algumas damas da corte no
conhecimento do Deus verdadeiro e as persuadira a prestar-lhe o mesmo culto
que os judeus. Por meio delas, conseguiu aproximar-se de Izate e inculcou-lhe
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os mesmos sentimentos. Assim, quando o rei seu pai mandou chamá-lo para
vê-lo antes de morrer, Izate obrigou Ananias a acompanhá-lo na viagem.
Aconteceu que naquele mesmo tempo um outro judeu instruíra também a
rainha Helena na nossa religião. Izate, já embebido pelo espírito de piedade e
feliz por ter sido escolhido para rei por consentimento unânime, não se agradou
em ver os irmãos e parentes encarcerados. Julgou que seria crueldade matá-los
ou conservá-los na prisão, mas temia que, se os pusesse em liberdade, eles
procurassem vingar a injúria recebida. Para equilibrar os dois extremos, enviou
uma parte deles, com os filhos, para Roma, entregando-os como reféns ao
imperador Cláudio, e a outra parte, sob a mesma condição, enviou a Artabano,
rei dos partos.
Quando esse virtuoso príncipe soube que a rainha sua mãe estava
também, como ele, afeiçoada à religião dos judeus, achou por bem não protelar
mais o seu desejo de professá-la. E, como sabia que ninguém pode ser
verdadeiramente judeu sem se circuncidar, dispôs-se a fazê-lo. Mas a princesa,
ao saber disso, procurou demovê-lo de seu intento, fazendo com que atentasse
para o perigo a que se iria expor, pelo descontentamento que suscitaria entre os
súditos, os quais nunca iriam admitir que ele abraçasse uma religião
estrangeira e nem aceitariam um judeu como rei.
Esses argumentos contiveram o seu ímpeto, e, quando ele relatou a
Ananias o que ela dissera, declarou-lhe também que o despediria se não o
fizesse. Ananias então quis se afastar, pois temia ser castigado, já que era o
orientador do rei naquela questão, acrescentando que não era necessário que
ele se circuncidasse para servir a Deus e prestar-lhe o culto que a religião dos
judeus obrigava, porque a adoração a Deus era de natureza superior à da
circuncisão. E, se era para evitar que os seus súditos se revoltassem, ele sem
dúvida seria perdoado por não cumprir aquele ritual. Assim, Ananias confirmou
o que a rainha dissera ao rei, e este ficou convencido, mas não de todo.
Algum tempo depois, veio da Galiléia outro judeu, de nome Eleazar, que
era muito instruído nas coisas da nossa religião. Quando foi saudar o rei,
encontrou-o a ler os livros de Moisés e disse-lhe: "Ó rei! Acaso ignorais a injúria
que cometeis contra a Lei e contra o próprio Deus? Julgais que é suficiente
conhecer os seus mandamentos, sem pô-los em prática? Quereis ficar para
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sempre incircunciso? Se não sabeis ainda que a Lei ordena a circuncisão, lede-
a, e vereis que grande pecado é negligenciá-la". O rei ficou tão impressionado
com essas palavras que, sem mais delongas, retirou-se a um quarto, mandou
chamar um cirurgião e assim foi circuncidado. Logo depois, mandou chamar a
rainha sua mãe e Ananias e contou-lhes o que fizera.
O terror tomou conta deles, porque temiam que os súditos, não querendo
ser governados por um príncipe de uma religião contrária à deles, se
revoltassem e lhe tirassem o reino. Temiam também por eles mesmos, pois
haviam inspirado nele aqueles sentimentos. Mas Deus não somente livrou esse
religioso príncipe de todos os perigos de que parecia estar ameaçado como
livrou também os seus filhos no momento em que as coisas pareciam mais
desesperadas. Deus mostrou que todos os que põem nEle a sua confiança e são
piedosos podem esperar dEle todas as coisas, como a continuação desta
história irá mostrar.
A rainha Helena, vendo que por uma providência particular de Deus o seu
filho, o rei Izate, governava em profunda paz e que a sua felicidade era
admirada não somente pelos estrangeiros, mas também pelos seus súditos,
desejou ir adorar a suprema Majestade e oferecer-lhe sacrifícios no mais célebre
de todos os Templos, construído em sua honra, em Jerusalém. O filho não
somente lhe deu alegremente a permissão como também acompanhou-a
durante uma parte do caminho. E ela chegou a Jerusalém com um soberbo
séquito e grande quantidade de dinheiro.
A sua visita foi muito vantajosa para os habitantes da cidade, porque
naquela época a carestia era tão grande que muitos morriam de fome. A rainha,
para remediar esse mal, mandou comprar grande quantidade de trigo em
Alexandria e figos secos na ilha de Chipre. Distribuiu-os aos pobres e granjeou
assim entre os judeus a fama de generosa, como de fato merecia, depois de tão
grande caridade. O rei seu filho foi também generoso, pois, ao saber que a fome
continuava, enviou grandes auxílios aos maiorais de Jerusalém, para que
fossem entregues em favor dos pobres. Mas deixarei para mais adiante o relato
dos benefícios de que nossa cidade é devedora a esse príncipe e à princesa.
Artabano, rei dos partos, sabendo que os governadores das províncias de
seu reino estavam conspirando contra ele e julgando que não estava mais
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seguro entre eles, resolveu ir procurar o rei Izate para se aconselhar com ele
sobre o que devia fazer e até mesmo tentar, por meio dele, voltar a se
estabelecer em seus domínios. Partiu então com os parentes e os principais
servidores, cerca de mil pessoas. Encontrou Izate pelo caminho e não teve
dificuldade em reconhecê-lo pelo seu séquito, mas Izate não o reconheceu.
Artabano prostrou-se diante dele, segundo o costume de seu país, e falou-
lhe nestes termos: "Não me desprezeis, virtuoso príncipe, por me verdes neste
estado de súplica, obrigado a abandonar o meu reino. Um grande revés de sorte
reduziu-me a este estado, e vim implorar o vosso auxílio. Pensei em quão pouco
devemos contar com as grandezas da terra e refleti sobre vós mesmo,
considerando a quantos acidentes estamos expostos. Preciso de vosso auxílio, e
esse socorro será benéfico a vós também, pois a vossa recusa em ajudar-me na
vingança dos crimes de meus súditos iria fortalecer a ousadia e a revolta de
outros povos contra os seus reis". Artabano falava com o rosto triste, e as
lágrimas acompanhavam suas palavras.
Izate, que conhecia a sua condição, desceu do cavalo e respondeu-lhe:
"Tende coragem, grande príncipe! Não vos deixeis abater pela má sorte, como se
fosse sem remédio. Tenho esperança de que bem depressa a vereis terminada.
Encontrareis em mim um amigo e aliado, muito mais afeiçoado e fiel do que
imaginastes, pois ou vos recolocarei em vosso reino ou vos cederei o meu".
Depois que assim falou, fez Artabano subir ao seu cavalo e dispôs-se a segui-lo
a pé, para homenagear um rei que ele sabia ser possuidor de maior honra.
Artabano, porém, não consentiu. Jurou por toda a sua prosperidade que jamais
o permitiria. Por fim, conseguiu convencer Izate a montar novamente e foi
caminhando diante dele. Acompanhou-o até o palácio, onde não houve honra
que não lhe fosse prestada.
O rei Izate dava-lhe sempre o primeiro lugar nas assembléias e nos
banquetes, porque não o considerava no estado em que se encontrava então,
mas em sua antiga dignidade, e dizia-lhe sabiamente que as mudanças de sorte
são comuns a todos os homens. Escreveu em seguida aos maiorais dos partos
para exortá-los a voltar à obediência ao seu rei, ao mesmo tempo em que
empenhava a sua palavra, com promessa de confirmá-la por juramento, se eles
o desejassem, na garantia de que aquele príncipe esqueceria todo o passado.
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Eles responderam que gostariam de atendê-lo, mas que isso já não estava em
seu poder, porque haviam entregado a coroa a Cinamo e não a poderiam tomar
de volta sem suscitar uma guerra civil.
Cinamo veio a saber o que se passava e ficou comovido ao ser informado
das intenções de Artabano, porque havia sido educado com ele e conhecia a sua
generosidade. Desse modo, escreveu-lhe dizendo que ele podia, sob a sua
palavra, voltar com toda a segurança e que até mesmo estavam pedindo que o
fizesse. Quanto a ele, Cinamo, de todo o coração lhe colocaria na mão o cetro
com que havia sido honrado. Artabano não teve dificuldade em confiar nele.
Partiu, e Cinamo veio recebê-lo, o qual, prostrando-se diante dele, saudou-o
como rei e tirou a coroa da cabeça para entregá-la a Artabano, que assim
reconquistou o reino, com o auxílio de Izate. As honras que Artabano prestou
ao seu ajudador testemunharam a sua gratidão, pois lhe permitiu usar a tiara
reta e deitar-se num leito de ouro, o que só pode ser feito pelos reis dos partos,
e deu-lhe uma província, chamada Niside, que outrora pertencera ao rei da
Armênia, na qual os macedônios haviam construído uma cidade, chamada
Antioquia, que mais tarde veio a chamar-se Migdônia.
Artabano morreu pouco depois. Vardan, seu filho e sucessor, tentou
induzir o rei Izate a se unir a ele para fazer guerra aos romanos, porém não
conseguiu persuadi-lo, pois este conhecia muito bem o poder deles para iludir-
se com o resultado de tal empresa. E, como Izate havia mandado cinco de seus
filhos a Jerusalém para que aprendessem a nossa língua e se instruíssem nos
nossos costumes, ao mesmo tempo em que a rainha Helena, sua mãe, fora
adorar o verdadeiro Deus, no Templo, como dissemos, ele estava mais contido
quanto a determinadas alianças. O sábio príncipe fez o que pôde para dissuadir
Vardan desse empreendimento, advertindo-o do fabuloso exército dos romanos
e de suas temíveis ações na guerra. Em vez de receber bem essas
admoestações, todavia, ele se sentiu ofendido e declarou guerra a Izate. No
entanto Deus, que protegia Izate, assegurou-lhe o seu auxílio: os partos,
quando se convenceram de que ele estava resolvido a atacar os romanos,
mataram-no e puseram Gotarso, seu irmão, no lugar dele. Algum tempo depois,
esse rei também foi morto à traição, e Vologeso, seu irmão, substituiu-o. Esse
príncipe, que tinha dois irmãos do mesmo pai, deu a Pacoro, o mais velho, o
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reino da Média e a Tiridate, o mais novo, o reino da Armênia.
Nesse mesmo tempo, Monobazo, irmão do rei Izate, e seus parentes,
vendo que a piedade para com Deus tornava-o o mais feliz dos príncipes,
cogitaram em também abandonar a sua religião e abraçar a dos judeus. Os
grandes do país, todavia, vieram a sabê-lo e ficaram muito irados, mas
resolveram dissimular, até que se encontrasse uma oportunidade favorável para
matá-los. Escreveram a Abia, rei dos árabes, e prometeram-lhe uma grande
soma de dinheiro, caso viesse com um grande exército fazer guerra ao seu rei,
com a garantia de passarem para o seu lado logo que se iniciasse a batalha,
porque estavam resolvidos a castigá-lo pelo desprezo que demonstrara pela
religião de seu país. Eles confirmaram a promessa com um juramento e
rogaram-lhe insistentemente que se apressasse.
O rei árabe veio com um grande exército, e Izate marchou contra ele, mas
no momento do combate se viu abandonado pelos seus homens, como se um
terror repentino os tivesse levado a fugir. Izate não teve dificuldade em
compreender que fora traído pelos grandes. Não se admirou, todavia. Retirou-se
para o seu acampamento com os fugitivos, onde, depois de identificar os
traidores, os responsáveis por tão vergonhoso acordo com o inimigo, mandou
castigá-los como mereciam. No dia seguinte, travou combate com o inimigo,
matou um grande número deles e pôs o resto em fuga. Perseguiu Abia até o
castelo de Arsame, o qual tomou de assalto e o saqueou, levando de lá muitos
despojos e voltando glorioso a Adiabene. A única coisa que faltou ao seu triunfo
foi trazer Abia vivo, porque este se suicidara, para não ser levado como escravo.
Os grandes, que haviam conspirado contra Izate, viram assim frustradas
as suas esperanças. Deus entregou-os todos nas mãos dele, mas eles insistiam
em sua perfídia. Escreveram a Vologeso, rei dos partos, pedindo-lhe que o
mandasse matar e lhes desse por rei alguém de sua nação, porque não podiam
consentir que ele reinasse após abandonar as leis de seu país para seguir as
dos estrangeiros.
Vologeso, ante tal insistência, deliberou fazer guerra a Izate, embora este
não lhe tivesse dado motivo para isso. Começou por abolir as graças que o rei
Artabano, seu pai, lhe havia concedido e ameaçou em seguida entrar com
armas em seu país, caso ele deixasse de fazer o que lhe estava sendo ordenado.
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Izate ficou perturbado com essa surpreendente notícia, mas julgou humilhante
renunciar às honras que com justiça merecera. E, mesmo que o fizesse,
Vologeso não o deixaria em paz. Assim, resolveu depositar toda a sua confiança
no auxílio Todo-poderoso de Deus. Enviou a esposa e os filhos para um castelo
muito bem defendido, recolheu toda a forragem que restava ainda nos campos e
pôs se à espera dos inimigos.
O rei das partos, com muitas tropas de cavalaria e infantaria, chegou
mais depressa do que se poderia imaginar e acampou às margens do rio que
separa Diabene da Média. Izate acampou próximo dele com seis mil cavaleiros.
Vologeso mandou-lhe dizer por um arauto que viera atacá-lo com todas as
tropas de seu reino, o qual se estendia desde o Eufrates até as montanhas dos
bactrianos, para castigá-lo pela desobediência ao seu senhor e que nem mesmo
o Deus que ele adorava seria capaz de o impedir. Izate, horrorizado diante de
tão grande blasfêmia, respondeu que não duvidava de que possuía tropas muito
inferiores às dos partos; todavia, estava ciente de que o poder de Deus era
infinitamente maior que o de todos os homens juntos.
Após despedir o arauto, ele cobriu a cabeça com cinza e jejuou,
ordenando a mulher e aos filhos que jejuassem também. Prostrado em terra
diante da majestade de Deus e banhado em lágrimas, rogou-lhe deste modo:
"Não foi em vão, Senhor, que me lancei nos braços de vossa misericórdia. Eu
vos reconheço como único Senhor do universo. Vinde em meu auxílio, meu
Deus, não somente para me defender de meus inimigos como também para
castigá-los pela sua ousadia e pelas horríveis blasfêmias que ousaram proferir
contra o vosso supremo poder". Tão fervorosa oração acompanhada de lágrimas
não ficou sem efeito. Deus ouviu-o tão prontamente que Vologeso, tendo sabido
na noite seguinte que os dácios e os saceenses, encorajados pela sua ausência,
haviam entrado em seu reino e lá faziam grande devastação, partiu para
combatê-los e assim voltou sem nada ter podido executar de seu desígnio
contra Izate, a quem Deus protegera de modo tão evidente.
Pouco tempo depois, morreu esse religioso príncipe, na idade de
cinqüenta e cinco anos, dos quais reinou vinte e quatro. E, embora tivesse
quatro filhos, deixou Monobazo, seu irmão mais velho, como sucessor, em
gratidão pelo favor de lhe haver conservado o reino depois da morte de seu pai.
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Essa grande prova de gratidão muito consolou a rainha Helena em sua grande
dor pela perda de tão caro e virtuoso filho. Ela sobreviveu a ele pouco tempo,
morrendo quando vinha para encontrar-se com seu filho Monobazo, que enviou
os ossos dela e os de Izate a Jerusalém, para serem colocados em três
pirâmides que a princesa mandara construir a três estádios da cidade. Dos
feitos de Monobazo, falaremos mais adiante.
838. Quando Fado era governador da judéia, um mago de nome Teudas
convenceu uma grande multidão de povo a tomar os próprios bens e a segui-lo
até o Jordão, dizendo que era profeta e que deteria, com uma única palavra, o
curso do rio e os faria passar a pé enxuto. Ele assim enganou muita gente. Mas
Fado castigou esse impostor e, por sua loucura, a todos os que se haviam
deixado enganar. Enviou contra eles alguns soldados de cavalaria, que
mataram uma parte deles de surpresa e fizeram vários prisioneiros, estando
Teudas entre eles, a quem cortaram a cabeça, que foi levada a Jerusalém. Foi
isso o que aconteceu de mais notável durante o governo de Cúspio Fado.
CAPÍTULO 3
TIBÉRIO ALEXANDRE SUCEDE A FADO NO CARGO DE GOVERNADOR DA JUDÉIA, E
CUMANO, A ALEXANDRE. MORTE DE HERODES, REI DA CÁLCIDA. SEUS FILHOS. O
IMPERADOR
 CLÁUDIO ENTREGA SEUS DOMÍNIOS A AGRIPA.
839. Fado teve como sucessor no cargo de governador da Judéia Tibério
Alexandre, filho de Alexandre, alabarche, de Alexandria, que era o mais rico de
toda aquela grande cidade e que não fora ímpio como o filho, que abandonou a
nossa religião. Foi no seu tempo que sobreveio a Jerusalém aquela grande
carestia, na qual a rainha Helena mostrou a sua caridade. Alexandre mandou
crucificar Tiago e Simão, filhos de Judas, da Galiléia. Judas foi quem, na época
em que Cirênio fazia o recenseamento dos judeus, incitou o povo a se revoltar
contra os romanos.
840. Herodes, rei da Cálcida, tirou o sumo sacerdócio de José, filho de
Camidas, e deu-a a Ananias, filho de Nebedeu. Cumano sucedeu a Tibério
Alexandre no cargo, e ao mesmo tempo Herodes, rei da Cálcida, irmão do rei
Agripa, o Grande, de que acabamos de falar, morreu, no oitavo ano do reinado
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do imperador Cláudio. Ele deixou de sua primeira mulher um filho chamado
Aristóbulo e de Berenice, sua outra mulher, filha do rei Agripa, seu irmão, dois
outros filhos, cujos nomes eram Berenício e Hircano. O imperador Cláudio
entregou o princi-pado de Herodes a Agripa.
Durante a administração de Cumano, houve uma grande revolta em
Jerusalém, que custou a vida a vários judeus, mas primeiro vou descrever as
circunstâncias que levaram a ela.
CAPÍTULO 4
HORRÍVEL INSOLÊNCIA DE UM SOLDADO DAS TROPAS ROMANAS CAUSA EM
JERUSALÉM A MORTE DE VINTE MIL JUDEUS.
INSOLÊNCIA DE OUTRO SOLDADO.
841. Aproximava-se a festa da Páscoa, na qual os judeus só comem pão
sem fermento, e uma grande multidão de povo acorria de todos os lados.
Cumano,
 para
 impedir
 que
 houvesse
 alguma
 desordem, colocou
 uma
companhia de soldados para montar guarda à porta do Templo, como sempre
fizeram os seus predecessores em semelhantes ocasiões. No quarto dia da festa,
porém, um soldado teve a insolência de pôr a descoberto, diante de todos, o que
o pudor e a educação obrigam a esconder. Tão horrível desfaçatez irritou de tal
modo o povo, que todos começaram a clamar que não era somente aos judeus
que ele injuriava, mas ao próprio Deus, e os mais exaltados começaram a
ofender Cumano, dizendo que fora ele quem mandara o soldado cometer
tamanha impiedade.
Cumano ficou muito ofendido com essas palavras: todavia, não deixou de
exortar o povo a conter a sua exaltação. No entanto, percebendo que eles, em
vez de obedecer, ainda lhe diziam mais injúrias, ordenou a todas as tropas que
se dirigissem com armas à fortaleza Antônia, que, como já dissemos, ficava
sobranceira ao Templo. O povo, então, espantado por ver aproximar-se um tão
grande número de soldados, pôs-se em fuga. Como as ruas eram muito
estreitas e eles, aterrorizados, imaginavam que os soldados os estavam
perseguindo, apertaram-se de tal modo que mais de vinte mil morreram
sufocados. Assim, a alegria dessa grande festa converteu-se em tristeza.
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Cessaram as orações. Abandonaram-se os sacrifícios. Ouviam-se apenas
gemidos, lamentos. E a causa de toda essa desolação deveu-se ao impudor
sacrílego de um único homem.
842.
 Essa tragédia ainda era lamentada quando sobreveio outra
confusão. Alguns dos que haviam fugido, na ocasião do tumulto, encontraram a
cem estádios de Jerusalém um homem de nome Estêvão, que era doméstico do
imperador, assaltaram-no e apoderaram-se de tudo o que ele trazia consigo.
Cumano, logo que soube disso, enviou soldados com ordem de devastar as
aldeias vizinhas e trazer-lhe aprisionados os principais habitantes. Um soldado
encontrou numa dessas aldeias os livros de Moisés e rasgou-os na presença de
todos, proferindo ainda mil ofensas contra as nossas leis e contra a nossa
nação. Os judeus não puderam tolerar tal ofensa e foram em grande número
encontrar-se com Cumano, em Cesaréia, para rogar-lhe que castigasse tão
grande injúria, feita antes ao próprio Deus que a eles. O governador, vendo-os
tão exaltados e temendo uma revolta, a conselho de amigos mandou matar o
soldado que fizera semelhante ultraje às nossas leis e assim acalmou uma
grande perturbação.
CAPÍTULO 5
GRANDE DISSENSÃO ENTRE OS JUDEUS DA GALILÉIA E OS SAMARITANOS,
QUE SUBORNAM
 CUMANO, GOVERNADOR DAJUDÉIA. QUADRATO,
GOVERNADOR DA
 SÍRIA, MANDA-O A ROMA COM ANANIAS, SUMO
SACERDOTE , E VÁRIOS OUTROS PARA SE JUSTIFICAR PERANTE O IMPERADOR.
 O
IMPERADOR CONDENA OS SAMARITANOS, ENVIA
 CUMANO AO EXÍLIO E NOMEIA FÉLIX
GOVERNADOR DAJUDÉIA.
 ENTREGA A AGRIPA A TETRARQUIA QUE FORA DE FILIPE, BEM
COMO
 B ATANEA, T RACONITES E ABILA, E TIRA-LHE
A
 CÁLCIDA. CASAMENTO DAS IRMÃS DE AGRIPA. MORTE DO IMPERADOR
CLÁUDIO. NERO SUCEDE-O NO IMPÉRIO. ELE ENTREGA A PEQUENA ARMÊNIA
A
 ARISTÓBULO, FILHO DE HERODES, REI DA CÁLCIDA, E A AGRIPA CONCEDE
UMA PARTE DA
 GALILÉIA, TIBERÍADES, TARIQUÉIA E JULÍADA.
843.
 Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande divergência entre os
samaritanos e os judeus, pelo fato que vou narrar. Os judeus que, nos dias de
festa solene, vinham da Galiléia a Jerusalém costumavam passar pelas terras
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de Samaria.
E alguns deles tiveram uma desavença com os habitantes de Nays, aldeia
situada no Grande Campo e que estava sujeita aos samaritanos, e vários
judeus foram mortos. Os principais da Galiléia foram queixar-se a Cumano,
pedindo-lhe justiça. Porém, vendo que ele não lhes dava atenção, porque os
samaritanos o haviam subornado com dinheiro, exortaram os outros judeus a
pegar em armas para reconquistar a liberdade, dizendo que a servidão já era
bastante rude por si mesma, para que ainda se lhe acrescentassem injustiças e
ultrajes.
Os magistrados esforçaram-se para acalmá-los, prometendo-lhes obrigar
Cumano a castigar os autores dos assassinatos, mas eles não os quiseram
escutar. Tomaram então as armas e chamaram em seu auxílio Eleazar, filho de
Dineu, que havia muitos anos se entregara ao roubo e escondia-se nas
montanhas, devastando e incendiando as aldeias dependentes de Samaria.
Cumano, apenas o soube, marchou contra eles com a cavalaria de Sebaste,
quatro coortes e numerosos samaritanos, matando vários deles e fazendo
muitos prisioneiros.
Os cidadãos mais influentes de Jerusalém, vendo as coisas nesse estado e
imaginando que esse grande mal poderia ter conseqüências ainda mais
vergonhosas, revestiram-se de um saco, puseram cinza na cabeça e tudo
fizeram para acalmar o espírito de muitos dos seus, a quem, com pesar, viam
abandonar-se ao desespero. Fizeram-lhes ver que, se não deixassem as armas e
não se retirassem para as suas casas, lá permanecendo tranqüilos e
sossegados, seriam a causa da ruína completa de sua nação e veriam o Templo
incendiado e as suas mulheres e filhos transformados em escravos. Essas
razões os persuadiram. Os que dissemos que viviam do roubo, porém,
retiraram-se aos lugares fortificados, onde estavam antes. E desde então a
Judéia ficou cheia de ladrões.
Os mais ilustres dos samaritanos foram em seguida à cidade de Tiro
procurar Numídio Quadrato, governador da Síria, para lhe pedir que fizesse
justiça contra os judeus que devastavam as suas terras e incendiavam as suas
aldeias. Disseram-lhe que, por maior que fosse o prejuízo que estivessem
tomando, não lhes era isso tão penoso quanto o descaso que o povo fazia do
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poder dos romanos. E tocava somente a ele julgar as desordens que se
sucediam nas províncias a ele sujeitas. Eles não podiam tolerar que a nação
judaica agisse como se o império não tivesse governadores que pudessem
manter a autoridade. Os judeus disseram, em resposta, que os samaritanos é
que haviam sido a causa daquela sedição e do morticínio que se sucedera em
seguida e que Cumano era mais culpado que qualquer outro, porque, em vez de
castiqá-los, se deixara subornar pelos presentes que deles recebera.
Quadrato, depois de escutá-los, deixou para decidir a questão quando
estivesse na Judéia e conhecesse exatamente toda a verdade. Algum tempo
depois, foi ele à Samaria, onde se pleiteou a causa em sua presença. Ele ficou
convencido de que os samaritanos haviam sido os autores da perturbação.
Soube também que alguns judeus haviam tentado suscitar outras sedições.
Após mandar crucificar aqueles que Cumano conservava na prisão, foi para a
aldeia de Lida, que é tão grande quanto uma cidade, onde, estando em seu
tribunal, ouviu pela segunda vez os samaritanos.
Tendo sabido de um deles que Dorto, homem que ocupava uma alta posi-
ção entre os judeus, e quatro outros haviam incitado os de sua casa à revolta,
mandou matar todos os cinco e enviou Ananias, sumo sacerdote, e o capitão
Anano como prisioneiros a Roma, para se justificarem diante do imperador.
Mandou também para lá os principais samaritanos e judeus, o próprio Cumano
e um oficial de campo, de nome Celer. Porém, temendo outra amotinação entre
os judeus, foi para Jerusalém. Lá encontrou tudo em paz, estando todos
ocupados em oferecer sacrifícios a Deus, nos dias de festa, segundo o costume
de nossos antepassados. Assim, ele julgou que nada havia a temer, e voltou a
Antioquia.
Cumano e os samaritanos chegaram a Roma, e foi marcado o dia para que
defendessem a sua causa. Eles conquistaram com dinheiro favor dos libertos e
dos amigos do imperador, e teriam por esse meio feito condenar os judeus se
Agripa, que então estava em Roma, não tivesse conseguido que a imperatriz
Agripina rogasse ao imperador seu marido que se inteirasse do assunto e
mandasse castigar todos os culpados daquela sedição. Assim, o imperador
Cláudio, após ouvir ambas as partes, achou que os samaritanos haviam sido a
causa principal de toda aquela perturbação e mandou matar a todos os que
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tinham vindo se justificar. Enviou Cumano ao exílio e Celer, a Jerusalém, a fim
de que fosse arrastado pelas ruas, na presença de todo o povo, até expirar. Por
fim, nomeou Cláudio Félix, irmão de Palas, governador da Judéia.
844. O imperador, no décimo segundo ano de seu reinado, deu a Agripa a
tetrarquia que pertencera a Filipe, bem como Batanea, Traconites e Abila, que
integrara a tetrarquia de Lísias, mas tirou-lhe a Cálcida, que governara por três
ou quatro anos. Agripa, depois desses favores recebidos de Cláudio, casou sua
irmã Drusila com Aziza, rei de Emesa, que se fizera judeu, pois antes ela fora
prometida a Epifânio, filho do rei Antíoco, ante a palavra de que ele abraçaria a
nossa religião. Como ele não a cumpriu, deu-se então motivo para o
rompimento do contrato. Quanto a Mariana, uma outra de suas irmãs
desposou Arquelau, filho de Chelcias, ao qual havia sido prometida pelo rei
Agripa, o Grande, seu pai, e desse casamento nasceu uma filha, de nome
Berenice. Pouco tempo depois, Drusila abandonou o rei Aziza, seu marido, o
que se deu por este motivo:
Sendo ela a mais bela mulher de seu tempo, Félix, governador da Judéia,
de quem acabamos de falar, apenas a viu e concebeu por ela uma violenta
paixão, chegando a propor-lhe, por meio de um judeu de nome Simão, cíprio de
nascimento, muito seu amigo e perito em magia, que abandonasse o marido
para desposá-lo, prometendo torná-la a mulher mais feliz do mundo. Ela,
agindo com imprudência, e também para ser livrar do tormento que Berenice,
sua irmã, lhe causava por invejar a sua beleza, consentiu na proposta e não
teve receio de abandonar, por esse motivo, a sua religião. De Félix, ela teve um
filho chamado Agripa, que morreu ainda jovem, com sua mulher, na erupção do
Vesúvio, sob o reinado de Tito, como diremos a seu tempo.
Berenice, a mais velha das três irmãs de Agripa, ficou algum tempo viúva
após a morte de Herodes, que era ao mesmo tempo seu marido e seu tio. Mas,
ante a notícia que se divulgou de que ela mantinha relações incestuosas com o
irmão, propôs a Polemon, rei da Cilícia, que abraçasse a religião dos judeus e a
despo-sasse, acreditando que assim provaria que era boato o que se andava
dizendo. O soberano consentiu, porque ela era muito rica, mas não viveram
muito tempo juntos. Ela abandonou-o por motivo de impudicícia, ao que se diz,
e ele, vendo-se rejeitado, deixou também a nossa religião. Mariana não foi mais
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virtuosa que suas irmãs. Abandonou Arquelau, seu marido, para desposar
Demétrio, alabarche, o mais ilustre e rico dentre os judeus de Alexandria. Dela
ele teve um filho de nome Agripino. De todas essas pessoas, falaremos mais
detalhadamente.
845. O imperador Cláudio morreu, após reinar treze anos, oito meses e
vinte dias. Alguns acreditavam que Agripina, sua mulher, o mandou envenenar.
Ela era filha de Germânico, irmão de Cláudio. Em primeiras núpcias, havia
desposado Domício Enobarbo, um dos mais ilustres romanos. Havia já muito
tempo que ela estava viúva, quando Cláudio a desposou e adotou o filho que ela
tivera de Domício, chamado também Domício, como seu pai, a quem ele deu o
nome de Nero. Antes, Cláudio havia desposado Messalina, que ele mandou
matar por ciúme, e dela teve Britânico e Otávia.* Quanto à sua filha Antônia,**
que era a mais velha de todos os seus filhos e que tivera de Petina, uma de suas
outras mulheres, ele a fez casar-se com Nero.
___________________________
* Esse nome não consta do texto grego. Trata-se de uma filha chamada
Otávia, como Tácito registra e a continuação há de mostrar, e não um filho de
nome Otávio.
** Esse nome também não consta do texto grego, que chama esta outra
filha de Otávia, quando na verdade ela se chamava Antônia, como Tácito o
refere.
846. Agripina, receando que o império, que ela desejava assegurar seu
filho para Nero, fosse ter às mãos de Britânico, antes chamado Germânico, que
já era um estadista, logo que o imperador seu marido morreu, enviou Nero ao
acampamento dos guardas pretorianos. Ele foi levado por Burrho, seu
comandante, por outros importantes oficiais e pelos libertos de Cláudio, que
desfrutavam grande prestígio, e lá ele foi declarado imperador. Um dos
primeiros atos de Nero após ser elevado ao trono foi mandar envenenar
Britânico secretamente. Alguns anos depois, ele mandou matar a própria mãe,
recompensando-a dessa forma por ela lhe ter dado a vida e por tê-lo feito reinar
sobre a maior parte do mundo. Também mandou matar Otávia, sua mulher,
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filha do imperador Cláudio, e várias pessoas ilustres, acusando-as de
conspiração contra ele.
Não entrarei em detalhes porque não faltam historiadores que escrevam
sobre os feitos desse príncipe, sendo que alguns falaram em seu favor pelo fato
de ele lhes haver concedido benefícios e outros, sem temer, como os primeiros,
ferir a verdade, denegriram a sua memória de maneira ultrajosa devido ao ódio
que tinham por ele. Mas não me admiro, pois aqueles que escreveram a história
dos imperadores precedentes agiram do mesmo modo, embora, vindo muito
tempo depois deles, não pudessem ter motivos para amá-los ou para odiá-los.
Quanto a mim, que estou resolvido a jamais me afastar da verdade, contentar-
me-ei em tocar somente de passagem naquilo que interessa ao meu assunto. Só
tratarei em particular o que diz respeito à nossa nação, sem dissimular as
faltas que cometemos ou os males que nos aconteceram. Precisamos agora
retomar a continuação de nossa história.
847. Aziza, rei de Emesa, morreu no primeiro ano do reinado de Nero.
Seu irmão sucedeu-o. Nero entregou a Pequena Armênia a Aristóbulo, filho de
Herodes, rei da Cálcida. A Agripa, concedeu uma parte da Galiléia. Foi seu
desejo também que Tiberíades e Tariquéia lhe fossem sujeitas, e igualmente
Julíada, que está além do Jordão, e seu território, que consta de quatorze
aldeias.
CAPÍTULO 6
FÉLIX, GOVERNADOR DAJUDÉIA, MANDA ASSASSINAR ELEAZAR , SUMO
SACERDOTE, E OS SEUS ASSASSINOS COMETEM OUTROS CRIMES, ATÉ
MESMO NO
 TEMPLO. LADRÕES E FALSOS PROFETAS CASTIGADOS. GRANDE
DIVERGÊNCIA ENTRE OS JUDEUS E OS OUTROS HABITANTES DE
 CESARÉIA.
O REI AGRIPA CONSTITUI ISMAEL SUMO SACERDOTE.
VIOLÊNCIAS DOS SUMOS SACERDOTES.
848. Os negócios na Judéia iam de mal a pior. Estava cheia de ladrões e
de magos que enganavam o povo, e não se passava um dia sem que Félix
mandasse castigar alguém. Um dos mais destacados entre os ladrões era
Eleazar, filho de Dineu, que era seguido por um numeroso bando de homens
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semelhantes a ele. Félix intimou-o a vir procurá-lo, com promessa de não lhe
fazer mal algum, mas quando ele apareceu, prendeu-o e o enviou a Roma. O
governador odiava Jônatas, sumo sacerdote, porque este o repreendia pelo seu
mau proceder. Então, para que nenhuma censura recaísse sobre ele, porque
fora a seu pedido que o imperador lhe concedera aquele governo, resolveu
desfazer-se de Jônatas, pois nada é mais insuportável aos maus que as
advertências.
Para realizar o seu intento, prometeu uma grande quantia a um certo
Dora, de Jerusalém, a quem Jônatas considerava um amigo íntimo. Esse
homem perverso, para cumprir o acordo de matar Jônatas, assalariou alguns
ladrões. Eles vieram à cidade sob pretexto de devoção, mas com punhais
escondidos sob as vestes, e, misturados aos servidores de Jônatas, mataram-
no. Esses assassinos não foram castigados por esse crime e continuaram a
aparecer do mesmo modo nas festas que aconteceram depois. Misturando-se à
multidão, matavam também aqueles que odiavam ou os que haviam
determinado matar a troco de dinheiro.
Não se contentavam em cometer os assassinatos na cidade, mas
protagonizando uma das mais detestáveis impiedades e um dos mais horríveis
sacrilégios, matavam até no Templo. Quem, portanto, há de se admirar de que
Deus tenha olhado para Jerusalém com vistas de cólera? Sua Casa sagrada
perdera a pureza que a tornava venerável, e Ele então enviou os romanos para
castigar com ferro e fogo a miserável cidade e levar escravizados os seus
habitantes, com as suas mulheres e filhos, de modo que esse terrível castigo
nos faça refletir.
849. Enquanto os ladrões enchiam Jerusalém de crimes, os magos, por
seu lado, enganavam o povo e o levavam ao deserto, prometendo lhe mostrar
milagres e prodígios. Mas Félix castigou-os imediatamente, por sua loucura;
mandou prender e matar a vários. Por esse mesmo tempo veio um homem do
Egito a Jerusalém, que se vangloriava de ser profeta. Persuadiu a um grande
número de pessoas que o seguisse ao monte das Oliveiras, que estava muito
perto da cidade, apenas distante uns cinco estádios e garantiu-lhes que, depois
de ter ele proferido algumas palavras, veriam cair os muros de Jerusalém, sem
que mais fossem necessárias as portas para lá se entrar. Logo que Félix soube
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disso, foi atacá-los com um grande número soldados; uns quatrocentos foram
mortos e duzentos feitos prisioneiros, mas o impostor egípcio salvou-se.
O castigo infligido aos ladrões não assustou os que ficaram; continuaram
a excitar o povo a se revoltar contra os romanos, dizendo que não era mais
possível tolerar um jugo tão insuportável, e pilhavam e incendiavam as aldeias
dos que não queriam segui-los.
850. Aconteceu, nesse mesmo tempo, uma grande perturbação em
Cesaréia, entre os judeus e seus habitantes, com relação à precedência. Os
judeus pretendiam-na, porque Herodes, um de seus reis, tinha construído a
cidade: os sírios afirmavam que deviam ser preferidos, porque ela subsistia
desde muito tempo sob o nome de Torre de Estratão, quando ali não havia um
só judeu. Os governadores das províncias tomaram conhecimento dessa
divergência e mandaram vergastar com várias os que nela haviam tomado
parte, de ambos os lados. Mas os judeus, que confiavam nas suas riquezas,
recomeçaram a desprezar e a maltratar com palavras, os sírios. Entre estes,
havia vários de Cesaréia e de Sebaste, que serviam nas tropas romanas, as
quais lhes respondiam insolentemente. Das palavras, passaram às pedradas e
vários foram mesmo mortos, muitos feridos, de parte a parte: os judeus levaram
a melhor. Félix, vendo que essa divergência já havia tomado um aspecto de
guerra, rogou aos judeus que se moderassem; mas, como não lhe obedeciam,
ele mandou soldados contra eles, os quais mataram a muitos e prenderam
também a vários, saquearam, sem que eles pudessem impedir, suas terras e
suas casas, onde encontraram grandes riquezas. Os mais ilustres e os mais
sensatos
 dos
 judeus,
 vendo
 tão
 grande
 desordem,
 temendo-lhe
 as
conseqüências, rogaram a Félix que ordenasse aos soldados que se retirassem,
para que os que se tinham deixado levar inconsideradamente pela paixão, refle-
tissem e não continuassem a lutar; e ele concordou.
851. Nesse mesmo tempo o rei Agripa deu o sumo sacerdócio a Ismael,
filho de Fabeu, e os supremos-sacerdotes iniciaram então uma luta com os
sacerdotes ordinários e os chefes de Jerusalém. Todos se faziam acompanhar
por soldados armados, que eram escolhidos entre os mais revoltosos e os mais
obstinados. Começavam por se injuriarem mutuamente, depois passavam às
pedradas, sem que nem se decide separá-los; parecia que não havia
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magistrados da cidade que tivessem o poder de impedi-los fazer, com plena
liberdade, tudo o que lhes agradava. A imprudência e a ousadia dos sumos
sacerdotes foi tão longe, que eles mandavam seus homens às granjas, retirar as
décimas que pertenciam aos sacerdotes, alguns dos quais, sendo mui pobres,
morriam de fome; a injustiça era assim espezinhada pela violência desses
facciosos.
CAPÍTULO 7
FESTO SUCEDE A FÉLIX NO GOVERNO DA JUDÉIA. OS HABITANTES DE
CESARÉIA OBTÊM DO IMPERADOR NERO A REVOGAÇÃO DO DIREITO DE
BURGUESIA QUE OS JUDEUS TINHAM NAQUELA CIDADE.
 O REI AGRIPA
MANDA CONSTRUIR UM EDIFÍCIO DE ONDE SE VIA O QUE SE PASSAVA NO
TEMPLO. OS DE JERUSALÉM MANDAM FAZER UM MURO MUITO GRANDE
PARA IMPEDI - LO E OBTÊM DO IMPERADOR QUE
O MESMO SEJA MANTIDO.
852.
 Pórcio Festo fora mandado pelo imperador Nero para substituir
Félix, no governo da Judéia; os judeus de Cesaréia mandaram embaixadores a
Roma, para acusar Félix e ele teria sem dúvida sido castigado pelos maus tratos
que havia infligido aos judeus, se Nero não lhe tivesse perdoado a pedido de
Pallas, seu irmão, que então gozava de grande prestígio junto dele. Dois dos
principais sírios de Cesaréia conquistaram, por meio de uma grande soma de
dinheiro, Berilo, que tendo sido preceptor de Nero, era então seu secretário para
a correspondência grega e, por seu meio, obtiveram uma carta, pela qual era
revogado o direito de burguesia de que os judeus gozavam igualmente com os
sírios em Cesaréia. Pode-se dizer que essa carta foi a causa de nossos males e
da nossa infelicidade, pois os judeus de Cesaréia, ficaram tão irritados que se
exasperaram ainda mais e essa perturbação não cessou, até que se
transformou em guerra.
853. Quando Festo chegou à Judéia, encontrou-a num estado deplorável,
pelos males que aqueles ladrões causavam. Pilhavam e incendiavam tudo;
dava-se o nome de Sicários aos mais cruéis dentre eles, cujo número era bem
grande porque eles usavam espadas curtas como as dos persas, e recurvas,
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como punhais que os romanos chamam de siques. Espalhavam crimes por
todos os lugares, misturando-se, como dissemos, nos dias de festa, com o povo
que vinha de todas as partes a Jerusalém; por devoção, matavam impunemente
a quem lhes parecia. Atacavam mesmo as aldeias daqueles que odiavam,
saqueavam-nas e as incendiavam.
854. Um impostor, que tinha o ofício de mago, levou grande quantidade
de homens com ele, para o deserto, prometendo livrá-los de toda a sorte de
males. Festo mandou contra eles a cavalaria e a infantaria, que os dizimaram.
855. O rei Agripa mandou então construir um grande edifício perto do
pórtico do palácio real de Jerusalém, que era obra dos príncipes asmoneus;
como aquele lugar era muito elevado, o panorama era belíssimo, pois de lá se
descortinava toda a cidade e Agripa podia haver, do seu quarto, tudo o que se
fazia no interior do Templo. Os chefes de Jerusalém ficaram muito descontentes
com isso, porque nossas leis não permitem ver o que se passa no Templo e,
principalmente, no momento dos sacrifícios. Para impedi-lo, eles mandaram
construir acima das muralhas que estavam na parte interior do mesmo, do lado
do ocidente, um muro tão alto que nada mais se podia ver, do quarto do rei,
não somente o que estava em frente, mas também nas galerias, de fora do
Templo, do lado do ocidente, onde os romanos montavam guarda nos dias de
festa, para a conservação do Templo. Agripa ficou muito ofendido, e Festo,
ainda mais. Ele ordenou-lhes que, derrubassem o muro, mas os judeus
rogaram-lhe que permitisse recorrer ao imperador, porque a morte lhes seria
mais suave do que ver destruir-se uma parte do Templo. Ele lhes permitiu;
foram então mandados a Roma, dez dos mais ilustres habitantes, com Israel,
sumo sacerdote, e Cheléas, guarda do sagrado tesouro. Nero escutou-os e a
imperatriz Popéia, sua mulher, que era piedosa, empenhou-se em seu favor;
perante o marido, não somente lhes perdoou o que haviam feito, mas concedeu-
lhes que o muro, que tinham feito construir, fosse conservado. A princesa
mandou regressar os dez embaixadores e reteve como reféns somente Cheléas e
Ismael. O rei Agripa deu em seguida o sumo sacerdócio a José, cognominado
Caby, filho de Simão, sumo sacerdote.
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CAPÍTULO 8
ALBINO SUCEDE A F ESTO NO GOVERNO DAJUDÉIA E O REIAGRIPA DÁ E TIRA
DIVERSAS VEZES O SUMO SACERDÓCIO.
 ANANO, SUMO SACERDOTE, MANDA
MATAR
 TIAGO. A GRIPA ENGRANDECE E EMBELEZA A CIDADE DE CESARÉIA
DE
 FILIPE E A CHAMA NERONIANA. GRAÇAS QUE ELE CONCEDE AOS LEVITAS.
RELAÇÃO DE TODOS OS SUMOS SACERDOTES DESDE AARÃO.
856.
 Morrendo Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e o rei
Agripa tirou o sumo sacerdócio de José para dá-lo a Anano. Anano, o pai, foi
considerado como um dos homens mais felizes do mundo, pios gozou quanto
quis dessa grande dignidade e teve cinco filhos que a possuíram também depois
dele; o que jamais aconteceu a qualquer outro. Anano, um dos de que nós
falamos agora, era homem ousado e empreendedor, da seita dos saduceus, que,
como dissemos, são os mais severos de todos judeus e os mais rigorosos nos
julgamentos. Ele aproveitou o tempo da morte de Festo, e Albino ainda não
tinha chegado, para reunir um conselho, diante do qual fez comparecer Tiago,
irmão de Jesus, chamado Cristo, e alguns outros; acusou-os de terem
desobedecido às leis e os condenou ao apedrejamento. Esse ato desagradou
muito a todos os habitantes de Jerusalém, que eram piedosos e tinham verda-
deiro amor pela observância de nossas leis. Mandaram secretamente pedir ao
rei Agripa que ordenasse a Anano, nada mais fazer de semelhante, pois o que
ele fizera, não se podia desculpar. Alguns deles foram à presença de Albino, que
então tinha partido de Alexandria, para informá-lo do que se havia passado e
dizer-lhe que Anano não podia nem devia ter reunido aquele conselho sem sua
licença. Ele aceitou estas desculpas e escreveu a Anano, encoleriza-do,
ameaçando mandar castigá-lo. Agripa, vendo-o tão irritado, tirou-lhe o sumo
sacerdócio, que exercera somente durante quatro meses, e a deu a Jesus, filho
de Daneu.
857. Quando Albino chegou a Jerusalém, empregou todo o seu cuidado
em restituir a calma à província pela morte de uma grande parte dos ladrões.
Nesse mesmo tempo, Ananias, que era um sacerdote de mérito, conquistava o
coração de todos. Não havia quem não o honrasse pela sua liberalidade; não se
passava um dia sem que ele não desse presentes a Albino e ao sumo sacerdote.
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Mas ele tinha servos tão maus que iam pelas granjas com outros que não eram
melhores do que eles, tomar à força as décimas, que pertenciam aos sacerdotes
e batiam nos que se recusavam dá-las. Outros faziam também a mesma coisa;
assim, os sacerdotes, que não tinham outro meio de vida, achavam-se
reduzidos aos extremos, sem que ninguém se resolvesse dar um remédio a isso.
Durante uma festa, esses assassinos de que acabamos de falar, entraram
à noite na cidade e prenderam o secretário de um oficial do exército, que era
filho do sacerdote Ananias, amarraram-no, levaram-no e mandaram dizer ao
pai dele que o soltariam, desde que obtivesse de Albino a liberdade de dez dos
seus companheiros, que estavam presos. Esse plano deu resultado. Albino,
vendo a necessidade em que Ananias se encontrava de lhe fazer esse pedido,
concedeu-lho; isso foi causa de muitos males, porque os ladrões sempre
encontravam novos meios de apanhar parentes de Ananias e só os restituíam
com semelhantes trocas. Assim, seu número cresceu ainda mais, sua ousadia
aumentou também na mesma proporção e mil males eles causavam a toda a
província.
858. O rei Agripa aumentou a cidade de Cesaréia de Felipe e a chamou
de Neroniana, em homenagem a Nero. Mandou também construir em Berita um
magnífico teatro, onde dava todos os anos espetáculos ao povo; mandou
distribuir trigo e óleo aos habitantes, e, para embelezar a cidade, mandou levar
a maior parte de tudo o que havia de mais raro no resto de seu reino, para lá;
bem como uma grande quantidade de excelentes estátuas dos maiores
personagens da antigüidade. Tal magnificência tornou-o odioso aos seus
súditos, porque eles não podiam tolerar que ele despojasse suas cidades dos
seus mais belos ornamentos, para embelezar uma cidade estrangeira.
859. Ele tirou ainda o sumo sacerdócio de Jesus, filho de Daneu, para
dá-lo Jesus, filho de Gamaliel. Mas como ele não a deixou de boa vontade,
produziu-se entre eles uma grande divergência. Eles faziam-se acompanhar de
homens armados, chegavam freqüentemente às injúrias e das injúrias, aos
fatos.
860. Ananias continuava a ser o mais ilustre dos sacerdotes, quer por
suas grandes riquezas, quer pela sua liberalidade, que lhe granjeava, cada vez
mais, novos amigos.
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Costobaro e Saul tinham conseguido um grande número de soldados e,
como eram de sangue real e parentes do rei, tornaram-se ilustres; mas eram
violentos e sempre prontos a oprimir os mais fracos. Foi então que começou a
ruína da nossa nação, pois as coisas iam de mal a pior.
861.
 Quando Albino soube que Géssio Floro vinha para substituí-lo,
pareceu querer obsequiar os habitantes de Jerusalém. Assim, mandou trazer
todos os prisioneiros, condenou à morte todos os que realmente eram culpados
de crime capital, mandou para a prisão os que lá tinham sido postos por faltas
leves e depois lhes deu a liberdade, a troco de dinheiro. Assim esvaziou as
prisões, e ao mesmo tempo todo o país ficou cheio de ladrões.
862. Os da tribo de Levi, cuja função era cantar hinos em louvor a Deus,
obtiveram do rei Agripa, que determinasse em seu conselho, que eles poderiam
usar a estola de linho, o que só era permitido aos sacerdotes. Disseram-lhe
para isso que, tendo jamais gozado daquela graça, ser-lhe-ia glorioso conceder-
lha. Mas ele permitiu ao mesmo tempo à outra parte da tribo, que era
empregada no serviço do Templo, que também entoasse, como os demais, hinos
e cânticos. Todas essas coisas eram contrárias às nossas leis e jamais foram
violadas sem que Deus lhes desse um severo castigo.
863. As obras do Templo, então, estavam terminadas; assim, dezoito mil
operários que ali eram empregados e pagos pontualmente, ficaram sem
trabalho; os habitantes de Jerusalém, quiseram dar-lhes uma ocupação e um
meio de vida; como eles nada desejavam conservar de todo o sagrado tesouro do
Templo, para que os romanos dele não se apoderassem, propuseram ao rei
Agripa reconstruir a galeria que está do lado do ocidente. Essa galeria estava
fora do Templo, num profundo vale, tão profundo que seus muros tinham
quatrocentas côvados de altura e eram construídos de pedra quadrada, muito
branca, de vinte côvados de comprimento e de seis de grossura sendo ainda
obra de Salomão, que, por primeiro, construíra o Templo. Mas Agripa, ao qual o
imperador Cláudio tinha encarregado de tudo o que se referia às reparações
desse edifício sagrado, considerando a magnitude da empresa, tanto pelo tempo
como pela quantidade de dinheiro que seria necessário empregar-se para isso e
que,
 as
 maiores
 obras
 se
 destróem
 facilmente,
 não
 quis
 dar-lhes
consentimento, mas permitiu-lhes, se o quisessem, mandar pavimentar sua
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cidade, com pedras brancas. Tirou em seguida o sumo sacerdócio, a Jesus,
filho da Gamaliel e o deu a Matias, filho de TeóFílon, sob cujo sacerdócio, a
guerra dos judeus começou.
864.
 A este propósito, julgo conveniente aqui a série dos sumos
sacerdotes, elevados a esta honra até o fim desta a guerra. O primeiro foi Aarão,
irmão de Moisés. Seus filhos sucederam-no e essa grande dignidade sempre
permaneceu
 na
 sua
 família,
 sem
 que
 nenhum
 outro
 que
 não
 seus
descendentes, nem mesmo reis, tenham sido escolhidos para exercê-lo. Houve
oitenta e três, desde Aarão até Fanazo, que os sediciosos elevaram a esse cargo
e treze dentre eles o tiveram desde o tempo em que Moisés elevou um
Tabernáculo a Deus no deserto até que o povo entrou na Judéia, onde Salomão
construiu o Templo; no começo só se provia a essa dignidade depois da morte
daquele que a exercia; mas, em seguida, foram substituídos, mesmo antes de
morrer. Estes treze, eram todos descendentes dos filhos de Aarão e sucederam-
se uns aos outros. O governo de nossa nação era então, aristocrático. A
autoridade depois foi posta nas mãos de um só. Por fim, passou para a pessoa
dos reis; havia seiscentos e doze anos que nossa nação tinha deixado o Egito,
sob o comando de Moisés, quando Salomão construiu o Templo.
Dezoito outros grandes sacerdotes sucederam a estes treze, durante
quatrocentos e sessenta e seis anos, seis meses e dez dias, que se passaram
sob o reinado dos reis, desde Salomão, até que Nabucodonosor, rei de
Babilônia, depois de ter tomado Jerusalém e incendiado o Templo, levou o povo
escravo para Babilônia e com eles, Josedeque, sumo sacerdote.
Depois do cativeiro de setenta e dois anos, Ciro, rei da Pérsia, permitiu
aos judeus regressar ao seu país, reconstruir o Templo, sendo então Jesus,
filho de Josedeque, sumo sacerdote. Quinze dos seus descendentes, todos
sumos sacerdotes, como ele, durante quatrocentos e quatorze anos governaram
a República, até que o rei Antioco Eupator e Lísias, general de seu exército,
tendo feito morrer Onias, em Beroé, o qual era sumo sacerdote, deram esse
cargo a Jacim, da família de Aarão, não, porém, da mesma família, que o
possuíra antes e dele privaram o filho de Onias, que tinha o seu mesmo nome.
Esse jovem Onias foi para o Egito onde, tendo caído nas boas graças do rei
Ptolomeu e da rainha Cleópatra, sua mulher, permitiram-lhe construir em
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Heliópolis, um Templo semelhante ao de Jerusalém, do qual ele foi feito sumo
sacerdote, como já dissemos. Jacim morreu no fim de três anos e o sumo
sacerdócio ficou vago durante sete anos. Quando nossa nação revoltou-se
contra os macedônios e escolheu para príncipe os da família dos asmoneus,*
Jônatas, um deles, foi escolhido com unânime consentimento, para exercer esse
grande cargo. Exerceu-o por sete anos; Trifom fê-lo morrer à traição e Simão,
seu irmão, sucedeu-o. Simão foi assassinado por seu genro num banquete e
Hircano, seu filho, foi elevado àquela honra. Dela ficou de posse, durante trinta
e um anos e morreu em idade muito avançada. Judas, seu filho, cognominado
Aristóbulo, sucedeu-o e foi o primeiro que teve o título de rei. Só reinou um ano
e Alexandre, seu irmão, sucedeu-o no reino e no sumo sacerdócio. Reinou vinte
e sete anos e deixou ao morrer, Alexandra, sua mulher, como regente, com o
poder de estabelecer no cargo de sumo sacerdote, aquele, dos filhos, que bem
quisesse. Ela deu-o a Hircano, que o exerceu durante os nove anos em que ela
reinou, mas depois que ela morreu, Aristóbulo, seu irmão, que era mais moço
do que ele, fez-lhe guerra, venceu-o, obrigou-o a viver vida privada e usurpou-
lhe ao mesmo tempo, o reino e o sumo sacerdócio. Gozou durante três anos de
um e de outro, mas Pompeu, depois de ter tomado Jerusalém, levou-o
prisioneiro a Roma, com seus filhos, e restabeleceu Hircano no cargo de sumo
sacerdote e de príncipe do judeus, sem, todavia, dar-lhe o título de rei. Dele
gozou durante vinte e três anos, além dos nove, de que falamos, mas, no fim
desse tempo, Pacoro e Barzafarnes, generais do exército dos partos, vieram de
além do Eufrates, fizeram-lhe guerra, levaram-no prisioneiro e constituíram rei
dos judeus a Antígono, filho de Aristóbulo. Três anos e três meses depois, esse
príncipe foi aprisionado em Jerusalém, por Herodes e por Sósio que o enviaram
a Antônio, o qual lhe mandou cortar a cabeça em Antioquia.
____________________________
* Isto não está no grego, pois ali deve estar Judas, e não Jônatas, como se
vê no artigo 491. Mas o que se diz em seguida de Jônatas é verdade, como se vê
nos artigos 525 e529.
Herodes, feito rei pelos romanos, não escolheu mais, para sumos
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sacerdotes os da família dos asmoneus, mas honrava indiferentemente com
esse cargo, os mesmos sacerdotes e até outros menos ilustres, exceto quando o
deu a Aristóbulo, neto de Hircano, aprisionado pelos partos e irmão de
Mariana, sua mulher, por causa do afeto que o povo tinha por ele e do respeito
que se conservava pela memória de Hircano. Mas ele via a simpatia que todos
tinham por esse jovem príncipe; começou a sentir medo e, então, fê-lo afogar
em Jerico, da maneira como descrevemos, e não quis mais elevar a essa honra
a nenhum da família dos asmoneus. Arqueiau, filho de Herodes, e os romanos,
que em seguida se tornaram senhores da Judéia, fizeram do mesmo modo.
Assim, durante os cento e sete anos que se passaram desde o começo do reino
de Herodes até o tempo em que Tito incendiou Jerusalém e o Templo, houve
vinte e oito sumos sacerdotes, alguns dos quais exerceram o cargo sob o
reinado de Herodes. Depois da morte deste e de Arqueiau, a maneira de
governar entre os de sua nação tornou-se aristocracia e eram os sumos
sacerdotes que tinham a principal autoridade.
CAPÍTULO 9
FLORO SUCEDE A ALBINO NO GOVERNO DA J UDÉIA; SUA AVAREZA E CRUELDADE SÃO
CAUSA DA GUERRA DOS JUDEUS CONTRA OS ROMANOS.
FIM DESTA HISTÓRIA .
865. Géssio Floro, que era de Clazomene, foi, para infelicidade de nossa
nação, escolhido por Nero para suceder a Albino, no governo da Judéia e
Cleópatra, sua mulher, que ele levou consigo e que não lhe ficava atrás em
maldade, tinha-o feito obter esse favor por meio da imperatriz Popéa, que tinha
muito afeto por ela. Ele abusou tão insolentemente do poder, que muitos
vieram a sentir a ausência de Albino; aquele se escondia para fazer o mal; Floro
fazia-o por vaidade. Parecia que só fora enviado para fazer triunfar a injustiça e
cobrir de ultrajes nossa nação. Seus roubos e suas crueldades não tinham
limites: seu coração era insensível à piedade; os grandes lucros não o faziam
desprezar os pequenos; de tudo se apoderava; partilhava mesmo dos roubos e
vendia aos ladrões a impunidade de seus crimes, a esse preço. Assim, os males
que os judeus suportavam iam além de tudo o que se pode imaginar. Eles eram
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obrigados a abandonar seu país e suas santas cerimônias e fugir para terras
estrangeiras; não havia países, por mais bárbaros que fossem, onde eles não
pudessem viver mais tranqüilos. Que mais direi? Basta afirmar que Floro nos
obrigou a tomar as armas contra os romanos, para perecer-mos todos
juntamente e de uma vez, que não uns após outros, separadamente, sobre um
governo tão intolerável? Assim, dois anos depois que se tirânico governador
havia chegado à Judéia, no décimo segundo ano do reinado de Nero, começou
essa funesta guerra e os que tiveram a curiosidade de saber tudo o que então se
passou em particular, poderão ler a história que nós dela escrevemos.
866. Terminarei aqui, portanto, a das antigüidades de nossa nação, que
trata do que se passou, desde a criação do mundo até este décimo segundo ano
do reinado de Nero. Podemos ver aí tudo o que aconteceu aos judeus, durante
tantos séculos, tanto no Egito, como na Palestina e na Síria; o que eles
sofreram sob os assírios e os babilônios; de que modo foram tratados pelos
persas e pelos macedônios e, por fim, pelos romanos. Também relatei a série de
todos os sumos sacerdotes, durante dois mil anos, todos os feitos de nossos reis
e daqueles que quando não havia mais reis, tiveram a suprema autoridade,
segundo o que encontrei escrito nos livros santos, como eu havia prometido no
começo desta obra.
Ouso afirmar que nenhum outro, quer judeu, quer estrangeiro, teria
podido dar esta história aos gregos, escrita com tanta exatidão. Os da minha
nação estão de acordo em que eu sou bem instruído no que se refere aos nossos
costumes e às nossas tradições; não tenho motivo de lastimar o tempo que
empreguei em aprender a língua grega, embora não a pronuncie com perfeição,
o que nos é muito difícil, porque não nos aplicamos bastante a isso; entre nós,
não apreciamos muito àqueles que aprendem várias línguas. Consideramos
esse estudo como profanos, pois convém tanto aos escravos como aos livres, e
somente consideramos sábios os que adquirem um grande conhecimento das
nossas leis e das escrituras sagradas, que eles são capazes de explicar, o que é
coisa tão rara, que somente uns dois ou três, conseguiram essa glória.
867. Quero esperar que não se achará mau que eu escreva brevemente
alguma coisa da minha descendência e das principais ações de minha vida,
enquanto há pessoas vivas que podem confirmar ou contestar a verdade;
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terminarei assim essas antigüidades, que contém vinte livros e sessenta mil
linhas. Se Deus me conservar a vida, direi abreviada as causas da guerra e
tudo o que aconteceu até este dia, que está justamente no décimo terceiro ano,
do reinado do imperador Domiciano e no qüinquagésimo sexto de minha idade.
Prometi também escrever quatro livros das opiniões dos judeus e dos
sentimentos que eles têm de Deus, de sua essência, de suas leis e das coisas
que nos permitem como ou nos proíbem.
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II Parte
Guerra dos Judeus
Contra os Romanos
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Advertência
Se a História dos Judeus mostrou-nos que josefo merece ser colocado
entre os melhores escritores de todos os tempos, a sua obra que trata da guerra
contra os romanos, a qual compreende a primeira e a maior parte deste
segundo volume, não permite duvidar de que ele superou a si mesmo.
Várias razões contribuíram para tornar este livro uma obra-prima: a
magnitude do assunto, os sentimentos que produzia em seu coração a ruína de
sua pátria e a parte que ele tivera nos principais acontecimentos dessa
sangrenta guerra.
Que outro assunto poderia igualar-se ao deste grande assédio que
mostrou a toda a terra como uma única cidade teria sido obstáculo à glória dos
romanos, se Deus, por castigo de seus crimes, não a tivesse fulminado com os
raios de sua cólera? Que sentimentos de dor podem ser mais vivos que os de
um judeu e de um sacerdote ao ver em subverterem-se as leis do seu país, das
quais nenhum outro jamais foi tão zeloso e reduzir-se a cinzas o soberbo
Templo, objeto de sua devoção e de seu zelo? Que parte maior pode ter um
historiador em sua obra, do que ser obrigado a mencionar as principais ações
de sua vida e a trabalhar para sua própria glória, revelando, sem bajulação, a
dos vencedores e ao mesmo tempo referindo-se ao que devia à generosidade
desses dois admiráveis príncipes, Vespasiano e Tito, aos quais cabe a honra de
ter terminado essa grande guerra?
Mas, como encontramos nesta história tantas coisas notáveis, creio que
os que a lerem descobrirão com prazer, num resumo mais exato — como o de
Josefo, em seu prefácio — o que ela contém para passar, em seguida, da idéia
geral aos particulares que dela dependem. A obra está dividida em sete livros.
O primeiro e o segundo, até o capítulo 28, são um resumo da história dos
judeus, referida no primeiro volume, já publicado, desde Antíoco Epifânio, rei
da Síria, que depois de ter saqueado o Templo, quis abolir a religião, até Floro,
governador da Judéia, cuja avareza e crueldade foram a primeira causa dessa
guerra, que eles sustentaram contra os romanos. Esse resumo é tão agradável
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que Josefo aparentemente quis mostrar que podia, como excelente pintor, re-
presentar com tanta arte os mesmo objetos, em maneiras diferentes, que não
sabemos à qual dar o prêmio.
No primeiro volume, essas histórias foram interrompidas pela narração de
coisas acontecidas ao mesmo tempo; aqui, são escritas na seqüência e dão aos
leitores a satisfação de ver num único quadro, o que havia visto em vários,
separadamente. Depois do capítulo 28 do segundo livro e até o fim, Josefo
narra o que se passou depois da perturbação suscitada por Floro, até a derrota
do exército romano, comandado por Céstio Galo, governador da Síria.
No começo do terceiro livro, Josefo mostra o espanto que causou ao
imperador Nero esse infeliz resultado de suas armas, o que poderia ter
suscitado a revolta de todo o Oriente e diz que tendo lançado os olhos para
todos os lados, só encontrou Vespasiano, que poderia sustentar o peso de uma
guerra tão importante e lhe deu, então, a chefia e o comando. Em seguida,
aborda de que modo esse grande general, acompanhado por Tito, seu filho,
entrou na Galiléia, de que Josefo, autor desta história, era governador e o sitiou
em jotapate, onde depois da maior resistência que se poderia imaginar, ele foi
aprisionado e levado a Vespasiano, e como Tito tomou várias outras praças e
realizou feitos de incrível valor.
Vemos no quarto livro: Vespasiano conquistar o restante da Galiléia; a
divisão dos judeus em Jerusalém; os facciosos, que tomavam o nome de zelotes,
tornarem-se senhores do Templo, sob o comando de João de Giscala; Anano,
sumo sacerdote, levar o povo a sitiá-los; os idumeus virem em seu auxílio,
praticarem crueldades incríveis e depois se retirarem; Vespasiano tomar
diversas praças da Judéia, bloquear Jerusalém com a resolução de sitiá-la e
desistir desse intento por causa da morte dos imperadores Nero, Galba e Oton;
Simão, filho de Joras, outro chefe dos facciosos, ser recebido pelo povo em
Jerusalém; Vitélio, que se havia apoderado do império, depois da morte de
Oton, tornar-se odioso e desprezível por sua crueldade e por sua devassidão; o
exército comandado por Vespasiano declará-lo imperador; e, por fim, Vitélio ser
assassinado em Roma, depois da derrota de suas tropas, por Antônio Primo,
que tinha abraçado o partido de Vespasiano.
O quinto livro aborda a formação em Jerusalém de uma terceira facção,
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da qual Eleazar foi o chefe, e depois, como essas três facções se reduziram a
duas, como era antes, e de que modo elas se faziam guerra; aí vemos também a
descrição de Jerusalém, das torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana, da
fortaleza Antônia, do Templo, do sumo sacerdote e de várias outras coisas
notáveis: o cerco dessa grande cidade, executado por Tito; as incríveis
amarguras e os atos de valor extraordinários que se praticaram de ambos os
lados; a extrema carestia que afligiu a cidade e as espantosas crueldades dos
facciosos.
O sexto livro apresenta a horrível miséria a que Jerusalém se viu
reduzida: a continuação do assédio com o mesmo ardor que antes; e de que
maneira, depois de um grande número de combates, Tito, tendo forçado o
primeiro e o segundo muros da cidade, tomou e destruiu a fortaleza Antônia e
atacou o Templo, que foi incendiado, não obstante o que esse príncipe tentou
fazer para impedi-lo e como, finalmente, se apoderou de todo o restante.
No sétimo e último destes livros vemos como Tito destruiu Jerusalém,
exceto as torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana; a maneira como louvou e
recompensou seu exército; os espetáculos que deu ao povo da Síria, as horríveis
perseguições feitas aos judeus em várias cidades; a incrível alegria com a qual o
imperador Vespasiano e Tito, que tinha sido declarado César, foram recebidos
em Roma e seu soberbo triunfo; a tomada dos castelos de Herodiom, de
Macherom e de Massada, que eram os únicos lugares que os judeus ainda
ocupavam na Judéia, e como os que defendiam esta última mataram-se todos
com suas mulheres e filhos.
Eis, em geral, o que contém a História da Guerra dos judeus contra os
Romanos: não há ornamentos com que esse grande personagem não a tenha
enriquecido. Ele não perdeu nenhuma ocasião de embelezá-la, com descrições
admiráveis de províncias, de lagos, de rios, de fontes, de montanhas, de
diversas raridades e de edifícios, cuja magnificência passaria por uma fábula,
se o que ele diz pudesse ser posto em dúvida. Mas vemos que ninguém houve
que ousasse contradizê-lo, embora a excelência de sua história tivesse
suscitado contra ele tanta inveja.
Podemos dizer com verdade que, quer ele fale da disciplina dos Romanos
na guerra, quer descreva os combates, as tempestades, os naufrágios, a
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carestia ou o triunfo, tudo aí é de tal modo perfeito, que ele se torna senhor da
atenção de todos os que o lêem. Eu não tenho receio de acrescentar, que
nenhum outro, sem excetuarmos Tácito, lhe foi superior nos discursos, tão
nobres
 eles
 são,
 fortes,
 persuasivos,
 sempre
 presos
 ao
 assunto
 e
proporcionados às pessoas que falam e às quais se fala.
Podemos louvar também o juízo e a boa fé desse verdadeiro historiador,
pelo equilíbrio que ele conserva entre os louvores que os romanos merecem por
terem terminado tão grande guerra e os que são devidos aos judeus, por tê-la
sustentado, embora vencidos, com indômita coragem, sem que seu reconheci-
mento pelos favores que devia a Vespasiano e a Tito, nem seu amor pela pátria,
o tenham feito pender contra a justiça mais do lado de uns do que de outros.
Mas, o que eu encontro nele de mais estimável é que ele não deixa, em
todos os fatos, de louvar a virtude, de estigmatizar o vício e de fazer reflexões
excelentes sobre o adorável proceder de Deus e sobre o temor que devemos ter
de seus juízos rigorosos.
Podemos afirmar com sinceridade que jamais se viu um exemplo maior
que o da ruína dessa ingrata nação, dessa soberana cidade e desse augusto
Templo, pois que ainda que os romanos fossem os senhores do mundo e esse
cerco tenha sido obra de um dos maiores príncipes de que eles possam
vangloriar-se em ter tido por imperador, o poder desse povo vitorioso sobre
todos os outros e o heróico valor de Tito lhe teriam, em vão, formado o desígnio,
se Deus não os tivesse escolhido para executores da justiça.
O sangue de seu filho derramado pelo mais horrível de todos os crimes foi
a única causa verdadeira da ruína dessa infeliz cidade. Foi a mão de Deus que
pesou sobre o infeliz povo; que, apesar da terrível guerra que o acossava de
fora, era ainda internamente muito mais espantosa, pela crueldade daqueles
judeus desnaturados, mais semelhantes a demônios do que a homens. Eles
fizeram perecer pelas armas e pela horrível carestia de que eles eram os autores
um milhão e cem mil pessoas, e reduziram o restante a não poder esperar a
salvação a não ser dos próprios inimigos, lançando-se nos braços dos romanos.
Efeitos tão prodigiosos da vingança pela morte de Jesus poderiam passar
por incríveis aos que não têm a felicidade de ser iluminados pela luz do
evangelho, se não fossem referidos por um homem, dessa mesma nação, tão
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ilustre como Josefo, pelo seu nascimento, pela sua condição de sacerdote e pela
sua virtude. Claro, parece-me, que Deus querendo se servir do seu testamento
para autorizar verdades tão importantes, conservou-o por um milagre, quando,
depois da tomada de jotapate, dos quarenta que se haviam retirado com ele
numa caverna, foi lançada a sorte, tantas vezes, para se saber quais seriam os
que deveriam ser mortos primeiros. Ele e um outro, somente, ficaram com vida.
Isso mostra que devemos dar a esse historiador uma posição bem
diferente
 do
 que
 a
 todos
 os
 demais,
 pois,
 enquanto
 eles
 abordam
acontecimentos
 humanos,
 embora
 dependentes
 das
 ordens
 da
 divina
providência, parece que Deus lançou seus olhos sobre ele para fazê-lo servir ao
maior dos seus desígnios.
Não devemos considerar somente a ruína dos judeus como o mais
espantoso efeito da justiça de Deus e a imagem mais terrível da vingança que
ele exercerá no último dia, contra os réprobos. Devemos também considerá-la
como uma das provas mais brilhantes que lhe aprouve dar aos homens acerca
da divindade de seu filho, pois tão prodigioso acontecimento tinha sido predito
por JESUS CRISTO, em termos precisos e claros. Ele tinha dito aos seus
discípulos, mostran-do-lhes o Templo de Jerusalém, que todos aqueles grandes
edifícios seriam de tal modo destruídos que não ficaria pedra sobre pedra. Ele
lhes havia dito que quando vissem as armas rodear Jerusalém deviam saber
que sua desolação estaria próxima (Mc 1 3.2; Lc 19.44; 21.20; 21.23,24).
Ele tinha notado em particular as espantosas circunstâncias dessa
desolação: "Ai", disse Ele, "das mulheres que estiverem grávidas ou tiverem
crianças de peito, naqueles dias, pois esse país será oprimido por males e a
cólera do céu cairá sobre esse povo. Eles passarão pelo fio da espada; serão
levados escravos para todas as nações e Jerusalém será calcada aos pés pelos
gentios".
Por fim, Ele tinha declarado que o efeito dessas profecias estava prestes a
acontecer; que o tempo se aproxima (Mt 23.33) e mesmo que aqueles que eram
do seu tempo poderiam vê-lo. "Eu vos digo, em verdade", disse ele, "que tudo
isso virá acontecer sobre essa raça que existe hoje" (Mt 23.36).
Todas estas coisas tinham sido preditas por JESUS CRISTO e escritas
pelos evangelistas, antes da revolta dos judeus, e quando não havia ainda
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nenhuma probabilidade de tão estranha mudança.
Assim como a profecia é o maior milagre e a maneira mais poderosa com
que Deus autoriza a sua doutrina, essa profecia de JESUS CRISTO, à qual
nenhuma outra é comparável, pode ser o encerramento e término das provas
que deram a conhecer aos homens a sua missão e origem divina, pois nenhuma
outra jamais foi tão pontualmente realizada. Jerusalém foi destruída por
completo pelo primeiro exército que a sitiou e não ficou o menor vestígio
daquele soberbo Templo, admiração do universo e objeto de orgulho dos judeus,
e os males que os oprimiram correspondem claramente a essa terrível predição
de JESUS CRISTO.
Mas, para que tão grande acontecimento pudesse servir também de aviso
aos que deviam ainda nascer no correr dos tempos, como aos que dele foram
espectadores, era além disso necessário, como eu já disse, que a história fosse
escrita por uma testemunha fidedigna. Para isso, era necessário que fosse um
judeu e não um cristão, para que dele não se pudesse suspeitar, de ter anexado
os fatos às profecias. Era ainda necessário que fosse uma pessoa de alto nível
social, a fim de que estivesse a par de tudo. Era necessário que tivesse visto
com os próprios olhos tantas coisas prodigiosas que deveria relatar, a fim de
que se lhe pudesse dar fé. Por fim, era preciso que fosse um homem capaz de
corresponder, pela grandeza de sua eloqüência e de sua inteligência, à
magnitude de tal assunto.
Todas essas qualidades exigidas para tornar esta história perfeita, em
todos os seus particulares, encontram-se em Josefo, o que torna evidente que
Deus o escolheu para convencer a todos os entes racionais da verdade desse
maravilhoso acontecimento.
E certo que não parece que tendo contribuído dessa maneira à divulgação
do evangelho, ele tenha aproveitado, nem tenha tomado parte nas graças que se
difundiram no seu tempo, com tanta abundância, sobre toda a terra. Mas se
nisso temos motivo de lastimar a sua infelicidade, temos também motivo de
abençoar a providência de Deus, que fez servir sua cegueira ao nosso bem, pois
as coisas que ele escreveu de sua pátria, com relação aos incrédulos são incom-
paravelmente mais fortes para a consolidação da fé cristã do que se ele tivesse
abraçado o cristianismo. Assim, podemos dizer dele, em particular, o que o
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apóstolo diz de todos os judeus: "Que sua infelicidade enriqueceu o mundo com
os tesouros da fé e que sua pouca luz serviu para iluminar todos os povos:
Delictum corum divitae sunt mundi et diminutio eorum divitae gentium" (Rm
11.12).
A segunda obra de Josefo, contida neste segundo volume, além de sua
vida, escrita por ele mesmo, é uma resposta dividida em dois livros, ao que Ápio
e outros tinham escrito contra sua história dos judeus, contra a antigüidade de
sua descendência, contra a pureza de suas leis e contra o proceder de Moisés.
Nada pode ser mais forte do que esta resposta. Josefo prova irrefutavelmente a
antigüidade de sua nação, pelos historiadores egípcios, fenícios, caldeus e mes-
mo pelos gregos. Ele mostra que tudo o que Ápio e esses outros autores alega-
ram em desabono dos judeus são fábulas ridículas, tal como a pluralidade de
seus deuses, e revela de maneira admirável a grandeza dos feitos de Moisés e a
santidade das leis que Deus entregou aos judeus por seu intermédio.
O martírio dos macabeus vem em seguida. É um trabalho que Erasmo,
tão célebre entre os sábios, chama de obra-prima de eloqüência: confesso que,
não compreendo como, tendo dela com razão uma opinião tão vantajosa, ele a
parafraseou e não a introduziu. Jamais cópia saiu mais diferente do original.
Apenas sp reconhecem alauns dos seus traços principais e se eu não me
engano, nada pode elevar mais a fama de Josefo, do que sendo ele tão hábil,
tendo querido embelezar sua obra, ao contrário, tanto lhe diminuiu a beleza.
Mostra também como devemos apreciar Josefo porque não escreve como quase
todos os gregos, de maneira muito extensa, mas com um estilo conciso, afirma
que só quer dizer o necessário.
Muito me admiro de que não se fez até agora nenhuma tradução desse
martírio, a partir do grego, quer para o latim, quer para o francês, pelo menos
que tenha chegado ao meu conhecimento. Genebrard, em vez de traduzir
Josefo, traduziu Erasmo. Eu me limitei fielmente ao original grego, sem seguir
em absolutamente, esta paráfrase de Erasmo, o qual inventa nomes que não
estão, nem em Josefo, nem na Bíblia, para dá-los à mãe dos macabeus e a seus
filhos. Parece que Josefo só relata esse célebre martírio, autorizado pela
Escritura Sagrada, para provar a verdade das palavras que escreveu no
princípio, cujo fim é mostrar que a razão é a senhora das paixões; ele lhe
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atribui um poder sobre elas, de que haveria motivo de se admirar, se fosse
estranho que um judeu ignorasse que esse poder só pertence à graça de JESUS
CRISTO. Ele contenta-se em dizer que só entende falar da razão acompanhada
de justiça e de piedade.
Assim, todas as obras de Josefo estão compreendidas nestes dois
volumes, que eu determinei traduzir. Fílon, embora judeu como ele, também
escreveu em grego sobre uma parte do mesmo argumento, mas que ele trata
como filósofo e não como historiador; entre seus escritos, que são tão
apreciados, nenhum o é mais, do que aquele que descreve sua embaixada ao
imperador Caio Calígula, de que Josefo fala com elogio no capítulo 10 do livro
18 de sua história dos judeus.
Julguei que esse trabalho, tendo tanta relação com ele, nos daria muito
prazer, vermos pela tradução que eu fiz, a maneira diferente de escrever desses
dois grandes personagens. A de Josefo é sem dúvida muito mais breve e não
tem nada do estilo asiático, que muitas vezes me obrigou a dizer em poucas
palavras o que Fílon diz em muitas linhas. Poderíamos escrever a história deste
imperador, unindo o que estes dois célebres autores escreveram, pois Fílon
aborda tão particular e eloqüentemente os feitos de sua vida, como Josefo
nobre e excelentemente escreveu sobre o que se passou em sua morte. Uma e
outra foram tão extraordinárias que convém se conservem tais imagens, para a
posteridade, a fim de animar cada vez mais os bons príncipes a merecer, por
sua virtude, tanto amor por sua memória, quanto de horror se sente por
aqueles que se mostraram indignos da posição que ocupam no mundo.
Uma exposição muito longa obriga a grande atenção, porque não se sabe
onde descansar; por isso dividi em capítulos este tratado de Fílon, os dois livros
de Josefo contra Ápio e o martírio dos macabeus, onde não havia nenhum.
Quanto à história da guerra dos judeus contra os romanos, eu não segui nos
livros e nos capítulos a divisão de Rufino, que encontramos nas publicações
bilíngües, gregas e latinas, porque me pareceu ruim. Mas limitei-me, como fez
Genebrard, à das publicações gregas, que são sem dúvida muito melhores.
Nada mais me resta a acrescentar; como estes dois volumes compreendem
toda a antiga história sagrada, desejo que não sejam lidos apenas por diverti-
mento e por curiosidade, mas que se procure aproveitar, pelas considerações
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úteis de que fornecem tanta matéria. Foi esse o motivo que me levou a
empreender esta tradução; do contrário, ela ter-me-ia, aos oitenta anos, feito
empregar em vão muito tempo e dar-me muito trabalho numa idade na qual só
devemos pensar em nos preparar para a morte.
O tradutor
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Vida de Flávio Josefo
Escrita por Ele mesmo
Como a minha origem remonta a uma longa série de antepassados de
família sacerdotal, eu poderia vangloriar-me da nobreza do meu nascimento,
pois cada nação, estabelecendo a grandeza de uma família em certos sinais de
honra que a acompanham, entre nós uma das mais notáveis é ter-se a
administração das coisas santas. Mas não sou apenas oriundo da família dos
sacerdotes: sou também da primeira das vinte e quatro linhas que a compõem e
cuja dignidade está acima de todas. A isso posso acrescentar que, do lado de
minha mãe, tenho reis entre meus antepassados. O ramo dos hasmoneus, de
que ela é proveniente, possuiu durante um longo tempo, entre os hebreus, o
reino e o sumo sacerdócio.
Eis a série dos últimos dos meus predecessores: Simão, cognominado
Psello, avô de meu bisavô, viveu no tempo em que Hircano, primeiro desse
nome, filho de Simão, sumo sacerdote, exercia o sumo sacerdócio. Psello teve
nove filhos, um dos quais de nome Matias, cognominado Aflias, desposou no
primeiro ano do reinado de Hircano, a filha de Jônatas, sumo sacerdote, e teve
Matias, cognominado Curo, que no nono ano do reinado de Alexandre teve um
filho de nome José, que no décimo ano do reinado de Arqueiau teve um filho de
nome Matias, do qual eu tenho meu nascimento, no primeiro ano do reinado do
imperador Caio César. Quanto a mim, tenho três filhos: o primeiro dos quais,
chamado Hircano, nasceu no quinto ano do reinado de Vespasiano; o segundo,
chamado Justo, nasceu no sétimo; e o terceiro, de nome Agripa, no nono ano
do reinado do mesmo imperador. Eis minha descendência como está escrita nos
registros públicos e que eu julguei dever relatar aqui a fim de desmanchar as
calúnias de meus inimigos.
Meu pai não foi somente conhecido em toda a cidade de Jerusalém pela
nobreza de sua origem; ele o foi ainda mais, por sua virtude e por seu amor à
justiça, que tornaram seu nome célebre. Fui educado desde minha infância no
estudo das letras, com um dos meus irmãos de pai e mãe, que tinha como ele o
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nome de Matias. Deus me deu bastante memória e inteligência, e eu fiz tão
grande progresso que, tendo então só quatorze anos, os sacerdotes e os mais
importantes de Jerusalém se dignaram perguntar minha opinião sobre o que se
referia à interpretação das leis.
Quando fiz treze anos, desejei aprender as diversas opiniões dos fariseus,
as dos saduceus e as dos essênios, três seitas que existem entre nós, a fim de,
co-nhecendo-as, pudesse adotar a que melhor me parecesse. Assim, estudei-as
todas e experimentei-as com muitas dificuldades e muita austeridade. Mas essa
experiência ainda não me satisfez; vim a saber que um certo Bane vivia tão aus-
teramente no deserto que só se vestia da casca das árvores e só se alimentava
com o que a mesma terra produz; para se conservar casto, banhava-se várias
vezes por dia e de noite, na água fria; resolvi imitá-lo. Depois de ter passado
três anos com ele, voltei, aos dezenove anos, a Jerusalém. Iniciei-me, então, nos
trabalhos da vida civil e abracei a seita dos fariseus, que se aproxima mais que
qualquer outra da dos estóicos, entre os gregos.
Na idade de vinte e seis anos fiz uma viagem a Roma, por esta razão:
Félix, governador da Judéia, mandou por um motivo qualquer alguns
sacerdotes, homens de bem e meus amigos particulares, para se justificarem
perante o imperador; eu desejei, com muito entusiasmo, ajudá-los, quando
soube que sua infelicidade em nada havia diminuído sua piedade e eles se
contentavam em viver com nozes e figos. Assim, embarquei e corri um grande
perigo, como jamais em minha vida. O navio no qual estávamos, umas
seiscentas pessoas, naufragou no mar Adriático. Depois de ter nadado toda a
noite, Deus permitiu que ao nascer do dia encontrássemos um navio de Cirene,
que recebeu oitenta dos que entre nós haviam conseguido nadar tanto tempo; o
restante havia perecido no mar. Assim chegamos a Disearche, que os italianos
chamam Puteoli (Puzzoli), onde travei conhecimento com um comediante judeu
de nome Alitur, o qual o imperador Nero muito apreciava. Esse homem levou-
me até a imperatriz Popéa, e obtive sem dificuldade a absolvição e a liberdade
daqueles sacerdotes por intermédio dessa princesa, que me deu grandes
presentes também, com os quais regressei ao meu país.
Lá encontrei alguns espíritos inclinados às mudanças que começavam a
lançar as raízes de uma revolta, contra os romanos. Procurei dissuadir os
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sediciosos e lhes fiz ver, entre outras coisas, como tão poderosos inimigos lhes
deviam ser temíveis, quer pela sua ciência na guerra, quer pela grande
prosperidade e que eles não deviam expor temerariamente a tão grande perigo,
suas mulheres, seus filhos e sua pátria. Como eu previa que tal guerra seria
muito desastrada, não houve razões de que não me servisse para dissuadi-los
desse empreendimento. Mas todos os meus esforços foram inúteis; foi-me
impossível fazer com que evitassem essa loucura. Assim, temendo que os
facciosos, que já tinham ocupado a fortaleza Antônia, suspeitassem que eu
favorecia o partido dos romanos e me fizessem morrer, retirei-me para o
santuário, de onde, depois da morte de Manahem e dos principais autores da
revolta, saí para me unir aos sacerdotes e aos principais dos fariseus.
Encontrei-os muito assustados, por ver que o povo havia tomado as
armas, e estava muito indeciso sobre o partido que devia tomar, mas via ser
perigoso opor-se à fúria daqueles sediciosos. Fingimos estar de acordo com
seus sentimentos e aconselhamo-los a deixar as tropas romanas se afastarem,
na esperança que tínhamos de que Cássio viria com grandes forças e acalmaria
o tumulto. Ele veio, com efeito; mas depois de ter perdido vários dos seus num
combate, foi obrigado a se retirar. Essa vantagem que os revoltosos obtiveram
contra ele custou caro à nossa nação, porque, tendo-lhes elevado o ânimo,
vangloriavam-se de poder conseguir novas vitórias.
Nesse mesmo tempo, os habitantes das cidades da Síria, vizinhas da
Judéia, mataram os judeus que lá moravam, embora eles nem sequer tivessem
tido o pensamento de se revoltar contra os romanos, e por uma crueldade mais
que bárbara não pouparam nem mesmo as mulheres e as crianças. Os de
Citópolis sobrepujaram aos demais em impiedade. Quando os judeus vieram
fazer-lhes guerra, eles obrigaram os seus compatriotas que viviam entre eles, a
tomarem
 as
 armas
 contra
 seus
 irmãos,
 o
 que
 nossas
 leis
 proíbem
expressamente, e depois de terem vencido, com o auxílio deles, esqueceram, por
uma detestável perfídia, o favor que lhes deviam e a palavra dada, e os
mataram a todos, sem poupar a um só. Os judeus que moravam em Damasco
não foram tratados com mais humanidade. Mas como já narrei estas coisas, na
minha História da Guerra dos judeus, basta-me dizer isto de passagem, a fim
de que o leitor saiba que não foi voluntariamente, mas obrigada, que nossa
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nação travou guerra contra os romanos.
Depois da derrota de Géssio, os maiorais de Jerusalém que estavam
desarmados e viam os sediciosos armados, temeram com razão cair em seu
poder, e, sabendo que a Galiléia não se tinha ainda revoltado totalmente contra
os romanos, mas uma parte dela se conservava fiel ao seu dever, mandaram-me
para lá com dois outros sacerdotes, Joazar e Judas, para persuadir aos
amotinados a abandonar as armas e entregá-las aos chefes da nação, com a
garantia de lhas conservar; mas que antes de se servirem delas, seria
necessário saber-se qual a intenção do romanos.
Tendo partido com essas instruções, constatei, ao chegar na Galiléia, que
os de Séforis estavam a ponto de travar uma luta com os galileus, que
ameaçavam devastar seu país, por causa do afeto que aqueles tinham pelo povo
romano e da fidelidade que mantinham a Sênio Galo, governador da Síria, livrei
os seforitanos desse temor e acalmei os galileus permitindo-lhes mandar, todas
as vezes que quisessem, a Dora da Fenícia, os reféns que tinham dado a Géssio.
Quanto aos habitantes de Tiberíades, achei-os em armas. Esta era a
razão: Havia naquela cidade três partidos; o primeiro era composto de pessoas
da nobreza e Júlio Capela era-lhe o chefe; Herodes, filho de Miar, Herodes, filho
de Gamai e Compso, filho de Compso, a ele se haviam reunido; Cripso, irmão de
Compso, que Agripa, o Grande, há muito tinha feito governador da cidade,
permanecia ainda nas terras que possuía além do Jordão. Todos os outros de
que acabo de falar eram de opinião de se permanecer fiel ao povo romano e ao
seu rei, e Pisto era o único da nobreza que, para agradar a Justo, seu filho, não
era desse parecer.
O segundo partido era composto pelo baixo povo, que queria que se lhe
fizesse guerra. Justo, filho de Pisto, era do terceiro partido. Ele mostrou duvidar
se seria preciso pegar em armas; mas, secretamente incitava a perturbação, na
esperança de conquistar grandeza e grande vantagem com a revolução. Para
conseguir o seu intento, disse ao povo que a sua cidade sempre havia ocupado
um dos primeiros lugares entre as da Galiléia e lhe tinha mesmo sido a capital
durante o reinado de Herodes, que a tinha fundado e lhe tinha submetido a de
Séforis:, que eles tinham conservado aquela preeminência, mesmo sob o
reinado do rei Agripa, o pai, até que Félix fora feito governador da Judéia, e a
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tinha perdido somente depois que Nero os havia dado ao jovem Agripa. Mas
Séforis, depois de ter recebido o jugo dos romanos, tinha sido elevada acima de
todas as outras cidades da Galiléia; essa mudança os havia feito perder o
tesouro dos privilégios antigos, e os rendimentos pertencentes ao rei.
Justo, com semelhantes discursos, irritou o povo contra o rei e suscitou-
lhes no espírito o desejo de se revoltar; acrescentou ainda que tinha chegado o
tempo de se unirem às outras cidades da Galiléia e de tomarem as armas para
reconquistar os benefícios que lhes haviam injustamente arrebatado. Nisso
seriam secundados por toda a província, pelo ódio que se tinha dos seforitanos,
por sua ligação tão estreita com o Império Romano. Essas razões de justo
persuadiram o povo, pois, ele era muito eloqüente; a graça, com a qual falava,
levou-o a opiniões muito mais sábias e mais salutares. Ele tinha certo
conhecimento da língua grega para ter ousado escrever a história do que se
passou então, a fim de desmascarar a verdade. No entanto, revelarei mais
particularmente, em seguida, toda sua malícia e de como não foi preciso que ele
e seu irmão tenham causado a inteira ruína de seu país. Justo, tendo-os então
persuadido, obrigou a alguns daqueles, que eram de outro parecer, a tomar as
armas; pôs-se em campo e queimou algumas aldeias dos ipinianos e dos
gadareenses, que estão na fronteira de Tiberíades e de Citópolis.
Enquanto as coisas andavam como acabo de dizer, eis o que se passava
em Giscala. João, filho de Levi, vendo que alguns de seus concidadãos, estavam
resolvidos a sacudir o jugo dos romanos, empregou toda a sua habilidade para
conservá-los no dever e na obediência. Mas tudo foi inútil, e os gadarenianos,
os gabaranianos e os tirios, que estão próximos de Giscala, juntaram-se,
atacaram a praça, tomaram-na e a destruíram completamente. João, irritado
com esse ato, reuniu muitas tropas, marchou contra eles, derrotou-os,
reconstruiu a cidade e a rodeou de muralhas.
Agora direi como os de Gamala permaneceram fiéis aos romanos. Filipe,
filho de Jacim, lugar-tenente do rei Agripa, tinha, contra toda sorte de
esperança, escapado do palácio real de Jerusalém, quando estava cercado, mas
caiu em outro perigo, correndo risco de ser morto por Manahem e seus
sediciosos, se alguns babilônios, seus parentes, que então estavam em
Jerusalém, não o tivessem salvado. Ele disfarçou-se alguns dias depois e fugiu
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para uma aldeia que estava perto do castelo de Gamala, onde reuniu um
grande número de seus súditos. Deus permitiu que ele fosse tomado por uma
febre, sem o que estaria perdido. Este acidente impediu-lhe de continuar a
viagem e ele escreveu por um dos seus libertos a Agripa e à rainha Berenice;
para fazê-los receber suas cartas, as endereçou a Varo, ao qual o rei e a rainha
haviam deixado a guarda do palácio, quando saíram para encontrar-se com
Géssio. Varo ficou muito aborrecido por saber que Filipe tinha escapado,
porque teve medo de diminuir-se seu prestígio perante o rei e a rainha e de que
não tivessem mais necessidade dele, quando Filipe estivesse com eles. Assim,
fez o povo crer que aquele liberto era um traidor, que lhe trazia falsas cartas,
porque estava certo de que Filipe estava em Jerusalém, com os judeus que se
haviam revoltado contra os romanos, e assim, mandou matar aquele homem.
Quando Filipe viu que seu liberto não voltava, não sabendo a que atribuir
tal demora, mandou um segundo, com outras cartas. Varo, para prejudicá-lo
empregou as mesmas calúnias, com que havia feito morrer o primeiro. Os
sírios, que moravam em Cesareia, haviam-no reanimado e feito conceber novas
esperanças, dizendo que os romanos tinham matado Agripa, por causa da
rebelião dos judeus e que ele poderia reinar em seu lugar, porque era de família
real, descendente de Soheme, rei do Líbano. Foi isso que o impediu de entregar
ao rei as cartas de Filipe e o obrigou a fechar todas as passagens, a fim de tirar
ao príncipe o conhecimento do que se passava. Mandou, em seguida, matar
vários judeus para satisfazer aos sírios de Cesareia e resolveu atacar, com o
auxílio dos traconítidas, que estavam em Betânia, os judeus que eram
chamados de babilônios e moravam em Ecbátana. Para conseguir esse intento,
ordenou a doze dos principais entre os judeus de Cesareia, que fossem dizer, de
sua parte, aos de Ecbátana, que o haviam avisado de que eles estavam a ponto
de se revoltar contra o rei, mas que não haviam prestado fé àquele aviso e
assim os mandava a eles, para exortá-los a deixar as armas, a fim de mostrar
com esse ato de obediência, que ele tivera razão em não acreditar no que lhe
haviam dito em seu desabono. A isso acrescentou que para manifestar ainda
melhor sua inocência, seria necessário que lhe mandassem setenta dos mais
ilustres dentre os seus.
Chegando a Ecbátana, os doze deputados acharam que os de sua nação
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só pensavam em se revoltar, e os persuadiram a mandar a Varo os setenta
homens que ele pedia. Quando os deputados reuniram-se perto de Cesareia,
Varo, que os havia precedido no caminho, com tropas do rei, atacou-os e de
todo aquele grande número um só se salvou. Varo marchou em seguida contra
Ecbátana. Mas aquele que se havia salvado, precedeu-o e deu aos habitantes a
notícia daquela horrível perfídia. Eles tomaram as armas, retiraram-se com
suas mulheres e filhos ao castelo de Gamala e abandonaram suas aldeias, com
todos os seus bens e todos os animais que possuíam em abundância. Filipe,
tendo sabido disso, dirigiu-se imediatamente a Gamala. O povo, alegre com seu
regresso, rogou-lhe que fosse seu chefe e os conduzisse contra Varo e os sírios
de Cesareia, pois espalhara-se a notícia de que eles haviam matado o rei. Filipe,
para reprimir-lhes a impetuosidade, falou-lhes dos benefícios de que eram
devedores àquele soberano, fê-los conhecer por meio de razões mui fortes que
as forças do Império Romano eram tão temíveis, que eles não podiam
empreender a guerra contra ele, sem se expor a um evidente perigo e, por fim,
persuadiu-os a seguir seu conselho.
No entanto, o rei Agripa, tendo sabido que Varo queria mandar matar no
mesmo dia todos os judeus de Cesaréia, que eram muitos, sem poupar nem as
mulheres e as crianças, mandou Equo Módio para substituí-lo, como se pode
ver em outro lugar. E Filipe conservou na obediência aos romanos, Gamala e a
região dos arredores.
Quando cheguei à Galiléia, soube de tudo o que acabo de referir e escrevi
ao Conselho de Jerusalém, para saber o que queria que eu fizesse. Ele
determinou que eu ficasse, para cuidar da província e que conservarsse comigo
os meus colegas, se eles o quisessem. Mas depois que eles ajuntaram muito
dinheiro, o qual lhes era devido pelas décimas, preferiram voltar e me pediram
que lhes desse somente um pouco de tempo, para regularizar todas as suas
coisas. Partimos depois todos juntos, de Séforis, para uma aldeia de nome
Betmaús, longe quatro estádios de Tiberíades. De lá mandei alguns homens ao
Senado daquela cidade e aos mais ilustres dentre o povo, para lhes rogar que
viessem ter comigo. Eles vieram e Justo também veio. Eu lhes disse que tinha
sido enviado pela cidade de Jerusalém com meus colegas, para lhes anunciar
que era preciso demolir o palácio tão suntuoso que o tetrarca Herodes tinha
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feito construir e onde ele tinha mandado pintar diversos animais, contra a
proibição expressa de nossas leis. Dessa forma, eu lhes rogava que nos
permitissem lá trabalhar com urgência.
Capella e os de seu partido, não podendo resolver-se a destruir tão bela
obra, opuseram-se por muito tempo. Mas por fim, nós os induzimos a
consentir; enquanto tratávamos desse assunto, Jesus, filho de Safias, seguido
de alguns barquei-ros e de alguns outros galileus do seu partido, incendiou o
palácio, com a esperança de se enriquecer, porque viam nele coberturas
douradas; roubaram de lá várias coisas, contra a nossa vontade. Depois desta
conversa que tive com Capella, retiramo-nos para a alta Galiléia. No entanto, os
do partido de Jesus mataram todos os gregos que moravam em Tiberíades e
todos os que tinham sido seus inimigos antes da guerra. Esta notícia muito me
aborreceu. Fui imediatamente a Tiberíades, onde fiz tudo o que me foi possível
para reconquistar uma parte do que havia sido roubado do rei, como
candelabros coríntios, ricas mesas, uma grande quantidade de dinheiro, em
moedas, com o fim de o conservar para o soberano, e entreguei todas essas
coisas nas mãos das autoridades do Senado e de Capella, filho de Antillo, com
ordem de só os entregar a mim mesmo.
De lá, fui como meus colegas a Giscala, para sondar o que João tinha em
mente e pude logo conhecer que ele aspirava a um governo tirânico, pois rogou-
me que lhe permitisse servir-se do trigo que pertencia ao imperador e que
estava reservado, nas aldeias da alta Galiléia, para, com o seu produto,
construírem-se muralhas. Como, porém, percebi a sua intenção, recusei-me, e
determinei guardar aquele trigo ou para os romanos ou para as necessidades
da província, em virtude do poder que a cidade de Jerusalém me tinha dado.
Quando ele viu que nada podia obter de mim, dirigiu-se aos meus colegas e
como eles apreciavam muito os presentes e não previam as conseqüências,
concederam-lhe o que pedia, por maiores objeções que eu fizesse, sendo
sozinho contra dois. Ele usou ainda de outro ardil. Disse que os judeus que
estavam em Cesaréia de Filipe queixavam-se da falta de óleo virgem, por causa
das proibições que o rei lhes havia feito de sair da cidade para comprá-lo;
tinham se dirigido a ele para obtê-lo porque não queriam se servir do óleo dos
gregos contra o costume da nossa nação. Não era, no entanto, o zelo pela nossa
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religião, mas o desejo de um ganho sórdido, que os fazia falar dessa maneira,
porque ele sabia que vendendo-se duas medidas desse óleo por uma dracma em
Cesaréia, oitenta medidas custavam quatro dracmas, em Giscala. Assim,
mandou trazer a Cesaréia todo o óleo que havia na cidade, fazendo falsamente
crer que o fazia com minha licença; eu não ousei opor-me para que o povo não
me apedrejasse, e com essa fraude ele ganhou muito dinheiro.
Despedi depois meus colegas, mandando-os para Jerusalém; entreguei-
me diligentemente a fazer provisões de armas e a fortificar as praças. No
entanto, mandei chamar todos os indivíduos que viviam de roubo e saque; não
conseguindo convencê-los a deixar as armas, persuadi o povo a pagar-lhes uma
contribuição; o que se fez, como preferível, a sofrer os prejuízos que eles
causavam aos campos; assim os despedi, depois de os ter obrigado com
juramento de só voltar ao país se fossem chamados ou se lhes deixassem de
pagar; proibi-lhes também de devastar as terras dos romanos e as vizinhanças.
Como nada mais tinha a fazer do que manter a paz na Galiléia, fiz amizade com
setenta dos principais do país, a fim de que me fossem como outros tantos
reféns, seguindo-lhes o conselho e as advertências em várias coisas, sobretudo
nada fazendo contra a justiça e não me deixando subornar por presentes.
Eu tinha então trinta anos; embora seja difícil, por mais que se proceda
com
 moderação
 e
 prudência,
 evitarem-se
 as
 calúnias
 dos
 invejosos,
principalmente quando se está constituído em dignidade e autoridade,
ninguém, no entanto, jamais ousou dizer que eu recebi presente algum ou
permiti que se usasse de violência contra alguma mulher. Também não tinha
necessidade desses presentes e estava tão longe de aceitá-los, que não cuidava
nem mesmo em receber as décimas que me eram devidas, como sacerdote.
Tomei, somente, depois da vitória que obtive sobre os sírios, uma parte de seus
despojos, que mandei a meus parentes em Jerusalém. Eu vencera duas vezes
os seforitanos, quatro vezes os de Tiberíades, uma vez os gandarianos e
aprisionei a João, que me tinha armado tantas emboscadas. No meio de tão
felizes resultados, jamais quis vingar-me, nem dele, nem de todos os outros e
como Deus tem os olhos abertos sobre as boas ações dos homens, atribuo a
essa razão a graça que Ele me fez de livrar-me de tantos perigos de que falarei
na continuação desta história.
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Todo o povo da Galileia tinha tal afeto por mim e tal fidelidade, que vendo
suas cidades tomadas à força, suas mulheres e filhos levados escravos, eles se
sentiam menos tristes por essa desgraça, do que pela minha conservação. Essa
estima e esse afeto tão geral para comigo aumentaram ainda mais a inveja de
João. Ele escreveu-me pedindo permissão para ir a Tiberíades tomar banhos
quentes, de que estava necessitando para sua saúde. Como não imaginava que
ele tinha má intenção, não somente lho permiti, mas ordenei aos magistrados
que lhe preparassem um aposento, a ele e aos seus companheiros, e lhes
fornecessem em abundância tudo o que lhes fosse necessário. Eu estava então
em Canaã, cidadezinha da Galileia; apenas João chegou a Tiberíades, procurou
logo induzir os habitantes a faltar-me à fidelidade e a se separarem de mim,
para passar ao seu partido. Vários dentre eles, propensos à revolução,
escutaram com prazer essa proposta, principalmente Justo e Pisto, seu pai;
mas eu tornei inútil o seu mau intento. Silas, que eu havia dado por governador
aos de Tiberíades, mandou com grande rapidez avisar-me do que se passava e
insistiu que eu me apressasse, se não quisesse, pela minha demora, deixar cair
aquela cidade em poder de outro. Tomei imediatamente duzentos homens,
caminhei durante toda a noite e mandei avisar os de Tibenades acerca de
minha chegada.
No dia seguinte, ao raiar da aurora, eu estava perto da cidade; os
habitantes vieram ter comigo, e João com eles; cumprimentou-me com o rosto
espantado e temendo que o mandasse matar, se viesse a saber da sua perfídia,
retirou-se para o seu aposento. Chegando à praça dos exercícios, conservei
comigo apenas um homem e dez soldados. Subi a um lugar elevado e disse ao
povo quanto lhe era necessário manter a fidelidade, pois do contrário eu não
poderia mais confiar nele, e que se arrependeriam um dia de ter faltado ao seu
dever. Enquanto falava, um dos meus amigos avisou-me que me retirasse, pois
não era aquele o tempo mais apropriado para granjear a benevolência do povo,
mas para me salvar de suas mãos, pois João tendo sabido que eu estava quase
sozinho, tinha escolhido, entre os mil homens que comandava, aqueles em
quem mais confiava e os mandara com ordem de me matar.
Com efeito, aqueles assassinos já estavam perto e teriam executado seu
perverso intento, se eu não me tivesse afastado prontamente, com o auxílio de
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um dos meus guardas, de nome Jacó, e de um homem de Tiberíades, chamado
Herodes, que me fizeram descer e me acompanharam até o lago. Ali, por felici-
dade, encontrei uma barca que me levou a Tariquéia; assim, pude frustrar as
esperanças dos meus inimigos. Os habitantes da cidade sentiram tanto horror
pela traição dos de Tiberíades que tomaram logo as armas e insistiram comigo
que os levasse contra eles, para se vingar de tal perfídia, e mandaram contar a
toda a Galiléia tudo o que se tinha passado, convidando todos a se juntarem a
eles e a marcharem sob meu comando. Esses povos reuniram-se em grande nú-
mero junto de mim e todos me rogaram que fosse atacar Tiberíades, que a des-
truísse inteiramente, vendesse em leilão todos os homens, as mulheres e as
crianças; meus amigos, que haviam escapado do mesmo perigo, aconselhavam-
me a mesma coisa. Mas o medo de atear uma guerra civil impediu-me que
tomasse tal decisão. Julguei que era melhor acomodar a situação e lhes mostrei
o mal que fariam a si mesmos, se quando os romanos viessem, os
encontrassem divididos, a matarem-se uns aos outros.
Assim acalmei-lhes a cólera, e João, vendo que sua traição lhe havia saído
tão mal, fugiu assustado de Tiberíades com seus homens para se refugiar em
Ciscala. Ele me escreveu que não tivera participação no que havia acontecido, e
fazia juramentos e estranhas execrações para me levar a acreditar em suas
palavras. No entanto, um grande número de galileus veio ter comigo armados, e
como sabiam que João era mau e perjuro, rogavam-me insistentemente que os
levasse contra ele, para derrotá-lo e castigá-lo, e exterminar os de Giscala. Eu
lhes agradeci muito aquela demonstração de boa vontade e garanti que
conservaria sempre grande gratidão, mas rogava que aprovassem o meu desejo
de pacificar aquela perturbação, sem derramamento de sangue. Consegui
persuadi-los e em seguida fomos a Séforis. Seus habitantes, que temiam minha
vinda, porque estavam resolvidos a permanecer fiéis e obedientes aos romanos,
procuraram levar-me a outra parte e para isso pediram a Jesus, com oitocentos
ladrões, comandados por ele, que estavam então na fronteira de Ptolemaida,
para fazer-me guerra, a troco de grande soma de dinheiro.
Tal recompensa fê-lo aceitar a proposta, mas antes de chegarmos às
armas abertamente, ele procurou surpreender-me. Mandou dizer-me que lhe
permitisse vir cumprimentar-me. Permiti-lho, porque não desconfiava de nada;
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ele se pôs em seguida a caminho, com todos os seus homens. Sua maldade, no
entanto, não teve o êxito que ele esperava. Quando já estava muito perto de
nós, um do seu bando veio avisar-me do seu intento. Então, sem dar
demonstração alguma, fui à praça pública, acompanhado de grande número de
galileus armados, entre os quais havia alguns de Tiberíades; ordenei que
vigiassem todas as ruas e encarreguei aos que estavam nas portas, que não
deixassem Jesus entrar, senão com um pequeno número e afastassem os
outros; até mesmo os repelissem, à força, se eles teimassem em querer entrar.
Jesus veio, então, com apenas alguns homens e eu lhe ordenei que deixasse as
armas, se não quisesse perder a vida; quando se viu rodeado de soldados, foi
obrigado a obedecer. Os seus, que tinham ficado do lado de fora, quando
souberam que ele estava preso, fugiram. Levei-o à parte e disse-lhe que não
ignorava qual era seu intento, nem sabia quem eram seus cúmplices, mas que
lhe perdoaria, se ele me prometesse ser fiel para o futuro. Ele me prometeu e o
deixei sair, permitido-lhe reorganizar suas tropas. Quanto aos seforitanos,
declarei-lhes que, se não continuassem a obedecer, saberia muito bem como
castigá-los.
Nesse mesmo tempo, dois senhores traconitidas, súditos do rei, vieram
me procurar, armados, com cavalos e dinheiro. Os judeus não lhes queriam
permitir permanecer com eles, se não se fizessem circuncidar; mas eu lhes
disse que se devia deixar a cada qual a liberdade de servir a Deus segundo os
movimentos da própria consciência, sem usar de coação, nem dar motivo, aos
que vinham procurar sua segurança entre nós, de se arrepender. Assim fiz o
povo mudar de sentimentos e levei-o a dar a esses estrangeiros as coisas de que
eles tinham necessidade.
O rei Agripa mandou, nesse mesmo tempo, Equo Módio, com grande
número de soldados, para tomar o castelo de Magdala; mas ele não ousou sitiá-
lo e se contentou em perturbar Gamala, pondo soldados nas ruas. No entanto,
Ebúcio, outrora governador do Campo Grande, soube que eu estava em
Simoniada, na fronteira da Galiléia, a sessenta estádios dele. Marchou a noite
toda, para vir atacar-me com cem cavaleiros, duzentos homens de infantaria e o
socorro que lhe mandaram os de Gaba. Enviei contra ele uma parte de meus
soldados e, como ele confiava na sua cavalaria, fiz o possível para atraí-los à
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luta. Mas como eu tinha somente infantaria, não lhe quis dar essa vantagem.
Assim, depois de ter valentemente resistido, quando ele viu que a posição do
lugar não lhe era favorável, regressou a Gaba, tendo perdido somente três
soldados. Eu o persegui com três mil homens até uma aldeia da fronteira de
Ptolemaida, de nome Bezara, distante vinte estádios de Gaba. Fiz colocar
guardas nas avenidas para impedir o ataque dos inimigos e mandei carregar
sobre muitos camelos, que mandara vir para esse fim, o trigo que a rainha
Berenice tinha feito reunir naquele lugar, das aldeias dos arredores e o levei à
Galiléia. Depois mandei desafiar Ebúcio para um combate; ele não ousou
aceitá-lo, tanto nossa coragem o havia deixado atônito. Dali, sem perder tempo,
marchei contra Neapolitano, que, com a cavalaria que conservava na guarnição
de Citópolis, saqueava os arredores de Tiberíades. Consegui impedir que ele
continuasse suas correrias e entreguei-me todo ao governo da Galiléia.
João, filho de Levi, que estava, como dissemos, em Giscala, vendo que
todas as coisas sucediam-se felizmente, que eu era amado pelo povo e temido
pelos inimigos, considerou a minha boa sorte como um obstáculo à sua e,
ardendo de inveja, alimentava a esperança de me poder sobrepujar instigando
contra mim o ódio do povo. Para isso procurou agradar aos de Tiberíades e de
Séforis, a fim de atrair para seu partido as três principais cidades da Galiléia;
procurou também os de Gabara, fazendo crer que eles seriam muito mais felizes
sob seu governo do que sob o meu. Mas Séforis nada quis, nem com ele nem
comigo, porque pendia toda para os romanos; Tiberíades, que achava perigoso
revoltar-se, contentou-se em prometer-lhe viver em amizade com ele. Assim, os
de Gabara foram os únicos que abraçaram seu partido, ante a insistência de
Simão, que era seu amigo e um dos principais da cidade. Eles não ousaram, no
entanto, declarar-se abertamente, porque temiam os galileus, dos quais haviam
várias vezes constatado o afeto por mim, mas esperavam a ocasião de me
surpreender com uma traição; pouco faltou, então, para que deveras isso
acontecesse, pelo fato que passo a narrar:
Alguns jovens de Dabar, muito corajosos e ousados, tendo sabido que a
mulher de Ptolomeu, intendente dos negócios do rei, atravessava o Campo
Grande com magnífica equipagem e acompanhada de alguns cavaleiros para
passar das terras do rei à província dos romanos, atacaram sua escolta; tudo o
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que a senhora pôde fazer foi salvar-se enquanto eles estavam ocupados com o
saque. Depois disso, vieram procurar-me, em Tariquéia, com quatro mulas
carregadas de muitas coisas de valor, baixelas de prata, e quinhentas peças de
ouro. Como Ptolomeu era judeu e nossas leis proíbem tomar as coisas dos da
nossa própria nação, mesmo quando fossem nossos inimigos, eu quis conservar
essa presa para resti-tuí-la; com esse fim, disse àqueles moços que devíamos
guardá-lo, para vendê-lo e mandar o produto a Jerusalém, a fim de empregá-lo
na reparação dos muros da cidade. Isso irritou-os de tal modo, porque
esperavam aproveitar-se de tudo, que fizeram correr o boato, nos arredores de
Tiberíades, que eu queria colocar a província sob o domínio dos romanos; que o
que eu havia dito sobre Jerusalém era falso, e minha verdadeira intenção era
restituir tudo a Ptolomeu, e nisso eles não restavam errados. Mal haviam eles
me deixado, entreguei tudo o que haviam apanhado a Dassiom e Jane, filhos de
Levi, dois dos principais habitantes de Tariquéia, muito queridos do rei. Dei-
lhes ordem de que lho entregassem e proibi-lhes, sob pena de morte, falar a
quem quer que fosse.
No entanto, espalhou-se por toda a Galiléia o boato de que eu a queria
entregar aos romanos. Decidiram matar-me; os de Tariquéia, tendo prestado fé
a essa mentira, persuadiram os meus guardas e os soldados que me
acompanhavam, a aproveitar, quando eu estivesse dormindo, para encontrar
com os outros no Hi-pódromo,* a fim de deliberarem os meios de executar o seu
intento. Foram todos e lá encontraram um grande número de pessoas já
reunidas. De comum acordo deliberaram tratar-me como traidor da República e
Jesus, filho de Safias, que então era o principal juiz de Tiberíades e um dos
piores homens do mundo, dos mais sediciosos, para incitá-los ainda mais,
mostrou-lhes as Leis de Moisés, que tinha na mão e disse-lhes: "Se não estais
comovidos ante a consideração da vossa própria salvação, pelo menos não
desprezeis estas santas Leis, que o pérfido Josefo, vosso governador, não tem
receio de violar, o qual deveria ser castigado mui severamente por ter cometido
tão grande crime".
Tendo assim falado e vendo que o povo aprovava com seus gritos o que ele
dizia, tomou consigo alguns soldados e veio ao meu aposento, com o intuito de
me matar. Como nada desconfiava e estava dormindo, cansado e fatigado, Si-
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mão, um dos meus guardas, que tinha ficado comigo, vendo aquele grupo furi-
oso, despertou-me, avisou-me do perigo em que me encontrava e exortou-me a
morrer honrosamente, matando-me antes que ser morto pelos inimigos. Eu me
recomendei a Deus, tomei uma veste negra, para me disfarçar, e levando
somente minha espada,:passei pelo meio desse grupo e fui diretamente ao
hipódromo, por um outro jcamiinbo. Lá, prostrei-me diante de todos, banhei a
terra com minhas lágrimas, para comovê-los à piedade; quando vi que
começavam a se enternecer, procurei dividi-los em seus sentimentos, antes que
aqueles que me tinham ido matar estivessem de volta. Disse-lhes que não
negava ter conservado aqueles despojos, como me acusavam; mas rogava-lhes
que me ouvissem, para saber com que fim o fizera, e se achassem que eu havia
errado, poderiam depois mandar matar-me.
Então toda a multidão ordenou-me que falasse; os que tinham ido
procurar-me chegaram naquele mesmo instante e queriam lançar-se sobre mim
mas foram contidos pela voz unânime do povo. Julgaram que, depois de ter
confessado querer entregar aqueles despojos ao rei, eu passaria por traidor e
eles poderiam executar o seu intento, sem oposição alguma. Assim, toda a
assembléia calou-se para me escutar e eu falei: "Se julgais que eu mereço a
morte, não me recuso a sofrê-la; mas permiti-me antes declarar-vos toda a
verdade. Como eu havia reconhecido que a beleza e a comodidade de vossa
cidade atraem para ela os estrangeiros de todos os lugares e muitos dentre eles
abandonam seu país para vir habitar aqui; para dividir convosco os vossos dias
de felicidade e de adversidade, eu tinha intenção de empregar esse dinheiro lá
fazendo construir muralhas". A estas palavras, os habitantes e os estrangeiros
puseram-se a gritar que todos me eram muito agradecidos e que nada mais eu
tinha a temer.
Os galileus, ao contrário, e os de Tiberíades, continuavam com sua
animosidade. Estando assim divididos, uns me ameaçavam, outros me
tranqüilizavam. Depois que prometi aos de Tiberíades e aos das outras cidades,
cuja posição o permitisse, construir-lhes também muralhas, eles prestaram fé
às minhas palavras, a assembléia se dissolveu e me retirei com meus amigos e
vinte dos meus soldados, depois de, contra toda sorte de esperança, ter
escapado de tão grande perigo. Mas os autores da sedição, que julgavam que eu
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me vingaria, reuniram-se armados em número de seiscentos e marcharam para
minha casa, com a intenção de incendiá-la. Avisaram-me disso em tempo, mas,
julgando que me seria vergonhoso fugir, recorri à audácia, à coragem, para me
defender. Assim, depois de ter mandado fechar as portas, subi ao andar mais
alto do edifício, de onde lhes gritei que mandassem alguns deles receber aquele
dinheiro que era a causa do seu descontentamento e de suas queixas.
Mandaram logo o mais revoltoso de todos; eu o fiz açoitar com varas, mandei
cortar-lhe uma das mãos, que lhe penduraram ao pescoço, e o despedi nesse
estado. Este ato tão ousado fê-los acreditar que eu tinha comigo um grande
número de soldados e os assustou de tal modo, que todos fugiram. Assim, pela
minha firmeza e sagacidade evitei este segundo perigo.
Alguns outros dos mais revoltosos continuavam ainda a incitar o povo,
dizendo que era preciso matar aqueles dois senhores que se tinham refugiado
junto de mim, pois recusavam-se submeter às leis de um país onde tinham
vindo procurar sua segurança e eram envenenadores, que favoreciam o partido
dos romanos. Quando vi que o povo se deixava enganar por essas palavras,
disse-lhe que era injusto perseguir pessoas que tinham vindo procurar asilo
entre nós; que aquele envenenamento de que lhes falavam era pura imaginação
e quimera, pois os romanos não tinham necessidade de manter um número tão
grande de legiões, se podiam, com esse meio, desfazer-se de seus inimigos.
Estas
 palavras
 acalmaram-no,
 mas
 os
 artifícios
 desses
 perturbadores,
irritaram-no de novo, e ele foi, armado, sitiar as casas dos dois senhores, com o
fim de matá-los. Eu fui avisado disso; temendo que, se cometessem tão grande
crime, ninguém mais desejasse vir para junto de nós, resolvi ir naquele mesmo
instante, acompanhado por alguns dos meus, à casa dos estrangeiros. Mandei
também fechar as portas da casa, saindo por um canal, até o lago que estava
perto, entrei com eles numa barca e os levei até a fronteira dos ipenianos. Ali
paguei-lhes o valor dos cavalos que eles não tinham podido trazer e, dizendo-
lhes adeus, exortei-os a suportar corajosamente a infelicidade que lhes havia
sucedido.
Na verdade, tinha o coração muito pesaroso, por ser obrigado a expor
ainda uma vez, num país inimigo, pessoas que tinham vindo buscar segurança
entre nós. Julguei, no entanto, que era preferível pô-los em perigo de morrer
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nas mãos dos romanos do que vê-los assassinados diante de meus olhos, numa
província que eu governava. Eles, porém, evitaram a desgraça que eu lhes
imaginava, porque o rei Agripa acalmou-se e perdoou-os.
_________________________
* Lugar onde se realizavam as corridas de cavalos.
Nesse mesmo tempo, os habitantes de Tiberíades escreveram ao soberano
e prometeram-lhe entregar-se a ele, se lhes prometesse mandar tropas para a
defesa de seu país. Logo que soube disso, fui procurá-los; como eles sabiam que
Tariquéia já tinha sido rodeada de muralhas, rogaram-me que cumprisse a
palavra que lhes havia dado, de lhes fazer o mesmo favor. Eu o fiz e mandei
buscar o material e os operários. Parti três dias depois de Tiberíades para
Tariquéia, que dista dali trinta estádios. Logo que saí, alguns cavaleiros
apareceram perto da cidade e os habitantes julgaram que eram tropas do rei;
começaram a me injuriar com toda espécie de impropérios. Um homem veio
com toda a pressa avisar-me do que se passava e acrescentou que tudo fazia
prever uma revolução. Essa notícia encheu-me de espanto, tanto mais que
havia dispensado de Tariquéia todos os meus soldados, porque o dia de sábado
estava perto e desejava que os habitantes pudessem celebrá-lo sem serem
perturbados pelos soldados; eu fazia sempre assim, naquela cidade, pela
confiança
 que
 tinha
 no
 afeto
 dos
 habitantes
 o
 qual
 havia
 tantas
vezesexperimentado. Assim, tendo comigo apenas sete soldados e alguns
amigos, não sábia o que fazer. De um lado, não via probabilidade de reunir
minhas tropas na véspera de um dia errxque nossas leis não nos permitem
combater, mesmo nas ocasiões mais prementes; por outro lado, não me
achavam bastante forte, quando mesmo tivesse podido, nessa ocorrência,
servir-me dos habitantes de Tariquéia e dos estrangeiros que lá habitavam,
rogando-Ihes que me ajudassem na esperança de ricos despojos.
No entanto, esse assunto não padecia demora, pois, por pouco que o
adiasse, aqueles que, se dizia, o rei havia enviado, tornar-se-iam senhores da
cidade e me impediriam de lá entrar. Na ansiedade em que me encontrava, dei
ordem a alguns amigos meus, nos quais confiava, que montassem guarda às
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portas da cidade e não deixassem ninguém sair. Mandei depois aos principais
habitantes que subissem cada qual a um barco com um barqueiro somente
para seguir-me até Tiberíades; eu também subi a um deles, com sete soldados e
alguns amigos. Os de Tiberíades, que não sabiam que eu tinha sido avisado do
que se passava, vendo que não haviam chegado tropas do rei e que todo o lago
estava coberto de barcos, que eles julgavam cheio de soldados, ficaram tomados
de tão grande temor que imediatamente mudaram de opinião; deixaram as
armas e vieram à minha presença, com suas mulheres e filhos, e desejando-me
toda sorte de prosperidade, rogavam-me que continuasse a lhes demonstrar o
meu afeto. Ordenei aos que dirigiam os barcos que me seguiam, que se
detivessem longe da terra, para que eles não pudessem perceber as poucas
pessoas que estavam dentro deles; aproximei-me da margem e dirigi severas
recriminações aos da cidade, por terem violado tão levianamente a palavra que
me haviam dado. Prometi-lhes, no entanto, perdoá-los, contanto que me
enviassem dez dos principais dentre eles, o que fizeram imediatamente. Pedi
ainda mais outros dez; e continuei a usar do mesmo ardil, até que consegui
enviar a Tariquéia todo o Senado de Tiberíades e um grande número de seus
principais habitantes.
Então o povo, vendo o perigo em que se achava, rogou-me que castigasse
o autor da sedição. Era um jovem de nome Clito, muito corajoso e muito
atrevido. Fiquei muito embaraçado; pois, de um lado, não podia tomar a
decisão de mandar matar um homem da minha nação e, por outro lado, era
assaz importante dar um castigo exemplar. Nessa dificuldade, tomei logo uma
das resoluções, isto é, ordenei a Levi, um dos meus guardas, que o prendesse e
lhe cortasse uma das mãos. Como visse que ele não ousava prendê-lo, no meio
de tão grande multidão, não querendo que os de Tiberíades percebessem sua
timidez, chamei Clito e disse-lhe: "Ingrato! Pérfido! Merecestes que lhe
cortássemos ambas as mãos; sereis vós mesmo vosso algoz, se não quereis ser
castigado
 ainda
 com
 maior
 severidade".
 Ele
 então
 rogou-me
 que
 lhe
conservasse pelo menos uma das mãos. Eu concedi-lho, mas fingindo resolver-
me a isso, contra a vontade; no mesmo instante ele cortou a mão esquerda com
a própria espada. Assim cessou o tumulto, e voltei a Tariquéia. Os de Tiberíades
não se cansavam de admirar de como eu havia acalmado aquela revolta, sem
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derramamento de sangue.
Depois que cheguei a Tariquéia, mandei meus prisioneiros virem cear
comigo, dentre os quais estavam Justo e Pisto, seu pai, e disse-lhes que sabia,
como eles, qual era o poder dos romanos; mas que o grande número de
facciosos impedia-me de manifestar meus sentimentos e aconselhava-os a
permanecer como eu, no silêncio, esperando um tempo melhor. No entanto, eles
deveriam se considerar mui felizes por ter-me por governador, pois nenhum
outro poderia tratá-los melhor. Lembrei a justo, a esse respeito, que antes da
minha vinda, os galileus tinham mandado cortar as mãos ao seu irmão,
acusando-o de ter escrito falsas cartas; que depois da partida de Filipe, os
gamalitanos, numa contestação que tiveram com os babilônios, tinham matado
Cares, parente de Filipe, ao passo que eu tinha feito sofrer um castigo muito
leve a Jesus, seu irmão, que tinha desposado a irmã de Justo. Depois disso,
pus em liberdade a Justo e a todos os seus.
Pouco antes, Filipe, filho de Jacim, tinha partido do castelo de Gamala,
pela razão que passo a expor: Logo que ele soube que Varo se tinha revoltado
contra o rei Agripa e que Equo Módio, que era muito seu amigo, lhe fora dado
como sucessor, escreveu a este último para avisá-lo do estado em que se
achava e rogar-lhe que entregasse ao rei e à rainha as cartas que lhes escrevia.
Módio soube com muita alegria o que Filipe lhe dizia, e mandou as cartas ao
soberano e à princesa. O rei soube então da falsidade do que se havia dito, de
Filipe se ter tornado chefe dos judeus, para fazer guerra aos romanos; mandou
buscá-lo com uma escolta de cavalaria e o recebeu muito bem. Mostrava-o
mesmo aos capitães romanos, dizendo-lhes: "Eis aquele que acusavam de se ter
revoltado contra vós." Mandou-o depois com a cavalaria ao castelo de Gamala,
para reunir todos os seus homens, restabelecer os babilônios em Batanéia e
consolidar a tranqüilidade pública; Filipe partiu com essas ordens. No entanto,
um certo José, que queria passar por médico, mas que era apenas um
charlatão, reuniu os mais ousados da juventude de Gamala e atraiu também
para si os maiorais da cidade; assim persuadiu o povo a sacudir o jugo do rei e
a tomar as armas para reconquistar a liberdade. Obrigou outros, contra a
vontade, a entrar no seu partido, mandando matar os que se recusavam, dentre
os quais estavam Cares Jesus, seu parente, e a irmã de Justo, que era de
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Tiberíades. Ele me escreveu em seguida para me pedir auxílio e operários para
construir as muralhas da cidade, o que julguei conveniente conceder-lhe.
Nesse mesmo tempo, a parte da Galautida que se estende até a aldeia de
Solima revoltou-se também contra o rei. Mandei rodear de muros Sogan e
Selêucia, que são duas praças fortes e bem situadas, fortifiquei Jamnia,
Amerite e Charabe, três aldeias da alta Galiléia, embora com dificuldade, por
causa dos rochedos que lá existem, e dei ordem, principalmente, para fortificar
Tariquéia, Tiberíades e Séforis. Mandei também rodear de muralhas algumas
aldeias, como Bersobé, Seelamem, Jotapate, Cafarate, Comosgana, Nepafa, o
monte Itaburim, e a caverna dos arbelianos; ali mandei reunir grande
quantidade de trigo, e dei-lhes armas para se defenderem.
No entanto, João, filho de Levi, cuja raiva aumentava cada vez mais, não
podendo tolerar minha prosperidade, resolveu prejudicar-me a todo custo. As-
sim, depois de ter feito cercar de muralhas Giscala, que era o lugar do seu
nascimento,
 mandou
 Simão,
 seu
 irmão,
 e
 Jônatas,
 filho
 de
 Sisena,
acompanhado por cem soldados, a Simão, filho de Gamaliel, para rogar-lhe que
tudo fizesse perante os de Jerusalém para revogar o poder que me tinha sido
dado e que ele fosse feito governador em meu lugar, com o consentimento
unânime de todo o povo. Simão, de Jerusalém, era de mui ilustre descendência,
da seita dos fariseus e, conseqüentemente, observante das nossas leis, homem
muito sábio e muito prudente, capaz de realizar grandes empreendimentos,
antigo amigo de João, e que, então, me odiava. Assim, levado pelos rogos
insistentes de seus amigos, ele disse aos sumos sacerdotes Anano e Jesus, filho
de Gamala, e aos outros que eram do seu partido, que era necessário tirar-me o
governo da Caliléia antes que eu fosse elevado a um poder maior e que não
havia tempo a perder, porque se eu viesse a saber de tudo, poderia atacar a
cidade com um exército.
Anano respondeu-lhe que o que ele propunha não era fácil de se executar,
porque vários sacerdotes e alguns dos grandes do povo davam testemunhos
muito vantajosos a meu respeito e, assim, não era razoável acusar um homem
a quem nada se podia censurar. Simão rogou-lhe que, pelo menos,
conservassem as coisas em segredo e disse que ele se encarregava da sua
execução. Fez vir depois o irmão de João e o encarregou de lhe dizer, que, para
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chegar ao fim do seu projeto, mandasse presentes a Anano. Este expediente
deu resultado; porque Anano e os outros deixaram-se subornar pelo dinheiro, e
resolveram tirar-me o governo, sem que ninguém mais de Jerusalém, a não ser
os do seu partido, viessem a sabê-lo. Para esse fim, mandaram quatro pessoas
que, embora de diversas famílias e descendências, eram sensatas e hábeis; a
saber, dentre o povo, Jônatas e Ananias, fariseus, e da casta sacerdotal, Gozor,
também fariseu, aos quais se uniu Simão, o mais jovem de todos, descendente
dos sumo sacerdotes . A ordem que deram foi de reunir os galileus e de lhes
perguntar de onde vinha aquele grande afeto que sentiam por mim: se eles
dissessem que era porque eu era de Jerusalém, eles lhes respondessem que
todos os quatro eram-no também; se eles dissessem que era porque eu era mui
perito nas leis, eles lhes respondessem que eles eram não menos instruídos do
que eu; e se dissessem que era porque eu era sacerdote, eles replicassem que
dois dentre eles eram-no também.
Jônatas e seus colegas partiram com essas instruções e com quarenta mil
moedas de prata, que lhes foram dadas do tesouro público. Um certo Jesus, da
Galiléia, nesse mesmo tempo veio a Jerusalém, com seiscentos homens, que ele
comandava; pagaram-no por três meses e a todos seus soldados e os induziram
a segui-los, para fazer tudo o que eles lhes mandassem; uniram-se ainda a eles,
trezentos habitantes de Jerusalém, aos quais pagaram também. Assim
partiram, levando com eles a Simão, irmão de João e os cem soldados que
haviam trazido. Tinham além disso uma ordem secreta de me levar a
Jerusalém, se eu deixasse de boa mente as armas, e de matar-me, se eu
oferecesse resistência, sem temor de serem castigados, pois faziam-no em
virtude do seu poder. Tinham também cartas dirigidas a João, exortando-o a
fazer-me guerra e outras, aos habitantes de Séforis, de Gabara e de Tiberíades,
para induzi-los a lhe dar auxílio. Jesus, filho de Gamala, que tivera parte em
todos esses conselhos, e que era muito meu amigo, avisou a meu pai, que me
escreveu longamente. A inveja de meus concidadãos tinha, por uma tão grande
ingratidão, conspirado contra mim e deliberado matar-me, mas eu estava ainda
mais aflito pela insistência com que meu pai pedia que fosse vê-lo, a fim de lhe
dar, antes de morrer, a consolação de me abraçar ainda.
Comuniquei todas essas coisas a meus amigos e disse-lhes que estava
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resolvido a partir dentro de três dias. Rogaram-me com lágrimas, a não expô-
los, por meu afastamento, a uma ruína inevitável. Mas não podia resolver-me a
atendê-los, porque eu mesmo estava ainda mais aflito do que eles. Nesse
mesmo tempo os galileus, temendo que minha ausência os expusesse à
violência daqueles desordeiros, que devastavam continuamente os campos,
comunicaram a toda a Galiléia a intenção que eu tinha de ir embora.
Imediatamente eles vieram, de todos os lados, procurar-me na aldeia de
Azoquim, no Campo Grande, com suas mulheres e filhos, não tanto, segundo
minha opinião, pelo afeto que me tinham, mas pelo seu próprio interesse,
porque julgavam nada ter a temer enquanto eu estivesse com eles.
Tive então durante a noite um sonho esquisito. Adormeci com grande
tristeza no coração, por causa das cartas recebidas; parecia-me ver um homem
que me dizia: "Consolai-vos e não temais; a tristeza em que vos encontrais será
causa da vossa felicidade e de vossa elevação e não somente saireis com
vantagem deste perigo, mas também de vários outros. Não vos deixeis, pois,
abater. Coragem! Lembrai-vos do aviso que vos dou, de que vos será necessário
fazer a guerra que vos dou, de que vos será necessário fazer a guerra aos
romanos". Levantei-me em seguida, para sair do meu aposento; mas aquela
multidão de galileus, homens, mulheres e crianças, apenas me viram, lançou-
se de rosto por terra, ro-gando-me com lágrimas nos olhos, que não os
abandonasse e não deixasse seu país à mercê dos inimigos; como eles viam que
eu não me deixava comover por seus rogos, faziam mil imprecações contra os
de Jerusalém, os quais não podiam tolerar que eles vivessem em paz sob meu
governo. Tão grande aflição de todo o povo tocou-me o coração. Julguei que não
havia perigo ao qual não me devesse expor, para sua salvação; e assim,
prometi-lhes ficar. Mandei que escolhessem cinco mil homens com armas e
munições de boca para me seguirem e despedi todos os outros. Marchei com
esses cinco mil homens, três mil soldados, que eu já tinha e oitenta cavaleiros
para uma aldeia na fronteira de Ptolemaida, de nome Chabolom, para enfrentar
a Plácido, que Céstio Galo tinha mandado com infantaria e uma companhia de
cavalaria para incendiar as aldeias dos galileus, que estão nos arredores de
Ptolemaida. Ele acampou e fortificou-se perto da cidade e eu fiz a mesma coisa
a sessenta estádios de Chabolom. Assim, estando muito próximos uns dos
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outros, saíamos freqüentemente de nossas fortificações, como para travar
combate, mas aconteciam apenas ligeiras escaramuças, porque quanto mais
Plácido via que eu desejava travar batalha, mais ele temia empreender uma
grande luta e não quis afastar-se de Ptolemaida.
Estando as coisas nesse pé, Jônatas e seus colegas chegaram à província;
como não ousavam atacar-me abertamente, procuraram surpreender-me e para
isso escreveram uma carta cujas palavras eram estas:
"Jônatas e seus colegas, enviados pelos de Jerusalém, a Josefo, saudação.
Os mais da cidade de Jerusalém, tendo sabido que João, de Giscala, vos armou
diversas ciladas, mandaram-nos para fazer-lhe severas recriminações e
ordenar-lhe que obedeça exatamente, para o futuro, em tudo o que lhe
determinardes mas, porque nós desejamos conversar convosco, para prover
com a vossa opinião, a todas as coisas, nós vos rogamos vir prontamente ter
conosco, sem grande acompanhamento, porque esta aldeia é muito pequena
para alojar um grande número de soldados."
Esta carta fazia-os esperar que, se eu os fosse encontrar, desarmado, eles
poderiam sem dificuldade prender-me, ou, se eu fosse com soldados, far-me-
iam declarar rebelde. Um jovem cavaleiro, muito corajoso e que outrora tinha
servido ao rei, foi encarregado de trazer esta carta; chegou na segunda hora da
noite, quando eu estava à mesa com meus amigos mais íntimos e os mais
ilustres dos galileus. Um dos meus homens veio dizer-me que um cavaleiro
judeu tinha chegado e eu ordenei que o fizesse entrar. Ele não cumprimentou a
ninguém e disse somente, entregando-me a carta: "Eis o que vos escrevem os
enviados de Jerusalém; dai-lhes a resposta com urgência, pois eu tenho de
voltar imediatamente." Os que estavam à mesa comigo admiraram a insolência
do soldado, mas eu roguei-lhe que se sentasse e ceasse conosco. Ele recusou-o.
Então, tendo sempre a carta na mão, sem abri-la, continuei a conversar com
meus amigos sobre diversas coisas. Algum tempo depois, dei-lhes a boa noite,
conservando somente quatro dos que mais mereciam minha confiança, e
mandei que trouxessem vinho. Sem que ninguém percebesse, abri a carta;
tendo visto o que ela continha, tornei a dobrá-la, conservando-a sempre na
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mão, como se não a tivesse aberto. Ordenei em seguida que dessem àquele
soldado vinte dracmas para as despesas de sua viagem. Ele as recebeu e
agradeceu. Isso fez-me ver que ele gostava de dinheiro e que assim não me seria
difícil suborná-lo; então, eu lhe disse: "Se quer beber conosco, dar-lhe-ei uma
dracma, cada copo de vinho que beber." Ele aceitou a condição e bebeu tanto,
para ganhar muito, que ficou embriagado. Não lhe sendo mais possível guardar
segredo, não foi preciso interrogá-lo para fazê-lo afirmar que me haviam armado
ciladas e que eu tinha sido condenado a morrer. Estando assim informado do
projeto daqueles que o haviam mandado, eu lhes respondi deste modo:
"Josefo, a Jônatas e aos seus colegas, saudação. Tenho tanto mais alegria
em saber que chegastes bem à Galiléia, quanto me é assim fácil entregar em
vossas mãos o cuidado dos interesses desta província e satisfazer ao desejo que
sinto, há muito tempo, de voltar a Jerusalém. Assim, iria procurar-vos em
Xalom e muito mais longe, quando mesmo não me tivésseis convidado para
isso. Mas, haveis de me perdoar se não posso fazê-lo agora, porque sou
obrigado a ficar em Chabolom, para vigiar Plácido e impedir que ele faça uma
incursão na Galiléia. É, portanto, muito mais conveniente que venhais aqui
depois de terdes recebido minha resposta, como vos peço."
Entreguei esta carta ao soldado e mandei com ele trinta pessoas, das mais
importantes da Galiléia, com ordem de saudar somente os enviados, sem lhes
falar de assunto algum; dei a cada um, para acompanhá-los, um dos meus
soldados nos quais mais eu confiava, aos quais ordenei que observassem
cuidadosamente, se aqueles gentis-homens galileus falariam com jônatas. Os
enviados de Jerusalém, vendo-se assim ludibriados na sua expectativa,
escreveram-me outra carta, cujas palavras são estas:
"Jônatas e seus colegas a Josefo, saudação. Ordenamos-vos que venhais
dentro de três dias encontrar-vos conosco em Gabara, sem acompanhamento
de soldados, a fim de que tomemos conhecimento dos crimes de que acusastes
a João."
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Depois de ter recebido os gentis-homens galileus e de ter-me escrito
aquela carta, eles vieram a Jafa, a maior aldeia do país, melhor rodeada de
muralhas e muito populosa. Todos os habitantes compareceram à sua
presença, com as mulheres e filhos, pedindo que se retirassem, sem invejar a
felicidade de que gozavam, por ter um governador tão bom e honesto. Jônatas e
seus colegas, embora muito irritados com essas palavras, não ousaram
manifestá-lo, nem lhes responderam. Dirigiram-se a outras aldeias, onde foram
recebidos do mesmo modo; todos clamavam que queriam a Josefo, como
governador. Assim, nada podendo fazer, foram a Séforis. Seus habitantes são
amigos dos romanos, e contentaram-se em comparecer à sua presença, mas
não falaram de mim de modo algum. De lá passaram a Azoquim, onde foram
recebidos como em jafa e, então, não podendo mais conter a cólera, ordenaram
aos soldados que os acompanhavam que fizessem aquela gente calar-se e os
dispersassem a cacetadas. Prosseguiram para Gabara, onde João veio
encontrá-los, com três mil soldados. Como eu havia sabido pelas cartas, que
eles estavam resolvidos a me matar, tomei três mil dos meus soldados, deixei o
restante no acampamento, sob o comando de um de meus amigos, no qual
depositava inteira confiança, e fui para Jotapate, para ficar perto deles, pois de
lá dista apenas quarenta estádios. Escrevi então aos enviados desta maneira:
"Se quereis absolutamente que eu vá ter convosco, há na Galiléia
duzentas e quatro aldeias ou vilas; eu irei à qualquer uma delas, como vos
aprouver, exceto Gabara e Giscala, pois uma é a terra de João e a outra tem
uma ligação muito particular com ele." Jônatas e seus colegas não me
escreveram mais, depois de ter recebido esta carta, mas reuniram-se em
conselho com os amigos de João, para deliberar sobre os meios de me atacar.
João propôs escrever a todas as cidades, aldeias e vilas da Galiléia, dizendo
que, em cada uma delas se encontravam pelo menos duas pessoas que não me
estimavam; que as fariam comparecer à sua presença, para depor contra mim;
que se faria um documento com suas declarações para provaros galileus me
haviam declarado inimigo e se enviaria esse documento a Jerusalém, para lá
ser confirmado; isso causaria temor aos galileus, que me estimavam e os levaria
a me abandonar. Essa proposta foi logo aprovada e mais ou menos pela terceira
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hora da noite, Sacheu veio trazer-me essa notícia.
Vendo então que não havia tempo a perder, ordenei a Jacó, que me era
mui fiel, que tomasse duzentos homens e os colocasse nas estradas que vão de
Gabara à Galiléia, para deter todos os viandantes e mandá-los a mim,
principalmente os que fossem encontrados com cartas. Depois ordenei aos
galileus, que no dia seguinte se encontrassem armados em Gabara, com víveres
para três dias; separei em quatro grupos os soldados que restavam, dando-lhes
como comandantes os meus oficiais nos quais tinha absoluta confiança,
proibindo-lhes receber entre eles qualquer soldado desconhecido. No dia
seguinte, quando cheguei a Gabara, pela quinta hora do dia, encontrei os
campos cheios de galileus armados, que vinham em meu auxílio e com eles
uma grande quantidade de camponeses. Comecei a falar-lhes e eles aclamaram
a uma voz que eu era seu benfeitor e o salvador de seu país. Agradeci-lhes o
afeto e exortei-os a não fazer mal a ninguém; e a se contentar com os víveres
que tinham trazido sem nada tirar das aldeias, porque eu desejava acalmar
aquela sedição, sem derramamento de sangue e sem violência.
Naquele mesmo dia, os que levavam a Jerusalém as cartas de Jônatas
caíram nas mãos dos homens que eu havia colocado nas estradas. Fizeram-nos
prisioneiros, mandaram-me as cartas que encontrei cheias de calúnias e de
injúrias contra mim. Dissimulei, não falei com ninguém, mas resolvi ir
diretamente a eles. Logo que souberam que eu me aproximava, retiraram-se, e
João com eles, para a casa de Jesus, que era uma torre grande e forte, pouco
diferente de uma fortaleza. Lá ocultaram uma companhia de soldados,
fecharam todas as portas, exceto uma e aguardaram-me, na esperança de que
eu os iria saudar. Haviam ordenado aos seus soldados que me deixassem
entrar, a mim, sozinho, e afastassem a todos os outros, julgando que assim ser-
lhes-ia fácil prender-me. Mas essa traição não deu resultado, porque eu me
conservava sempre de sobreaviso e por isso entrei numa casa perto da deles e
fingi ter necessidade de descansar. Eles julgaram que eu estava adormecido na
verdade e saíram para induzir minhas tropas a me abandonar alegando que
desempenhara muito mal o meu cargo. No entanto, aconteceu justamente o
contrário. Apenas os galileus os viram, começaram a dar logo demonstrações do
afeto que nutriam por mim e censuraram-nos, porque, sem que eu lhes tivesse
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dado o mínimo motivo, vinham perturbar a tranqüilidade da província; a isso
acrescentaram
 que
 eles
 podiam
 regressar,
 pois
 não
 receberiam
 outro
governador. Isso me foi referido e eu aproximei-me para ouvir o que Jônatas
dizia. Todo o povo recebeu-me com aclamações de alegria e com agradecimentos
por tê-los governado com tanta justiça e bondade. Jônatas e os colegas,
ouvindo-os falar daquele modo, perceberam não ter a vida muito segura e pen-
saram em fugir. Mas isso não estava mais em seu poder. Eu lhes disse que
ficassem e eles estavam tão assustados, que pareciam fora de si.
Depois de ter imposto silêncio a todo aquele povo, ordenei aos meus
soldados, de mais confiança, que vigiassem as estradas e determinei que todos
os outros se conservassem armados, para impedir qualquer surpresa de João
ou de nossos outros inimigos. Comecei por falar-lhes da primeira carta que
aqueles enviados me tinham escrito, pela qual me diziam que eram mandados
de Jerusalém para solucionar as divergências entre João e mim e me rogavam
que os fosse procurar. Para que ninguém pudesse duvidar, apresentei a carta e
acrescentei, dirigindo minha palavra a Jônatas: "Se, achando-me obrigado a me
justificar diante de vós e de vossos colegas, das acusações de João contra mim,
eu tivesse trazido duas ou três testemunhas honestas, que prestassem fé à
sinceridade de minhas ações, não é verdade que vós não poderíeis não me
absolver? Mas agora, para dizer-vos de que modo tenho procedido no exercício
do meu cargo, não me contento de apresentar três testemunhas; eu apresento
todos os que vedes diante de vós. Interrogai-os sobre minhas ações e eles vos
dirão se encontraram algo de repreensível em mim. E vós todos, acrescentei,
dirigindo-me aos galileus, o maior prazer que me poderíeis dar, é não
dissimular a verdade, mas declarar corajosamente diante desses senhores,
como se eles fossem nossos juizes, se eu cometi alguma ação digna de
reprovação, no exercício do meu cargo."
Depois de ter assim falado, todos, a uma voz, disseram que eu era seu
benfei-tor e defensor, afirmaram que aprovavam todos os meus atos e rogaram-
me que continuasse a governá-los como tinha feito até então, afirmando todos
com juramento, que eu jamais tinha permitido que se atentasse à honra de
suas esposas, nem lhes havia causado desprazer algum. Li depois, em voz bem
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alta, que todos os galileus puderam ouvir, as duas cartas de Jônatas, que
tinham sido interceptadas e em que me acusavam, por pura calúnia, de ter
agido mais como tirano do que como governador. E como não queria que eles
soubessem como elas tinham vindo parar em minhas mãos, para que
continuassem a escrever, disse que os mesmos mensageiros mas haviam
entregue. Estas cartas irritaram de tal modo toda aquela multidão, contra
Jônatas e seus colegas, que se lançaram sobre eles e os teriam sem dúvida
matado, se eu a não tivesse impedido. Eu disse a Jônatas que perdoava tudo o
que tinha feito contra mim, contanto que mudassem de proceder e voltassem a
Jerusalém, para dizer aos que o haviam mandado, de que maneira eu havia
procedido no meu cargo. Eles prometeram-no e os despedi, embora não
duvidasse de que me faltariam à palavra dada. O furor do povo porém,
continuava, e todos me pediam que permitisse castigá-los; embora procurasse,
com todas as minhas forças, moderar-lhes a cólera e persuadi-los a perdoá-los,
fazendo-lhes ver que não há sedição que não seja prejudicial ao povo, eles
queriam a todo custo atacar a residência de Jônatas.
Vendo, então, que já não estava mais em mim contê-los, montei a cavalo e
ordenei-lhes que me seguissem a Sogam, aldeia da Arábia, longe do lugar onde
eu estava uns vinte estádios e assim consegui impedir que me acusassem de ter
começado uma guerra civil. Chegando a Sogam, mandei minhas tropas fazer
alto, e depois de os ter avisado de que não se deixassem levar facilmente pela
cólera, eu disse a uns cem dos mais ilustres dos galileus, pela condição como
pela idade, que se preparassem para ir a Jerusalém, a fim de denunciar os que
perturbavam a província; disse-lhes ainda que fizessem o povo compreender a
razão, sendo preciso levá-los a escrever-me cartas pelas quais me confirmariam
no governo da Galileia e ordenariam a João que se afastasse. Eles partiram três
dias depois com estas ordens e dei-lhes quinhentos soldados para acompanhá-
los. Escrevi também a alguns dos meus amigos da Samaria para que cuidassem
da sua segurança durante a viagem, pois aquela cidade já estava sujeita aos
romanos e como aquele caminho era o mais curto, eles não teriam podido, se
não o tivessem tomado, chegar a Jerusalém dentro de três dias. Eu os conduzi
até a fronteira, coloquei guardas nas estradas para impedir que se pudesse
temer algo com sua partida e fiquei alguns dias em Jafa.
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Jônatas e seus colegas, vendo que todos os seus desígnios lhes haviam
saído tão mal, mandaram João a Giscala e foram a Tiberíades, na esperança de
se assenhorear dela, porque Jesus, que então lá exercia a soberana
magistratura, lhes havia prometido persuadir o povo a recebê-los e submeter-se
a eles. Sila, que lá eu havia deixado como meu lugar-tenente, avisou-me logo do
que se passava e insistiu que eu voltasse imediatamente; fazendo-o, expus-me a
um grande perigo, pelo fato que passo a narrar: Jônatas e seus colegas, que já
haviam chegado a Tiberíades, onde haviam levado vários dos habitantes que
não me apreciavam, a se revoltar contra mim, ficaram muito admirados pela
minha chegada; vieram ter comigo e depois de ter-me saudado, disseram-me
que se regozijavam com a honra que eu havia conquistado pela maneira como
havia procedido no meu cargo, que nela tinham parte, como meus concidadãos.
Protestaram em seguida que minha amizade lhes era muito mais importante do
que a de João e rogaram-me que voltasse com garantia que me davam de
entregá-lo mui breve em minhas mãos. Confirmaram-no com juramentos tão
terríveis e tão sagrados entre nós, que eu julguei, em consciência, dever
prestar-lhes fé; e, para que eu não julgasse estranho, eles insistiram tanto no
meu afastamento, disseram-me que o dia de sábado se aproximava e eles
desejavam impedir que acontecesse alguma perturbação no meio do povo.
Como de nada desconfiava, retirei-me para Tariquéia, mas deixei na
cidade algumas pessoas com o encargo de observar tudo o que se diria de mim
e o comunicassem aos que eu havia deixado em vários lugares, pelo caminho
que vai de Tiberíades a Tariqueia, a fim de me darem a notícia com a máxima
rapidez. No dia seguinte, todo o povo se reuniu num lugar bastante amplo que
era destinado à oração. Jônatas também lá estava e, não ousando falar
abertamente de revolta, contentou-se em dizer que a cidade precisava mudar de
governador. Mas Jesus, que era o principal magistrado, acrescentou, sem nada
dissimular, que lhes era muito mais vantajoso obedecer a quatro pessoas do
que a uma só, tanto mais que as quatro eram de origem ilustre e de singular
prudência; e, assim falando, mostrava Jônatas e os colegas; Justo louvou esse
conselho e atraiu alguns dos habitantes à sua opinião.
No entanto, o povo não participou desses sentimentos e teria sucedido
certamente uma revolta, se a sexta hora do dia, que no sábado nos obriga a ir
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cear, não tivesse soado. A assembléia foi transferida para o dia seguinte e os
deputados regressaram sem nada ter obtido. Logo que eu soube do ocorrido,
resolvi ir bem cedo a Tiberíades; partindo de Tariqueia ao despontar do dia,
achei o povo já reunido no oratório, sem saber porque lá se encontrava. Jônatas
e seus colegas, muito surpreendidos por me verem, fizeram correr o boato de
que a cavalaria romana tinha aparecido perto de Homonea, distante apenas
trinta estádios da cidade. Clamaram, então, que não se devia tolerar que os
inimigos viessem, à vista de todos, saquear os campos. Isso diziam com o fim de
me obrigar a sair para socorrer os habitantes da planície e ficar senhores da
cidade, conquistando, com meu prejuízo, o afeto dos habitantes. Facilmente
compreendi o ardil, e fiz o que eles desejavam, para não dar motivo aos de
Tiberíades de dizer que eu me descuidava da sua segurança.
Saí, pois, rapidamente e vi que não havia o menor indício do boato que
eles haviam feito correr. Voltei logo e achei o Senado e o povo já reunidos, e
jônatas fazia um discurso inflamado contra mim, dizendo que eu desprezava o
cuidado da guerra e só pensava em me divertir. Para isso, apresentava quatro
cartas que ele afirmava ter recebido dos galileus das fronteiras, pelas quais lhe
pediam um auxílio urgente contra os romanos, que ameaçavam entrar, dentro
de três dias, em seu país com um grande número de soldados de infantaria e de
cavalaria. Os de Tiberíades facilmente acreditaram nessa acusação e se
puseram a gritar que não havia tempo a perder, para que eu fosse remediar
imediatamente a um perigo tão grave.
Embora eu bem compreendesse o desígnio de Jônatas, não deixei de dizer
que estava pronto para marchar, mas, que as quatro cartas que ele havia
apresentado, tendo sido escritas de quatro lugares igualmente ameaçados, seria
necessário distribuirmos todas as nossas tropas em cinco corpos, que seriam
comandados pelos deputados de Jerusalém respectivamente, pois, tão valentes
como eles eram, deviam ajudar a república também com suas pessoas, bem
como com seus conselhos. Esta proposta agradou a todo o povo que insistia
que a executássemos. Os deputados, ao contrário, ficaram muito perturbados,
por verem que eu havia novamente posto por terra seus projetos. A esse
respeito, Ananias, um deles, homem muito mau e muito astucioso, propôs
publicar-se um jejum para o dia seguinte e que cada qual se dirigisse sem
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armas ao mesmo lugar, à mesma hora, para mostrar que nada eles poderiam
fazer sem o auxílio e a assistência de Deus. Isso não dizia por zelo pela religião,
mas para me desarmar e a todos os meus. Eu fui, no entanto, obrigado a
consentir, para que não parecesse que desprezava o que parecia ser grande
demonstração de piedade.
Logo que se dissolveu a assembléia, Jônatas e seus colegas escreveram a
João, para que viesse ter com eles no dia seguinte, com o maior número
possível de soldados para me prender e assim conseguir o que ele desejava,
naquela fácil contingência. Estas cartas muito o alegraram e ele procurou pôr-
se em condições de executar tal projeto. No dia seguinte, eu disse a dois dos
meus guardas, mui valentes e mui fiéis, que escondessem espadas curtas sob
as vestes e me acompanhassem, a fim de que, se fosse necessário, pudéssemos
nos defender dos inimigos. Tomei também uma couraça e uma espada que não
se viam e fui ao lugar onde se haviam reunido. Chegando com meus amigos,
Jesus, que estava à porta, não permitiu a nenhum dos meus entrar e, quando
se ia começar a oração, ele me perguntou o que eu havia feito dos móveis e do
dinheiro, não em moedas, que haviam tomado no palácio do rei, quando o
haviam incendiado; isso ele fazia apenas para ganhar tempo, até que João
chegasse. Eu respondi que havia entregue tudo a Capella e a dez dos principais
habitantes de Tiberíades e que podia perguntar-lhes se eu não estava dizendo a
verdade. Capella e os outros afirmaram que era mesmo assim. Jesus
perguntou-me em seguida o que eu havia feito de vinte peças de ouro que havia
tirado de alguns móveis que tinha posto à venda. Respondi que as havia
fornecido àqueles que mandara a Jerusalém, para as despesas de sua viagem.
Jônatas e seus colegas disseram, então, que eu havia feito mal, pagando-as, às
expensas do público. Tão grande malícia irritou o povo; quando vi que ele
estava prestes a se rebelar, disse para incitá-lo ainda mais que se eu tinha feito
mal em dar aquelas vinte peças de ouro do dinheiro público, me prontificaria a
pagar do meu, para que eles terminassem as suas queixas. Estas palavras
fizeram ver até que ponto chegava a sua injustiça contra mim e o povo fremiu
ainda mais; quando Jesus viu que esse assunto tomava um rumo totalmente
contrário ao que eles haviam esperado, ordenou ao povo que se retirasse e disse
que somente o Senado deveria ficar, porque essa espécie de assunto não devia
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ser tratada de forma tumultuada.
O povo, porém, disse que não me queria deixar sozinho com eles, e nesse
momento um homem veio dizer baixinho a Jesus que João já estava perto com
suas tropas. Jônatas não pôde mais se conter, e Deus assim o fez, talvez, para
me salvar, pois de outro modo não poderia ter evitado minha morte, nas mãos
de João. "Deixai", disse ele, "habitantes de Tiberíades, de vos incomodar por
causa dessas vinte peças de ouro, porque não é por esse motivo que Josefo
merece ser morto; é porque ele vos engana e tornou-se vosso tirano." Dizendo
estas palavras, ele e os de seu partido fizeram menção de me matar. Mas os que
tinham vindo comigo, sacaram das espadas, e o povo pegou em pedras para
atacar Jônatas e tiraram-me das mãos dos meus inimigos. Quando me retirava,
vi chegar João com os seus; alcancei o lago por um caminho escondido, subi a
uma barca e salvei-me, dirigindo-me para Tariquéia, escapando assim de um
grave perigo.
Reuni imediatamente os principais da Galiléia e disse-lhes de como,
contra toda espécie de justiça, pouco faltara que Jônatas e os de seu partido
não me tivessem assassinado. Eles ficaram tão irritados, que me rogaram não
demorasse mais em levá-los contra eles e permitisse que exterminassem a João,
a Jônatas e a todos os colegas. Eu os retive, dizendo que antes de pegar em
armas, era preciso esperar a volta daqueles que havia mandado a Jerusalém, a
fim de nada se fazer sem o seu consentimento. No entanto, João, vendo que seu
plano havia falhado, voltara a Giscala.
Pouco tempo depois, os que havia mandado a Jerusalém voltaram e me
disseram que o povo tinha achado muito mal que o sumo sacerdote Anano e
Simão, filho de Gamaliel, tivessem, sem sua participação, mandado deputados
à Galiléia para me destituir do cargo e que pouco faltara para que eles
incendiassem as casas. Entregaram-me também as cartas pelas quais os
principais da cidade, com a autoridade e o consentimento do povo,
confirmavam-me no governo e ordenavam a Jônatas e aos seus colegas que
voltassem. Depois que recebi estas cartas, fui a Arbella, onde havia mandado
que se reunissem, e lá meus enviados me contaram de que modo o povo de
Jerusalém, irritado com a maldade de Jônatas, me havia mantido no cargo e
lhe havia ordenado que se retirasse com seus colegas. Mandei em seguida a
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estes quatro deputados as cartas que lhes seriam dirigidas, e ordenei ao que
disso fora encarregado, que
 observasse
 a atitude deles. Eles ficaram
terrivelmente perturbados e mandaram logo chamar a João. Reuniram-se, em
seguida, com o Senado de Tiberíades e os principais de Gabara, a fim de
deliberar sobre o que haveriam de fazer. Os de Tiberíades foram de opinião que
Jônatas e seus colegas deviam continuar a se ocupar do governo, para não
abandonar uma cidade que se havia entregado às suas mãos, e isso tanto mais
porque eu tinha me resolvido a atacá-los, o que eles afirmavam falsamente.
João aprovou esse parecer e acrescentou que era necessário mandar dois dos
deputados a Jerusalém para me acusarem diante do povo de ter governado mal
a Galiléia. Que seria muito fácil persuadi-lo disso, quer pela consideração de
sua qualidade, quer pela leviandade que lhe é tão natural.
Todos
 aprovaram
 esta
 proposta.
 Jônatas
 e
 Ananias
 partiram
imediatamente; seus dois colegas ficaram em Tiberíades, onde lhes deram cem
homens para sua guarda. Os habitantes puseram-se em seguida a trabalhar na
reparação das muralhas, tomaram as armas e mandaram pedir tropas a João,
em Giscala, para se servirem delas, em caso de necessidade, contra mim.
Jônatas e os que o acompanhavam chegaram a Darabite, pequena aldeia
situada no Campo Grande, nas fronteiras da Galiléia; os meus homens,
postados nas estradas, prenderam-nos, obrigaram-nos a deixar as armas e os
conservaram prisioneiros, naquele mesmo lugar. Levi, que comandava esses
homens, escreveu-me logo, narrando tudo. Eu dissimulei-o durante dois dias, e
mandei dizer aos de Tiberíades que deixassem as armas e que fizessem voltar
para sua cidade os que eles haviam mandado vir em seu socorro. Na persuasão
e na esperança de que Jônatas já tinha chegado a Jerusalém, eles só me
responderam com injúrias. Julguei, no entanto, dever continuar a agir, mais
pela astúcia do que pela força, a fim de não me tornar culpado de ter ateado
uma guerra civil.
Assim, para atraí-los para fora dos muros, tomei dez mil homens
escolhidos e os dividi em três corpos. Ordenei a uma parte que ficasse na aldeia
de Domez; coloquei mil numa vilazinha que está na montanha, longe quatro
estádios de Tiberíades, com ordem de só partir depois que eu lhes houvesse
dado o sinal, e avancei, com um outro corpo, à vista de Tiberíades. Os
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habitantes
 saíram,
 fizeram
 várias
 incursões
 contra
 meus
 soldados
 e
empregaram palavras ofensivas contra mim. Sua imprudência foi mesmo tão
longe que eles mandaram buscar um esquife e fingiam, por zombaria, chorar a
minha morte. Eu, porém, em meu coração, zombava de sua loucura. Como eu
tinha ainda a intenção de me apoderar de João e de Joasar, os outros dois
colegas de Jônatas, que tinham ficado em Tiberíades, eu lhes disse que
avançassem para fora da cidade, com seus amigos e guardas que quisessem
escolher para sua segurança, porque eu desejava conversar com eles sobre os
meios de entrar em algum acordo para dividir o governo da Galiléia. Simão,
animado por uma proposta tão vantajosa, foi tão incauto que aceitou; Joasar,
ao contrário, desconfiando de que haveria aí alguma intenção falsa não caiu na
cilada. Eu fiz grandes reverências a Simão e aos amigos, por terem vindo; e
tendo-o afastado pouco a pouco de seus homens, com o pretexto de lhe dizer
alguma coisa em segredo, agarrei-o, e o entreguei aos meus, que o levassem
àquela aldeia onde eu tinha soldados escondidos. Dei-lhes depois o sinal e
marchei para Tiberíades. Começou então o combate. Foi muito renhido. Os
meus estiveram a ponto de fugir, se eu não lhes houvesse dado mais coragem.
Finalmente, depois de termos corrido o risco de uma derrota, obriguei os
inimigos a voltar para a cidade.
No entanto, alguns daqueles que eu havia enviado pelo lago, com ordem
de incendiar a primeira casa que tomassem, executaram essa ordem, e os
habitantes imaginaram que a cidade havia sido tomada de assalto, depuseram
as armas e rogaram-me, com suas mulheres e filhos, que os perdoasse. Eu o
fiz, e detive o furor dos soldados. A noite chegava rapidamente; mandei então
tocar a retirada e fiz trazer Simão para jantar comigo, consolei-o e prometi dar-
lhe liberdade e levá-lo em segurança até Jerusalém, com tudo o de que ele teria
necessidade para a viagem.
Entrei no dia seguinte com dez mil homens armados em Tiberíades e
mandei vir à praça os principais da cidade, aos quais ordenei que declarassem
quais haviam sido os autores da revolta. Eles o fizeram e eu os mandei
manietados a Jotapate. Quanto a Jônatas e aos seus colegas, mandei levá-los
com uma escolta a Jerusalém, provendo tudo o que era necessário para sua
viagem. Os habitantes de Tiberíades vieram uma segunda vez rogar-me que
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esquecesse os motivos que tinha de me queixar deles, garantindo-me que
reparariam, pela fidelidade, às faltas cometidas no passado, rogando-me que
mandasse restituir o que havia sido roubado. Ordenei logo que trouxessem à
grande praça tudo o que tinha sido tomado. Como os soldados sentiam
dificuldade em se decidir a isso, eu lancei os olhos sobre um deles, que estava
muito mais bem vestido do que de costume e perguntei-lhe onde havia
adquirido aquela veste; ele confessou que a havia roubado. Ordenei que o
espancassem e ameacei tratar os outros ainda mais severamente se não
restituíssem tudo o que haviam pilhado. Obedeceram, então, e eu mandei
restituir a cada um dos habitantes o que lhe pertencia.
Creio dever informar neste ponto a má fé de justo e dos outros que, tendo
falado deste mesmo assunto nas suas histórias, não tiveram receio, para
satisfazer à própria paixão e ódio, de expor aos olhos da posteridade os fatos de
uma maneira bem diferente da que na verdade eles se passaram. Em nada eles
diferem dos que falsificam os atos públicos, senão nisto, que tendo resolvido
tornar-se ilustre, escrevendo esta guerra, disse de mim muitas coisas falsas e
não foi mais verdadeiro no que se refere ao seu próprio país. E o que me obriga
agora, para desmenti-lo, a relatar o que havia calado até aqui, e não nos
devemos admirar por ter diferido tanto, pois, ainda que um historiador seja
obrigado a dizer a verdade, ele pode não se deixar levar contra os maus; não
que eles mereçam ser favorecidos, mas para permanecermos nos termos de
uma sábia moderação. Assim, Justo, que pretendeis ser o historiador a quem
mais se deve prestar fé, dizei-me, rogo-vos, como é possível que os galileus e eu
tenhamos sido causa da revolta do vosso país contra os romanos e contra o rei,
pois que antes que a cidade de Jerusalém me tivesse mandado como
governador à Galiléia, vós e os de Tiberíades tínheis já tomado as armas e feito
guerra aos da província de Decápolis, na Síria? Podeis negar que não
incendiastes suas aldeias e que um dos vossos lá não foi morto, do que eu não
sou o único a testemunhar, porque tudo isso se encontra mesmo nos
comentários do imperador Vespasiano, onde se vê que quando ele estava em
Ptolemaida, os habitantes de Decápolis rogaram-no que vos castigasse como
autor de todos os seus males e ele o teria feito, sem dúvida, se o rei Agripa, a
quem fostes entregue para que se fizesse justiça, não vos tivesse perdoado a
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rogo da sua irmã Berenice, o que não impediu que ficásseis por muito tempo na
prisão?
Mas as vossas outras ações fizeram também claramente conhecer qual
tínheis sido durante toda a vossa vida e que fostes vós que levastes vosso país a
se revoltar contra os romanos, como eu o farei ver com provas assaz
convincentes. Acho-me agora obrigado, por vossa causa, a acusar os outros
habitantes de Tiberíades e a mostrar que vós não fostes fiéis nem ao rei nem
aos romanos. Séforis e Tiberíades, de onde sois originários, são as maiores
cidades da Galiléia. A primeira, que está situada no meio do país e que tem em
redor de si várias aldeias que dela dependem, resolveu permanecer fiel aos
romanos, embora pudesse facilmente ter se revoltado contra eles, jamais me
quis receber, nem tomar as armas pelos judeus. Mas no temor que seus
habitantes tinham de mim, eles me surpreenderam com seus artifícios e me
levaram mesmo a construir-lhes muralhas. Receberam depois, de boa mente, a
guamição de Céstio Galo, governador da Síria, pelos romanos e me recusaram a
entrada em sua cidade, porque nem mesmo nos ajudar durante o cerco de
Jerusalém, embora o Templo que lhes era comum conosco estivesse em perigo
de cair nas mãos dos inimigos, tanto eles temiam parecer tomar as armas
contra os romanos.
É aqui, Justo, que devemos falar da vossa cidade. Ela está situada junto
do lago Genesaré, longe de Hippos, trinta estádios, sessenta, de Gabara, e cento
e vinte de Citopolis, que está sob a dominação do rei. Não está perto de
nenhuma aldeia dos judeus. Que vos impedia, portanto, de continuar fiel aos
romanos, pois que tínheis grande quantidade de armas em particular e em
público? Se responderdes que eu então fui a causa disso, eu vos pergunto,
quem o foi, depois? Podeis ignorar que antes do cerco de Jerusalém eu tinha
sido sitiado em Jotapate, que vários outros castelos tinham sido tomados e que
um grande número de galileus tinham sido mortos em vários combates? Se,
então, não foi voluntariamente, mas por coação que tomastes as armas, quem
então vos impedia de abandoná-las e vos colocardes sob a obediência do rei e
dos romanos, pois não tínheis mais nenhum temor de mim? Mas o que é
verdade é que esperastes até que vistes Vespasiano chegar, com todas as suas
tropas, às portas de vossa cidade e então, o temor do perigo vos desarmou. Não
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poderíeis, no entanto, evitar ser obrigado pela força e levados ao saque, se o rei
não tivesse obtido, da clemência de Vespasiano, o perdão de vossa loucura. Não
foi, pois, minha culpa, mas vossa, e vossa ruína só veio porque sempre fostes
no coração inimigo do império. Esquecestes de que, em todas as vantagens que
obtive sobre vós, jamais quis mandar matar alguns dos vossos, ao passo que as
divisões que cindiram vossas cidades, não por vosso afeto pelo rei e pelos
romanos, mas por vossa própria malícia, custaram a vida a cento e oitenta e
cinco dos vossos concidadãos, durante o tempo em que eu estive sitiado em
Jotapate? Não foram encontrados em Jerusalém, durante o cerco, dois mil
homens em Tiberíades, dos quais alguns foram mortos e os outros feitos
prisioneiros? Direis para provar que não éreis inimigos dos romanos, que vos
tínheis então retirado para junto do rei? Não direi, ao contrário, que vós o
fizestes apenas pelo medo que tínheis de mim? Se eu sou mau, como vós
apregoais, que sois vós então, vós a quem o rei Agripa salvou a vida, quando
Vespasiano vos havia condenado à morte; vós, que ele não deixou de mandar
por duas vezes à prisão, embora lhe tivésseis dado bastante dinheiro vós; que
ele mandou duas vezes ao exílio; vós, que ele teria feito morrer, se Berenice, sua
irmã, não vos tivesse obtido o perdão e em quem, por fim, ele constatou tanta
infidelidade no cargo de secretário, com que ele vos havia honrado, que vos
proibiu de vos apresentardes jamais em sua presença? Não quero continuar a
falar. De restante, admiro a ousadia com a qual afirmais ter escrito esta
história, mais exatamente que qualquer outro, vós, que não sabeis somente o
que se passou na Galiléia — pois estáveis então em Baruque junto do rei — e
não podeis saber o que os romanos sofreram no cerco de jotapate, nem de que
modo eu procedi nessa ocasião, pois não me seguistes e não ficou um sequer,
dos que me ajudaram a defender aquela praça, para vos vir trazer as notícias.
Se disserdes que narrastes com mais exatidão o que se passou no cerco de
Jerusalém, eu vos pergunto, como isso pode ser, pois lá não vos encontrastes e
não lestes o que Vespasiano escreveu a respeito? Isso eu posso afirmar, sem
temor, vendo que escrevestes o contrário. Se julgais que vossa história é mais
fiel do que qualquer outra, porque não a publicastes enquanto Vespasiano vivia
e Tito também, seu filho, que tiveram o comando de toda essa guerra, e
enquanto viveu o rei Agripa, bem como seus parentes, que eram tão peritos na
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língua grega? Pois a escrevestes vinte anos antes, e podíeis então ter por
testemunhas da verdade aqueles que tinham visto tudo com os próprios olhos.
Mas esperastes para publicá-la depois da morte deles, a fim de que ninguém
vos pudesse acusar de não ter sido fiel.
Eu não fiz o mesmo, porque não temia a ninguém. Mas, ao contrário,
entreguei a minha a esses dois imperadores, quando esta guerra estava apenas
terminada e a memória dos fatos ainda era recente, porque minha consciência
me dizia que só tendo dito a verdade, ela seria aprovada por aqueles que lhe
poderiam dar testemunho; e nisto não me enganei. Eu a comuniquei
imediatamente a muitos, dos quais a maior parte estivera presente a esta
guerra, no número dos quais estavam o rei Agripa e alguns dos seus parentes.
O próprio imperador Tito quis que a posteridade não tivesse necessidade de
haurir numa outra fonte a notícia de tão grandes feitos; depois de tê-la
assinado com sua própria mão, ele ordenou que fosse publicada. O rei Agripa
escreveu-me também sessenta e duas cartas, que dão testemunho da verdade
das coisas que referi. Apresentarei aqui apenas duas, para provar o que estou
dizendo:
"O rei Agripa, a Josefo, seu mui caro amigo, saudação. Eu li vossa história
com grande prazer e a achei muito mais exata que todas as outras. Por isso,
rogo-vos, que me mandeis a continuação. Adeus, meu caro amigo."
"O rei Agripa a Josefo, seu mui caro amigo, saudação. O que escrevestes
fez-me ver que não tendes necessidade de minhas instruções para dizer como
todas as coisas se passaram. No entanto, quando eu vier, poderei dizer-vos
alguns particulares, de que não sabeis."
Vê-se, assim, de que modo esse príncipe, não por uma bajulação indigna
da sua condição, nem por zombaria, tão longe do seu caráter, quis dar
testemunho da verdade. Eis o que justo obrigou-me a dizer, para minha
justificativa, e devemos agora retomar a continuação da minha narração.
Depois de ter acalmado as perturbações de Tiberíades, propus a meus
amigos o assunto sobre João; deliberei com eles os meios de castigá-lo. Seu
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parecer foi de se reunirem todas as forças de meu governo e marchar contra ele,
porque era ele a única causa de todo o mal. Mas eu não estava de acordo com
esse projeto, porque desejava acalmar a província sem derramamento de
sangue, e para isso lhes ordenei que se informassem bem exatamente de todos
os que seguiam o seu partido. Mandei, ao mesmo tempo, publicar uma ordem
pela qual eu prometia esquecer todo o passado, em favor daqueles que se
arrependessem por terem faltado ao dever e dentro de vinte dias voltassem à
obediência; caso não quisessem deixar as armas, eu ameaçava queimar-lhes as
casas e expor seus bens ao saque. Esta ameaça assustou-os tanto que quatro
mil abandonaram João, deixaram as armas e se entregaram. Os habitantes de
Giscala, seus compatriotas, e mil e quinhentos estrangeiros tírios foram os
únicos que ficaram com ele. Esse meu modo de agir me saiu tão bem, que o
temor os obrigou a ficar em seu país.
Os de Séforis, que confiavam na força de suas muralhas e que me viam
ocupado em outros lugares, tomaram as armas, nesse mesmo tempo, e
mandaram pedir a Céstio Galo, governador da Síria, que viesse rapidamente
tomar posse de sua cidade, ou lhes enviasse pelo menos uma guarnição. Ele o
prometeu, mas não marcou o tempo; logo que recebi este aviso, reuni minhas
tropas, marchei contra eles e tomei a cidade de assalto. Os galileus, então, não
querendo perder esta ocasião de se vingar dos seforitanos, que odiavam
mortalmente, tudo fizeram para destruir a cidade e os habitantes. Os homens
haviam-se retirado para a fortaleza e então incendiaram as casas que haviam
abandonado, saquearam a cidade, e não puseram obstáculo ao próprio
ressentimento. Essa desumanidade causou-me profunda dor. Ordenei-lhes que
cessassem o saque, fazendo-lhes ver que não deviam tratar daquele modo a
pessoas de sua própria tribo. Vendo, porém, que nem minhas ordens, nem
meus rogos podiam detê-los, tão violenta era sua animosidade, dei ordem aos
mais fiéis dos meus amigos que fizessem correr a notícia de que os romanos
estavam entrando pelo outro lado da cidade, com um poderoso exército. Este
expediente deu resultado. O temor que este boato lhes causou fê-los deixar o
saque, para só pensar em fugir, vendo que eu também fugia, pois, para
confirmar ainda mais a notícia, fingia ter tanto medo como eles.
Eis o recurso de que me servi para salvar os seforitanos, quando estes não
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mais tinham esperanças de salvação; pouco faltou para que os galileus
saqueassem também Tiberíades, como vou narrar. Alguns dos principais
Senadores escreveram ao rei para rogar-lhe que viesse tomar posse de sua
cidade. Ele respondeu-lhes que viria dentro de poucos dias, entregando a carta
a um de seus criados, de nome Crispo, judeu de nascimento. Os galileus
prenderam-no,
 a
 caminho,
 reconheceram-no
 e
 mo
 trouxeram;
 quando
souberam o que a carta dizia, ficaram tão agitados, que se reuniram, tomaram
as armas e no dia seguinte foram procurar-me em Azoque, clamando que os de
Tiberíades eram traidores, amigos do rei e pediam-me que lhes permitisse ir
destruí-los, pois odiavam Tiberíades, não menos que Séforis. A este respeito, eu
não sabia que resolução tomar para salvar Tiberíades de seu furor, porque não
podia negar que os habitantes daquela cidade tinham apelado para o rei porque
a sua resposta mo fazia ver mui claramente. Por fim, depois de ter pensado
bastante na maneira de como lhes devia responder, disse-lhes que a culpa dos
de Tiberíades era inescusável e eu não queria impedir que saqueassem a
cidade, mas que em semelhantes ocasiões, era necessário usar-se de muita
prudência. E, assim, pois que os de Tiberíades não eram os únicos traidores da
liberdade pública, mas vários dentre os principais dos galileus seguiam-lhes o
exemplo, eu era de opinião que se fizesse uma indagação bem cuidadosa de
todos os culpados, a fim de castigá-los todos juntamente, como mereciam.
Estas palavras acalmaram-nos e eles se dispersaram.
Alguns dias depois, fingi ser obrigado a fazer uma pequena viagem e
mandei chamar secretamente esse criado do rei, que havia ordenado pôr na
prisão. Disse-lhe que procurasse embriagar o soldado que o guardava e fugisse
para junto de seu senhor. Deste modo, Tiberíades, que estava pela segunda vez
a ponto de perecer, foi salva por meu intermédio.
Quando estas coisas assim se passavam, Justo, filho de Pisto, foi para
junto do rei, escapando, sem que eu o soubesse; esta foi a causa da fuga: no
começo da guerra dos judeus contra os romanos, os de Tiberíades tinham
resolvido não se revoltar contra eles e submeteram-se à obediência do rei. Mas
Justo persuadiu-os a tomar as armas na esperança de que a perturbação e as
mudanças dar-lhe-iam ocasião de se apoderar do governo e de se tornar senhor
da Galiléia e de seu próprio país. Não obteve, no entanto, o seu desígnio, porque
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os galileus, animados contra os de Tiberíades pela recordação dos males que
deles haviam recebido antes da guerra, não quiseram tolerar a sua dominação;
quando fui enviado de Jerusalém para governar a província, fiquei diversas
vezes tão encolerizado contra ele por causa da sua perfídia, que pouco faltou
que eu não o mandasse matar. O temor que com isso ele sentiu obrigou-o a se
retirar para junto do rei, onde julgou poder viver em segurança.
Os seforitanos, que se viram contra toda esperança salvos de grande
perigo, enviaram a Céstio Galo embaixadores, para lhe pedir que viesse
prontamente à sua cidade, ou pelo menos mandasse tropas bastante fortes
para defendê-los e impedir os ataques dos seus inimigos. Ele concedeu-lhes
aquele favor e à noite, mandou-lhes tropas de infantaria e de cavalaria. Quando
vim a saber que essas tropas devastavam as terras dos arredores, reuni as
minhas, e fui acampar em Gerizim, distante vinte estádios de Séforis. À noite,
aproximei-me das muralhas, escalei-as e meus soldados se apoderaram de uma
boa parte da cidade. Mas, como eles não conheciam bem todos os lugares,
fomos obrigados a nos retirar, depois de ter matado doze soldados, dois
cavaleiros romanos e alguns habitantes, sem perder um único homem. Poucos
dias depois travamos um combate na planície, onde depois de termos
sustentado com muita coragem o ataque da cavalaria dos romanos, os meus,
vendo-me rodeado pelos inimigos, ficaram assustados e fugiram; justo, um dos
meus guardas e que outrora fora guarda do rei, foi morto nessa ocasião.
Sila, comandante dos guardas desse príncipe, veio em seguida com um
grande número de soldados de infantaria e de cavalaria acampar a cinco
estádios de juliada e deixou uma parte de suas tropas na estrada de Cana e do
castelo de Gamala, para impedir que para lá se levassem víveres. Logo que vim
a saber disso, mandei jeremias com dois mil homens acampar perto do Jordão,
a um estádio de juliada, vendo que eles só cediam pequenas escaramuças, fui
reunir-me a eles com três mil homens, coloquei no dia seguinte as forças de
emboscada num vale mui perto do acampamento dos inimigos e procurei trazê-
los ao combate, depois de ter dado ordem aos meus soldados de fingir uma
fuga; isso deu resultado. Como Sila pensou que eles fugiam de verdade,
perseguiu-os até aquele lugar e encontrou então tropas, de que nem sequer
suspeitava. Mandei então que meus homens fizessem meia volta, ataquei com
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tal ímpeto os inimigos, que os obriguei a fugir; teria obtido sobre eles uma
assinalada vitória, se a sorte não se tivesse oposto à felicidade. Meu cavalo caiu
sobre mim, atirando-me a um pântano; fiquei tão ferido numa das mãos que fui
obrigado a ir a uma aldeia próxima de nome Cefarnom; os meus, que me
julgavam ainda mais ferido do que na verdade eu estava, ficaram tão
perturbados que deixaram de perseguir os inimigos. A febre assaltou-me e
depois que me medicaram, levaram-me a Tariquéia. Sila soube-o, criou ânimo e
imaginando que minhas tropas estavam desprevenidas, mandou à noite, para
além do Jordão, uma companhia de cavalaria, que colocou em emboscada; ao
despontar do dia atacou os meus, que resistiram firmemente. Aquela cavalaria
apareceu, então, atacou, dispersou-os e os pôs em fuga. Somente uns seis
morreram, porque correu a voz de que nossas tropas estavam para chegar de
Tariquéia e Júlia, e então os inimigos fugiram.
Pouco tempo depois, Vespasiano chegou a Tiro, acompanhado pelo rei
Agripa, e os habitantes fizeram-lhe grandes queixas desse príncipe, dizendo que
ele era seu inimigo e do povo romano e que Filipe, general de seu exército,
tinha, por sua ordem, traído a guarnição romana de Jerusalém e os que
estavam no palácio real. Vespasiano censurou-os acremente por ousarem
daquele modo ultrajar a um rei amigo dos romanos e aconselhou Agripa a
mandar Filipe a Roma prestar contas de suas ações. Ele partiu para esse fim;
mas não se avistou com o imperador Nero, porque o encontrou nos extremos do
perigo em que a guerra civil o tinha reduzido; e assim voltou para junto de
Agripa.
Quando Vespasiano chegou a Ptolemaida, os principais habitantes de
Decápolis acusaram Justo, perante ele, de ter incendiado suas aldeias.
Vespasiano, para satisfazê-los, entregou-o ao rei, como sendo seu súdito; o
soberano, sem nada lhe dizer, mandou-o para a prisão, como vimos há pouco.
Os de Séforis compareceram então à presença de Vespasiano e receberam
uma guarnição dele, comandada por Plácido, ao qual eu fiz a guerra até que
Vespasiano entrou na Galiléia. Escrevi mui exatamente na minha História da
Guerra dos Judeus, o que se refere à vinda desse imperador; como depois do
combate de Tariquéia eu me retirei a Jotapate; como, depois de aí ter estado por
muito tempo cercado, caí nas mãos dos romanos; como fui em seguida
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libertado da prisão; e, por fim, tudo o que se passou nessa guerra e no cerco de
Jerusalém. Assim, não me resta que falar do que se refere a mim em particular,
que ainda não foi relatado.
Depois da tomada de Jotapate, os romanos, que me haviam aprisionado,
vigiavam-me severamente; mas Vespasiano não deixava de me prestar muitas
honras e desposei, por sua ordem, uma moça de Cesaréia, que era também
escrava. Ela não ficou muito tempo comigo, pois quando fui libertado da prisão,
segui Vespasiano a Alexandria e ela me deixou. Desposei outra na mesma
cidade, de onde fui mandado, com Tito, a Jerusalém e me encontrei diversas
vezes em grave perigo de vida, pois os judeus tudo faziam para me matar. Todas
as vezes que a sorte das armas não era favorável aos romanos, eles diziam que
era eu que os traía, e insistiam muito com Tito, que então tinha sido declarado
César, que mandasse me matar. Mas como esse príncipe bem conhecia as
vicissitudes da guerra, nada respondia a essas queixas. Ele me permitiu,
mesmo diversas vezes depois da tomada de Jerusalém, tomar a parte que eu
quisesse no que restava das ruínas do meu país. Nada, porém, era capaz de me
consolar em tão grande desolação e me contentei de lhe pedir os livros sagrados
e liberdade de algumas pessoas, o que ele de boa vontade me concedeu. Pedi-
lhe também a liberdade de um meu irmão e de cinqüenta de meus amigos, que
ele me concedeu do mesmo modo; tendo entrado, com sua licença, no Templo,
lá encontrei no meio de uma grande multidão de escravos, tanto de homens
como de mulheres e crianças, mais ou menos cento e noventa amigos meus, ou
conhecidos, que foram todos libertados, a meu rogo, sem pagar resgate e
restaurados em seu primitivo estado.
Tito mandou-me em seguida com Cerealis e mil cavaleiros a Técua, para
ver se aquele lugar seria próprio para um acampamento. Ao meu regresso,
soube que tinham crucificado vários escravos, dentre os quais reconheci três
amigos meus. Fiquei muito sentido e fui, banhado em lágrimas, dizer a Tito o
motivo de minha aflição. Ele ordenou no mesmo instante que os tirassem da
cruz e que os curassem com todo o cuidado. Dois deles morreram nas mãos dos
médicos, mas o terceiro sobreviveu.
Depois que Tito pôs em dia todos os problemas da Judéia e toda a região
estava tranqüila, vendo que as terras que eu tinha nos arredores de Jerusalém
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ser-me-iam inúteis por causa das tropas romanas, que eram obrigadas a lá per-
manecerem, para a defesa do país, ele deu-me outras em lugares mais
afastados e quando voltou a Roma, concedeu-me a honra de subir ao seu navio.
Quando chegamos, Vespasiano tratou-me da melhor maneira possível. Fez-me
hospedar no palácio em que ele morava antes de ser imperador, quis que fosse
recebido no número dos cidadãos romanos, deu-me uma pensão, sem nada
diminuir dos seus benefícios para comigo; isso causou contra mim tamanha
inveja dos meus compatriotas, que me pôs em grande perigo. Um judeu
chamado jônatas, tendo provocado uma rebelião em Cirene e reunido dois mil
homens da região, que foram todos severamente castigados, foi mandado, atado
de pés e mãos ao imperador e ele acusou-me falsamente de lhe ter fornecido
armas e dinheiro; Vespasiano, porém, não acreditou na sua impostura e
mandou cortar-lhe a cabeça; Deus livrou-me ainda de outras falsas acusações
dos meus inimigos, e Vespasiano deu-me na Judéia uma propriedade de grande
extensão.
Nesse mesmo tempo, os costumes de minha mulher se me tornaram
insuportáveis; eu a repudiei, embora tivesse três filhos dela, dois dos quais
haviam morrido, restando-me apenas Hircano. Desposei outra, de Creta, judia
de nascimento, filha de pais nobres e muito virtuosa. Dela tive dois filhos, Justo
e Simão, cognominado Agripa. Este é o estado dos meus assuntos domésticos.
A isso devo acrescentar que continuei a ser sempre honrado com a
benevolência dos imperadores, pois Tito não ma demonstrou menos que
Vespasiano, seu pai, e jamais escutou as acusações que se faziam contra mim.
O imperador Domiciano, que o sucedeu, acrescentou novos favores aos que eu
já havia recebido, mandou cortar a cabeça a judeus que me haviam caluniado e
castigar um escravo eunuco, pre-ceptor de meu filho, que era do seu número.
Este soberano acrescentou a tantos favores um sinal de honra mui ilustre,
como libertar todas as terras que eu possuía na Judéia, e a imperatriz Domícia
sempre teve prazer em me obsequiar. Poder-se-á por este reduzido resumo dos
fatos de minha vida imaginar quem fui eu. Quanto a vós, ó mui virtuoso
Epafrodita, depois de vos ter dedicado a continuação das minhas antigüidades,
não vos direi mais coisa alguma.
Prefácio de Josefo
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De todas as guerras que se travaram, quer de cidade contra cidade, quer
de nações contra nações, nosso século ainda não viu outra tão grande, e nós
não sabemos que tenha havido outra semelhante, à que os judeus sustentaram
contra os romanos. Houve, no entanto, pessoas que se dispuseram a escrevê-la,
embora por si mesmos nada soubessem dela, baseando apenas seus
conhecimentos em relações vãs e falsas. Quanto aos que nela tomaram parte,
sua bajulação pelos romanos e seu ódio pelos judeus, fê-los relatar as coisas de
maneira muito diferente, da que de fato eram na realidade. Seus escritos estão
cheios de louvores de uns e de censuras dos outros, sem se preocupar com a
verdade. Foi isso que me fez decidir a escrever, em grego, para satisfação
daqueles que estão sujeitos ao Império Romano, o que escrevi há pouco em
minha língua, para informar as outras nações.
Meu pai chamava-se Matatias, meu nome é Josefo, sou hebreu de
nascimento, sacerdote em Jerusalém. No princípio combati contra os romanos e
a necessidade, por fim, obrigou-me a empreender a carreira das armas.
Quando essa grande guerra começou, o Império Romano era agitado por
questões internas; os mais jovens e os mais exaltados dos judeus, confiando em
suas riquezas e em sua coragem, suscitaram tão grande perturbação no Oriente
para aproveitar dessa ocasião, que povos inteiros tiveram receio de lhes ficar
sujeitos, porque eles tinham chamado em seu auxílio os outros judeus que
habitavam além do Eufrates, a fim de se revoltarem todos juntamente.
Foi depois da morte de Nero que se viu mudar a face do império. A Gália,
vizinha da Itália, sublevou-se. A Alemanha não estava tranqüila; muitos aspira-
vam ao soberano poder; os exércitos desejavam a revolução na esperança de
com isso serem beneficiados. Como todas estas coisas não poderiam deixar de
ser mais importantes, a tristeza que senti por ver que se desvirtuava a verdade
tinha-me já feito tomar cuidado de informar exatamente aos partos, aos
babilônios, mais afastados, entre os árabes, aos judeus que habitam além do
Eufrates e aos atenienses da causa desta guerra; de tudo o que se passou e de
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que modo ela terminou; e não posso ainda agora tolerar que os gregos e os
romanos que ali não estavam presentes o ignorem e sejam enganados por esses
historiadores bajuladores que só lhes narram fábulas.
Confesso não poder compreender sua imprudência, quando, para fazer
passar os romanos pelos primeiros de todos os homens, eles queriam rebaixar
os judeus e ajam assim contra sua intenção. Será uma grande glória superar
inimigos pouco temíveis? Ignoram eles as forças poderosas empregadas pelos
romanos nessa guerra, durante o tempo que ela durou e as dificuldades que
suportaram? Não consideram eles que é diminuir a estima do mérito
extraordinário de seus generais diminuir a da resistência que o valor dos
judeus fê-los experimentar na execução de tão difícil empreendimento?
Evitarei bem imitá-los, relevando além da verdade os feitos dos de minha
nação, como eles fizeram com os dos romanos. Farei justiça a uns e a outros,
relatando-os sinceramente; nada afirmarei que não possa provar; não
procurarei outro alívio em minha dor, senão deplorar a ruína da minha pátria.
Mas, o que pode melhor, que o imperador Tito, que teve a direção de toda a
guerra, dela referiu como testemunha, dar a conhecer que nossas divisões
domésticas foram a causa da nossa derrota e que não foi voluntariamente, mas
por culpa daqueles que se tinham tornado nossos tiranos, que os romanos
incendiaram nosso Templo? Esse grande príncipe, não somente teve compaixão
desse pobre povo, vendo-o correr para sua ruína, pela violência daqueles
facciosos, mas ele mesmo, muitas vezes diferiu a tomada da praça, para lhe dar
tempo e ocasião de se arrepender.
Se alguém julgar que meu ressentimento pela infelicidade de meu país
leva-me, contra as leis da história, a acusar fortemente aqueles que lhe foram
autores, que acrescentaram ladroeira pública à sua tirania, devem perdoar-me
e atribuí-lo à minha extrema aflição. Poderia ela ser mais justa, pois entre
tantas cidades sujeitas ao Império Romano não se encontrará uma que como a
nossa, tendo sido elevada a tão alto grau de honra e de glória, tenha caído em
miséria tão espantosa, que não creio que desde a criação do mundo algo se
tenha visto de semelhante. A isso acrescente-se que não é a inimigos externos,
mas a nós mesmos, que devemos atribuir nossas desgraças; como me poderei
conter em tamanha dor? Se, no entanto, se encontrarem pessoas que não se
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deixem comover por esta consideração, mas queiram ainda condenar com rigor
um sentimento que me parece tão razoável, poderão ater-se à minha história,
somente nas coisas que eu refiro, e não se incomodar com minhas queixas,
admitindo-as apenas como uma efusão da alma do historiador.
Confesso que muitas vezes censurei, com razão, parece-me, os mais
eloqüentes gregos, porque embora as coisas acontecidas no seu tempo sobre-
pujem de muito as dos séculos que os precederam, contentam-se em julgá-las
sem nada escrever e em censurar os que as escreveram, sem considerar que, se
eles lhe são inferiores em capacidade, têm sobre a vantagem de ter servido o
bem público, com seu trabalho; esses mesmos censores dos outros escrevem o
que se passa entre os sírios e os medas, como tendo sido mal narrado pelos
antigos escritores, embora não lhes sejam menos inferiores, na maneira de bem
escrever do que no intento que tiveram, escrevendo-as. Esses primeiros só refe-
riram e quiseram referir as coisas de que tinham conhecimento e teriam tido
vergonha de falsear a verdade diante daqueles que as tendo visto como eles,
poderiam desmenti-los. Assim, não poderíamos não louvá-los assaz por ter
dado à posteridade o conhecimento do que se passou no seu tempo, que ainda
não tinha aparecido em público; eles devem ser tidos como os mais hábeis, que
em vez de trabalhar sobre as obras de outros e em trocar somente a ordem,
escrevem coisas novas e compõem um corpo de história que somente a eles se
deve. Por mim, posso dizer que, sendo estrangeiro, não houve despesa que eu
não fizesse, nem cuidado que eu não tomasse, para informar os gregos e os
romanos de tudo o que se refere à nossa nação. Os gregos, ao contrário, falam
muito quando se trata de sustentar seus interesses, quer em particular, quer
perante os juizes, mas calam-se quando é preciso reunir com muita dificuldade
tudo o que é necessário para compor uma história verdadeira; e não acham
estranho que aqueles que nenhum conhecimento têm dos feitos dos príncipes e
dos grandes generais e são mui incapazes de os descrever, ousem fazê-lo. Isto
mostra que quanto procuramos a verdade da história tanto os gregos a despre-
zam e disso se descuidam.
Eu poderia dizer qual foi a origem dos judeus, de que maneira saíram do
Egito, por quais províncias vagaram durante longo tempo, as que ocuparam e
como passaram a outras. Mas, além de que isto não se refere a este tempo, eu o
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julgaria inútil, pois vários da minha nação já o escreveram, com muito cuidado,
e os gregos traduziram-lhe as obras para sua língua sem se afastar muito da
verdade.
Assim, começarei minha história por onde seus autores e nossos profetas
terminaram as suas. Referirei particularmente, com toda a exatidão que me for
possível, a guerra que se travou no meu tempo e contentar-me-ei em tocar bre-
vemente o que se passou nos séculos precedentes.
Direi de que modo o rei Antíoco Epifânio, depois de ter tomado Jerusalém
e de tê-la possuído durante três anos e meio, de lá foi expulso pelos filhos de
Matatias, hasmoneu. Como a divisão suscitada entre seus sucessores, com
relação à posse do reino, atraiu os romanos sob o comando de Pompeu. Como
Herodes, filho de Antípatro, com o auxílio de Sósio, general do exército romano,
pôs fim à dominação desses príncipes hasmoneus. Como depois da morte de
Herodes, sob o reinado de Augusto, Quintílio Varo, governador da Judéia, o
povo se revoltou. Como no décimo segundo ano do reinado de Nero, começou a
guerra; o que se deu sob Céstio, que comandava as tropas romanas; os
primeiros feitos dos judeus e as praças que eles fortificaram. Como as perdas
sofridas em várias ocasiões por Céstio, fizeram Nero temer pelo êxito de suas
armas e ele as entregou a Vespasiano. Como esse general, acompanhado pelo
mais velho de seus filhos, entrou na Judéia com um grande exército romano;
como um grande número de suas tropas auxiliares foi desbaratada na Galiléia,
como ele tomou algumas cidades dessa província e outras se entregaram a ele.
Referirei também sinceramente, segundo o que vi e constatei com meus
próprios olhos, o proceder dos romanos nas suas guerras, sua ordem e sua
disciplina: a extensão e a natureza da alta e da baixa Galiléia, os limites e as
fronteiras da Judéia, a qualidade da terra, os lagos e as fontes, que aí se
encontram e os males suportados pelas cidades que foram tomadas. Não
deixarei de falar do mesmo modo daqueles que experimentei em minha vida e
que são bem conhecidos.
Direi também como a morte de Nero aconteceu quando Vespasiano se
apressava para marchar contra Jerusalém, os interesses dos judeus estavam já
em péssimo estado e os do império chamaram-no a Roma; os presságios que
teve da sua futura grandeza; as mudanças sucedidas nessa capital do império;
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como foi contra sua vontade declarado imperador pelos soldados e como foi ao
Egito para dar as ordens necessárias; como a Judéia foi agitada por novas
perturbações e como surgiram tiranos, uns contra os outros; como Tito à sua
volta do Egito entrou duas vezes naquela província, de que maneira e em que
lugar ele reuniu seu exército, de que modo e quantas vezes ele viu mesmo em
sua presença sucederem-se as sedições em Jerusalém; suas aproximações e
todas as dificuldades que empreendeu para atacar essa praça; qual a torre dos
muros da cidade, sua fortificação e a do Templo; a descrição do mesmo Templo,
suas medidas e as do altar; nisso nada omitirei. Falarei das nossas festas
solenes, das cerimônias que nelas se observam, das sete espécies de
purificação; das funções dos sacerdotes, suas vestes e os do sumo sacerdote; da
santidade desse Templo, sem nada deturpar, sem nada acrescentar. Farei ver
também a crueldade de nossos tiranos contra os da própria nação e a
humanidade dos romanos conosco, que éramos estrangeiros com relação a eles;
quantas vezes Tito fez tudo o que pôde para salvar a cidade e o Templo e reunir
os que estavam tão obstinadamente divididos. Falarei dos muitos e diversos
males suportados pelo povo, que depois de ter sofrido todas as misérias que a
guerra, a carestia e as sedições podem causar, por fim se viu reduzido à
servidão, pela tomada dessa grande e poderosa cidade. Não me esquecerei
também de dizer em que desgraças caíram os desertores da sua nação, a
maneira como o Templo foi queimado, contra a vontade de Tito, a quantidade
de riquezas consagradas a Deus que o fogo destruiu; a destruição completa da
cidade, os prodígios que precederam essa extrema desolação, a escravidão de
nossos tiranos, o grande número daqueles que foram levados cativos e suas
diversas vicissitudes, de que maneira os romanos perseguiram os que
escaparam da guerra e depois de os ter vencido, destruíram completamente as
praças e os lugares para onde eles se haviam retirado. Por fim, falarei da visita
feita por Tito a toda a província para restabelecer a ordem; da sua volta à Itália
e do seu triunfo. Escreverei todas estas coisas em sete livros, divididos em
capítulos, para satisfação das pessoas que amam a verdade e não tenho motivo
de temer que aqueles que tiveram a direção dessa guerra ou que lá se
encontraram presentes, me acusem de ter faltado à sinceridade. Mas é tempo
de começarmos a executar o que prometi.
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Livro Primeiro
CAPÍTULO 1
ANTÍOCO EPIFÂNIO, REI DA SÍRIA, TORNA-SE SENHOR DE JERUSALÉM E
SUPRIME O SERVIÇO DE
 DEUS. MATIAS M ACABEU E SEUS FILHOS
RESTABELECEM-NO E VENCEM OS SÍRIOS EM VÁRIOS COMBATES.
 MORTE DE
JUDAS MACABEU, PRÍNCIPE DOS JUDEUS, E DE JOÃO, DOIS DOS FILHOS DE
MATIAS, QUE HAVIA MORRIDO MUITO TEMPO ANTES. *
_______________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Segundo, capítulos 6,
7, 8, 9, 10, 11, 14 e 19, Antigüidades Judaicas, Parte I.
1. No mesmo tempo em que, por um sentimento de glória tão comum
entre os grandes príncipes, Antíoco Epifânio e Ptolomeu, sexto rei do Egito,
estavam em guerra, para decidir pelas armas a quem pertenceria o reino da
Síria, os maiorais dos judeus estavam divididos entre si. O partido de Onias,
sumo sacerdote, tendo-se tornado mais forte, expulsou de Jerusalém o filho de
Tobias. Eles retiraram-se para junto do rei Antíoco, rogaram-no que entrasse na
Judéia e ofereceram-se para servi-lo, com todas as suas forças. Como ele já
tinha formado o seu desígnio, não tiveram dificuldade em obter dele o que
desejavam. Ele se pôs em campo com um poderoso exército, tomou Jerusalém e
matou um grande número dos que eram do partido de Ptolomeu. Permitiu o
saque aos seus soldados, despojou o Templo de tantas riquezas de que estava
cheio e aboliu durante três anos e meio os sacrifícios que ali se ofereciam todos
os dias a Deus. Onias fugiu para junto de Ptolomeu, que lhe permitiu construir
perto de Heliópolis uma cidade e um Templo da forma do de Jerusalém, de que
poderemos falar a seu tempo.
2. Antioco não se contentou de se ter tornado, contra sua esperança, se-
nhor de Jerusalém, de lá ter tirado tantas riquezas e de ter derramado tanto
sangue, mas deixou-se levar de tal modo pelo ressentimento, pela lembrança
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das amarguras que tinha suportado, naquela guerra, que obrigou os judeus a
renunciar à sua religião, a não mais mandar circuncidar seus filhos e a imolar
sobre o altar, destinado para os sacrifícios, porcos, em vez de vítimas que nos-
sas leis obrigam a oferecer a Deus. O horror que os maiorais e as pessoas de
bem não podiam deixar de demonstrar por essa abominação custava-lhes a
vida: pois Baccida, que governava por Antioco, todos os lugares da Judéia,
sendo naturalmente muito cruel, executava com alegria suas ordens ímpias.
Sua insolência e suas violências chegavam a tal excesso que não havia ultraje
que ele não fizesse mesmo às pessoas de condição e suas incríveis maldades
faziam ver, cada dia, uma nova e espantosa imagem da tomada e da desolação
dessa cidade, antes tão poderosa e tão célebre.
3. Mas por fim, tão insuportável tirania animou os que a toleravam a se
libertarem dela e a tomarem vingança. Matias (ou Matatias, Macabeu), sacer-
dote que morava na aldeia de Modim, seguido por seus cinco filhos e seus
domésticos, matou Baccida e fugiu para as montanhas, a fim de evitar o furor
das guarnições mantidas por Antioco. Muitos reuniram-se a ele e então ele
desceu aos campos, deu combate aos chefes das tropas desse príncipe, venceu-
as e as expulsou da judéia. Estes felizes resultados elevaram-no a tão alto grau
de glória que todo o povo, para lhe mostrar seu agradecimento por tê-lo
libertado da escravidão, escolheu-o para comandá-lo e ele deixou, ao morrer,
Judas Macabeu, o mais velho de seus filhos, como sucessor de sua fama e de
sua autoridade.
4. Como esse generoso filho, de tão generoso pai, não podia duvidar dos
esforços que Antioco faria para se vingar das perdas recebidas, reuniu todas as
forças da nação e foi o primeiro que fez aliança com os romanos. Antioco não
deixou, como ele havia previsto, de entrar com um poderoso exército na Judéia
e esse grande general venceu-o numa batalha. Para não perder o fruto e não
deixar esfriar-se a coragem de suas tropas, ele foi no ardor da vitória atacar a
guarnição de Jerusalém que ainda estava inteira, expulsou-a da cidade alta,
que tem o nome de santa e a obrigou a se refugiar na cidade baixa. Assim,
tornou-se senhor do Templo, purificou-o, rodeou-o com um muro, mandou
fazer vasos novos, para empregá-los no serviço de Deus, colocou-os no Templo
no lugar dos que haviam sido profanados, fez construir um outro altar e
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recomeçou a oferecer a Deus os sacrifícios.
5. Terminadas estas coisas, Antioco morreu. Antioco Eupator, seu filho,
não herdou menos seu ódio contra os judeus do que a coroa; reuniu um
exército de cinqüenta mil homens de infantaria e mais ou menos cinco mil de
cavalaria e oitenta elefantes, entrou na Judéia do lado das montanhas; tomou a
cidade de Betsura. Judas, com o que possuía de suas tropas, veio ao seu
encontro, no estreito de Betsacharia; antes que os exércitos se chocassem,
Eleazar, um dos seus irmãos, tendo visto um elefante muito maior que os
outros, que trazia em seu dorso uma grande torre, toda dourada, pensou que o
rei estaria sob a mesma. Adiantou-se por entre os demais, abriu caminho entre
os inimigos, chegou até o enorme animal e como não podia alcançar aquele que
estava lá em cima e que ele julgava ser o rei, colocou-se por baixo do elefante,
feriu com a espada o ventre do animal, que o matou esmagando-o na queda.
Assim, uma coragem tão heróica mostrou com este feito de valor a grandeza de
alma deste generoso israelita que preferiu a glória à própria vida. Quem
montava esse elefante era um cidadão particular, mas quando tivesse sido o
mesmo Antioco, a coragem heróica de Eleazar tê-lo-ia levado ao mesmo
resultado, pois não podendo esperar sobreviver a tão grande feito, ele teria
sempre mostrado até que ponto seu amor pela glória o fazia desprezar a morte.
6. Este fato foi um presságio a Judas Macabeu, do que lhe ia acontecer
naquele dia. Depois de um mui longo e violento combate, o grande número dos
inimigos e sua boa sorte os fez vitoriosos. Vários judeus foram mortos; Judas
retirou-se com o restante à toparquia de Gofnítico. Antioco avançou em seguida
até Jerusalém, mas foi obrigado a se retirar porque tinha falta de muitas coisas
necessárias para a subsistência de seu exército. Lá deixou uma guar-nição de
soldados, que julgou conveniente e mandou o restante para os quartéis de
inverno na Síria.
Judas, para aproveitar-se da sua ausência, reuniu o que pôde de soldados
de sua nação, além dos que haviam ficado deste último combate, e foi lutar
contra as tropas de Antioco. Jamais um homem mostrou mais valor do que ele,
nesse dia. Perdeu a vida, depois de ter matado um grande número de inimigos e
João, seu irmão, tendo caído numa emboscada que lhe armaram, também viveu
apenas alguns dias a mais.
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CAPÍTULO 2
JÔNATAS E SIMÃO MACABEU SUCEDEM AJUDAS, SEU IRMÃO, NA
QUALIDADE DE PRÍNCIPES DOS JUDEUS E
 SIMÃO LIVRA A JUDÉIA DA
ESCRAVIDÃO DOS MACEDÔNIOS.
 É MORTO À TRAIÇÃO POR PTOLOMEU, SEU
GENRO.
 HIRCANO, UM DE SEUS FILHOS, HERDA SUA VIRTUDE E SUA
QUALIDADE DE PRÍNCIPE DOS JUDEUS.
 *
_______________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Terceiro, capítulos 1,
9, 10, 11, 14, 15, 16, 1 7 e 18, Antigüidades Judaicas, Parte I.
7. Jônatas sucedeu a Judas Macabeu, seu irmão, na dignidade de
príncipe dos judeus. Ele procedeu com os de sua nação com muita prudência,
firmou sua autoridade com a aliança dos romanos e se pôs em boas relações
com o filho de Antíoco. Um proceder tão sensato, não pôde, no entanto, lhe dar
segurança. Trifon, que era tutor do jovem Antíoco e que depois usurpou o reino,
não podendo fazê-lo perder os amigos, recorreu à traição. Conseguiu induzi-lo a
vir encontrar-se com Antíoco, em Ptolemaida e lá o fez prisioneiro e avançou
com suas tropas para a Judéia. Simão, irmão de Jônatas, obrigou-o a se retirar
e ele ficou tão irritado, que mandou matar Jônatas.
8. Como não se podia acrescentar algo à vigilância e à coragem de Simão,
ele tomou as cidades de Zara, de Jope e de Jamnia. Tornou-se assim senhor de
Acarom, destruiu-a, e se uniu contra Trifon, a Antíoco, que antes de partir para
sua viagem à Média, sitiava Dora. Mas esse rei era tão avarento que, ainda que
Simão tivesse contribuído para a ruína e a morte de Trifon, pelo auxílio que lhe
tinha dado, não deixou de enviar Cendebéa, um dos seus generais, com um
exército, para devastar a Judéia e procurar fazê-lo prisioneiro. Embora esse
príncipe dos judeus fosse então muito idoso, não deixou de agir com a mesma
energia, como teria feito com as melhores tropas e marchou, por outro lado,
com o restante; fez diversas emboscadas nas montanhas e obteve grande
vitória. Deram-lhe em seguida o cargo de sumo sacerdote; ele libertou sua
pátria da dominação dos macedônios, duzentos e setenta anos depois que dela
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se tinham tornado senhores.
9.
 Este grande personagem foi morto à traição num banquete, por
Ptolomeu, seu genro, que ao mesmo tempo manteve prisioneira sua mulher e
dois de seus filhos, e mandou alguns homens para matar João, antes chamado
Hircano, que era o terceiro. Mas tendo sido avisado, ele fugiu para Jerusalém,
confiando no afeto do povo, pelo respeito que consagrava à memória de seus
parentes e de seu ódio por Ptolomeu. Este homem mau quis também entrar na
cidade, por outra porta; mas o povo, que já havia recebido Hircano, repeliu-o.
Ele foi então para um castelo de nome Dagom, que está além de Jerico;
Hircano, depois de ter sucedido a seu pai no cargo de sumo sacerdote e
oferecido sacrifícios a Deus, foi logo atacá-lo para libertar sua mãe e seus
irmãos. Seu bom caráter foi o único obstáculo que lhe impediu de tomar a
praça. Quando Ptolomeu se via em apuros, levava sua mãe e seus irmãos à
muralha, para que todos pudessem vê-los e depois de os ter espancado
violentamente, ameaçava precipitá-los de lá do alto, se ele não se retirasse
imediatamente. Por maior que fosse a cólera de Hircano, ele era obrigado a
ceder ao seu amor, para com pessoas que lhe eram tão caras e à compaixão,
por vê-los sofrer. Sua mãe, ao contrário, cujo grande coração não se abatia,
nem pelas dores nem pelo temor da morte, estendia-lhe os braços e rogava-lhe
que o desejo de lhe poupar outros tor-mentos não o impedissem de dar àquele
ímpio o merecido castigo, pois ela se considerava feliz por morrer, contanto que
os crimes por ele cometidos contra toda a nação não continuassem impunes.
Estas
 palavras
 animavam
 Hircano
 à
 vingança,
 mas
 quando
 via
 que
recomeçavam a tratá-la de maneira tão cruel, sentia sua coragem enfraquecer e
seu espírito agitado por esses diversos sentimentos enchiam-se de confusão e
de perturbação. Assim, o cerco continuou por muito tempo e o sétimo ano
chegou, o qual é um ano de descanso, para nós. Ptolomeu não ficou por esse
meio livre do perigo e do temor, mas assassinou a mãe e os irmãos de Hircano e
retirou-se depois para junto de Zenão, cognominado Cotilas, que reinava em
Filadélfia.
10.
 O rei Antíoco, então, para se vingar de Hircano, pela vitória que
Simão, seu pai, tinha obtido contra seus generais, entrou na Judéia com um
grande exército e foi sitiar Jerusalém. O sumo sacerdote, para obrigá-lo a se
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retirar, mandou abrir o sepulcro de Davi, que tinha sido o mais rico de todos os
reis e de lá tirou mais de três mil talentos, dos quais lhe deu trezentos.
11.
 Este príncipe dos judeus foi o primeiro que manteve soldados
estrangeiros. Quando viu que Antíoco tinha partido com todas as suas forças
para a Média, tomou aquele Templo, para entrar na Síria, desprovida de
soldados, apoderou-se de Medaba, Samea, Siquém e Gerizim e reduziu também
à sua obediência os chuteenses, que moram nos lugares adjacentes ao Templo,
construído à imitação do de Jerusalém. Na Judéia, tomou além de Dorom e
Marissa, várias outras praças e avançou até Samaria, que Herodes reedificou
depois e deu o nome de Sebaste. Cercou-a de todos os lados e deixou a
Aristóbulo e a Antígono, seus filhos, o encargo de continuar o cerco. Nada eles
deixaram de fazer para bem cumprir a ordem, e os habitantes ficaram
reduzidos a tão grande miséria e carestia, que para viver foram obrigados a se
servir de coisas que os homens não costumam comer. Em tal conjuntura
extrema, imploraram o auxílio de Antíoco cognominado Sponde; este veio logo
em seu socorro, mas Aristóbulo e Antígono venceram-no e o perseguiram até
Citópolis, onde se refugiara. Os dois irmãos voltaram em seguida ao cerco,
mantiveram os samaritanos presos dentro de suas muralhas, dominaram-nos à
força, fizeram-nos todos prisioneiros e destruíram completamente a cidade.
Levaram sua boa sorte ainda mais além; para não deixar esmorecer o ardor de
suas tropas, avançaram até além de Citópolis e dividiram entre si todas as
terras do monte Carmelo.
CAPÍTULO 3
MORTE DE HIRCANO, PRÍNCIPE DOS JUDEUS. ARISTÓBULO, SEU FILHO MAIS
VELHO, TOMA POR PRIMEIRO O TÍTULO DE REI .
 MANDA MATAR SUA MÃE E
ANTÍGONO, SEU IRMÃO, E MORRE TAMBÉM DE TRISTEZA. ALEXANDRE , UM
DE SEUS IRMÃOS, SUCEDE-O.
 GRANDES GUERRAS DESSE PRÍNCIPE, TANTO
EXTERNAS COMO INTERNAS.
 CRUEL AÇÃO QUE ELE COMETE. *
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Terceiro, capítulos
18,19, 20, 21 e 22, Antigüidades Judaicas, Parte I.
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12. A prosperidade de Hircano e de seus filhos atraiu-lhes tanta inveja
que vários se ergueram contra eles e chegaram mesmo a uma guerra aberta.
Mas Hircano continuou senhor, passou o restante de sua vida em grande
tranqüilidade e depois de ter governado durante trinta e três anos, com tanta
sabedoria e virtude, que nada se podia, sem injustiça, encontrar digno de
censura em seu proceder, morreu e deixou cinco filhos. Teve esta rara felicidade
de possuir ao mesmo tempo o prin-cipado, o sumo sacerdócio e o dom da
profecia. Deus mesmo falava-lhe e dava-lhe o conhecimento das coisas futuras.
Assim, previu e predisse que os dois mais velhos de seus filhos não reinariam
por muito tempo. A este respeito, julgo dever relatar qual o seu fim, tão longe da
felicidade de que seu pai havia gozado.
13. Depois da morte de Hircano, Aristóbulo, o mais velho de seus filhos,
mudou a forma de governo, em Roma, e foi o primeiro que pôs o diadema sobre
a cabeça, quatrocentos e setenta e um anos e três meses depois que o povo,
tendo sido libertado da servidão dos babilônios, tinha voltado à Judéia. Ele
tinha tanto afeto por Antígono, um de seus irmãos, que o associou à coroa.
Mandou os outros para a prisão e lá mandou também colocar sua mãe, porque
Hircano, tendo-a declarado regente, ela disputava-lhe o governo. Sua crueldade
para com ela chegou a ponto de fazê-la morrer de fome. Ele acrescentou a esse
crime o de também matar Antígono, depois das calúnias de que se serviam para
torná-lo odioso a ele. Como o amava muito, não podia, a princípio, acreditar;
mas aconteceu que quando ele estava doente, Antígono, que voltava da guerra
com soberano séquito, com muitos homens armados, entrou no Templo com
aquela majestade toda, para rogar a Deus pela saúde do rei, seu irmão. Seus
inimigos tomaram essa ocasião para perdê-lo. Disseram a Aristóbulo que
Antígono, não se contentando com a honra que ele lhe tinha feito, associando-o
ao governo, queria possuí-lo todo, inteiro, sozinho; e para esse fim tinha vindo
com a pompa que só compete a um soberano, acompanhado de tantos guardas,
que não se podia duvidar de que aquilo era para matá-lo. Aristóbulo, que então
estava na fortaleza de Baris, que Herodes, depois chamou Antônia, em honra de
Antônio, a princípio não quis acreditar nessas palavras, mas por fim chegou a
persuadir-se de tudo e para não mostrar abertamente sua desconfiança para
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com seu irmão, nem algo fazer com leviandade, em assunto tão importante,
ordenou aos seus guardas que se postassem à passagem de Antígono num
lugar obscuro e subterrâneo, com ordem de deixá-lo passar, se ele se encon-
trasse sem arma, e de matá-lo, se estivesse armado; mas mandou-lhe dizer que
viesse sem armas. A rainha, por uma maldade horrível, de combinação com os
outros inimigos de Antígono, subornou o guarda que estava encarregado dessa
comissão e o induziu a dizer a Antígono, que o rei, tendo sabido que ele tinha
trazido da Galiléia as mais belas armas do mundo, rogava-lhe que viesse
encontrá-lo; armado como estava, a fim de lhe dar o prazer de vê-las em sua
pessoa. Antígono, que tinha recebido provas de afeto do rei, seu irmão, de nada
desconfiou e, assim, apressou-se em executar essa ordem; quando chegou ao
lugar denominado a torre de Estratão, os guardas do rei esperavam-no e o
mataram.
Que outro exemplo pode melhor manifestar, como a calúnia é capaz de
afogar os sentimentos mais ternos da natureza e da amizade e que não há
união tão grande que sempre possa resistir aos esforços que ela faz para os
destruir?
14. Aconteceu nesse fato uma coisa, que não se pode admirar assaz.
Judas, da seita dos essênios, tinha tal conhecimento do futuro, que suas
predições jamais deixaram de ser verdadeiras e tinham-lhe conquistado tal
fama, que ele era sempre seguido de grande número de pessoas que o
consultavam. Quando esse bom velho viu Antígono entrar no Templo, voltou-se
para eles e exclamou: "Como se há de viver mais, depois que a verdade morreu?
Posso duvidar de que uma coisa que eu predisse seja falsa, vendo, como eu
vejo, com meus próprios olhos, Antígono ainda com vida, ele, que eu julgava
dever ser hoje morto na torre de Estratão? E como isso se poderia realizar pois
ela está longe daqui seiscentos estádios e estamos na quarta hora do dia?"
Depois que judas havia falado deste modo e repassava com tristeza certas
coisas em sua mente, vieram dizer-lhe que Antígono tinha sido morto, num
lugar subterrâneo que tem o mesmo nome que a torre de Estratão, que está em
Cesaréia, à margem do oceano. Fora essa semelhança de nomes que o havia
enganado.
15. Aristóbulo, apenas cometeu tão cruel ação, logo se arrependeu e a
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dor que sentiu aumentou ainda mais a sua doença. O horror de seu crime, que
continuamente pairava-lhe ante os olhos, perturbou sua alma; ele caiu em tão
profunda tristeza que os efeitos de sua melancolia, passando da alma ao corpo,
irritando seu gênio, comoveram-lhe tanto as entranhas, que ele chegou a
vomitar sangue. Um dos seus mordomos levou esse sangue e Deus permitiu
que ele o atirasse, sem querer, no mesmo lugar onde se viam, ainda, manchas
do sangue de Antígono. Os que o viram, julgando que ele o havia feito de
propósito e que era como um sacrifício que ele oferecia aos manes desse
príncipe, soltaram gritos tão agudos que o rei os ouvia. Perguntou-lhe então
qual a causa. E como ninguém ousava dizer-lhe a verdade, o que aguçou ainda
mais a sua curiosidade, ele os obrigou, com ameaças, a confessá-lo. Então,
banhado em lágrimas, consumido pela violência de seus suspiros, o que lhe
restava ainda de força, disse com voz quase imperceptível: "Poderia eu esperar
que Deus, que tem os olhos abertos sobre tudo o que se passa no mundo, não
tivesse ciência de meus crimes? Sua justiça poderia castigar-me mais pronta-
mente do que o faz, por ter sido o assassino de meu próprio irmão? Até quando
este miserável corpo reterá minha alma, para impedir que seja sacrificada à
vingança de sua morte e da de minha mãe? Por que oferecer-lhe assim meu
sangue gota a gota, em vez de oferecê-lo todo de uma vez? Por que ficar por
mais tempo exposto ao sabor da fortuna que zomba por me ver, com as
estranhas despedaçadas e oprimido pela dor, sentir os efeitos de sua
inconstância?" Dizendo estas palavras, morreu, depois de ter reinado apenas
um ano.
16. A rainha, sua viúva, mandou depois saírem os irmão da prisão e
constituiu rei a Alexandre, que era o mais velho e parecia de caráter moderado.
Mas apenas foi elevado ao supremo poder, mandou matar o irmão, que o queria
disputar, e conservou o outro, porque se contentou de viver em condição de um
particular.
17. Ptolomeu Latur, rei do Egito, tendo tomado a cidade de Azoche,
Alexandre ofereceu-lhe combate, matando-lhe muitos soldados; mas a vitória,
no entanto, pertenceu a Ptolomeu. Cleópatra, mãe deste príncipe, obrigou-o a
se retirar para o Egito, e então Alexandre tornou-se senhor de Cadara e de
Amate, que é a maior de todas as praças além do Jordão, onde ele se
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enriqueceu com o que Teodoro, filho de Zenão, tinha de mais precioso. Mas não
o possuiu por muito tempo. Teodoro veio contra ele e reconquistou não somente
o que ele lhe tinha arrebatado, mas saqueou toda a bagagem de Alexandre,
matando-lhe ainda uns dois mil homens. Este rei dos judeus reuniu novas
forças, levou a guerra às cidades marítimas, tomou Rafia, Gaza e Antedom, que
o rei Herodes depois chamou de Agripíada.
18.
 Como acontece muitas vezes, que as grandes assembléias e os
grandes banquetes causam perturbações, surgiu, num dia de festa, tal agitação
contra este príncipe, que ele julgou não se poder salvar da rebelião de seus
súditos, senão assalariando tropas estrangeiras; como não confiava nos sírios,
porque não vão de acordo com os judeus, serviu-se dos pisídios e dos cilícios.
Mandou depois matar mais de oito mil daqueles sediciosos e marchou contra
Obodas, rei dos árabes, venceu os galátidas e os moabitas, impôs-lhes um
tributo e voltou para sitiar Amate. Mas Teodoro, espantado com todos estes
acontecimentos, abandonou a praça e Alexandre a destruiu completamente.
19.
 Marchou depois contra Obodas: este príncipe que havia colocado
uma parte de suas tropas de emboscada, na província de Gaulaim, impeliu-o
para um vale muito estreito e profundo e destruiu todo seu exército, que foi
esmagado pela multidão de seus camelos. A custo Alexandre pôde salvar-se em
Jerusalém, onde sua má sorte, aumentando ainda o ódio que já lhe tinham,
encontrou todos os habitantes mais dispostos do que nunca a se revoltar; essa
animosidade foi tão além, que em vários combates em que ele se viu envolvido,
contra seus próprios súditos, e onde sempre ele levou a melhor, matou mais de
cinqüenta mil, durante seis anos.
20. Estas vitórias que enfraqueciam o seu estado, foram-lhe mui funestas
e ele com isso não se podia regozijar; e assim, em vez de continuar procurando
reunir seus súditos e levá-los à obediência, pelo caminho das armas, resolveu
tentar o da bondade. Mas essa mudança de proceder só lhes aumentou o ódio;
eles o atribuíram à sua inconstância; e um dia, quando ele lhes perguntou o
que poderia fazer para contentá-los, responderam-lhe que devia fazer-se matar
e que eles mui dificilmente perdoariam todo o mal que lhes fizera. Chamaram
em seu auxílio o rei Demétrio Eucero, o qual veio com um exército; feito mais
forte com esse reforço, marchou até Siquém, com três mil cavaleiros e quarenta
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mil soldados de infantaria. Alexandre, que só tinha mil cavaleiros, oito mil
estrangeiros e mais ou menos dez mil judeus, que ainda lhe eram fiéis,
marchou contra ele. Antes de travar combate, estes dois reis fizeram cada qual
o possível. Demétrio, para atrair ao seu partido os estrangeiros que Alexandre
tinha, e Alexandre, para trazer ao seu, os judeus que se haviam reunido a
Demétrio. Mas nem um, nem outro, conseguiu o que queria e foi então
necessário travar-se a batalha. Demétrio ganhou-a, e jamais se combateu tão
corajosamente
 como
 combateram
 os
 estrangeiros
 que
 Alexandre
 tinha
assalariado. O efeito dessa vitória foi contrário ao que os dois príncipes
deveriam imaginar. Pois Alexandre, tendo fugido para as montanhas, seis mil
judeus que tinham combatido por Demétrio, comovidos pela desgraça desse rei,
foram procurá-lo. Mudança tão repentina assustou a Demétrio e, com o medo
que sentiu de que o restante da nação também viesse a passar para o lado de
Alexandre, que ele via já tão forte quanto ele, depois desse grande auxílio,
achou melhor retirar-se. Os outros judeus continuaram a fazer guerra a
Alexandre, a qual durou até quando, depois de ter matado um grande número
deles, e reduzido os que restavam de todos os combates, a ter como único
refúgio a cidade de Bemezel, tomou essa praça e os levou a todos, prisioneiros,
a Jerusalém. Viu-se então até que ponto de crueldade, ou melhor, de
impiedade, a cólera pode levar os homens. Durante um banquete que ele dava
às suas concubinas, mandou crucificar diante de seus próprios olhos,
oitocentos daqueles prisioneiros, depois de ter feito degolar na presença deles,
suas mulheres e filhos. Espetáculo tão horrível imprimiu tal terror no espírito
dos daquele partido, que oito mil partiram na noite seguinte, fugindo para fora
do reino, e voltaram à Judéia somente depois da morte desse príncipe, e foi
somente com ações tão trágicas que ele restabeleceu por fim e com muita
dificuldade a paz e a tranqüilidade em seu Estado.
CAPÍTULO 4
DIVERSAS GUERRAS FEITAS POR ALEXANDRE, REI DOS JUDEUS. SUA MORTE.
DEIXA DOIS FILHOS, HIRCANO E ARISTÓBULO, E CONSTITUI REGENTE A RAINHA
ALEXANDRA, SUA MULHER. ELA DÁ EXCESSIVA AUTORIDADE AOS FARISEUS. SUA
MORTE.
 ARISTÓBULO USURPA O REINO DE HIRCANO, SEU IRMÃO MAIS VELHO. *
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_____________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Terceiro, capítulos 23
e 24, e no Livro Décimo Quarto, capítulo 1, Antigüidades Judaicas, Parte I.
21.
 Esta paz de que Alexandre gozava foi perturbada pelo rei Antíoco,
cognominado Dionísio, irmão de Demétrio e o último da família de Seleuco.
Como este príncipe tinha vencido os árabes e Alexandre teve receio de que ele
entrasse em seu reino, mandou fazer, desde as montanhas de Antipatro até às
margens de Jope, uma grande fortificação com um muro muito alto na frente,
guarnecido com torres de madeira. Nada, porém, foi capaz de reter Antíoco. Ele
queimou as torres, encheu as trincheiras e passou com seu exército. Transferiu
para outro tempo a vingança sobre Alexandre e marchou contra os árabes.
Aretas, seu rei, retirou-se para lugares fortificados e quando Antíoco pensava
nada mais ter de temer, ele veio atacá-lo com dez mil cavaleiros. Foi muito
encarniçado o combate; e embora nessa luta Antíoco tivesse perdido muita
gente, sustentou-a enquanto lhe restanteu um pouco de vida, fazendo tudo o
que compete a um grande comandante. Mas sua morte fez os seus perderem a
coragem e eles acabaram por fugir. Os árabes fizeram então uma grande
mortandade; o restante salvou-se fugindo para a aldeia de Cana, onde quase
todos morreram de fome.
22.
 O ódio que os de Damasco tinham por Ptolomeu, filho de Meneu,
levou-os a fazer aliança com Aretas, ao qual reconheceram como rei da baixa
Síria. Ele entrou na Judéia, venceu Alexandre e retirou-se em seguida, após um
tratado feito entre eles.
23. Este rei dos judeus, depois de ter tomado Pella, atacou Gerasa, para
se apoderar dos tesouros de Teodoro. Ele sitiou a praça com uma tríplice ordem
de defesa e assim conseguiu apoderar-se dela. Tomou depois Gaulam, Selêucia
e o vale de Antíoco, o castelo-fortaleza de Gamala, onde fez prisioneiro a
Demétrio, que lhe era o comandante e que tinha cometido tantos crimes. Depois
de ter empregado três anos nestas diversas expedições, ele voltou triunfante a
Jerusalém, que depois de tantos e felizes resultados, recebeu-o com alegria.
O fim da guerra foi o início da enfermidade desse príncipe. Ele foi tomado
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de forte febre intermitente e, imaginando que o trabalho lhe poderia devolver a
saúde, entregou-se a novas expedições. Mas seu corpo estava muito fraco para
suportar tantas fadigas e ele morreu nesses trabalhos excessivos, depois de ter
reinado trinta e sete anos.
24.
 Como ele sabia que a rainha Alexandra, sua mulher, era de um
caráter diferente do seu e jamais aprovara seu proceder, pois o julgava
demasiado violento, ele a constituiu regente, na esperança de que os judeus lhe
haveriam de obedecer de boa vontade; e não se enganou. Pois a reputação de
piedade dessa princesa fez com que todos se submetessem, sem dificuldade, a
uma mulher tão instruída nos costumes do reino e que sempre tinha
demonstrado tolerar, com grave desgosto, que se violassem nossas santas leis.
Ela tinha dois filhos, de Alexandre; fez sumo sacerdote ao mais velho, de nome
Hircano, quer por causa da idade, quer porque sendo de caráter manso, não
tinha motivo de temer que ele suscitasse alguma revolta. Ela quis ainda que o
mais jovem, de nome Aristóbulo, vivesse como um cidadão privado, porque era
muito ativo e empreendedor.
25. Essa princesa tinha grande espírito de piedade e os fariseus tinham
também a fama de ser muito piedosos e muito mais instruídos que os outros,
em coisas de religião; ela teve tanta confiança neles, deu-lhes tanta autoridade,
que se podia dizer que os havia associado ao governo. Eles se insinuaram de tal
modo em seu espírito, pouco a pouco, e abusaram tanto de sua bondade, que
atraíram sobre si mesmos o poder principal. Perseguiram e favoreciam a quem
muito bem entendiam; davam e tiravam a liberdade; gozavam de todas as
vantagens da realeza e só deixavam à rainha as despesas e os cuidados aos
quais essa condição obriga. Essa virtuosa princesa era, no entanto, capaz de
grandes empreendimentos e trabalhava com tanta solicitude em aumentar as
forças de seu Estado, que preparou diversos exércitos, tomou grande número
de estrangeiros ao seu serviço e assim tornou-se não somente muito poderosa
em seu reino, mas também mui temível aos príncipes e povos vizinhos. Era
uma rainha que, ao mesmo tempo, dominava com poder absoluto e obedecia
aos fariseus. Estes mandaram matar um homem ilustre de nome Diógenes, que
tinha sido muito estimado do falecido rei, porque o acusavam de ter participado
da crucificação daqueles oitocentos homens, de que falamos. Eles insistiam
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com a princesa que não perdoasse a todos os demais que tinham tomado parte
naquela ação; sua mui grande consideração para com eles, impedia-lhe de
recusá-lo e eles assim mandavam matar a quantos bem entendiam. Tantas
pessoas da nobreza viam-se assim em tão grande perigo que recorreram a
Aristóbulo e ele persuadiu a rainha, sua mãe, que se contentasse de mandar
para fora de Jerusalém os que ela julgava culpados e deixasse os outros em
paz. Assim, aqueles cidadãos retiraram-se para diversos lugares do reino.
Essa princesa, tomando como pretexto que o rei Ptolomeu perturbava
continuamente a cidade de Damasco, para lá mandou seu exército e apoderou-
se do lugar, sem que nessa ocasião se passasse algo de memorável; Tigrano, rei
da Armênia, sitiou a rainha Cleópatra, em PPtolemaida, e ela mandou presentes
a esse príncipe e o levou a fazer propostas de acordo. Mas ante a notícia de que
Lúcullo tinha entrado com um exército romano em seu reino, ele se retirou.
26.
 Pouco tempo depois, Alexandra caiu gravemente enferma e
Aristobulo, o mais jovem dos seus filhos, tomou essa oportunidade para pôr em
prática seus grandes projetos. Reuniu todos os servidores e os homens
dispostos a segui-lo pela semelhança de caráter ardente e inquieto como o seu,
apoderou-se de todas as fortalezas, empregou o dinheiro que encontrou ali,
para reunir muitas outras tropas e revestiu-se das insígnias da dignidade real.
Hircano queixou-se à rainha, sua mãe, dessa usurpação. Ela, para contentá-lo,
mandou pôr a mulher e os filhos de Aristobulo na fortaleza Setentrião, outrora
chamada Baris e que foi depois chamada Antônia, por causa de Antônio, do
mesmo modo que Sebaste e Agripíada assim foram denominadas por causa de
Augusto e Agripa.
27. Alexandra morreu daquela enfermidade, depois de ter reinado nove
anos, sem ter tido tempo de libertar Hircano, que ela tinha declarado rei, da
opressão de Aristobulo, que o sobrepujava de muito em força e ousadia. Tudo o
que ela pôde fazer foi deixar-lhe seus bens. Os dois irmãos travaram batalha
para decidir, pelas armas, aquela grave divergência. A maior parte das tropas
de Hircano deixou-o para passar para o lado de Aristobulo; ele fugiu com o
restante para a fortaleza Antônia, onde a mulher e os filhos de Aristobulo se
encontravam e assim o salvaram de uma ruína completa. Tendo nas mãos
reféns tão preciosos, ele confabulou com seu irmão, sem esperar chegar ao
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último extremo. As condições do acordo foram: que o reino ficaria com
Aristobulo e Hircano contentar-se-ia de gozar das honras que pode pretender
um irmão do rei. Esse acordo se fez no Templo, em presença de todo o povo. Os
dois irmãos abraçaram-se com demonstrações de afeto. Aristobulo estabeleceu-
se no palácio real e deixou o seu a Hircano.
CAPÍTULO 5
ANTÍPATRO LEVA ARETAS, REI DOS ÁRABES, A AJUDAR A HIRCANO, PARA RESTAURÁ-LO
EM SEU REINO.
 A RETAS DERROTA ARISTOBULO NUM COMBATE E
O SITIA EM
 JERUSALÉM. ESCAURO, GENERAL DE UM EXÉRCITO ROMANO,
CONQUISTADO POR
 ARISTOBULO, OBRIGA-O A LEVANTAR O CERCO E
ARISTOBULO OBTÉM , EM SEGUIDA, UMA GRANDE VITÓRIA SOBRE OS ÁRABES.
HIRCANO E ARISTÓBULO RECORREM A POMPEU. ARISTÓBULO TRATA COM
ELE , MAS, NÃO PODENDO EXECUTAR O QUE TINHA PROMETIDO,
 POMPEU
CONSERVA-O PRISIONEIRO, SITIA E TOMA
 JERUSALÉM. ALEXANDRE, QUE ERA
O MAIS VELHO DE SEUS FILHOS, SALVA-SE A CAMINHO.
28.
 O poder de Aristóbulo, que se encontrou por uma felicidade
inesperada, de posse do trono, encheu de admiração os que não o estimavam;
mais particularmente, Antípatro, porque desde muito tempo o odiava. Ele era
idumeu e o mais poderoso de sua nação, quer pela sua descendência quer pelas
suas riquezas e por seu próprio mérito. Assim, ele aconselhou Hircano a fugir
para junto de Aretas, rei dos árabes, para reconquistar o reino por seu
intermédio; exortou ao mesmo tempo Aretas, que não recusasse a um príncipe,
injustamente oprimido, o auxílio que lhe seria tão glorioso dar-lho; e para levá-
lo mais facilmente ao que ele desejava, disse tudo o que podia de bem sobre
Hircano, e tudo o que podia de mal, acerca de Aristóbulo. Tendo disposto
Hircano a fugir e Aretas a recebê-lo, fê-lo sair à noite, de Jerusalém, e o levou
rapidamente à Arábia, à cidade de Petra, onde o entregou a esse príncipe;
obteve por sua insistência e por seus presentes que o ajudasse a se restabelecer
em seu reino. O rei dos árabes entrou depois na Judéia com um exército de
cinqüenta mil homens e como Aristóbulo não estava bem preparado para lhe
resistir, foi vencido no primeiro combate e obrigado a fugir para Jerusalém.
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Aretas lá o foi sitiar e o teria aprisionado, se os romanos não o tivessem livrado
daquele perigo, pelo fato que passo a narrar: Quando Pompeu, o Grande, fazia a
guerra na Armênia, ele mandou Escauro à Síria, com um exército. Ao chegar a
Damasco, soube que Metello e Lóllio já a tinham aprisionado e se haviam
retirado. Tendo sabido do que se passava na Judéia, para lá se dirigiu, na
esperança de aproveitar também. Quando estava para entrar, os dois irmãos
mandaram-lhe, cada um, embaixadores para pedir-lhe o seu auxílio e
quatrocentos talentos, que Aristóbulo lhe deu, e levaram-no à justiça da causa
de Hircano. Escauro, apenas os recebeu, ordenou-lhe e aos árabes em nome de
Pompeu e dos romanos, que levantassem o cerco, ameaçando-os, se não o
fizessem, a lhes declarar guerra. O temor de ter de enfrentar inimigos tão
temíveis, obrigou Aretas a se retirar e Escauro regressou a Damasco. Aristóbulo
não se contentou de se ver em segurança, mas reuniu muitas tropas, perseguiu
Aretas e Hircano, alcançou-os, atacou-os num lugar denominado Papirom,
matando cerca de sete mil deles, dentre os quais Céfalo, irmão de Antípatro.
29. Hircano e Antípatro, não podendo mais esperar socorro algum dos
árabes, julgaram dever recorrer à mesma potência dos romanos, que os havia
privado do seu auxílio. Dirigiram-se para isso a Pompeu, logo que ele chegou a
Damasco e depois de lhe ter feito grandes presentes e apresentado, para animá-
lo contra Aristobulo, as mesmas razões de que se tinham servido para
persuadir a Aretas, rogaram-no que o restabelecesse num reino que lhe
pertencia por direito de nascimento, como o mais velho e do qual sua virtude o
tornava digno. Aristobulo, que esperava, por ter conquistado Escauro com
presentes, não deixou de ir logo falar com Pompeu, levando consigo uma
equipagem real. Mas depois de lá ter passado algum tempo, refletiu e não se
pôde decidir a prestar-lhe homenagens, que lhe pareciam indignas de um
soberano; e assim, regressou a Dióspolis. Pompeu, ofendido com essa retirada,
solicitado por Hircano e pelos de seu partido, marchou contra Aristobulo, com
legiões e um grande número de tropas auxiliares da Síria. Depois de ter
passado por Pella e Dióspolis, chegou a Core, que está na fronteira da Judéia;
no meio da região, ele soube que Aristobulo se tinha refugiado em Alexandriom,
num castelo muito forte, sitiado sobre uma alta montanha, e rogou-lhe que lhe
viesse falar. Uma maneira de agir tão imperiosa pareceu intolerável a
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Aristobulo, e ele resolveu tudo arriscar antes que se lhe submeter; mas o terror
de todos os seus e os rogos dos amigos que lhe pediam considerar a
impossibilidade de resistir a tão grande poder, como o dos romanos, obrigaram-
no, contra sua vontade, a ir falar com Pompeu. Ele lhe disse das razões que o
deviam manter na posse do reino e voltou em seguida ao seu castelo. De lá saiu
uma segunda vez, a instâncias de Hircano; depois de ter com ele altercado
sobre o seu direito, regressou ainda, sem que Pompeu lho tivesse impedido. Seu
espírito hesitava entre o temor e a esperança, sem saber a que se resolver; ele
saiu então outras vezes de seu palácio para ir procurar Pompeu, com a
deliberação de fazer tudo o que ele desejasse; mas, sempre que estava na
metade do caminho, o temor de fazer algo indigno de um rei, fazia-o voltar
atrás. Pompeu, tendo sabido que ele tinha proibido aos que comandava, em
suas praças, obedecer a ordem alguma, se não fosse escrita por ele mesmo,
ordenou-lhe que escrevesse a todos e ele não pôde deixar de o fazer; esta
violência impressionou-o tão sensivelmente, que ele se retirou para Jerusalém,
com a resolução de se preparar para a guerra. Pompeu, para não lhe dar
ocasião a isso, seguiu-o logo depois e apressou tanto a marcha, que recebeu a
notícia da morte de Mitrídates, quando estava perto de Jerico. Este país, o mais
fértil da Judéia, é muito rico de palmeiras e de bálsamo, que é o mais precioso
de todos os perfumes e se destila gota a gota das plantas que o produzem,
depois de tê-las ferido, com pedras bem afiadas. Pompeu lá passou apenas uma
noite, e partiu ao alvorecer, a fim de marchar para Jerusalém. Tão grande
solicitude espantou Aristóbulo. Ele foi procurá-lo, recorreu aos rogos,
prometeu-lhe uma grande soma e disse-lhe que só querendo recorrer à sua
proteção, ele entregava-lhe Jerusalém e sua pessoa. Assim acalmou a cólera de
Pompeu, mas não pôde fazer o que tinha prometido, pois Gabínio, tendo ido
para receber o dinheiro, os que comandavam a praça, em nome desse príncipe,
não Iho quiseram dar, nem lhe abriram as portas. Pompeu ficou tão irritado,
que reteve Aristóbulo prisioneiro e avançou para a cidade. Depois de tê-la
observado, para ver de que lado a poderia atacar, achou que os muros eram tão
fortes que seria muito difícil derribá-los; mas o vale, que lhe estava aos pés, era
de uma profundidade espantosa e o Templo, que estava perto, estava tão
fortificado que, quando mesmo a cidade fosse tomada, ele poderia servir ao
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refúgio
 aos
 inimigos.
 Enquanto
 deliberava,
 para
 executar
 tão
 grande
empreendimento, os judeus dividiram-se em Jerusalém. Os que eram do
partido de Aristóbulo diziam que nada era mais justo do que a guerra, para a
liberação de seu rei. Os que favoreciam a Hircano e temiam o poder dos
romanos e sustentavam, ao contrário, que era necessário abrirem-se as portas
a Pompeu. Estes eram os mais fortes, e os partidários de Aristóbulo retiraram-
se para o Templo, cortaram a ponte que o separava da cidade, a fim de poderem
resistir até o fim. Os outros receberam os romanos e entregaram-lhes o palácio
real. Pompeu para lá mandou imediatamente a Pisão, um dos chefes, com mui-
tos soldados, e como já não se tinha mais nenhuma esperança de acordo, ele só
pensou em preparar todas as coisas necessárias para sitiar e forçar o Templo, e
seus amigos o ajudaram com todas as suas posses e com muito afeto.
30. Este grande general atacou a praça do lado do Setentrião e
determinou, para esse fim, encher o vale e as fossas. O trabalho foi ingente,
quer pela grande profundidade, que pela resistência dos judeus e pela
vantagem que eles tinham de combater de um lugar elevado, de que os romanos
jamais se teriam apoderado se Pompeu, que sabia que os judeus nada faziam
no dia de sábado, a não ser o que era necessário para se sustentar e defender a
vida, não tivesse ordenado aos seus soldados que cessassem naquele dia todos
os atos de hostilidades e se contentassem em adiantar a obra. Assim se fez; o
vale foi cheio e Pompeu fez erguerem-se sobre ele altíssimas torres, que não
eram menos fortes e espaçosas do que belas; ao mesmo tempo em que ele batia
a praça com máquinas, que tinha mandado vir de Tiro, os soldados que
guarneciam aquelas torres repeliam a golpes de dardos os que defendiam as
muralhas. O incrível valor que os judeus demonstraram durante todo esse
assédio e que custou tantas dificuldades aos romanos, causou admiração a
Pompeu e ele constatou, com não menor espanto, que, mesmo no meio do
perigo e no maior calor do combate, eles observavam todas as cerimônias da
sua religião e ofereciam todos os dias sacrifícios a Deus, como se estivessem em
plena paz.
31. Por fim, depois de três meses de cerco, durante o qual os romanos
somente puderam destruir uma torre, Pompeu tomou o Templo de assalto.
Cornélio Fausto, filho de Sila, foi o primeiro que lá entrou, pela brecha; Fúrio e
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Fábio, seguidos de suas companhias, entraram logo depois dele. Os judeus,
então, rodeados e atacados de todos os lados, foram mortos pelos romanos,
quando fugiam para o Templo ou ofereciam resistência. Vários dos sacerdotes
que estavam ocupados nas funções do seu ministério, viram-nos, sem se
assustar, vir de espada na mão; preferindo o culto de Deus à própria vida,
deixaram-se matar, continuando a oferecer o incenso e as adorações que lhe
são devidas. Os judeus do partido de Pompeu não pouparam nem aos da
própria nação, que tinham seguido a Aristóbulo, e a maior parte dos que
escaparam ao seu furor, ou se precipitaram do alto dos rochedos ou puseram
fogo em tudo o que os rodeava, lançando-se nas chamas, o que era efeito do seu
desespero. Assim, doze mil judeus pereceram; ao contrário, muito poucos
romanos morreram; muitos, porém, ficaram feridos.
Em tão grande desolação e no meio de tantos males juntamente, nada
feriu os judeus com tão violenta dor, nem lhes pareceu tão intolerável, como ver
a parte mais interior do Templo, chamada Santo dos Santos, exposta aos olhos
dos estrangeiros e dos profanos, o que jamais havia acontecido. Pompeu lá
entrou com os seus, o que era permitido somente ao sumo sacerdote, e eles
viram o grande candelabro, as lâmpadas e a mesa de ouro, todos os vasos
também de ouro, de que se serviam para as incensações, uma grande
quantidade de perfumes mui preciosos e o dinheiro sagrado que perfazia o total
de dois mil talentos. Pompeu não tocou em nenhuma de todas essas coisas nem
no mais, consagrado ao serviço de Deus e no dia seguinte à tomada do Templo,
ordenou aos que lhe tinham a guarda, que o purificassem e oferecessem os
sacrifícios costumeiros.
32. Como Hircano o tinha ajudado muito nesse cerco e impedido que uma
grande multidão de judeus se declarasse contra os romanos, em favor de
Aristóbulo, ele o confirmou no cargo de sumo sacerdote, e pelo proceder digno
de um homem, constituído em tão grande autoridade, em vez de empregar a
força para se fazer temer, ele ganhou, pela mansidão e pela bondade, o coração
e o afeto do povo. O sogro de Aristóbulo, que era também seu tio, estava entre
os prisioneiros. Pompeu mandou cortar a cabeça aos que haviam sido os
principais autores da revolta, deu a Cornélio Fausto e aos outros que se haviam
distinguido nesta guerra as recompensas mais gloriosas que um valor
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extraordinário pode merecer; impôs um tributo a Jerusalém e a toda a
província, tirou as cidades dos judeus, que eles haviam tomado na baixa Síria,
colocou-as, como as cidades gregas, sob a jurisdição do governador, que as
presidia, pelos romanos, naquela província e estabeleceu assim a judéia, em
seus limites. Restabeleceu em favor de Demétrio, um de seus libertos, a cidade
de Gadara, de onde ele tinha sua origem e que os judeus tinham destruído.
Quanto às cidades de Hipom, Citópolis, Pella, Samaria, Marissa, Azoto, Jamnia
e Aretusa, que estão no meio das terras e que eles não haviam tido a
oportunidade de destruir, como também as de Gaza, Jope, Dora e a Torre de
Estratão, depois chamada Cesaréia, pelo rei Herodes, que a construiu
riquissimamente e que todas estão situadas à beira-mar, ele as tirou aos
judeus, para entregá-las aos seus habitantes e as anexou à Síria. Depois de ter
dado todas estas ordens e constituído Escauro, governador da judéia, da baixa
Síria e dos países que se estendem até o Egito e o Eufrates, voltou rapidamente
a Roma pela Cilícia, levando Aristóbulo prisioneiro, com suas duas filhas e os
dois filhos, Alexandre e Antígono, dos quais Alexandre, que era o mais velho,
escapou no caminho, e Antígono chegou a Roma com seu pai e suas irmãs.
CAPÍTULO 6
ALEXANDRE, FILHO DE ARISTÓBULO, ARMA UM EXÉRCITO NA JUDÉIA , MAS É
DERROTADO POR
 GABÍNIO, GENERAL DE UM EXÉRCITO ROMANO, QUE REDUZ A
JUDÉIA A REPÚBLICA. ARISTÓBULO ESCAPA DE ROMA, VEM A JUDÉIA E
REÚNE TROPAS.
 OS ROMANOS VENCEM -NO NUMA BATALHA E GABÍNIO O
DEVOLVE PRISIONEIRO A
 ROMA. GABÍNIO VAI FAZER GUERRA NO EGITO.
ALEXANDRE REÚNE GRANDES FORÇAS. GABÍNIO, ESTANDO DE VOLTA, DÁ-LHE
BATALHA E A GANHA.
 CRASSO SUCEDE A GABÍNIO NO GOVERNO DA SÍRIA,
SAQUEIA O
 TEMPLO E É DERROTADO PELOS PARTOS. C ÁSSIO VEM À J UDÉIA.
MULHER E FILHOS DE ANTÍPATRO. *
__________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 9,
10, 11 e 12, Antigüidades Judaicas, Parte I.
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33. Escauro avançou com seu exército para Petra, capital da Arábia; a
dificuldade dos caminhos retardou sua marcha e seus soldados devastavam
tudo o que estava nos arredores de Pella; mas Antípatro ajudou-o com víveres,
por ordem de Hircano e, como ele estava muito bem no espírito de Aretas, rei
dos árabes, Escauro mandou-o a ele para tentar livrá-lo daquela guerra, por
meio de uma soma de dinheiro e ele agiu com tanta habilidade, que o persuadiu
a dar trezentos talentos. Assim, Escauro retirou-se.
34. Alexandre, filho de Aristóbulo, depois de ter sido liberto da prisão,
oprimia Hircano e esperava logo poder atacá-lo em Jerusalém, porque os muros
derrubados por Pompeu não tinham ainda sido reconstruídos. Mas Gabínio,
que tinha substituído Escauro, e que era um grande general, marchou contra
ele. Alexandre, temendo tão poderoso inimigo, pensou unicamente em se pôr na
defensiva. Reuniu mais de dez mil soldados de infantaria, e mil e quinhentos
cavaleiros; cuidou em fortificar Alexandriom, Hircânia e Maquerom, que estão
próximas das montanhas da Arábia. Gabínio mandou na frente, contra ele,
Antônio, com uma parte do exército, fortalecido com tropas escolhidas, que
Antípatro comandava e um grande número de judeus, dos quais Malico e
Pitolau eram os chefes; ele seguiu-os e logo os alcançou, com o restante.
Alexandre, achando-se muito fraco para sustentar tão grande choque, retirou-
se; mas não pôde evitar um combate perto de Jerusalém. Lá perdeu seis mil
homens dos quais a metade morreu, os outros foram feitos prisioneiros; ele
salvou-se com o restante em Alexandriom. Gabínio perseguiu-o para reconduzir
ao seu partido vários judeus que o tinham abandonado, prometeu perdoar-lhes;
estes, porém, responderam-lhe ousadamente e ele os atacou; vários foram
mortos e os outros, obrigados a se retirar ao castelo; Antônio fez maravilhas
nessa ocasião, pois, por mais valor que tivesse mostrado em todas as outras,
naquele dia superou-se a si mesmo. Gabínio, tendo deixado tropas para
continuarem o cerco, foi visitar todas as praças da província, restabeleceu a
ordem nas que não tinham sido destruídas e reconstruiu as que o tinham sido.
Assim, Citópolis, Samaria, Antedom, Apolônia, Jamnia, Rafia, Marissa, Dora,
Gamala, Azoto e várias outras repovoaram-se, pois seus antigos habitantes
voltaram de todas as partes, com grande alegria. Depois de ter dado todas estas
ordens, ele voltou ao cerco de Alexandriom e o apertou ainda mais. Então
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Alexandre, não se vendo em condições de poder resistir por mais tempo,
mandou pedir que o perdoasse, com a condição de lhe entregar não somente
Alexandriom, mas também as fortalezas de Maquerom e Hircânia. Dessa forma,
Gabínio tornou-se senhor de todas elas, mandou destruí-las inteiramente, a
conselho da mãe de Alexandre, para que não pudessem para o futuro servir de
motivo a uma nova guerra, pois o temor que essa princesa tinha, por seu
marido e por seus outros filhos prisioneiros em Roma, a levava a tudo fazer
para ganhar o afeto de Gabínio.
35.
 Este sábio e experimentado general levou, em seguida, Hircano a
Jerusalém, deu-lhe o cuidado do Templo, entregou aos outros principais dos
judeus a direção dos negócios da república e dividiu a província em cinco
jurisdições, das quais a primeira colocou em Jerusalém, a segunda em Gadara,
a terceira em Amate, a quarta em Jerico, e a quinta em Séforis, que é cidade da
Galiléia. Dessa forma, os judeus, não se encontrando mais sujeitos ao governo
de um só, demonstraram receber com alegria o governo aristocrático.
36. Mas não se passou muito tempo sem que sobreviessem novas pertur-
bações. Aristóbulo escapou de Roma e reuniu um grande número de judeus,
uns porque gostavam das agitações e outros pelo antigo afeto que lhe devo-
tavam. Começou por querer restaurar Alexandriom e rodeá-la de muralhas.
Mas tendo sabido que Gabínio mandava contra ele Cisena, Antônio e Servílio
com tropas, retirou-se para Maquerom, despediu tudo o que tinha de homens
inúteis, reteve somente oito mil que estavam bem armados e fortaleceu-se com
mil outros que Pitolau, seu lugar-tenente general, lhe levou de Jerusalém. Os
romanos seguiram-no, alcançaram-no e travou-se a batalha. Nada se pode
acrescentar ao valor que Aristóbulo e os seus demonstraram naquele dia; mas,
por fim, os romanos obtiveram a vitória: cinco mil judeus foram mortos, dois
mil escaparam e salvaram-se numa colina; Aristóbulo, com o restante, abriu
passagem entre os inimigos e retirou-se a Maquerom. Chegou à tarde e o
encontrou destruído, mas esperava repará-lo por meio de uma trégua e reunir
novas tropas. Os romanos não lhe deram, porém, a oportunidade. Ele
sustentou durante dois dias seu ímpeto, com extraordinária coragem. No fim
desse tempo foi aprisionado e enviado a Gabínio, e de lá, a Roma, com
Antígono, seu filho, que com ele se salvara. O Senado conservou o pai
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prisioneiro e mandou o filho para a judéia, ante o que Gabínio escreveu que ele
tinha prometido à sua mãe, em consideração às praças que ela lhe havia
entregado.
37.
 Quando Gabinio se preparava para marchar contra os partos, foi
chamado a outro lugar, porque Ptolomeu, depois de ter deixado o Eufrates,
voltava para o Egito. Não houve auxílio que Hircano e Antípatro não lhe
prestassem nessa guerra. Ajudaram-no com homens, trigo, armas e dinheiro:
Antípatro persuadiu aos judeus de Pelusa, que eram como guardas da entrada
no Egito, que lhe dessem a passagem que ele pedia.
Gabinio, ao seu regresso do Egito, encontrou toda a Síria perturbada pela
nova revolta que Alexandre, filho de Aristóbulo, lá havia suscitado. Este
príncipe tinha reunido um grande número de judeus e matava todos os
romanos que caíam em suas mãos. Gabinio levou ao seu partido alguns judeus,
por intermédio de Antípatro, mas trinta mil continuaram fiéis a Alexandre e ele
não teve receio, com aquele número, de travar uma batalha. Esta ocorreu perto
do monte Itaburim. Os romanos ganharam-na, Alexandre perdeu dez mil
homens e salvou-se com o restante. Gabinio, depois dessa vitória, foi, a
conselho de Antípatro, a Jerusalém, para pôr as coisas em ordem. Marchou em
seguida contra os nabateenses e os derrotou em um grande combate. Despediu
secretamente dois senhores partos de nome Mitrídates e Orsane que se haviam
abrigado junto dele e fez correr a notícia de que haviam escapado para voltar ao
seu país.
38.
 Crasso sucedeu a Gabinio no governo da Síria e, para prover às
necessidades das despesas da guerra contra os partos, ele tomou, além dos
dois mil talentos nos quais Pompeu não quisera tocar, todo o ouro que
encontrou no Templo. Passou em seguida o Eufrates e foi derrotado com todo
seu exército, mas agora não é o momento de falarmos disso.
39. Cássio retirou-se para a Síria e deteve assim o progresso dos partos,
que se preparavam para lá entrar. De lá passou à Judéia, tomou Tariquéia e
levou escravos mais ou menos trinta mil judeus. Pitolau, que tinha seguido o
partido de Aristóbulo, era desse número; fê-lo morrer, a conselho de Antípatro.
A mulher desse Antípatro, de nome Cipro, era de uma das mais ilustres famílias
da Arábia. Tinha quatro filhos, Fazael, Herodes, que depois foi rei, José e
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Feroras, e uma filha de nome Salomé. Seu sábio proceder e liberalidade gran-
jearam-lhe a amizade de muitos príncipes e particularmente do rei dos árabes,
ao qual ele havia entregue seus filhos, para que os guardasse, enquanto fazia
guerra a Aristóbulo. Quanto a Cássio, depois de ter tratado com Aristóbulo,
regressou para o Eufrates, para impedir que os partos o passassem, como
diremos em outro lugar.
CAPÍTULO 7
CÉSAR, DEPOIS DE SE TER TORNADO SENHOR DE ROMA, PÕE ARISTÓBULO EM
LIBERDADE E O MANDA À
 SÍRIA. O S PARTIDÁRIOS DE P OMPEU O
ENVENENAM.
 POMPEU MANDA CORTAR A CABEÇA A ALEXANDRE, SEU FILHO.
DEPOIS DA MORTE DE POMPEU, ANTÍPATRO PRESTA GRANDES SERVIÇOS A
CÉSAR, QUE POR ISSO O RECOMPENSA COM GRANDES HONRAS. *
_________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 13,
14 e 15, Antigüidades Judaicas, Parte I.
40. Algum tempo depois, César tornou-se senhor de Roma; Pompeu e o
senado fugiram para além do mar Jônico e ele pôs Aristóbulo em liberdade,
mandou-o com duas legiões à Síria, persuadido de que bem depressa dela
apoderar-se-ia e de todos os lugares da Judéia que lhe estão próximos. Mas a
sorte frustrou a esperança de César e não pôde tolerar que Aristóbulo tivesse a
alegria de ser feliz em seus grandes desígnios. Os partidários de Pompeu
envenenaram-no e conservou-se seu corpo, com mel, até que Antônio, muito
tempo depois, o mandou à Judéia para pô-lo no sepulcro dos reis. Alexandre,
seu filho, não foi mais feliz do que ele. Cipião fez-lhe cortar a cabeça em
Antioquia, segundo a ordem por escrito que para isso recebeu de Pompeu,
transmitindo a sentença do tribunal que o havia condenado à morte, por causa
da sua revolta contra os romanos. Ptolomeu, príncipe da Cálcida, que está
situada no monte Líbano, mandou Filipiom, seu filho, a Ascalom, à viúva de
Aristóbulo, ordenando-lhe que lhe enviasse seu filho Antígono e suas filhas.
Filipiom enamorou-se de uma delas de nome Alexandra e a desposou. Mas
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algum tempo depois, Ptolomeu, seu pai, fê-lo morrer e despo-sou ele a mesma
princesa e teve ainda, mais que antes, necessidade de Antígono, seu irmão, e de
suas irmãs.
41. Depois da morte de Pompeu, Antípatro procurou as boas graças de
César e Mitrídates, de Pérgamo, que comandava um exército no Egito, para seu
serviço, tendo sido obrigado a parar em Ascalom, porque lhe haviam negado a
passagem por Pelusa, não somente levou os árabes a lhe dar auxílio, mas ele
mesmo uniu-se a eles, com mais ou menos três mil judeus, bem armados e foi a
causa de que ele obtivesse um grande adjutório, tanto das cidades como dos
mais influentes da Síria e particularmente do príncipe Jamblice, de Ptolomeu,
seu filho, e de um outro Ptolomeu que morava no monte Líbano. Mitrídates,
fortalecido com tal auxílio, marchou para Pelusa e a sitiou. Nada se pode
acrescentar à glória que Antipatro conquistou nessa ocasião, pois tendo feito
uma brecha do lado do seu ataque, atirou-se por primeiro ao assalto e entrou
na praça com os seus. Depois que esta cidade foi tomada, os judeus que
habitavam nessa província do Egito, que tem o nome de Onias, resolveram
opor-se a Mitrídates. Mas Antipatro persuadiu-os a lhe dar passagem e mesmo
a ajudá-los com víveres. Assim, nada lhes retardou a marcha e os de Mênfis, a
seu exemplo, passaram ao seu partido.
Quando Mitrídates e Antipatro chegaram ao Delta, deram batalha aos
inimigos, num lugar chamado Campo dos judeus. Mitrídates comandava a ala
direita e corria perigo de ser inteiramente destroçada; mas Antipatro, que já
tinha vencido os inimigos, veio em seu auxílio, pelo rio, e não somente o livrou
de tão grande perigo, mas derrotou os egípcios, que já se julgavam vitoriosos,
matou a vários, perseguiu os outros e saqueou seu acampamento, tendo
perdido nesse combate somente oitenta homens. Mitrídates perdeu oitocentos e
tendo assim, contra sua esperança, evitado sua destruição, não tirou, por
inveja a Antipatro, a honra que lhe era devida. Fez-lhe junto de César os elogios
que merecia uma ação tão gloriosa; esse grande imperador demonstrou tanta
cordialidade para com Antipatro e falou dele de maneira tão vantajosa, que
nada havia que ele não pudesse esperar de sua gratidão e ele aumentou ainda
seu desejo de se expor, com alegria, a todas as espécies de perigos, para seu
serviço. Assim, não se apresentava ocasião sem que ele não se distinguisse pela
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sua coragem e o grande número de ferimentos que recebeu foram gloriosos
sinais do seu valor. Depois que César liquidou os assuntos do Egito e voltou à
Síria, honrou-o com a distinção de cidadão romano com todos os privilégios
inerentes e acrescentou tantas outras provas de sua estima e de seu afeto que o
tornou digno de inveja e confirmou, por amor dele, a Hircano no cargo de sumo
sacerdote.
CAPÍTULO 8
ANTÍGONO, FILHO DE ARISTÓBULO, QUEIXA-SE DE HIRCANO E DE ANTIPATRO
A
 CÉSAR QUE, EM VEZ DE LHE DAR ATENÇÃO, CONCEDE O SUMO
SACERDÓCIO A
 HIRCANO E O GOVERNO DAJUDÉIA A ANTIPATRO, QUE FAZ
EM SEGUIDA DAR A
 FAZAEL, SEU FILHO MAIS VELHO, O GOVERNO DE
JERUSALÉM, E A HERODES, SEU SEGUNDO FILHO, O DA GALILÉIA. HERODES
FAZ EXECUTAR VÁRIOS LADRÕES.
 OBRIGAM-NO A COMPARECER AO TRIBUNAL
PARA SE JUSTIFICAR.
 ESTANDO PRESTES A SER CONDENADO, RETIRA-SE E VEM
SITIAR
 JERUSALÉM, MAS ANTÍPATRO E F AZAEL, IMPEDEM-NO.*
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 14,
15, 16 e 1 7, Antigüidades Judaicas, Parte I.
42. Nesse mesmo tempo, Antígono, filho de Aristóbulo, veio procurar
César e em vez de ser bem sucedido no seu intento de prejudicar a Antípatro,
causou-lhe benefícios; não se contentando de se queixar da morte de seu pai,
que, por ter abraçado seus interesses, tinha sido envenenado por partidários de
Pompeu, não pôde ocultar seu ódio por Antípatro, mostrando que a inveja que
lhe tinha não era menor que a dor. Acusou-o e a Hircano de terem sido causa
de que seu irmão e ele tivessem sido expulsos tão injustamente e disse que não
havia males que não tivessem causado a seu país, para satisfazer à paixão;
quanto ao socorro que tinham dado a César, isso se fizera apenas pelo temor e
para apagar de sua lembrança o afeto que eles tinham dedicado a Pompeu.
Antípatro, para demonstrar a sua afeição a César, por meio de obras,
respondeu mostrando-lhe as feridas que havia recebido ao seu serviço, em
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tantos combates; elas o justificavam muito melhor do que as palavras não o
poderiam fazer; que ele admirava a ousadia de Antígono, o qual sendo filho de
um inimigo declarado dos romanos, fugitivo de Roma e também inclinado à
revolta, como o era seu pai, ousava acusar perante o chefe dos romanos os que
sempre lhe haviam sido fiéis e que em vez de se sentir feliz, porque se lhe
conservava a vida, esperava conseguir favores e bens de que não tinha
necessidade e que ele os desejava, apenas para deles se servir, a fim de suscitar
rebeliões, contra aqueles de quem os tinha recebido.
César, depois de ter escutado a ambos, declarou que Hircano merecia
mais que qualquer outro o sumo sacerdócio e deu a Antípatro a escolha do
cargo que desejava. Mas, em vez de usar dessa graça, ele deixou a César mesmo
que o honrasse com a que melhor lhe aprouvesse. Assim, ele deu-lhe o governo
de toda a Judéia e concedeu-lhe o favor que lhe pedia, de poder reconstruir os
muros que Pompeu tinha derrubado. A isso ele acrescentou que o decreto seria
gravado sobre lâminas de cobre, que se colocariam no Capitólio, para serem
eternamente um testemunho glorioso de sua virtude e da justa recompensa que
dele recebia.
43. Depois que Antipatro acompanhou a César até as fronteiras da Síria,
voltou a Judéia; a primeira coisa que fez foi reconstruir os muros que Pompeu
tinha derrubado e, em seguida, passou por toda a província, para impedir, com
seus conselhos e ameaças, as sublevações e as revoltas, dizendo aos povos que,
obedecendo a Hircano, eles gozariam em profunda tranqüilidade de todos os
bens da paz. Mas se a esperança de obter maiores lucros nas perturbações os
levasse a se amotinar, eles encontrariam nele, em vez de um governador, um
senhor severo, em Hircano, em vez de um rei cheio de amor por seus súditos,
um rei sem piedade e em César e nos romanos em lugar de príncipes, inimigos
mortais e irreconciliáveis, porque eles jamais tolerariam que se desobedecesse
àqueles que eles tinham colocado para governá-los.
Antipatro, falando deste modo, falava de si mesmo e via a necessidade de
prover à salvação do seu Estado, porque conhecia a preguiça e a estupidez de
Hircano. Fez dar a Fazael, o mais velho de seus filhos, o governo de Jerusalém e
de toda a província, e a Herodes, que era o segundo, o da Galiléia, embora ele
fosse ainda muito jovem. Como este último era de caráter muito ambicioso e
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não tinha menos inteligência que coração, logo fez ver que nada havia que ele
não fosse capaz de empreender e executar. Tomou Ezequias, chefe de um bando
de ladrões, que saqueava toda a região, e o mandou matar, com vários de seus
companheiros. Os sírios ficaram tão contentes com isso, que apregoavam em
suas cidades e pelos campos que lhe eram devedores de sua tranqüilidade; essa
ação mostrou também seu mérito a Sexto César, governador da Síria, parente
do grande César. Uma estima tão geral impressionou de tal modo a Fazael, seu
irmão que, não lhe querendo ser inferior em virtude, fez todos os esforços que
uma nobre emulação incitava, para conquistar cada vez mais o coração do povo
de Jerusalém, e ele exercia seu cargo com tanta bondade e justiça, que
ninguém o podia acusar de abuso do poder.
44. Como a glória dos filhos aumentava ainda mais a do pai, toda a nossa
nação concebeu tal estima e amor por Antipatro, que não lhe prestava menos
honra do que se ele tivesse sido seu rei: esse sábio ministro, em vez de se deixar
deslumbrar pelo brilho de tão grande prosperidade, conservou sempre a mesma
afeição e a mesma fidelidade a Hircano. Mas os fatos que se seguiram
mostraram que uma grande felicidade jamais deixa de ser ofuscada pela inveja.
Hircano não pôde deixar de ver sem um ciúme secreto esta reputação do pai e
dos filhos, particularmente de Herodes, crescer dia a dia; vivendo ele em tal
estado, os mesquinhos invejosos, que odeiam a virtude e que contaminam com
veneno todas as suas palavras e, com estas, a corte dos príncipes, exacerbavam
ainda mais seu espírito, dizendo-lhe que colocando toda a autoridade nas mãos
de Antípatro e de seus filhos, só lhe restava o nome de rei, destituído de todo
poder; que era estranho que de tal modo fechasse os olhos, para não ver que
havia descido do trono para fazê-los reinar em seu lugar; que eles agiam
abertamente, não mais como súditos, mas como soberanos; que não havia
necessidade de melhor prova de que Herodes havia calcado aos pés todas as
leis, quando, sem qualquer formalidade de justiça, tinha feito morrer tantas
pessoas e que se não queria ele mesmo reconhecê-lo por rei, devia obrigá-lo a se
justificar perante ele de tão grande crime.
Hircano ficou tão perturbado com estas palavras que sua cólera rebentou,
por fim, contra Herodes. Ordenou-lhe que comparecesse ao julgamento e
Antípatro, seu pai, aconselhou-o a obedecer. Como ele confiava em sua
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inocência, garantiu com fortes guarnições a defesa da Caliléia e se pôs a
caminho com muita gente, para não ter receio de algum ataque dos inimigos;
não foi acompanhado por tanta gente que desse motivo de inveja a Hircano;
como Sexto César muito o estimava e temia por ele, quando se encontrasse no
meio dos inimigos, ordenou a Hircano que o absolvesse dos crimes de que o
acusavam; Hircano, que também o estimava, não teve dificuldade em fazê-lo.
Mas na persuasão que Herodes tinha, de que esse príncipe o havia feito contra
sua vontade, retirou-se a Damasco, para junto de Sexto, com a resolução de
não mais comparecer em juízo, se o citassem uma segunda vez. Seus inimigos,
para irritar de novo o espírito de Hircano, não deixaram de lhe dizer que ele lá
tinha ido com o fim de organizar algum grande movimento contra seu governo.
Ele acreditou facilmente e não sabia o que fazer, vendo que era menos poderoso
do que ele.
45. No entanto, Sexto César deu a Herodes o comando das tropas da
baixa Síria e da Samaria; e então ele tornou-se tão temível a. Hircano, quer por
suas próprias forças, quer pelo afeto que o povo lhe dedicava, que nada mais se
poderia acrescentar ao seu temor; ele imaginava a todo momento que Herodes
vinha com armas, contra ele e seu receio não foi vão. Herodes, ardendo no
desejo de se vingar por ter sido acusado e tratado como criminoso, reuniu um
exército, marchou para Jerusalém para despojá-lo do reino e o teria feito, se
Antípatro, seu pai, e Fazael, seu irmão, não tivessem vindo ter com ele e não o
tivessem convencido a se contentar por ter mostrado que se poderia ter
vingado, sem levar seu ressentimento até querer arruinar Hircano, ao qual
devia a sua fortuna. Disseram-lhe ainda que, se ele estava irritado porque o
tinham citado em juízo, não devia ser menos reconhecido, pois fora absolvido,
nem mais se ressentir com a ofensa que o havia feito correr perigo de vida, do
que pelo favor que lha havia conservado; que a prudência o obrigava a
considerar que os acontecimentos da guerra são duvidosos; que a justiça da
causa de Hircano podia mais em seu favor do que um exército inteiro e, por fim,
que ele não devia esperar vencer, quando combatesse contra seu rei e benfeitor,
o qual o havia educado, instruído, cumulado de favores e jamais tivera o menor
pensamento de lhe fazer mal, a não ser quando fora como obrigado pelos maus
conselhos dos invejosos. Herodes deixou-se persuadir por essas razões e julgou
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que lhe seria suficiente para chegar à realização dos seus grandes desejos, ter
mostrado a toda a sua nação, sua força e seu poder. 46. Nesse mesmo tempo,
surgiu em Apaméia, uma guerra civil entre os romanos, na qual Cecílio Basso,
para ser agradável a Pompeu, mandou matar à traição Sexto César e atraiu a si
as tropas que ele comandava. Os que seguiam o partido do grande César,
querendo vingar essa morte, atacaram-no com todas as suas forças e Antípatro,
para mostrar sua gratidão pelos favores que devia a Sexto e seu afeto por
aquele que imortalizou a glória do nome de César, mandou-lhe auxílio, sob o
comando de seus filhos. Essa guerra demorou-se muito e Marcos foi enviado da
Itália, para substituir a Sexto no cargo.
CAPÍTULO 9
CÉSAR É MORTO NO C APITÓLIO POR BRUTO E POR CÁSSIO. CÁSSIO VEM À SÍRIA E
HERODES SE PÕE EM BOAS RELAÇÕES COM ELE.MALICO MANDA ENVENENAR ANTÍPATRO,
QUE LHE HAVIA SALVADO A VIDA.
 HERODES VINGA-SE , MANDANDO MATAR MALICO, POR
OFICIAIS DAS TROPAS ROMANAS.
 *
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 18,
19 e 20, Antigüidades judaicas, Parte I.
47. Esta guerra entre os romanos foi seguida por outra ainda maior;
César fora morto no Capitólio por Cássio e por Bruto, depois de ter reinado três
anos e meio; todos os principais do império, levados por diversos sentimentos e
por interesses diversos, tomaram as armas. Cássio veio à Síria,
 fez
reconciliarem-se Marcos e Basso, tomou o comando das tropas que eles
comandavam, fez levantar o cerco de Apaméia e impôs às cidades tributos que
superavam às suas posses. Ordenou também aos judeus que fornecessem
setecentos talentos; Antípatro, temendo as ameaças, ordenou aos seus filhos e
a alguns de seus amigos, entre os quais estava Malico, que procurassem reunir
essa soma com toda a solicitude. Herodes foi o primeiro que o fez. Forneceu
cem talentos para a Galiléia e conquistou por esse meio o afeto de Cássio. Os
outros não foram tão diligentes, e Cássio ficou de tal modo encolerizado que
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depois de ter saqueado Gofna, Amonta e duas outras pequenas cidades,
avançou com a intenção de mandar matar Malico; mas Antípatro o salvou e
impediu a ruína das outras cidades, por meio de cem talentos que deu a
Cássio. Esse general do exército romano, tão considerado entre os do seu parti-
do, logo depois afastou-se, e Malico esqueceu o favor que devia a Antípatro;
antes o chamava de seu salvador, mas então, não teve receio de atentar contra
sua vida, a fim de não mais tê-lo como obstáculo aos seus projetos. Antípatro
desconfiou de alguma coisa e passou para lá do Jordão, a fim de reunir tropas e
pôr-se em condições de nada mais temer. Malico viu que só lhe restava um
caminho para executar o que havia premeditado; usou de fingimento, porque
Fazael era governador de Jerusalém e Herodes comandava os soldados; por
isso, fez-lhes muitas reverências, jurou que jamais tivera algum mau intento,
que eles o reconciliaram com seu pai e por esse meio fez a paz com Marcos,
governador da Síria, que tinha determinado fazê-lo morrer, porque ele era um
espírito agitador e faccioso.
48. O jovem César, depois cognominado Augusto, e Antônio, tendo vindo à
guerra com Bruto e Cássio, este último e Marcos com ele, reuniram um exército
na Síria e como tinham reconhecido a grande capacidade de Herodes, deram-
lhe o governo da província, com uma grande cavalaria e infantaria; Cássio che-
gou a prometer-lhe fazê-lo rei da Judéia, quando a guerra tivesse terminado.
Mas o mérito do filho que podia levar tão longe suas esperanças foi a causa da
morte do pai, porque ele se tornou tão temível a Malico, que, para se livrar do
perigo que temia, subornou um criado de Hircano, que o envenenou. Tal a
recompensa que recebeu da ingratidão de Malico este grande personagem tão
capaz de governar e da execução dos mais importantes assuntos e a quem
Hircano era devedor da reconquista e da conservação do seu reino. As suspeitas
que disso o povo teve animou-o contra aquele pérfido indivíduo; mas ele o
acalmou, confessando ousadamente não ter tido parte alguma naquele crime e,
no temor que tinha de que Herodes se vingasse, reuniu tropas para sua defesa
e segurança. Herodes queria de fato marchar com um exército para castigar
aquele traidor, mas Fazael aconselhou-o a dissimular para que não se
excitassem novas perturbações. Assim, os dois irmãos receberam Malico,
aceitaram suas desculpas e fizeram soberbos funerais ao seu pai.
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49. Herodes foi em seguida a Samaria, que achou perturbada por diversos
partidos e, depois de tê-la pacificado, voltou para passar a festa em Jerusalém,
acompanhado por alguns soldados, além daqueles que tinha mandado na fren-
te. Malico ficou tão cheio de medo, que persuadiu a Hircano que ordenasse que
ele não trouxesse estrangeiros, porque poderia perturbar a devoção do povo.
Herodes zombou dessa proibição e entrou de noite na cidade. Então Malico veio
procurá-lo, chorando a morte de Antípatro e, embora essas lágrimas fingidas só
aumentassem a cólera de Herodes, ele mostrou acreditar que eram verdadeiras;
mas escreveu a Cássio para pedir-lhe justiça pela morte de seu pai. Como
Cássio já odiava Malico, não somente lhe permitiu vingar-se, mas mandou
mesmo uma ordem secreta aos chefes de suas tropas para que ajudassem a
Herodes em tudo o que desejasse deles, para esse fim. Em seguida, tomou
Laodiceia. Os maiorais do país trouxeram-lhe presentes e coroas; Herodes não
duvidou de que Malico também estivesse lá e julgou que aquela ocasião seria
própria para executar seu desígnio. Quando Malico estava perto de Tiro,
começou a suspeitar; resolveu tirar seu filho que lá estava como refém e fugir
para a Judéia. Seu desespero levou-o mesmo a formar um projeto ainda mais
ousado, que era de se servir da ocasião da guerra de Cássio contra Antônio
para levar os judeus a sacudir o jugo dos romanos, destronar Hircano e reinar
em seu lugar. Mas Deus zombava de suas vãs esperanças, com que tanto se
iludia: Herodes desconfiou de que ele tinha algum plano extraordinário e para
preveni-lo, convidou-o a cear em sua casa com Hircano. Mandou em seguida
um dos seus, com o pretexto de fazer os preparativos, mas deu-lhe uma ordem
secreta de rogar aos oficiais das tropas romanas que fossem esperar Malico no
caminho, para lhe dar o castigo merecido. Como Cássio lhes havia ordenado
que fizessem tudo o que Herodes desejasse, não deixaram de ir ao encontro de
Malico. Viram-no perto da cidade, ao longo da praia, e o mataram. O espanto de
Hircano foi tão grande que ele desmaiou; quando voltou a si, perguntou a
Herodes quem havia mandado matar Malico. Um dos tribunos então respondeu
que tudo se fizera com ordem de Cássio, e ele disse: "Sou-lhe então devedor de
minha salvação e toda a Judéia não lhe é menos grata do que eu, pois ele nos
salvou fazendo morrer esse traidor que tinha tramado nossa ruína." Não se
sabe se Hircano tinha verdadeiramente esses sentimentos no coração ou se o
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medo o fazia assim falar, mas foi dessa maneira que Herodes se vingou de
Malico.
CAPÍTULO 10
FÉLIX, QUE COMANDAVA TROPAS ROMANAS, ATACA EM JERUSALÉM A FAZAEL, QUE O
REPELE.
 HERODES DERROTA ANTÍGONO, FILHO DE ARISTÓBULO
E CASA-SE COM
 MARIANA. CONQUISTA A AMIZADE DE ANTÔNIO, QUE
TRATA MUITO MAL UNS ENVIADOS DE
 JERUSALÉM, QUE LHE VINHAM FAZER
QUEIXAS DELE E DE
 F AZAEL, SEU IRMÃO. *
_________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 20,
21, 22 e 23, Antigüidades Judaicas, Parte I.
50. Depois que Cássio deixou a Síria, sucederam-se perturbações em
Jerusalém. Félix, que lá tinha sido deixado com tropas romanas, atacou Fazael
para se vingar por Herodes ter mandado matar Malico. Herodes estava, então,
em Damasco com Fábio, que era o governador, e quis marchar incontinenti
para ir socorrer seu irmão. Mas uma enfermidade o reteve, e Fazael não teve
necessidade dele, pois suas tropas lhe bastaram para repelir Félix, com
vantagem; fez, em seguida, graves censuras a Hircano, porque, depois de lhe ter
prestado tantos serviços, tinha favorecido Félix contra ele e tolerado que o
irmão de Malico se tivesse apoderado de diversas praças, dentre outras, de
Massada, que é um castelo muito forte. Dele, porém, não ficou senhor por
muito tempo, pois logo que Herodes sarou, retomou-as todas e o obrigou a lhe
pedir perdão. Retomou, também na Caliléia, três praças ocupadas por Mariom,
que, tendo sido constituído por Cássio, príncipe de Tiro, dominava em toda a
Síria. Mas Herodes tratou bem os tírios que lá estavam como guarnição e até
mesmo deu presentes a alguns deles; o que causou não menos afeto por ele e
por sua nação do que ódio por Mariom. Este marchou em seguida contra
Herodes; levava consigo a Antígono, filho de Aristóbulo, e Fábio, que Antígono
tinha conquistado com dinheiro, porque eles eram inimigos de Herodes e
Ptolomeu, sogro de Antígono, os ajudava com tudo o de que eles precisavam.
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Herodes veio-lhes ao encontro e o combate travou-se à entrada da Judéia. Ele
venceu; pôs Antígono em fuga e voltou a Jerusalém com tanta glória, que
aqueles mesmos que antes não o estimavam, procuravam a sua amizade e a
isso foram tanto mais levados quanto viram-no contrair aliança com seu rei e
estimado por ele. Tendo antes desposado uma mulher de sua nação de nome
Dóris, que era de família nobre, e da qual tivera Antípatro, ele devia então
desposar Mariana, filha de Alexandre, filho de Aristóbulo II e de Alexandra, filha
de Hircano. Mas quando depois da morte de Cássio, acontecida perto de
Felipes, Augusto voltou à Itália e Antônio veio à Ásia, onde os embaixadores de
diversas cidades foram encontrá-lo, na Bitínia, os maiorais de Jerusalém
também para lá se dirigiram e acusaram, perante ele, a Fazael e a Herodes de
terem usurpado, à força, toda a autoridade e de deixar a Hircano apenas o
nome de rei. Herodes lá estava também e conquistou a Antônio, de tal modo,
por uma grande soma de dinheiro, que ele não quis nem escutar seus inimigos.
Assim eles regressaram sem nada ter feito.
51. Quando Antônio estava em Dafne, que é um arrabalde de Antioquia, e
já tinha sido conquistado ao amor de Cleópatra, cem dos principais judeus
foram ainda procurá-lo para acusar uma segunda vez a Fazael e Herodes e
escolheram para isso os mais ilustres e os mais eloqüentes dentre eles. Messala
tomou a defesa dos dois irmãos e foi ajudado por Hircano. Antônio, depois de os
ter ouvido a ambos, perguntou a Hircano qual desses dois partidos era capaz de
governar melhor. Ele respondeu-lhe que era o dos dois irmãos e Antônio sentiu
muita alegria com isso, porque Antípatro, o pai deles, o tinha recebido muito
bem em sua casa, quando Gabínio fazia a guerra na Judéia. Assim ele os
constituiu tetrarcas dos judeus e confiou-lhes a direção dos negócios. Os
embaixadores, mandados contra eles, demonstraram grande descontentamento
e ele mandou prender quinze deles e pouco faltou que não os mandasse matar.
Despediu os outros, depois de os ter maltratado bastante. Os de Jerusalém
ficaram tão ofendidos com esse proceder que em vez de cem enviados,
mandaram mil procurá-lo em Tiro, onde se preparava para ir a Jerusalém.
Antônio, irritado com a murmuração e com as queixas, ordenou aos
magistrados da cidade que mandassem matar aos que pudessem agarrar e
mantivessem, em tudo o que dependia deles, os que ele havia constituído
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tetrarcas. Herodes e Hircano, tendo-o sabido, foram procurar os embaixadores,
que estavam passeando perto do porto, para exortá-los a não serem causa da
própria ruína e a não envolver seu país numa guerra, obstinando-se nesse
empreendimento. Mas em vez de se aproveitarem do aviso tão sensato, eles se
irritaram ainda mais, e Antônio ficou de tal modo encoleriza-do que mandou
seus soldados, os quais mataram a vários e feriram a outros. Hircano mandou
enterrar os mortos e curar os feridos, sem que nada fosse capaz de acalmar o
espírito dos outros, e sua obstinação foi causa de que Antônio fizesse morrer os
que retinha na prisão.
CAPÍTULO 11
ANTÍGONO, AJUDADO PELOS PARTOS, CERCA INUTILMENTE F AZAEL E HERODES
NO PALÁCIO DE
 JERUSALÉM. HIRCANO E FAZAEL DEIXAM-SE PERSUADIR, E
VÃO PROCURAR
 BARZAFARNES, GENERAL DO EXÉRCITO DOS PARTOS, QUE OS FAZ
PRISIONEIROS E MANDA SOLDADOS A
 JERUSALÉM PARA PRENDER HERODES.
ELE SE RETIRA DE NOITE. É ATACADO EM CAMINHO E SEMPRE LEVA
VANTAGEM.
 FAZAEL MATA-SE. INGRATIDÃO DO REI DOS ÁRABES PARA COM
HERODES, QUE VAI A ROMA, ONDE É DECLARADO REI DAJUDÉIA . *
____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 23,
24, 25 e 26, Antigüidades judaicas, Parte I.
52. Dois anos depois, quando Barzafarnes, um dos maiorais entre os
partos, governava a Síria, com Pacoro, filho do seu rei, Lisânias, que tinha
substituído a Ptolomeu, seu pai, filho de Mineu, prometeu-lhe mil talentos e
quinhentas mulheres para derrubar Hircano do trono e lá colocar Antígono.
Assim, puseram-se em campo. Pacoro marchou pela costa marítima, e
Barzafarnes, pelo centro. Os de Ptolemaida e de Sidom abriram as portas a
Pacoro, mas os de Tiro recusaram-se a recebê-lo. Mandou então a ele, na
Judéia, um corpo de cavalaria, comandado por seu grão-mordomo, de nome
Pacoro, como ele, para explorar o país e ordenou-lhe que agisse em união com
Antígono. A maior parte dos judeus que moravam no monte Carmelo foi logo
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procurar Antígono para fazer tudo o que lhes ordenasse, e ele mandou-lhes que
se apoderassem daquela parte do país que tem o nome de Druma. Ali se travou
um combate no qual eles tiveram vantagem, e depois de ter posto os inimigos
em fuga e se fortificado com um número maior de homens, marcharam logo
para Jerusalém, avançando até o palácio real. Fazael e Herodes * receberam-
nos com muita energia e tendo-os repelido, depois de um grande combate que
se travou perto do mercado, obrigou-os a se refugiar no Templo. Herodes
colocou em seguida uma guarda de sessenta homens nas casas vizinhas, mas o
povo, incitado pelo ódio contra os dois irmãos, incendiou as casas. Herodes não
tardou muito em se vingar; atacou os inimigos, matando um grande número
deles. Não se passava um só dia em que não se travassem escaramuças; a festa
a que chamam de Pentecostes aproximava-se, e toda a cidade e os arredores do
Templo estavam repletos de pessoas que vinham de todas as partes para
celebrar a festa; a maior parte dos homens estava armada. Fazael defendia as
muralhas, e Herodes, o palácio, com um pequeno número de soldados. Ele fez
uma arremetida tão forte do lado do norte, contra os que estavam nos
arredores, e tendo-os surpreendido, matou vários, pôs o restante em fuga e os
obrigou a se refugiar na cidade, no Templo ou atrás das defesas que estavam
próximas.
_______________________
* No grego lemos Hircano e Fazael, mas devemos aceitar que seja Herodes
e não Hircano, como se poderá ver no Livro Décimo Quarto, capítulo 24,
número 607, Antigüidades Judaicas, Parte I.
53. Antígono propôs, em seguida, receber Pacoro, o grão-mordomo, para
tratar da paz. Fazael deixou-se persuadir, e assim este parto entrou na cidade
com quinhentos cavaleiros, com o pretexto de acalmar a perturbação, mas, na
verdade, com o fim de ajudar Antígono. Ele aconselhou Fazael a ir procurar
Barzafarnés, para tratar das condições de um acordo, e ele decidiu-o, mas
contra a opinião de Herodes, que conhecia a perfídia desses bárbaros, que lhe
dizia que procurasse antes matar aquele traidor do que deixar-se apanhar na
armadilha que lhe preparava. Pacoro, para tirar todo motivo de suspeita a
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Fazael, seguiu-o com Hircano, e deixou com Herodes alguns dos cavaleiros a
que os partos chamam de livres. Quando chegaram à Galiléia, os governadores
das praças vieram armados à sua presença, e Barzafarnés, para ocultar a
traição, recebeu-os com muita cortesia e deu-lhes mesmo alguns presentes;
mas ele colocou soldados de emboscada no caminho por onde eles deviam
passar, depois de o terem deixado. Levaram-nos a uma casa vizinha do mar,
chamada Edipom, onde lhes disseram que Antígono tinha prometido aos partos
mil talentos e quinhentas mulheres, no número das quais as suas deviam estar
e que esses bárbaros já os teriam detido; eles só esperavam que Herodes o
tivesse sido também em Jerusalém, para que não se salvasse, se viesse a saber
de sua detenção. Bem depressa compreenderam que aquele aviso era mui
verdadeiro, pois viram chegar os guardas. Aconselharam, então, a Fazael que
fugisse; Ofélio, ao qual Saramalla, o mais rico de todos os sírios, tinha
manifestado esse intento, insistiu muito com Fazael, mas ele não quis
abandonar Hircano e tomou a deliberação de ir procurar Barzafarnés. Fez-lhe
graves censuras e disse-lhe que como era apenas o desejo de ter dinheiro que o
levara a traí-lo, ele lho poderia dar mais, para salvar a vida, do que Antígono
para obter o reino. O bárbaro protestou com juramento que nada havia de mais
falso, e foi, em seguida, procurar a Pacoro. Apenas ele partira, aqueles que
haviam recebido a ordem, prenderam Hircano e Fazael, que outra coisa não
puderam fazer para deplorar sua perfídia. No entanto, Pacoro, que Barzafarnés
tinha mandado para prender Herodes, fez tudo o que pôde para atraí-lo para
fora do palácio. Mas como ele desconfiava sempre dos partos, e não duvidava de
que as cartas que Fazael lhe tinha escrito para avisá-lo da traição tinham sido
interceptadas, não quis sair do palácio, embora Pacoro tudo tivesse feito para
persuadi-lo a ir encontrar-se com os que as traziam, pois ele já sabia que Fazael
estava preso, e a mãe de Mariana, que era filha de Hircano, e mulher de
inteligência, tinha-lhe rogado que não confiasse naqueles pérfidos, dos quais ele
não podia desconhecer os maus intentos.
54.
 Pacoro,
 vendo
 que
 agindo
 abertamente
 ser-lhe-ia
 impossível
surpreender um homem tão hábil como Herodes, pensava como deveria
proceder para enganá-lo com algum ardil, quando ele resolveu partir
secretamente, à noite, e levar consigo as pessoas mais queridas, os parentes,
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para se retirar à Iduméia. Os partos apenas souberam-no, puseram-se em sua
perseguição. Ele mandou na frente sua mãe e seus irmãos, Mariana, que ele
tinha desposado, e o jovem irmão de Mariana; deteve-se com o restante das
tropas e depois de ter matado num combate um bom número daqueles
bárbaros, retirou-se para os castelos de Massada. Os judeus causaram-lhe
mais dificuldades naquela ocasião, que os mesmos partos, pois o atacaram
quando ele estava longe de Jerusalém, apenas uns sessenta estádios. O
combate foi longo, mas Herodes obteve ainda a vitória. Muitos dos inimigos
morreram no campo de batalha e, para perpetuar a memória deste feito, ele
mandou construir naquele mesmo lugar um soberbo palácio e um castelo
fortificado a que deu o seu nome, chamando-o de Herodiom.
Suas tropas aumentaram naquele retiro e quando ele chegou a Tersa, na
Iduméia, José, seu irmão, veio encontrá-lo, e o aconselhou a mandar a outra
parte uma porção daqueles que o haviam seguido, mais de nove mil pessoas,
porque Massada não era bastante grande para alojá-los. Herodes aprovou essa
sugestão e mandou todos os inúteis para a Iduméia, com víveres; deixou seus
parentes em Massada, com as pessoas necessárias para servi-los e oitocentos
soldados providos de tudo o de que viessem a precisar, para sustentar um
cerco; tomou, em seguida, o caminho de Petra, capital da Arábia.
55. No entanto, os partos saqueavam, em Jerusalém, as casas dos que
haviam fugido e até o palácio real, sem tocar, no entanto, em mais de trezentos
talentos que pertenciam a Hircano; mas não encontraram tudo o que
esperavam, porque Herodes, que conhecia sua perfídia, tinha mandado à
Iduméia o que ele tinha de mais precioso e os que se haviam arriscado à sorte,
tinham feito a mesma coisa. Esses bárbaros não se contentaram de saquear a
cidade, devastaram também os campos, destruíram Marissa e não somente
fizeram Antígono rei, mas entregaram-lhe Hircano e Fazael, acorrentados. Ele
mandou cortar as orelhas ao primeiro, a fim de que, sobrevindo alguma
mudança, ele fosse tido como incapaz de exercer o sumo sacerdócio, porque
nossas leis proíbem conceder-se essa honra aos que têm algum defeito corporal.
Mas a coragem de Fazael libertou-o do seu poder; embora ele não tivesse nem
espada nem a liberdade de se servir de suas mãos, soube encontrar um meio de
se matar, batendo a cabeça contra uma pedra, fazendo ver, por esse ato tão
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digno da glória de sua vida, que ele era um verdadeiro irmão de Herodes e não
um covarde, como Hircano. Alguns dizem que Antígono mandou-lhe cirurgiões
que em vez de usarem remédios para curá-lo, envenenaram suas feridas; antes
de exalar o último suspiro, ao saber por uma pobre mulher que Herodes se
tinha salvo, disse que morria sem tristeza, pois deixava um irmão que o
vingaria de seus inimigos.
56.
 Embora os partos tivessem tido um grande desprazer, porque
Antígono não lhes pudera dar as quinhentas mulheres prometidas, não
deixaram de estabelecê-lo em Jerusalém e levaram Hircano como prisioneiro ao
seu país.
57. Herodes, que ainda não sabia da morte de seu irmão^e conhecia a
avareza dos partos, vendo que o único meio de o tirar de suas mãos era dar-
lhes dinheiro, dirigiu-se rapidamente para a Arábia, para obtê-lo do rei dos
árabes. Esperava que, se a lembrança da amizade que esse príncipe tivera por
Antípatro, seu pai, não era poderosa assaz para levá-lo a conceder-lhe a graça,
ele não recusaria, pelo menos concedê-la, a rogo dos tírios, dando-lhes seu
sobrinho como refém, filho de Fazael, que então tinha somente sete anos de
idade e que ele levava consigo; estava resolvido a empregar trezentos talentos
para esse fim, mas a morte de Fazael tirou-lhe os meios de demonstrar-lhe sua
extrema amizade, por um ato tão generoso e tão louvável. No entanto, os fatos
não corresponderam ao que ele devia esperar dos árabes. Malce, seu rei,
ordenou-lhe que saísse imediatamente de seus territórios, tomando por pretexto
que os partos o obrigavam a assim fazer; mas o verdadeiro motivo era que sua
ingratidão o levava a não querer cumprir aos filhos de Antipatro com as
obrigações que devia ao pai e os que podiam muito sobre seu espírito não
tinham vergonha de levá-lo a não lhes restituir o depósito que lhe fora confiado.
Herodes, vendo que aquilo que lhe deveria ter conquistado o afeto dos ára-
bes,
 ao
 contrário,
 os
 havia
 tornado
 inimigos,
 respondeu
 o
 que
 seu
ressentimento lhe sugeriu, marchou para o Egito e chegou à tarde a um
Templo, onde tinha deixado vários dos que o acompanhavam. No dia seguinte
dirigiu-se a Rinossura, onde soube da morte de Fazael. Depois de ter dado o
que não podia recusar aos primeiros sentimentos de tão violenta dor,
prosseguiu seu caminho.
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58. No entanto, este rei dos árabes arrependeu-se, mas muito tarde, por
tê-lo tratado tão indignamente, e mandou sem demora alguém dizer-lhe que
voltasse, mas não puderam alcançá-lo, tão rapidamente ele havia caminhado,
para se dirigir a Pelusa. Lá chegando, uns marinheiros que iam a Alexandria
recusaram-se recebê-lo em seu navio. Ele dirigiu-se aos magistrados; o respeito
por sua condição e pela sua pessoa fê-lo obter tudo o que desejava deles. A
rainha Cleópatra recebeu-o em Alexandria, com toda espécie de honras, na
esperança de que ele aceitaria o comando de um exército que ela preparava
para executar um grande plano, mas ele desculpou-se; não obstante o rigor do
inverno e as perturbações que agitavam a Itália, resolveu continuar sua viagem
para Roma. Assim, embarcou, tomou o rumo da Panfília e depois de ter sido
acossado por uma terrível tempestade, que os obrigou a lançar ao mar uma
grande quantidade de tudo o que havia no navio, chegou por fim a Rodes, que a
guerra contra Cássio tinha destruído quase completamente. Lá foi recebido por
seus amigos Sapinas e Ptolomeu e, embora ele tivesse falta de dinheiro, não
deixou de fazer equipar uma grande galera, na qual embarcou com os amigos.
Chegou a Bríndisi e de lá foi a Roma, onde Antônio foi o primeiro a quem se
dirigiu, por causa do afeto que tivera por Antipatro, seu pai. Contou-lhe todas
as suas desgraças, disse-lhe que fora obrigado a deixar as pessoas que lhe
eram mais caras num castelo onde estavam cercados, e o rigor do inverno e os
perigos do mar não puderam impedi-lo de embarcar, para vir pedir-lhe auxílio.
Antônio, comovido com esta mudança da sorte, pela estima em que tinha o
mérito de Herodes, pela lembrança da amizade que prometera a seu pai e,
principalmente, pelo ódio contra Antígono, que considerava um sedicioso,
inimigo dos romanos, resolveu constituir Herodes rei dos judeus, como outrora
o havia constituído tetrarca, e julgou que lhe era tanto mais fácil fazê-lo, quanto
não duvidava de que Augusto tê-lo-ia feito de mais boa vontade ainda do que
ele, porque o ouvia freqüentemente falar dos serviços prestados por Antipatro e
César no Egito, da maneira como o havia recebido em sua casa, do afeto que
lhe havia dedicado e da estima particular que fazia do mérito e da coragem de
Herodes. Assim, mandou reunir o Senado, em que Messala e ele falaram na
presença de Herodes, dos serviços prestados, com tanto afeto ao povo romano
por Antipatro, seu pai e por ele, e que Antígono, ao contrário, não somente fora
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sempre um inimigo declarado deles, mas tinha demonstrado tal desprezo pelos
romanos, que recebera a coroa das mãos dos partos. Esse discurso irritou o
Senado contra Antígono, e Antônio acrescentou que, na guerra que se travaria
contra os partos, seria sem dúvida muito vantajoso constituir Herodes rei da
judéia. Todos aceitaram essa proposta e, ao sair do Senado, Antônio e Augusto
puseram Herodes no meio deles; os cônsules e os outros magistrados
caminhavam diante deles, e foram oferecer sacrifícios, e puseram no Capitólio o
decreto do Senado. Antônio deu em seguida um banquete ao novo príncipe.
CAPÍTULO 12
ANTÍGONO CERCA A FORTALEZA DE MASSADA. H ERODES, EM SEU RETORNO DE
ROMA, FAZ LEVANTAR O CERCO E SITIA INUTILMENTE JERUSALÉM. DERROTA
NUM COMBATE UM GRANDE NÚMERO DE LADRÕES.
 ARDIL DE QUE SE SERVE
PARA OBRIGAR OS QUE SE HAVIAM RETIRADO NAS CAVERNAS .
 V AI COM
ALGUMAS TROPAS PROCURAR
 ANTÔNIO QUE FAZIA GUERRA AOS PARTOS. *
_______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 26
e 27, Antigüidades Judaicas, Parte I.
59. Enquanto estas coisas se passavam em Roma, Antígono sitiava a
fortaleza de Massada. )osé, irmão de Herodes, a defendia; estava ela bem
provida de todas as coisas; só faltava água. Como ele sabia que Malce, rei dos
árabes, estava arrependido de ter dado motivo a Herodes de ficar mal satisfeito
com ele, deliberou, nessa ocasião, sair à noite com duzentos homens, para ir
procurá-lo: caiu naquela mesma noite tão grande chuva, que as cisternas se
encheram. Assim, não somente pensou em se defender, mas fazia arremetidas
contra os que a sitiavam, quer em pleno dia quer durante a noite, e matava
sempre um grande número de homens, o que não impedia que, às vezes,
também se retirasse com algumas perdas.
60.
 Nesse mesmo tempo, Ventídio, mandado com um exército romano
para expulsar os partos da Síria, entrou na Judéia com o pretexto de ajudar a
José, mas, na verdade, para obter dinheiro de Antígono. Depois de se ter
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aproximado de Jerusalém e de se ter enriquecido, retirou-se com a maior parte
de seu exército para ir acalmar a agitação que surgira em algumas cidades,
pelas incursões dos partos; mas ele deixou Silom com algumas tropas, não
querendo levá-las todas, para mostrar que seu único interesse o havia levado a
vir.
61. Seu afastamento fez Antígono crer que poderia ainda receber auxílio
dos partos; com essa esperança, subornou Silom, com dinheiro, a fim de não
tê-lo como inimigo. No entanto, Herodes voltara de Roma; desembarcou em
Ptolemaida, onde reuniu grande quantidade de tropas, de sua nação e
estrangeiras, que ele tomou a pagamento; tornando-se ainda mais forte com a
ajuda de Silom e Ventídio, ao qual Géllio, mandado por Antônio, persuadiu que
o pusesse de posse do reino, entrou na Galiléia para marchar contra Antígono.
Suas forças aumentavam sempre, à medida que ele avançava, e quase toda a
Galiléia abraçou o seu partido. A primeira coisa que resolveu fazer foi levantar o
cerco de Massada para libertar seus parentes que lá estavam encerrados, mas
era preciso antes tomar Jope, a fim de não deixar aquela praça para trás,
quando marchasse para Jerusalém. Silom tomou essa ocasião para se retirar, e
os judeus, do partido de Antígono, perseguiram-no. Herodes, embora tivesse
poucos soldados, combateu-o, derrotou-o e salvou Silom, que já não lhes podia
resistir. Ele tomou, em seguida, Jope avançou rapidamente para Massada e seu
exército fortificava-se cada vez mais, porque os do país reuniram-se a ele, uns
pela estima que tinham do seu valor, outros, pela gratidão dos favores que lhe
deviam e a maior parte, pela esperança dos benefícios que esperavam. Ele
assim reuniu um grande exército e Antígono tirou pouca vantagem das
emboscadas que lhe preparou no caminho. Dessa forma, não encontrou grande
dificuldade em fazer levantar o cerco de Massada; depois de ter tomado em
seguida o castelo de Ressa, marchou para Jerusalém, seguido pelas tropas de
Silom e por vários habitantes daquela grande cidade, que temiam seu poder.
Sitiou-a do lado do ocidente e os que a defendiam atiraram grande número de
flechas e fizeram várias incursões contra as suas tropas. Começou por fazer
publicar por um arauto, que tinha vindo somente para cuidar do bem da
cidade; que esquecia as ofensas que seus maiores inimigos lhe haviam feito e
que não excetuava a ninguém naquela anistia. Antígono, ao contrário, temendo
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que os seus se deixassem persuadir, fazia tudo o que podia para impedi-los de
escutar o que o arauto dizia e lhes ordenou, por fim, que repelissem os
inimigos. Depois dessa ordem, atiraram-lhes tantas flechas e lançaram-lhes
tantos dardos, do alto das torres, que os obrigaram a se retirar. Viu-se então
claramente que Silom se havia deixado subornar; pois ele fez que vários dos
seus soldados começassem a clamar que lhes dessem víveres, dinheiro, e
quartéis de inverno, porque Antígono tinha feito estragos pelos campos. Silom
mesmo queria retirar-se e para isso exortava os demais. Herodes, vendo-se
assim prestes a ser abandonado, rogou, não somente aos oficiais das tropas
romanas, mas aos soldados, que não o deixassem daquele modo; disse-lhes que
fora enviado por Antônio, por Augusto e pelo Senado para ajudá-los, e que só
lhes pedia um dia, para providenciar a respeito dos víveres, que nada mais lhes
haveria de faltar. Essa promessa foi cumprida. Ele mesmo providenciou e
mandou vir grande abundância do necessário e assim tirou a Silom todo
pretexto de se queixar. Mandou também aos de Samaria, que se haviam posto
sob sua proteção, que trouxessem trigo, vinho, óleo e gado a Jerusalém. Apenas
Antígono soube disso, mandou tropas ocuparem as passagens das montanhas e
fazerem emboscadas aos que traziam essas provisões. Herodes, que por seu
lado de nada se descuidava, tomou cinco coortes dos romanos, cinco de judeus,
alguns soldados estrangeiros, um pouco de cavalaria e foi a Jerico. Encontrou a
cidade abandonada; quinhentos de seus habitantes tinham fugido com suas
famílias para as montanhas. Mandou prendê-los, mas depois os deixou em
liberdade. Os romanos encontraram a cidade repleta de toda espécie de bens e
a saquearam. Herodes deixou lá uma guarnição, deu quartéis de inverno às
tropas romanas na Iduméia, na Galiléia e em Samaria, e Antígono obteve de
Silom, como recompensa dos presentes que ele lhe havia concedido, mandar
uma parte de suas tropas a Lida, a fim de conquistar, por esse meio, as boas
graças de Antônio. Assim os romanos viviam em grande paz e em grande
abundância.
62. No entanto, Herodes, que não queria ficar ocioso, mandou José, seu
irmão, à Judéia, com quatrocentos cavaleiros e dois mil soldados de infantaria;
foi à Samaria, onde deixou sua mãe e os parentes que tinha retirado de
Massada. Passou depois à Galiléia, para tomar algumas praças, onde Antígono
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tinha estabelecido guarnições, e chegou a Séforis durante uma forte nevada. Os
que a defendiam para Antígono haviam fugido, e ele encontrou tanta
quantidade de víveres, que suas tropas tiveram oportunidade de se refazer e
descansar depois de tão longa caminhada. A princípio, deliberou livrar a
província daquele grande número de ladrões que se retiravam para as cavernas
e que não perturbavam menos o país com suas roubalheiras e agitações do que
a guerra. Mandou na frente, a Arbela, um corpo de cavalaria com três coortes e,
quarenta dias depois, para lá se dirigiu com o restante das tropas. Aqueles
ladrões, confiando na própria experiência da guerra e na coragem, vieram
ousadamente ao seu encontro. O combate se travou e sua ala direita pôs em
fuga a ala esquerda de Herodes. Ele veio prontamente em auxílio dos seus,
obrigou-os a fazer meia volta e não somente deteve os inimigos, mas os obrigou
a fugir. Perseguiu-os até o Jordão e matou muitos deles; o restante salvou-se,
fugindo para além do rio. Dessa forma, teria, por esse ato de violência, libertado
inteiramente a província daqueles ladrões, se muitos não tivessem ficado
escondidos nas cavernas, lá permanecendo ainda por algum tempo.
63.
 Esse grande general, para dar a saborear aos seus soldados os
primeiros frutos de seus trabalhos, mandou distribuir a cada um cento e
cinqüenta dracmas, recompensou seus comandantes na proporção de seus
méritos e os mandou todos aos quartéis de inverno. Ordenou a Feroras, o mais
jovem de seus irmãos, que providenciasse víveres e fechasse Alexandriom com
muralhas, o que ele não deixou de fazer.
64. Antônio estava então em Atenas, e Ventídio ordenou a Silom e a
Herodes que o fossem encontrar para marcharem contra os partos, depois que
tivessem posto em ordem os interesses da judéia, de modo que não mais
tivessem necessidade de sua presença. Embora Herodes pudesse reter Silom,
desta maneira ele o mandou e não deixou de marchar com suas tropas contra
aqueles ladrões que se escondiam nas cavernas.
65.
 Essas cavernas estavam em montanhas difíceis e inacessíveis de
todos os lados. Lá se podia subir somente por pequenos atalhos, muito estreitos
e tortuosos; via-se em frente uma grande rocha escarpada, que ia até o fundo
do vale, cavado em diversos lugares pela impetuosidade das torrentes. Um
lugar tão forte e defendido deixou Herodes assustado. Ele não sabia como
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realizar o seu projeto.
Por fim, veio-lhe à mente uma idéia que nenhum outro antes havia tido.
Mandou descer até à entrada das cavernas, em caixões bastante fortes, alguns
soldados que matavam os que lá se haviam escondido com suas famílias e
incendiavam os alojamentos dos que não se queriam entregar. Mas como ele
desejava salvar alguns, mandou avisar a som de trombeta que viessem procurá-
lo, dando-lhe todas as garantias. Nenhum deles, no entanto, ousou fazê-lo. A
morte parecia-lhes mais suave que a escravidão; a maior parte dos que lhe
foram levados à força, mataram-se. Um velho, ao qual a mulher e os filhos
pediram para sair da caverna para se entregar aos inimigos, em vez de
consentir, pôs-se à entrada, ordenou-lhes que saíssem, e os matava à medida
que iam saindo. Herodes, que os via de um lugar elevado, ficou comovido e fez-
lhe sinal com a mão que tivesse compaixão de seus filhos, e acrescentou mesmo
seus rogos; mas o velho, em vez de se acalmar com o que ele dizia, recriminou-
lhe a fraqueza, matou a mulher, e depois de ter matado os filhos, atirou seus
corpos do alto do rochedo e por último atirou-se ele também.
66.
 Depois que Herodes assim eliminou todos os que se haviam
escondido nas cavernas, lá deixou uma guarnição que julgou necessária para
impedir as revoltas; deu-lhe o comando a Ptolomeu, voltou à Samaria e
marchou contra Antígono com seiscentos cavaleiros e três mil soldados de
infantaria, armados de escudo. Aqueles que estavam acostumados a perturbar
a Galiléia, tomaram a oportunidade da sua ausência para atacar Ptolomeu,
surpreenderam-no e o mataram. Devastaram em seguida todos os campos;
depois, refugiaram-se nos pântanos e nos lugares fortificados. Logo que
Herodes teve essa notícia, voltou, dizimou-lhes a maior parte e depois de ter
assim libertado todas as cidades que eles perturbavam, com suas incursões,
obrigou-as a pagar cem talentos.
67. No entanto, os partos, após serem vencidos numa grande batalha em
que Pacoro, seu rei, foi morto, Ventídio mandou, por ordem de Antônio,
Maquera ao rei Herodes, com duas legiões e mil cavaleiros. Antígono escreveu-
lhe fazendo grandes queixas de Herodes e rogando que o ajudasse contra ele,
com promessa de lhe dar uma grande quantia. Maquera, porém, julgou dever
guardar fidelidade àquele em auxílio do qual tinha vindo e, como esperava mais
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de Herodes do que de Antígono, foi, contra a opinião de Herodes, procurar
Antígono, para examinar o estado de suas tropas, com o pretexto de amizade.
Antígono desconfiou dos seus intentos e não somente não o recebeu em sua
praça, mas mandou atirar contra ele. Maquera, confuso com a recepção hostil,
voltou para encontrar-se com Herodes, em Emaús, e mandou matar em sua
cólera todos os judeus que encontrou em seu caminho, sem indagar se eram
amigos ou inimigos. Herodes ficou tão irritado, que teve vontade de o tratar
como inimigo, mas conteve-se e partiu para ir procurar Antônio, a fim de lhe
apresentar sua queixa. Maquera, então, reconheceu seu erro; seguiu-o e obteve
dele, depois de muitos rogos, que esquecesse o que se havia passado.
68. Herodes continuou na sua deliberação de ir procurar Antônio e se
apressou tanto mais, quanto tendo sabido que ele apertava o cerco de
Samosata, cidade muito forte, situada sobre o Eufrates, julgou não poder achar
uma ocasião mais favorável para lhe demonstrar seu afeto e sua coragem. Sua
chegada apressou a tomada da praça, que Antíoco foi obrigado a lhe entregar;
ele matou um grande número daqueles bárbaros e recebeu como sinal de seu
valor uma parte dos despojos. Antônio ficou admirado e embora fosse grande a
estima que já tinha dele, aumentou-a ainda mais, de tal sorte que isso lhe foi
um acréscimo de honra e um motivo de esperança de consolidação em seu
reino.
CAPÍTULO 13
JOSÉ, IRMÃO DE HERODES, É MORTO NUM COMBATE, E ANTÍGONO MANDA CORTAR-LHE A
CABEÇA.
 DE QUE MODO HERODES VINGA ESSA MORTE. EVITA DOIS GRANDES PERIGOS.
S ITIA JERUSALÉM, AJUDADO POR SÓSIO, COM UM EXÉRCITO ROMANO E DESPOSA
M ARIANA DURANTE ESSE CERCO. TOMA DE
ASSALTO
 JERUSALÉM E RESGATA-LHE O SAQUE. SÓSIO LEVA ANTÍGONO
PRISIONEIRO A
 ANTÔNIO, QUE LHE MANDA CORTAR A CABEÇA. CLEÓPATRA
OBTÉM DE
 ANTÔNIO UMA PARTE DOS TERRITÓRIOS DA JUDÉIA, PARA ONDE
VAI, E É MAGNIJICAMENTE RECEBIDA POR
 HERODES. *
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quarto, capítulos 27
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e 28, e no Livro Décimo Quinto, capítulos 1 e 5, Antigüidades judaicas, Parte I.
69. Ao mesmo tempo que estas coisas se passavam, Herodes soube de um
acontecimento triste, para ele, que lhe sucedera na judéia. Lá ele havia deixado
José, seu irmão, para governar na sua ausência, com ordem expressa de nada
empreender contra Antígono até sua volta, porque não podia confiar no socorro
de Maquera, depois da maneira como ele tinha agido. Mas quando José viu que
o rei, seu irmão, se tinha afastado, em vez de executar o que ele lhe havia deter-
minado, marchou para Jerico com suas tropas e cinco companhias de
cavalaria, que Maquera lhe havia dado, para fazer a colheita do trigo, que já
estava próxima, e acampou nas montanhas. Os inimigos atacaram-no naqueles
lugares tão desvantajosos, derrotaram-no completamente, sendo ele mesmo
morto depois de ter feito tudo o que podia fazer o homem mais valente do
mundo, e toda aquela cavalaria romana lá pereceu, porque tinha sido recém-
organizada, trazida da Síria, integrada por soldados jovens, incapazes de
reparar o que lhes faltava à pouca experiência. Antígono não se contentou com
essa vitória; como tinha ainda em seu poder os corpos dos vencidos, sua cólera
levou-o a mandar cortar a cabeça de José, embora Feroras, seu irmão, lhe
mandasse oferecer cinqüenta talentos para tê-lo todo inteiro. Esse combate
produziu tal mudança na Galiléia, que os partidários de Antígono afogavam no
lago os mais ilustres dos amigos de Herodes; sucederam também novas
perturbações na Iduméia,* onde Maquera fizera fortificar o Castelo de Gethe.
__________________________
* Está escrito Judéia, e não Iduméia, no Livro Décimo Quarto, capítulo
27, número 621, Antigüidades judaicas, Parte I.
70. Antônio, voltando ao Egito, depois da tomada de Samosata, constituiu
Sósio, governador da Síria, com ordem expressa de ajudar Herodes contra
Antígono; Sósio, para começar a fazê-lo, mandou na frente duas legiões para a
Judéia e seguiu depois com o restante das tropas. Quando Herodes estava em
Dafne, arrabalde de Antioquia, teve um sonho no qual se predizia a morte de
seu irmão; ele saltou do leito, muito perturbado; os que lhe traziam tão triste
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notícia, entraram naquele mesmo instante no seu quarto. Ele não pôde deixar
de ceder à violência da dor, mas deteve-a, para correr a vingá-lo, e marchou
contra seus inimigos com rapidez incrível. Quando chegou ao monte Líbano,
com uma legião romana, tomou oitocentos homens da região e sem ter a
paciência de esperar o raiar do dia, partiu, de noite mesmo, para entrar na
Galiléia. Encontrou os inimigos, pô-los em fuga e os obrigou a se refugiarem
num castelo, de onde eles tinham saído no dia anterior. Lá os foi sitiar, mas
uma grande tempestade o obrigou a se retirar para uma aldeia vizinha. Poucos
dias depois, a outra legião que Antônio lhe havia fornecido veio encontrá-lo e o
espanto que os inimigos sentiram fê-los abandonar o castelo. Como Herodes
ardia de impaciência de vingar a morte de seu irmão, avançou com grande
rapidez até Jerico, onde foi salvo por uma espécie de milagre, de um tão grande
perigo, que não se duvida de que Deus tivera mesmo cuidado em conservá-lo.
Vários dos mais ilustres da cidade haviam ceado com ele e, mal apenas se
retiraram, a sala, onde haviam estado, ruiu por terra. Ele tomou esse acidente
como um bom augúrio e levantou o acampamento logo no dia seguinte, cedo.
Seis mil inimigos desceram das montanhas e travaram apenas escaramuças
com a sua vanguarda, mas como não ousavam combater com os romanos,
contentavam-se de atacá-los de longe, a golpes de dardos, com o que vários
ficaram feridos e Herodes mesmo recebeu um ferimento no flanco.
Antígono, querendo fazer crer que suas tropas eram superiores às de
Herodes, não somente em coragem mas também em número, mandou-lhes uma
parte à Samaria sob o comando de Pappo, com o fim de combater e derrotar
Maquera.
71. Herodes, por seu lado, entrou no país que lhe era inimigo, tomou de
assalto cinco cidades, matou dois mil homens dos que as defendiam,
incendiou-as e voltou ao seu acampamento, que estava perto da aldeia de
Cana. Não se passava um dia sem que os judeus, tanto de jerico, como de
outros lugares, não se dirigissem a ele para ficar ao seu lado; uns, pela estima
que lhe dedicavam e por seus grandes feitos, outros, pelo ódio contra Antígono,
e alguns, por seu amor pelas mudanças. Ele só pensou em travar combate; as
tropas de Pappo vieram corajosamente ao ataque, sem se espantar nem com o
grande número de inimigos, nem com o ardor com que marchavam contra eles.
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Os que não eram simpatizantes de Herodes resistiram por algum tempo; mas
como não havia perigo que ele não desprezasse para vingar a morte de seu
irmão, atacou com tal força os que se apresentaram diante dele, que não teve
dificuldade em vencê-los. Derrotou, em seguida, todos os que ainda restavam, e
a mortandade foi grande. Alguns fugiram para a aldeia de onde haviam partido,
a fim de se salvarem. Perseguiu-os, matando sempre, e entrou juntamente com
eles; as casas encheram-se imediatamente de fugitivos e muitos foram logo
mortos: em seguida, mandou destruir os telhados; muitos ficaram esmagados
sob os escombros, sob as ruínas; outros foram traspassados pelas espadas dos
soldados. O número dos mortos foi tão grande, que os montes de seus corpos
atravancavam as estradas aos vitoriosos. Esse espetáculo causou tal espanto ao
país, que todos fugiram. Herodes, depois de tão feliz resultado, teria ido
diretamente a Jerusalém, se uma grande tempestade não o tivesse detido. Esse
obstáculo impediu-o de obter uma vitória completa e derrotar inteiramente a
Antígono que já se preparava para abandonar a capital do seu reino.
Quando chegou a noite, Herodes mandou seus amigos descansarem um
pouco; ele também, molhado de suor, se pôs no banho, acompanhado somente
por um de seus criados. Então, três dos inimigos, que o medo tinha feito
esconderem-se naquela casa, saíram de espada na mão, para escapar; mas
ficaram tão espantados com a presença do rei, embora ele estivesse nu, que só
pensaram em fugir. Ninguém pensou em detê-los, e o príncipe julgou-se feliz
por ter evitado tão grande perigo; assim, não lhes foi difícil escapar. No dia
seguinte, ele mandou cortar a cabeça a Pappo, comandante das tropas de
Antígono, que havia matado José, e a mandou a Feroras, seu irmão, para
consolá-lo com a perda comum.
72. Depois que cessou a tempestade, esse grande general marchou para
Jerusalém, acampou perto da cidade e a sitiou, três anos depois de ter sido
declarado rei em Roma. Ele escolheu o lugar que julgou mais próprio para
atacá-la e estabeleceu seu quartel diante do Templo, como já outrora Pompeu
havia feito. Distribuiu o trabalho às tropas, dividiu entre elas os arrabaldes,
ordenou que levantassem três plataformas e construíssem torres sobre elas;
depois de ter dado ordens aos que julgava os mais aptos, foi para Samaria, a
fim de desposar Mariana, filha de Alexandre, filho de Aristóbulo, que vimos que
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ele tinha escolhido, para mostrar com esse gesto que desprezava de tal modo
seus inimigos, que aquele cerco não lhe impedia pensar em se casar. Ao seu
regresso, trouxe novas tropas, refor-çando-as ainda mais com um grande
número de soldados de infantaria e de cavalaria que Sósio, general do exército
romano, lhe enviara, a maior parte delas, pelo meio do país, enquanto ele tinha
vindo pela Fenícia. Todas estas tropas unidas juntamente perfizeram um total
de onze legiões e seis mil cavaleiros, além das tropas auxiliares da Síria, cujo
número era considerável. A praça foi atacada do lado do Setentrião. Herodes
fundava seu direito sobre um decreto do Senado que lhe tinha dado o reino, e
Sósio declarava ter sido enviado por Antônio para ajudá-lo naquela guerra. Os
judeus, encerrados na praça, eram agitados por diversos movimentos. A
população espalhada pelas cercanias do Templo deplorava sua infelicidade e
invejava a felicidade dos que tinha morrido antes que eles tivessem sido
reduzidos àquela miséria. Aqueles cuja coragem não estava tão abatida iam em
grupos aos lugares mais próximos da cidade, procurar tudo o que podia servir
para alimentar os homens e os cavalos; os mais ousados cuidavam também em
se defender. Herodes, para remediar a tais assaltos, que destruíam os campos,
colocou tropas de emboscada em diversos lugares e mandou vir de longe o
necessário para a manutenção do exército. Quanto ao restante, nenhuma outra
resistência foi maior do que a dos sitiados: sua ousadia nos perigos e seu
desprezo pela morte, faziam ver que os romanos só os sobrepujavam na ciência
da guerra. Eles retardavam com seus esforços a construção das plataformas:
usavam de toda espécie de recursos para impedir o efeito das máquinas; por
meio de minas, em cuja arte eram peritíssimos, eles se punham no meio dos
que sitiavam, quando menos esperavam; um muro apenas se desmoronava e
logo se começava com toda a solicitude a construir outro, que terminava antes
que o primeiro tivesse acabado de ruir; para dizermos, em suma, nada se
poderia acrescentar à sua força e atividade, ao seu trabalho e coragem, porque
eles estavam resolvidos a se defender até o último suspiro. Assim, embora
atacados por dois poderosos exércitos, eles sustentaram o cerco durante cinco
meses. Por fim, os mais valentes de Herodes entraram por uma brecha na
cidade, e os romanos entraram também do outro lado. Ocuparam primeiro tudo
o que está em torno do Templo, espalharam-se em seguida por todos os lados;
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via-se aparecer de várias maneiras o espectro da morte, tanto os romanos
estavam irritados pela recordação das agruras suportadas durante o cerco; os
judeus, afeiçoados a Herodes, investiram contra os que tinham abraçado o
partido de Antígono. Assim, matavam-nos nas ruas, nas casas e mesmo quando
se refugiavam no Templo; não se perdoavam nem aos velhos, nem aos moços; a
fraqueza do sexo não causava compaixão pelas mulheres; embora Herodes lhes
ordenasse que as poupassem e juntasse aos rogos, suas ordens, não era
obedecido, porque o furor os fizera perder todo sentimento de humanidade.
73. Antígono, por um proceder digno de sua fortuna passada, desceu da
torre onde estava e lançou-se aos pés de Sósio, que em vez de se comover,
insultou-o ainda em sua infelicidade, chamando-o não de Antígono, mas de
Antígona. Não o tratou, porém, como mulher, porque não confiou nele, pois o
reteve prisioneiro.
74. Herodes, depois de ter tido tanto trabalho em vencer seus inimigos,
não teve menor dificuldade em reprimir a insolência dos estrangeiros que tinha
chamado em seu auxílio. Estes lançaram-se em massa ao Templo, pela
curiosidade de ver as coisas santas destinadas ao serviço de Deus. Ele usou,
para impedi-los, não somente de rogos e ameaças, mas mesmo de força, porque
se julgava mais infeliz, como vencedor, porquanto sua vitória era causa de que
se expusesse aos olhos dos profanos o que não lhes era permitido ver. Também
fez todo o possível para impedir o saque da cidade, dizendo firmemente a Sósio
que, se os romanos queriam saqueá-la e privá-la de habitantes, ele seria apenas
rei de um deserto e declarava-lhe que não queria comprar o império do mundo
ao preço do sangue de um tão grande número de súditos. Sósio então
respondeu-lhe que não podia recusar aos soldados o saque de uma praça que
eles haviam tomado; então, prometeu recompensá-los com bens de sua
propriedade. Assim, ele assegurou a vida da cidade e realizou magnificamente
sua
 promessa,
 quer
 com
 relação
 aos
 soldados,
 quer
 aos
 oficiais
 e
particularmente Sósio, ao qual deu presentes dignos de um rei.
75. Este general do exército romano partiu de Jerusalém depois de ter
oferecido a Deus uma coroa de ouro e levou Antígono prisioneiro a Antônio, que
o manteve sempre com esperanças, até o dia que lhe mandou cortar a cabeça.
Assim ele terminou sua vida, com uma morte digna da fraqueza que
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demonstrara em sua infelicidade.
76. Quando Herodes se viu senhor da Judéia pela tomada de Jerusalém,
manifestou grande reconhecimento para com os que haviam abraçado os seus
interesses e mandou matar um grande número de partidários de Antígono.
Como ele não tinha dinheiro, mandou a Antônio e aos que estavam mais bem
situados perante ele, o que ele tinha de móveis mais preciosos, mas não pôde,
entretanto, com esse meio, pôr-se em condições de nada ter de temer, porque
Antônio tinha tal paixão por Cleópatra, que nada lhe podia recusar. Essa
ambiciosa mulher, princesa avarenta, depois de ter cruelmente perseguido os
de sua própria família, pois não restava nem mais um só com vida, voltou seu
furor contra os estrangeiros. Caluniava perante Antônio os mais ilustres dentre
eles e o levava a condená-los à morte, a fim de se apoderar de suas riquezas.
Sua avareza ainda não estava, porém, satisfeita; ela queria tratar do mesmo
modo os judeus e os árabes e fez tudo o que podia para persuadir Antônio a
mandar matar Herodes e Malce, reis daquelas duas nações. Ele fingiu
consentir, mas não julgou justo manchar suas mãos no sangue desses
príncipes, dos quais não tinha absolutamente motivo nenhum de se queixar.
Contentou-se em não lhes manifestar mais a mesma amizade e em dar à
princesa várias terras que tirou de seus territórios, dentre as quais as que se
situam nas proximidades de Jerico, tão ricas em palmeiras e onde cresce o
bálsamo, como também todas as cidades sobre o rio de Eléctra, com exceção de
Tiro e de Sidom.
Depois de ter recebido dele tão grande presente, ela o acompanhou até o
Eufrates, na sua partida para a guerra dos partos; passou depois além, foi à
Judéia por Apaméia e Damasco. Herodes fez tudo o que pôde para acalmar-lhe
o espírito com presentes, concedeu-lhe todas as honras, obrigou-se a pagar
duzentos talentos por ano de renda das terras que Antônio havia tirado da
Judéia, para lhas dar e a levou até Pelusa. Antônio, de regresso da guerra com
os partos, que não foi longa, trouxe prisioneiro Artabazo, filho de Tigrano, e dele
fez presente a Cleópatra, com o que havia conquistado de mais precioso.
CAPÍTULO 14
HERODES QUER IR SOCORRER ANTÔNIO, CONTRA AUGUSTO, MAS CLEÓPATRA
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FAZ QUE ELE O OBRIGUE A CONTINUAR A FAZER GUERRA AOS ÁRABES .
GANHA UMA BATALHA CONTRA ELES, E PERDE OUTRA. TERRÍVEL TERREMOTO
NA
 JUDÉIA OS TORNA TÃO OUSADOS QUE MATAM AOS EMBAIXADORES DOS
JUDEUS.
 HERODES, VENDO OS SEUS MUITO ASSUSTADOS, DÁ-LHES TANTA
CORAGEM COM UM DISCURSO, QUE ELES VENCEM OS ÁRABES E OS
OBRIGAM A TOMÁ-LO COMO PROTETOR.
 *
_______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quinto, capítulos 6, 7
e 8, Antigüidades Judaicas, Parte I.
77. Quando foi declarada a guerra entre Augusto e Antônio, Herodes, que
então tinha reconquistado a fortaleza de Hircânio, a qual a irmã de Antígono lhe
havia entregue, e que vivia pacífico em seu reino, resolveu levar auxílio a Antô-
nio. Mas Cleópatra, temendo que uma ação tão generosa aumentasse o afeto de
Antônio por ele, impediu-o por meio de certos artifícios; como nada havia que
ela não fizesse para perder os soberbos e os arruinar, uns pelos outros,
persuadiu Antônio a fazer guerra aos árabes, com o fim de aproveitar-se de
suas conquistas, se ele fosse vitorioso, e de obter o reino da Judéia, se ele fosse
vencido. Mas o que essa rainha fez para perder Herodes, saiu-lhe, ao contrário,
em vantagem dele. Tendo reunido um grande número de cavaleiros e começado
a atacar os sírios, venceu-os em Dióspolis, por mais resistência que eles
fizessem. Os árabes reuniram depois um poderosíssimo exército. Herodes,
vendo-os tão fortes, julgou dever agir com prudência, nessa guerra, e queria
rodear seu acampamento, com um muro; mas sua primeira vitória tornara seus
soldados tão altivos e cheios de si que ele não os pôde impedir de atacar os
inimigos. A princípio, destroçaram-nos, puseram-nos em fuga, perseguiram-nos
e já se julgavam inteiramente vencedores, quando Ateniom, um dos generais
das tropas de Cleópatra, que sempre fora inimigo de Herodes, atacou-os com as
tropas que comandava e assim restituiu a coragem aos árabes. Eles reuniram-
se de novo, voltaram ao combate; aqueles lugares pedregosos e de difícil acesso,
eram-lhes favoráveis, e eles conseguiram pôr os judeus em fuga e mataram
também a muitos. O restante retirou-se para a aldeia de Ormisa; os árabes
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saquearam-lhes o acampamento, sem que Herodes pudesse vir prontamente em
auxílio daquela parte de seu exército, que foi destruída por completo. A
desobediência de seus soldados foi causa dessa infelicidade, pois se eles não se
tivessem arriscado àquele combate, com tanta precipitação, Ateniom não teria
tido a glória de vencê-los, quando eles já se julgavam vencedores. Herodes
vingou-se dos árabes por meio de contínuas incursões em seu país e
compensou assim, com pequenas vantagens, a vitória que haviam alcançado
contra ele.
78. Nesse mesmo tempo, no sétimo ano de seu reinado, durante o mais
forte da guerra, entre Augusto e Antônio, ele fustigava assim os inimigos, e
aconteceu na Judéia, no começo da primavera, o maior terremoto que jamais se
viu. Um número incalculável de animais pereceu nesse flagelo mandado por
Deus e custou a vida a trinta mil * pessoas, mas os soldados não sofreram mal
algum, porque estavam acampados ao ar livre. A notícia de tão estranha
desolação aumentou a ousadia dos árabes e, como se costuma representar o
mal muito maior do que na realidade ele é, fizeram-nos crer que a Judéia estava
inteiramente destruída. Assim, não duvidaram poder se apoderar de um país
onde eles imaginavam que não existia mais ninguém para defendê-lo; depois de
matarem os embaixadores que os judeus lhes enviaram, marcharam a passos
forçados para acabar de destruí-la.
__________________________
* O Livro Décimo Quinto, capítulo 7, Antigüidades Judaicas, Parte I,
registra dez mil homens.
79. Herodes, vendo os seus muito alarmados, quer por uma tão repentina
irrupção, quer por uma série tão longa de desgraças, esforçou-se por lhes dar
coragem, falando-lhes assim: "Não vejo que razão tendes para temer, pois ainda
que haja motivo de se afligir, pelos castigos que a cólera de Deus nos faça
sofrer, não podemos, sem covardia, nos deixar abater pela dor, quando se trata
de resistir aos injustos esforços dos homens. Muito ao contrário, esse tremor de
terra deve tornar nossos inimigos menos temíveis, pois o considero como uma
cilada que Deus lhes armou para castigar o ultraje que eles nos fizeram. Bem
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vedes que não é, nem em suas forças, nem em suas armas, mas somente em
nossa desgraça, que eles põem sua confiança. Ora, que esperança pode ser
mais enganadora do que aquela que, em vez de ser fundada em nós mesmos, ao
invés, baseia-se na infelicidade dos outros? Nada mais certo entre os homens
do que os bons e os maus eventos; eles mudam a cada momento, como apraz à
sorte, nem devemos procurar em outra parte os exemplos, pois os conhecemos
nós mesmos. Como os vencemos no primeiro combate e eles nos venceram no
segundo, não tenho motivo de me imaginar que os venceremos neste, quando
eles já se julgam vitoriosos, porque a excessiva confiança impede que eles
fiquem de sobreaviso e a desconfiança faz agir com prudência e com
ponderação? Assim, o que vos faz temer me dá certeza, porque foi aquela
perigosa confiança que deu ocasião a Ateniom de vos surpreender e atacar-vos,
quando vos pusestes na luta contra minha ordem, com muita temeridade.
Agora, vossa prudente moderação promete-me a vitória e esta é mesmo a dis-
posição que deveis ter antes do choque. Mas quando estiverdes no calor da
peleja, devereis demonstrar muita coragem para dar a conhecer a esses ímpios
que não há males, de qualquer lado eles venham, quer do céu, quer da terra,
que possam assustar os judeus, nem fazê-los perder a coragem, mas que eles
combatem até o último suspiro, antes que ter como senhores esses pérfidos,
que tantas vezes correram risco de lhe serem sujeitos. As coisas inanimadas
não devem, do mesmo modo, ser capazes e vos causar temor. Então, por que
imaginar que um terremoto é o presságio de uma desgraça? Nada é mais
natural do que esses abalos dos elementos e eles não causam outro mal além
do que acabam de causar. Pode acontecer que alguns sinais dêem motivo de se
temer a peste, a carestia e os tremores de terra, mas quando eles sucedem,
quanto maiores são, mais nós lhe vemos o fim. E mesmo quando fôssemos
vencidos, poderíamos tolerar mais o que sofremos, por causa desse terremoto?
Que espanto, não deve, ao contrário, causar aos nossos inimigos um crime tão
espantoso como o de ter manchado cruelmente as mãos no sangue dos nossos
embaixadores, e não ter tido horror em oferecer a Deus tais vítimas como
gratidão pela vitória? Julgais que eles possam justificar-se na sua presença e
evitar os raios que lança sobre os maus, seu braço invencível, contanto que,
animados pelo mesmo espírito e pela mesma coragem de nossos antepassados,
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vós vos exciteis, para não deixardes impune esses violadores do direito das
gentes? Que cada um de vós compreenda que não é somente combater por sua
esposa, seus filhos e sua pátria, mas também vingar a morte dos nossos
embaixadores. Embora mortos eles marcharão à frente de nosso exército e, se
me obedecerdes, eu serei o primeiro a me expor aos maiores perigos. Mas,
sobretudo, lembrai-vos de que nossos inimigos não poderão resistir ao nosso
ataque, se vós mesmos não o tornardes inútil por vossa temeridade."
80. Depois que esse corajoso príncipe assim falou, ofereceu sacrifícios a
Deus, passou o Jordão, e acampou muito perto dos inimigos e do castelo de
Filadelfo, do qual cada um dos dois partidos tinha intenção de se apoderar. Os
árabes enviaram tropas para atacá-los; mas os judeus as repeliram e ocuparam
a colina. Não se passava um dia sem que Herodes não mandasse seu exército à
luta e não provocasse os inimigos com contínuas escaramuças. Embora eles o
superassem muito em número, eles estavam tão atemorizados e Elteme, seu
general, mais que todos, que não ousavam sair de suas posições. Herodes lá os
foi atacar, e assim eles foram obrigados a aceitar o combate, com extrema
desordem, pois não tinham esperança alguma de vencer. Enquanto resistiam, a
matança não foi muito grande; mas quando se puseram a fugir, muitos foram
mortos e os outros, matavam a si mesmos, tal era a confusão. Cinco mil
ficaram mortos no campo de batalha e na fuga, e o restante foi obrigado a voltar
para o acampamento. Herodes imediatamente lá os foi sitiar e a falta de água
juntamente com outras dificuldades os reduziu à extrema miséria. Eles
mandaram então oferecer-lhe cinqüenta talentos como resgate, e ele tratou os
embaixadores com tanto desprezo que nem mesmo se dignou escutá-los. A sede
deles aumentava sempre e lhes tornava a vida insuportável; quatro mil saíram
em cinco dias e se entregaram aos judeus, que os prenderam com cadeias. No
sexto dia o restante, levado ao desespero, saiu para morrer com as armas na
mão. Uns sete mil foram mortos. Tão grande perda satisfez a vingança de
Herodes e abateu de tal modo o orgulho dos árabes que eles o tomaram como
protetor.
CAPÍTULO 15
ANTÔNIO É VENCIDO POR AUGUSTO NA BATALHA DE ÁCCIO . HERODES VAI
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PROCURAR
 AUGUSTO E FALA-LHE COM TANTA GENEROSIDADE QUE LHE
CONQUISTA A AMIZADE;HERODES O RECEBE EM
 PTOLEMAIDA COM TANTA
MAGNIFICÊNCIA QUE
 AUGUSTO AUMENTA DE MUITO SEU REINO. *
_____________________________
*Este registro também se encontra no Livro Décimo Quinto, capítulos 9,
10, 11 e 1 3, Antigüidades judaicas, Parte I.
81. A alegria que Herodes sentiu por este resultado tão glorioso foi
ofuscada pela notícia da vitória obtida por Augusto em Áccio e, então, tudo ele
veio a temer por causa da sua amizade com Antônio. Mas o perigo não era tão
grande como ele imaginava, pois Augusto não podia considerar Antônio
completamente perdido, enquanto esse príncipe continuasse ligado ao seu
partido. Em tal reviravolta da sorte, Herodes julgou-se obrigado a ir procurar
Augusto em Rodes, comparecendo à sua presença, sem coroa, mas com
majestade real; sem nada dissimular da verdade, falou-lhe assim: "Confesso,
grande príncipe, que devo a minha coroa a Antônio e vós tendes notado que não
lhe fui um rei inútil, se a guerra em que eu estava empenhado contra os árabes
não me tivesse impedido de juntar minhas armas às deles. Não podendo fazê-lo,
ajudei-o com trigo e tudo o que estava em meu poder. Não o abandonei nem
mesmo depois da batalha de Áccio, porque o reconheço como meu benfeitor. Se
eu não o pude servir na guerra, combatendo por ele como eu desejara fazê-lo,
dei-lhe, contudo, bons conselhos, fazendo-lhe ver que o único meio de restaurar
seus interesse era fazer morrer Cleópatra; nesse caso eu lhe oferecia dinheiro,
praças, tropas e minha pessoa, para que ele continuasse a vos fazer guerra.
Mas sua cega paixão por aquela princesa e a vontade de Deus que vos quer
entregar o império do mundo, não lhe permitiram escutar uma proposta que lhe
teria sido vantajosa. Assim eu me vejo vencido com ele; e vendo-o precipitado de
tão alta posição, tirei de minha cabeça a coroa para vir à vossa presença,
baseando a esperança da minha salvação apenas sobre minha virtude e na
constatação que podereis fazer de minha fidelidade para com meus amigos."
Herodes assim falou, e Augusto respondeu-lhe: "Vós não somente nada
deveis temer, mas, ao contrário, vos deveis sentir mais firme e seguro do que
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nunca, em vosso reino, pois vossa fidelidade para com vossos amigos vos torna
digno de reinar. Eu aprecio tanto a vossa generosidade que só me resta desejar
que não tenhais menor afeto por aqueles que são favorecidos pela fortuna do
que o tendes conservado para com os infelizes; eu não poderia censurar a
Antônio de ter desejado mais a Cleopatra do que aos vossos conselhos, pois que
devo à sua imprudência o vosso afeto por mim. Já começastes a mo
demonstrar, enviando a Ventídio auxílio contra os gladiadores, que abraçaram o
partido de Antônio. Por isso, não duvideis de que eu não vos faça confirmar em
vosso reino, por um decreto do Senado e de que eu não sinta prazer em vos dar
provas de minha amizade, tanto que não sentireis mais a infelicidade de
Antônio."
Após esta resposta, tão auspiciosa, Augusto recolocou a coroa sobre a
cabeça de Herodes e o confirmou no reino por um ato, no qual falava dele de
maneira muito lisonjeira. Esse rei dos judeus, depois de lhe ter dado grandes
presentes, rogou-lhe que concedesse a graça a um dos amigos de Antônio, de
nome Alexandre; mas o encontrou tão irritado contra ele por causa de ofensas
que, diziam, havia dele recebido, que não lhe foi possível obtê-la.
82. Quando Augusto passou da Síria ao Egito, Herodes o recebeu em
Ptolemaida, com incrível magnificência; quando esse grande príncipe passava
em revistas as tropas, ele o fazia marchar a cavalo, junto de si. Não foi somente
com suntuosos banquetes que Herodes lhe manifestou e aos seus amigos que
ele tinha realmente uma alma de rei; mandou dar ao seu exército, quando este
foi a Pelusa, víveres em abundância e o proveu, ao seu regresso, nos lugares
secos e áridos, não somente de água, mas de tudo o de que ele poderia
necessitar.
 Tão nobre
 maneira
 de
 agir
 granjeou-lhe
 tal reputação
 de
generosidade no espírito de Augusto e de todos os seus soldados, que eles
diziam que o reino da judéia não era bastante grande para tão grande príncipe.
Dessa forma, depois da morte de Cleopatra e de Antônio, Augusto foi ao Egito e
deu-lhe quatrocentos gauleses, que serviam de guardas à princesa, acrescentou
novas honras às que já lhe havia concedido, cedeu-lhe aquela parte da Judéia
que Antônio tinha dado a Cleopatra, como também as cidades de Gadara,
Hipom, Samaria, e, à beira-mar, Gaza, Antedom, Jope e a torre de Estratão. A
liberalidade de Augusto não se limitou a isso. Para mostrar-lhe até que ponto ia
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a sua estima pelo mérito desse príncipe, deu-lhe também a Traconítida e a
Batanéia, acrescentando ainda a Auranita, pelo fato que passo a narrar:
Zenodoro, que tinha tomado as terras de Lisânias, mandava continuamente
homens da Traconítida, para saquear os bens dos de Damasco. Eles foram
queixar-se a Varo, governador da Síria, e rogaram-lhe que informasse ao
imperador. Ele o fez e Augusto deu-lhe ordens de exterminar aqueles
salteadores. Varo executou a ordem e confiscou os bens de Zenodoro; Augusto
deu-os a Herodes, para que aquele país não pudesse, no futuro, servir ainda de
refúgio aos ladrões, e o fez, ao mesmo tempo, governador da Síria. Dez anos
mais tarde, esse poderoso imperador voltou àquela província, proibiu a todos os
governadores fazer algo sem o conselho de Herodes e depois que Zenodoro
morreu, deu-lhe todas as terras que estão entre a Traconítida e a Galileia. Mas
o que Herodes estimava mais que tudo era que Augusto a ninguém mais
estimava do que ele, depois de Agripa, e Agripa, a nenhum outro estimava mais,
depois de Augusto, do que ele. Quando se viu elevado ao auge da prosperidade,
mostrou a grandeza de sua alma, pelo empreendimento maior e mais santo que
se possa imaginar.
CAPÍTULO 16
SOBERBOS EDIFÍCIOS CONSTRUÍDOS EM GRANDE NÚMERO POR HERODES,
TANTO NO SEU REINO COMO FORA DELE, DENTRE OS QUAIS RECONSTRUIR
COMPLETAMENTE O
 TEMPLO DE JERUSALÉM E A CIDADE DE CESARÉIA.
SUA EXTREMA LIBERALIDADE. BENS QUE RECEBERA DA NATUREZA
COMO DA FORTUNA.
 *
__________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quinto, capítulos 11,
12, 1 3 e 14, e no Livro Décimo Sexto, capítulo 9, Antigüidades Judaicas, Parte
I.
83. Este príncipe, tão feliz, fez no décimo quinto ano ** de seu reinado,
reconstruir o Templo de Jerusalém, com despesas e magnificências incríveis.
Ele o circunscreveu duas vezes mais do que antes; construiu de ponta a ponta
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galerias soberbas, que o uniam do lado do Setentrião à fortaleza, que ele não
tornou menos bela do que o palácio real e a chamou Antônia, em honra de
Antônio.
__________________________
* No Livro Décimo Quinto, capítulo 14, n2 676, diz décimo oitavo ano.
84. Mandou também fazer no lugar mais elevado da cidade um palácio
com dois enormes aposentos, tão ricos e tão magníficos, que nem mesmo os
Templos se lhes podem comparar; a um deles deu o nome de Cesáreo e .ao
outro de Agrípio, em honra de Augusto e de Agripa.
Mas não foi somente com palácios que ele quis conservar seu nome na
posteridade e imortalizar sua memória. Ele mandou também construir, no
território da Samaria, uma cidade extraordinariamente bela, que tinha vinte
estádios de perímetro e à qual chamou Sebaste, isto é, Augusta. Dentre outros
edifícios com que a embelezou, lá construiu um grandioso Templo diante do
qual havia uma praça de três estádios e meio e a consagrou a Augusto. Quanto
à cidade, ele a povoou com seis mil habitantes, deu-lhes excelentes terras para
cultivar e os tornou felizes pelos privilégios que lhes concedeu. O generoso
imperador
 não
 quis
 deixar,
 sem
 um
 sinal
 de
 reconhecimento,
 essa
demonstração de afeto de Herodes. Acrescentou ainda outras terras aos seus
termos. Herodes, para lhe testemunhar sua gratidão, ergueu em sua honra,
num lugar chamado Pânio, perto da nascente do Jordão, um outro Templo,
todo de mármore branco. Há ali perto uma montanha tão alta cujo vértice
parece tocar as nuvens; está cercada de enormes rochedos, no fundo do vale,
que está abaixo, há uma tenebrosa caverna, que as águas caindo do alto,
cavaram com o tempo, tão profunda que dificilmente se poderia encontrar-lhe o
fundo, pela incrível quantidade de água que contém. Do pé dessa caverna
jorram as fontes de que se julga ter o Jordão sua nascente. Mas disso falaremos
mais particularmente em outro lugar.
Esse príncipe mandou também construir perto de jerico, entre o castelo
de Cipro e as antigas casas reais, outros palácios mais cômodos, aos quais deu
os nomes de Augusto e Agripa; não havia lugar em todo o seu reino apropriado
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a tornar célebre o nome desse grande imperador, que ele não empregasse para
esse fim. Construiu-lhe também em outras províncias vários Templos, aos
quais deu igualmente o seu nome.
85.
 Quando fazia a visita às cidades marítimas, viu que a torre de
Estratão estava em ruínas, tão antiga ela era; mas sua posição a tornava capaz
de receber todo o embelezamento que sua magnificência lhe quisera dar; por
isso, não somente a mandou restaurar com pedras muitos brancas, mas ali
construiu um soberbo palácio, mostrando naquela obra mais que em qualquer
outra, o quanto sua alma era grande e elevada. Essa cidade está situada entre
Dora e Jope, numa costa assaz desprovida de portos; os que querem ir da
Fenícia ao Egito são obrigados a passar pelo alto mar, tanto temem o vento,
chamado Áfrico, o qual, ainda que sopre levemente, levanta e impele vagas tão
grandes contra os rochedos que as aumentam ainda mais, revolvendo a
agitação do mar, durante certo tempo. Mas este rei tão magnífico tornou-se, por
seus cuidados, por suas libera-lidades e por seu amor à glória, vencedor da
mesma natureza; ele construiu, contra todos os obstáculos, um porto mais
espaçoso do que o de Pireu, no qual os maiores navios podiam estar em
segurança, contra todos os perigos das tempestades e cuja construção era tão
perfeita, que se poderia pensar nenhuma dificuldade se encontrou na realização
daquela obra. Depois que ele mandou tomar as medidas da extensão do porto,
como o mar tinha naquele lugar vinte braças de profundidade, mandou enchê-
lo com pedras de tamanho descomunal, das quais a maior parte tinha
cinqüenta pés de comprimento, dez de largura * e nove de altura. Havia mesmo
ainda outras maiores, e assim ele o fez até a flor d'água. A metade dessa mole,
que tinha duzentos pés de largura, servia para quebrar a violência das vagas;
construiu-se sobre a outra metade um muro fortificado com torres, à maior e à
mais bela das quais Herodes deu o nome de Druso, filho da imperatriz Lívia,
mulher de Augusto. Havia dentro do porto grandes armazéns vazios para
receber qualquer mercadoria e diversos outros pórticos em arcadas, para alojar
os marinheiros. Uma descida muito suave, e que podia servir de belo passeio,
rodeava todo o porto, cuja entrada estava em frente dos ventos do inverno, que,
naquele lugar, é o mais favorável de todos os ventos. Dos dois lados dessa
entrada, estavam três colossos, apoiados em pilastras; os que estavam à
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esquerda, eram sustentados por uma torre muita forte e os da direita por duas
colunas de pedra, tão grandes que sobrepujavam a altura da torre. Viam-se nas
cercanias do porto uma fileira de casas construídas de uma pedra muito branca
e ruas igualmente distantes umas das outras, que iam da cidade ao porto.
Construiu-se também sobre uma colina que está em frente à entrada desse
porto um Templo a Augusto, de tamanho e de beleza extraordinários. Lá se via
uma estátua desse ilustre imperador do tamanho da de Júpiter Olímpico, sobre
cujo modelo tinha sido feita, e uma outra de Roma, semelhante à de )uno de
Argos. Herodes, construindo esta cidade, queria a utilidade da Província;
edificando esse soberbo porto, a comodidade e a segurança do comércio; num e
noutro, bem como nesse Templo tão magnífico, a glória de Augusto, em honra
do qual ele deu o nome de Cesaréia a essa nova e admirável cidade. E, para que
absolu-tampntP nada faltasse, do aue a poderia tornar digna de nome tão
célebre, ele acrescentou a tantas e tão grandes obras, um mercado, o mais belo
do mundo, um teatro e um anfiteatro, que não era inferior a tudo o mais.
Determinou, em seguida, jogos e espetáculos que se deviam realizar de cinco
em cinco anos, em honra de Augusto; e ele mesmo fez-lhe a abertura na
centésima nonagésima segunda Olimpíada. Prometeu grandes prêmios não
somente aos que saíssem vencedores nesses jogos de exercícios, mas também,
aos segundos e aos terceiros colocados.
Mandou também reconstruir a cidade de Antedom, que a guerra tinham
destruído e a chamou Agripina, para honrar a memória de Agripa, seu amigo,
cujo nome mandou gravar sobre a porta do Templo, que mandara construir.
__________________________
* No Livro Décimo Quinto, capítulo 1 3, no 669, diz dezoito de largura.
86. Se este príncipe manifestou tanto afeto pelos estrangeiros, não menos
ele fez pelos seus parentes. Construiu no lugar mais fértil do seu reino, que as
águas e os bosques tornavam muito agradável, uma cidade a que chamou
Antípátrida, por causa de seu pai, e acima de Jerico, um castelo a que chamou
de Cipro, do nome de sua mãe e que não era menos admirável pela resistência
do que pela beleza. Como também não queria esquecer Fazael, seu irmão, que
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ele tinha particularmente amado, para honrar sua memória, construiu vários
edifícios de beleza e valor. O primeiro foi uma torre em Jerusalém, a que
chamou de Fazaela, de que veremos em seguida o tamanho e a resistência,
construiu também perto de Jerico, do lado do Setentrião, uma cidade à qual
deu o mesmo nome.
87.
 Depois de ter trabalhado com tanta magnificência para tornar
célebres os nomes de seus amigos e de seus parentes para a posteridade ele
não se esqueceu de si mesmo. Mandou construir do lado oposto da montanha
que está perto da Arábia, um castelo muito forte, ao qual chamou de Herodiom
e deu o mesmo nome a uma colina, distante sessenta estádios de Jerusalém
que não era natural, mas que ele fez levantar em forma de seio, com terra para
lá transportada, e cujo cume rodeou de torres, todas redondas. Construiu
abaixo um palácio cujo interior não era somente muito rico, mas o exterior
também era soberbo, que se não podia contemplá-lo sem admiração. Para lá fez
vir de muito longe e com ingentes despesas, grande quantidade de água; lá se
subia por meio de duzentos degraus de mármore branco. Mandou também fazer
aos pés dessa colina um outro palácio, para hospedar seus amigos, que era tão
espaçoso e tão cheio de toda espécie de bens, que se considerando a grandeza e
a abundância, poderia ser tomado por uma cidade: mas sua magnificência fazia
bem ver que era um palácio real.
88. Depois de tantas e grandes obras empreendidas e levadas a cabo por
esse príncipe na Judéia, ele quis também mostrar externamente que sua
magnificência não tinha limites. Mandou fazer em Trípoli, em Damasco e em
Ptolemaida, colégios para instruir a juventude; em Biblos, fortes muralhas; em
Berita e em Tiro, lugares de assembléia, armazéns públicos, mercados e
Templos; em Sidom e em Damasco, teatros. Mandou fazer também aquedutos
para levar água a Laocidéia, cidade perto do mar, e em Ascalom, banhos, fontes
e pórticos admiráveis, quer por sua grandeza, quer pela sua beleza. Ele deu a
outros, florestas e portos, a outros, terras, como se eles tivessem direito de
participar dos bens de seu reino e a outros, bem como a Coos, rendas anuais e
perpétuas, a fim de que não pudessem jamais perder a memória dos favores
que lhe deviam. Distribuiu também o trigo a todos os que tinham necessidade
dele, emprestanteu muitas vezes dinheiro, aos rodianos, para lhes dar os meios
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de equipar frotas, e o Templo de Apoio Pítio, tendo sido incendiado, ele o
mandou reconstruir mais belo do que antes.
Que poderia eu ainda dizer da liberalidade que ele manifestou aos lícios,
aos samenses e em toda a )ônia? Atenas, Lacedemônia, Nicópolis e Pérgamo da
Mísia, não lhe sentiram também os efeitos de alguma maneira? A grande praça
de Antioquia da Síria, que tem vinte estádios de comprimento, estava sempre
tão cheia de lama, que por ali não se podia passar, não a mandou ele calçar de
mármore e embelezar com galerias, onde podia a gente se abrigar durante a
chuva?
Mas além desses favores em particular a tantas cidades e a tantos povos,
louvores ele merece como os que os elídios receberam dele; pois não somente
toda a Grécia não lhe é menos devedora do que eles, mas também todas as
partes do mundo, onde a fama dos jogos olímpicos se espalhou, não são obriga-
dos a neles tomar parte? Quando ele foi a Roma, achando que esses jogos eram
o único sinal que restava da antiga Grécia, e não se podiam mais celebrar por
falta de dinheiro para as despesas, não se contentou de dar, naquele ano, os
prêmio aos vencedores, mas estabeleceu mesmo um fundo, capaz de lhe
satisfazer perpetuamente às despesas e assim, eternizou a sua memória.
89. Eu jamais poderia terminar, se quisesse enumerar todas as dívidas
que Derdoou e todos os impostos de que aliviou os povos, principalmente os de
Fazaela, de Balaneote e de outras cidades vizinhas a Cilícia, às quais ele teria
feito muito mais bem, se não tivesse temido causar inveja aos seus senhores,
como se ele quisesse conquistá-la, demonstrando-lhe mais afeto do que eles
mesmos.
90. A força física desse príncipe estava em relação com a grandeza de sua
alma. Apreciando muito a caça e sendo muito bom cavaleiro, não havia animal
mais veloz que não perseguisse; há no país grande quantidade de veados e de
burros selvagens; certa vez ele matou uns quarenta deles em um só dia. Ele
obtinha tão bons resultados em todos os outros exercícios e era tão valente, que
os mais bravos na guerra não podiam resistir à sua coragem, nem os mais
hábeis viam, sem espanto, com que vigor e precisão lançava o dardo e atirava
com o arco.
Tendo recebido tantos dons da natureza, ele não tinha menos motivo de
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se vangloriar de sua fortuna. Ela lhe foi sempre tão favorável que o fez vitorioso
em todas as guerras, não menos em algumas ocasiões, em que a má sorte não
lhe pôde, porém, ser atribuída, mas à perfídia de alguns traidores ou à
temeridade de seus soldados.
CAPÍTULO 17
POR DIVERSOS MOVIMENTOS DE AMBIÇÃO, DE INVEJA E DE
DESCONFIANÇA, O REI
 HERODES, O GRANDE, SURPREENDIDO PELAS
CABALAS E CALÚNIAS DE
 ANTÍPATRO, DE FERORAS E DE SALOMÉ, MANDA
MATAR
 HIRCANO, O SUMO SACERDOTE, AO QUAL PERTENCIA O REINO DA
JUDÉIA, ARISTÓBULO, IRMÃO DE MARIANA , SUA MULHER MARIANA,
E
 ALEXANDRE E ARISTÓBULO, SEUS FILHOS.*
_____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Quinto, capítulos 3,
4, 9 e 11, e no Livro Décimo Sexto, capítulos 1, 2, 6, 7, 8, 11, 12, 16 e 1 7,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
91. Desgostos familiares perturbaram a tranqüilidade desse reino, que
fazia passar Herodes por um dos príncipes mais felizes de seu século, e a
pessoa a quem mais ele amava foi disso a causa. Depois de ter subido ao trono,
ele repudiou sua primeira mulher de nome Dóris, que era de Jerusalém, para
desposar Mariana, filha de Alexandre. Este casamento dividiu toda a família, e
o mal aumentou ainda mais depois de sua volta de Roma. Os filhos que tinha
dessa princesa fizeram-no afastar a corte a Antípatro, filho de Doris, não lhe
permitindo nem mesmo vir a Jerusalém, a não ser nos dias de festa, e ele
mandara matar Hircano, avô materno de Mariana, porque tinha suspeitado de
que urdira uma conspiração contra ele, depois de ter deixado o cativeiro.
Barzafarnés, depois de se ter apoderado da Síria, levou-o prisioneiro ao rei dos
partos, e os judeus que habitam além do Eufrates, cheios de compaixão por sua
desdita, pagaram o resgate e ele não teria morrido, se tivesse seguido o
conselho que lhe deram de não mais voltar para perto de Herodes. Mas o
casamento de sua neta com esse soberano e, ainda mais, o desejo de rever seu
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país foram ciladas para ele, nas quais não pôde deixar de cair e embora não
manifestasse desejo de reinar, pois o reino pertencia legitimamente a ele,
Herodes considerou-o um crime, que o tornava digno da pena de morte.
92. Teve Herodes, de Mariana, cinco filhos, isto é, duas filhas e três filhos;
o mais jovem morreu em Roma, para onde fora mandado, a fim de se instruir
nas ciências; ele fazia educar os dois outros à maneira real, quer pela
excelência de sua origem do lado materno, quer porque os tivera depois de
cingir a coroa. Mas nada agia em seu favor com tanto poder, sobre seu espírito,
como sua incrível paixão por sua esposa; esta aumentava todos os dias, de tal
modo, que parecia insensível às ofensas que recebia. A princesa não o odiava
menos do que o amava e tinha tanta confiança no afeto que ele lhe dedicava,
que não temia acrescentar aos motivos que lhe dava sem cessar, de a trocar em
aversão, censuras pela morte de Hircano, seu avô, e de Aristóbulo, seu irmão,
que sua inocência, beleza e juventude não tinham podido preservar de sua
crueldade. Ele o tinha constituído sumo sacerdote na idade de dezessete anos e
as lágrimas de alegria derramadas pelo povo, quando o viu entrar no Templo,
revestido das vestes sagradas, causaram-lhe tanta inveja, que ele o mandou, à
noite, a Jerico, onde os gaiatas o afogaram, por sua ordem, num ataque.
A princesa não se contentava de fazer essas censuras a Herodes; ela
tratava também sua mãe e sua irmã de maneira ofensiva; ele a suportava sem
nada dizer, porque a violência de seu amor fechava-lhe a boca. Nada havia,
porém, ao contrário, que essas mulheres, desvairadas pelo furor e pelo desejo
de vingança, não fizessem para incitá-lo contra ela. Não lhe pouparam nem
mesmo a honra; para fazê-la passar em sua mente por impudica, acusaram-na
de ter mandado ao Egito seu retrato a Antônio, que todos sabiam ser o homem
mais apaixonado do mundo pelas mulheres e que poderia assim fazê-lo morrer,
para se apoderar da sua esposa. Estas palavras foram como um raio que feriu
Herodes e acenderam no seu coração a chama do ciúme. Ele considerava sem
cessar que não havia crueldade à qual a avareza insaciável de Cleópatra não
fosse capaz de levar Antônio; ela, que para ter os bens do rei Lisânias e de
Malce, rei dos árabes, os fizera morrer; assim, ele não somente corria risco de
perder a mulher, mas também a vida. Nessa agitação e perturbação em que
viviam quando partiu para ir falar com Antônio, ordenou a José, marido de
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Salomé, sua irmã, que matasse Mariana, se Antônio o fizesse morrer. José foi
tão imprudente que revelou esse segredo a Mariana, pelo desejo de a certificar
do extremo amor do rei, seu marido, para com ela, fazendo-lhe ver que ele não
podia tolerar que a mesma morte os separasse.
Dessa forma, quando Herodes, ao seu regresso, fazia-lhe protestos de seu
imenso amor e de sua paixão, afirmando-lhe que somente ela possuía seu cora-
ção, ela disse-lhe: "As ordens que destes a José, de me matar, são disso uma
grande prova." Estas palavras tão estranhas fizeram-no crer que ela se tinha
entregado a José, para poder ter arrancado dele tal segredo; atirou-se do leito,
aceso de cólera. Agitado ainda, e fora de si, ele passeava pelo palácio. Salomé,
para não perder uma ocasião favorável de acusar Mariana, confirmou-lhe as
suspeitas; assim, seu ciúme, como uma torrente impetuosa, que nada é capaz
de deter, fê-lo ordenar que naquele mesmo instante se matassem Mariana e
José. Mas, apenas tinha dado essa ordem, arrependeu-se. Seu amor pela
princesa, mais violento que nunca, triunfou sobre a cólera. A paixão dominava
de tal modo sua alma e sua razão, que mesmo quando a tivesse feito morrer,
não poderia crer que ela estava morta; falava-lhe, no excesso do desespero,
como se ainda estivesse viva, até que o tempo fê-lo conhecer que era verdade ter
ele mesmo se privado dela, por sua crueldade; então, manifestou não menor dor
por tê-la perdido do que havia manifestado amor, quando ainda a possuía.
93. Os filhos dessa infeliz princesa herdaram o ódio que tão estranha
crueldade tinha impresso no coração de sua mãe e o horror por um ato tão
bárbaro; fazia-os considerar seu pai como o maior inimigo. Eles sempre se
mantinham nesse sentimento, quando faziam seus exercícios em Roma, mas a
paixão crescia sempre com os anos e aumentou ainda mais depois de sua volta
à Judéia. Quando chegaram à idade de se casar, Herodes fez Alexandre, que era
o mais velho, desposar Glafira, filha de Arquelau, rei da Capadócia, e Antígono,
o mais novo, a filha de Salomé, sua tia, inimiga mortal de sua mãe. A liberdade
que o casamento lhes dava, unindo-se ao ódio por seu pai, tornaram-nos ainda
mais ousados contra ele, e seus perseguidores não deixaram de aproveitar esta
ocasião para dizer ao rei que esses dois príncipes estavam conspirando contra
sua vida, para vingar, com suas próprias mãos, a morte de sua mãe e
Alexandre tinha resolvido fugir logo depois, para junto de Arquelau, seu sogro,
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para de lá passar a Roma e acusá-lo perante Augusto.
94. Herodes, sensivelmente comovido com esta advertência, chamou para
perto de si a Antípatro, que ele tivera de Doris, para servir de defesa contra
seus irmãos, preferindo-o em todas as coisas. Como a grandeza dos reis, de que
eles eram descendentes do lado materno, os fazia desprezar a baixeza do
nascimento de Antípatro, oriundo de Doris, essa mudança lhes pareceu
insuportável e eles conceberam tal indignação, que não a podendo dissimular,
manifestavam-na a todos. Tão imprudente procedimento os fazia diminuir
diariamente a consideração para com eles; Antípatro, ao contrário, não se
descuidava de nada que pudesse aumentar-lhe o prestígio. Ele tinha habilidade
e tudo fazia para ser agradável ao rei; não havia artifícios de que não se servisse
para acusar seus irmãos, indispondo o rei contra eles, quer ele mesmo, quer
por meio de seus amigos. Esse ardil deu-lhe resultado, de tal modo que os
colocou em situação de não poder mais esperar sucedê-lo no trono. Herodes
declarou-o sucessor, em seu testamento, e o mandou a Augusto, com uma
equipagem e todos os distintivos de um rei, exceto a coroa.
95. Tão grande sorte ensoberbeceu-o de tal modo, que ele ousou pedir, e
obteve de Herodes, colocar sua mãe no lugar que Mariana havia deixado; e para
conseguir o seu intento de destruir seus irmãos, ele usou tanto de esperteza,
como de adulação, para com eles, servindo-se também de calúnias, contra os
mesmos, o que levou até mesmo Herodes a querer mandar matá-los. Assim, fê-
los ir a Roma, para acusá-los, perante Augusto, de ter querido envenená-lo.
Apenas esse infeliz príncipe pôde obter a permissão de falar para se defender;
mas, por fim, tendo encontrado na pessoa do imperador um juiz muito mais
hábil do que Antípatro e mais sábio do que Herodes, ele suprimiu, por respeito,
e com uma louvável modéstia, as injustiças de seu pai e destruiu fortemente
todas as calúnias de que se haviam servido para torná-lo odioso. Justificou
também Antígono, seu irmão, que haviam envolvido na suspeita do mesmo
crime e deu a conhecer que tudo fora motivado pela maldade de Antípatro.
Terminou seu discurso, dizendo que seu pai teria com justiça feito que eles
morressem, se fossem culpados; todos os presentes estavam com lágrimas nos
olhos, porque, além de ser assaz eloqüente e da confiança que ele tinha em sua
inocência, acrescentava ainda tanta graça e força às suas palavras, que
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ninguém poderia deixar de se persuadir da justiça de Augusto naquela causa.
O imperador ficou comovido, tanto que, considerando com desprezo todas as
acusações, reconciliou naquele mesmo momento os dois príncipes com seu pai,
com a condição de que cumprissem todos os deveres para com ele, e ser-lhe-ia
livre deixar o reino ao filho que escolhesse para sucessor.
96. Herodes partiu logo depois para voltar à Judéia e embora parecesse
que perdoara completamente a Alexandre e a Antígono, Antípatro, que ele tam-
bém levara consigo, mantinha-o, porém, sempre suspeitoso; sem, todavia,
manifestar sua má vontade contra eles, para não ofender tão poderoso media-
neiro na sua reconciliação com o imperador. Herodes navegou favoravelmente e
chegou, pela Cilícia, a Elusa, onde o rei Arquelau, que não deixara de escrever a
Roma e a todos os amigos em favor de Alexandre, recebeu-o com grandes
demonstrações de afeto e de alegria, porque seu genro tinha readquirido as
boas graças do rei, seu pai, e o acompanhou até Zefíria, dando-lhe ainda trinta
talentos, de presente.
97. Quando Herodes chegou a Jerusalém, reuniu o povo, informou-o, em
presença de Antípatro, de Alexandre e de Antígono, de tudo o que se havia
passado durante a viagem; deu graças a Deus por ter sido bem-sucedido em
tudo, e a Augusto, por ter restituído a paz à sua família e reunido os três
irmãos, felicidade que ele apreciava mais que o mesmo reino. "Mas",
acrescentou, "firmarei ainda mais essa união, pois esse grande príncipe não
somente me deu poder absoluto em meu reino, mas também deixou à minha
disposição escolher o meu sucessor, dentre os meus filhos. Assim, declaro que
minha intenção é dividir o reino entre aqueles que, praza a Deus, a quem rogo
de todo o meu coração, for agradável, e com a vossa aprovação. Creio nada
poder fazer de mais justo, pois se Antípatro tem a vantagem de ser mais velho
que seus irmãos, eles têm a nobreza do sangue e meu reino é bastante grande
para ser dividido entre os três. Honrai, pois, àqueles que o imperador teve a
bondade de reunir, e seu pai, de nomear por sucessor. Prestai a cada um,
segundo a idade, o respeito e as homenagens a que eles têm direito; não mudeis
a ordem que a natureza estabeleceu e lembrai-vos de que não obsequiareis
àquele ao qual prestardes mais honra embora mais jovem, sem ofenderdes aos
outros. Como sei que o vício ou a virtude daqueles que vivem com os príncipes,
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mantêm ou perturbam essa união, tomarei cuidado de lhes dar por amigos e de
colocar junto deles, os parentes que eu sei são os mais capazes de mantê-los
em boas relações e em cuja atuação posso confiar. Desejo, entretanto, que, no
momento, não somente essas pessoas que vou escolher, mas todos os oficiais
de minhas tropas, nada esperem senão de mim, somente, pois não estou dando
aos meus filhos o meu reino, mas apenas a certeza de possuí-lo um dia e uma
alegria que não lhes trará pena alguma, porque ainda que não o quisesse,
continuo a sustentar o peso dos negócios do Estado. Considerai a minha idade,
minha maneira de viver e minha piedade; vereis que eu não sou tão velho, que
não possa ainda viver por muito tempo: que eu não me entregarei à
voluptuosidade, a qual abrevia a idade dos jovens e que a maneira como servi a
Deus dá-me motivo de esperar de sua bondade, que ele prolongará meus dias.
Mas se, para agradar a meus filhos, alguém tiver a ousadia de me desprezar, eu
o castigarei como merece; não que eu seja invejoso da glória que se presta
àqueles que eu pus no mundo, mas porque sei que os jovens se deixam muito
facilmente dominar pela vaidade e pelo orgulho. Que cada qual, portanto,
imagine que seu bom ou mau proceder será seguido de recompensa ou de
castigo. É a maneira de proceder para me agradar a mim e aos meus filhos,
pois que lhes é vantajoso que eu reine e que fique satisfeito com eles." "Quando
a vós, meus filhos", acrescentou Herodes, dirigindo a palavra aos três filhos, "eu
vos exorto a cumprir religiosamente todos os deveres aos quais a natureza vos
obriga e que imprime mesmo no coração dos animais mais ferozes. Sede gratos
para com o imperador, por todas as homenagens e favores que lhe devemos, por
nos ter reunido todos. Procurai agradar-me com o que vos acabo de pedir e com
o que tenho o direito de vos ordenar, e vivei todos unidos de maneira
verdadeiramente fraterna. Darei ordem para que nada vos falte, de tudo aquilo
que a dignidade real exige e, se permanecerdes unidos, eu rogarei a Deus, de
todo o meu coração, fazer que aquilo que eu ordeno seja para vossa vantagem e
sua glória." Terminando estas palavras, ele abraçou os filhos com grandes
demonstrações de afeto e dissolveu-se a assembléia, uns desejando que os fatos
correspondessem às palavras; e os que só desejavam a agitação, fingiam não ter
entendido o que ele tinha dito.
98. Quanto aos três irmãos, muito longe de esse discurso os reunir, eles
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se afastaram e se separaram ainda mais do que nunca no próprio coração.
Alexandre e Aristóbulo, não podendo tolerar que Antípatro tivesse uma parte do
reino, nem Antípatro, o não possuí-lo por inteiro; mas por como ele era muito
fingido e muito mau, não mostrava o ódio que lhes tinha. E eles, ao contrário,
por aquela afoiteza que dá o esplendor da própria origem, não ocultavam seus
sentimentos. Vários, para agradar a Antípatro, insinuavam-se em sua amizade,
a fim de observar suas ações. Nada diziam que não lhe fosse logo referido e por
ele, ao rei, ao que ele ainda acrescentava outras coisas. Assim, Alexandre não
podia abrir a boca sem que disso tirassem proveito. Faziam passar por crime
suas palavras mais inocentes; por pouco que fossem livres, era um pretexto
suficiente para se atirarem contra ele as maiores calúnias, e pessoas
subornadas por Antípatro faziam-no continuamente falar, a fim de dar ocasião
a falsas delações e, com alguma probabilidade de verdade, levar Herodes a
prestar fé a todo o restante. Esse inimigo capital de seus irmãos só tinha
amigos secretos, aos quais os presentes que dava, obrigava a não revelar os
artifícios de seu proceder e de sua cabala, que se podia dizer, um mistério de
iniqüidade. Por outro lado, ele também tinha ganho, pelo dinheiro ou pela
bajulação, os que tinham mais familiaridade com Alexandre, a fim de os induzir
a traí-lo e a referir-lhe tudo o que se dizia ou que se fazia contra ele. Mas de
todos os meios de que ele se servia para incompatibilizar seus irmãos com o rei,
seu pai, o mais artificioso e o mais poderoso, era que, em vez de se declarar
abertamente inimigo, ele os fazia acusar por seus confidentes e, depois de ter
primeiro fingido defendê-los, apoiava diretamente o que ele via poder persuadir
a Herodes de que aquelas acusações eram verdadeiras e fazê-lo crer que
Alexandre era tão mau que o desejo que ele tinha de sua morte o levava a
tramar contra sua vida.
99. Tantos manejos que Antípatro empregava, ao mesmo tempo, irritavam
cada vez mais Herodes contra Alexandre e Aristobulo e quanto sua afeição por
aqueles diminuía, tanto aumentava, ao invés, por este. Como ele já era podero-
so, as principais pessoas da corte seguiam as inclinações do rei, uns
voluntariamente, outros para lhe agradar. Seu irmão Ptolomeu, o mais querido
de seus amigos, e toda a família real eram desse número. Nisto, o que era mais
insuportável a Alexandre era ver que naquela conspiração feita para destruí-lo,
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tudo se fazia a conselho da mãe de Antípatro, que era para ele e para seus
irmãos uma madrasta tanto mais cruel quanto não podia tolerar que eles
tivessem vantagem sobre seu filho, por terem tido por mãe tão grande rainha.
Mas não era somente o prestígio de Antípatro que levava todos a lhe fazerem
corte, pela esperança de obter alguma vantagem, mas era também para
obedecer ao rei; pois ele proibia aos que mais ele amava, que prestassem algum
obséquio a Alexandre e ao seu irmão; e esse príncipe não era somente temido
por seus súditos, mas o era também pelos estrangeiros, porque Augusto não
favoreceu a nenhum outro rei que não a ele, e lhe tinha dado poder de reter,
mesmo nas cidades que lhe não estavam sujeitas, os que saíam de seu reino,
sem sua permissão.
100. O perigo em que tantos maus serviços e tantas calúnias punham
esses jovens príncipes era tanto maior quanto eles não o conheciam, porque
Herodes não se queixava deles abertamente. Mas como lhes era fácil ver que o
afeto que ele lhes havia outrora demonstrado cada vez esfriava mais, seu penar
não podia não aumentar também. Antípatro teve mesmo a coragem de incitar
contra eles a Feroras, seu tio e Salomé, sua tia, aos quais falava com a mesma
liberdade como se ela tivesse sido sua esposa, e a princesa Glafira contribuía
para manter e aumentar essa inimizade. Como ela tinha sua origem do lado
paterno de Temeno e do lado materno de Dario, filho de Histape, a
desproporção que havia entre seu nascimento e o de todos os que eram
descendentes de outras mulheres no reino, fazia olhá-los com desprezo. Salomé
ficava muito ofendida e todas as mulheres de Herodes não menos do que ela,
pelo que ela dizia que a tinha desposado por causa de sua beleza; pois como
vimos, esse príncipe sentia prazer em usar da liberdade que a lei nos dá de ter
várias mulheres e não havia uma só delas que não odiasse a Alexandre, pelo
ressentimento, pela maneira tão ultrajante, com que a princesa, sua mulher, as
tratava.
101.
 Aristobulo, genro de Salomé, irritou ainda mais seu espírito e
tornou-a inimiga pelas censuras contínuas que fazia à sua mulher, por sua
baixa origem e porque seu irmão tinha desposado uma filha do rei, e ele tinha
por mulher a filha de um homem qualquer. Seu penar, por ser tratada desse
modo, fez-lhe vir as lágrimas aos olhos, e queixou-se à sua mãe. Ela
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acrescentou que Alexandre e Aristobulo diziam que se um dia galgassem o
trono, eles reduziriam as mulheres de Herodes a simples fiandeiras, com suas
servas e dariam como cargos, aos filhos que ele delas tivera, ofícios de
escrivães, que a maneira como tinham sido educados tornava aptos a
desempenhar. Salomé ficou tão irritada com essa palavras, que referiu tudo
imediatamente a Herodes e como era contra seu próprio genro que ela lhe
falava, ele não teve dificuldade em acreditar.
102. Diz-se também que uma outra coisa o impressionou sensivelmente e
fez-lhe redobrar a cólera contra os filhos; e foi que lhe afirmaram que eles
chamavam
 continuamente
 pela
 mãe;
 chorando
 sua
 desgraça,
 faziam
imprecações contra ele e, como ele dava freqüentemente às suas mulheres
vestes que haviam pertencido a essa princesa, diziam que as fariam mudar logo
em trajes de luto.
103. Embora Herodes temesse a altivez desses príncipes, ele não quis,
entretanto, perder toda esperança de reconduzi-los ao dever. Assim, estando de
partida para Roma, falou-lhes em poucas palavras, com uma severidade de rei e
fez-lhes um grande discurso, com bondade de pai. Concluiu, exortando-os a
amar seus irmãos e prometeu-lhes esquecer todas as faltas passadas, contanto
que procedessem melhor para o futuro. Eles responderam-lhe que lhes seria
fácil provar, que nada havia de mais falso, do que tudo o que lhe haviam
referido deles, apenas para torná-los odiosos; e que não lhe fosse grato tornar
menos fácil prestar fé a semelhantes palavras, pois encontrariam sempre
pessoas que procurariam a sua ruína, inculcando calúnias em seu espírito.
104. Como as entranhas de seu pai não podiam deixar de se comover
com estas palavras, esses dois príncipes sentiram-se então livres de suas penas
e dos temores presentes e começaram ao mesmo tempo a temer pelo futuro,
porque souberam que tinham a Salomé e Feroras como inimigos, ambos muito
temíveis e principalmente Feroras, porque Herodes tinha-o associado ao
governo; só lhe faltava a coroa para ser considerado rei. Ele tinha de próprio
cem talentos de renda; Herodes deixava-o gozar de todas as terras que estavam
além do Jordão; ele tinha obtido de Augusto a Tetrarquia; tinha-o feito desposar
a irmã de sua mulher e, depois que ela falecera, tinha querido dar-lhe em
casamento uma de suas filhas, com trezentos talentos; mas a paixão que
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Feroras tinha por uma moça de condição baixa, tinha-o feito recusar o partido
tão vantajoso e tão honroso, com que Herodes ficou muito ofendido e a deu ao
filho de Fazael, seu irmão mais velho. Entretanto, algum tempo depois,
considerando aquela recusa como uma loucura que a violência do seu amor
tinha-o feito cometer, ele perdoou-o. Havia corrido uma notícia muito tempo
antes que, quando ainda vivia a rainha Mariana, Feroras quisera envenenar o
rei seu irmão; Herodes estava então muito inclinado a acreditar em todas as
calúnias, ainda que ele amasse muito a Feroras, e prestanteu fé àquela. Assim
fez torturar a vários que lhe eram suspeitos e depois a alguns mesmo dos
amigos de Feroras. Nada eles confessaram a respeito do veneno, mas disseram
somente que Feroras tinha resolvido fugir para junto dos partos, com aquela
mulher a quem ele amava e que Costobaro, que Salomé tinha desposado depois
da morte de seu primeiro marido, conhecia o seu projeto. Salomé foi também
acusada por Feroras, seu irmão, de várias coisas de que não se pôde justificar e
particularmente de ter querido desposar Sileu, que governava toda a Arábia,
sob o rei Oboudas e que Herodes odiava muito, mas ele perdoou a ambos, isto
é, a ela e a Feroras.
105. Toda a tempestade caiu sobre Alexandre, pelo motivo que passo a ex-
por: Herodes tinha recebido três eunucos aos quais estimava muitíssimo, um
dos quais era seu criado de quarto, o outro, seu mordomo de sala e o terceiro,
mordomo do palácio. Alexandre subornou-os com grandes presentes. Herodes
veio a sabê-lo e os fez torturar tão rudemente, que a violência dos tormentos os
obrigou a tudo confessar. Eles disseram que Alexandre os havia enganado,
dizendo-lhes que o rei seu pai era um velho de caráter insuportável, que
mandava pintar os cabelos para parecer moço e do qual eles nada tinham a
esperar; mas que era a ele que deviam estimar e dele esperar o afeto, pois ele
seria seu sucessor embora o rei não o quisesse; vingar-se-ia de seus inimigos e
recompensaria os amigos, entre os quais eles tinham o primeiro lugar. Eles
acrescentaram que os grandes, os comandantes e os outros principais oficiais,
estavam todos de acordo com Alexandre e serviam-no secretamente. Estas
afirmativas lançaram tal terror no espírito de Herodes que a princípio ele não
ousou manifestar nada, nem deu a entender que tudo sabia. Contentou-se de
fazer vigiar dia e noite as palavras e as ações de todos e quando suspeitava de
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alguém, mandava logo matá-lo. Dessa forma, nesse infeliz reino, só se viam
crueldades e injustiças. Esse príncipe estava sempre pronto a derramar sangue;
e no furor que o agitavam, era suficiente inventarem-se calúnias contra aqueles
que ele odiava, para logo serem eliminados; em tudo ele acreditava; não havia
intervalo entre a acusação e a condenação; e se o acusador se tornava acusado,
eram ambos levados ao suplício, porque esse príncipe julgava que, quando se
tratava de sua vida, não era necessário observarem-se certas formalidades. Sua
crueldade chegou a tal excesso, que não somente não podia olhar com bons
olhos os que não eram acusados, mas era impiedoso mesmo para com seus
amigos. Exilou a vários do seu reino e usou mesmo de palavras ofensivas
contra outros, sobre os quais seu poder não se estendia. Para cúmulo da
infelicidade de Alexandre, não houve calúnias que Antípatro e todos esses
parentes não inventassem para conseguir arruiná-lo; a facilidade e a
imprudência de Herodes faziam-no prestar fé a tantas falsas acusações e ele
começou a sentir tal medo que imaginava ver Alexandre vir a ele com a espada
na mão, para matá-lo. Mandou imediatamente pô-lo numa prisão e fez tnrturar
seus amiqos. Alquns morriam nos tormentos sem nada confessar, porque não
queriam ferir sua consciência; outros, não podendo suportar tantas dores,
depunham contra a verdade, que os dois irmãos tinham conspirado contra o
rei, seu pai, e resolvido aproveitar para matá-lo durante uma caçada e depois
fugir para Roma. Essa acusação era tão pouco verossímil que facilmente se
podia muito bem compreender que era feita apenas para se verem livres da
tortura. Herodes, entretanto, facilmente deixava-se convencer e estava bem
satisfeito de que parecia por meio delas, que ele não cometera nenhuma
injustiça, mandando prender seu filho. Alexandre, vendo-o tão irritado contra
si, julgou impossível acalmá-lo, resolveu aceitar tudo o de que o acusavam e
servir-se desse meio para destruir os que o queriam desgraçá-lo. Assim,
escreveu quatro documentos, pelos quais reconhecia ter querido tentar contra a
vida do rei, seu pai, mas citava também várias pessoas que ele dizia serem
cúmplices de seu projeto e particularmente Feroras e Salomé, a qual ele
declarava ser tão impudica que tivera a desfaçatez de vir à noite, contra a
vontade dele, deitar-se em sua cama.
106. Esses documentos que acusavam de tantos crimes a vários dos
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principais da corte, estavam já nas mãos de Herodes, quando Arquelau, rei da
Capadócia, chegou. Seu temor pelo príncipe, seu genro e pela filha tinha-o feito
vir com grande pressa, a fim de ajudá-los em tão premente necessidade e sua
sábia orientação venceu a cólera de Herodes. Ele começou por dizer: "Onde está
então meu abominável genro? Onde está esse detestável assassino, para que eu
o estrangule com minhas próprias mãos? Quero dar minha filha em casamento
a outro príncipe virtuoso, visto que ele é tão mau! Embora ela não tenha parte
em crime tão horrível, basta que seja sua mulher, para que a vergonha recaia
sobre ela também. Quem poderia assaz admirar a vossa paciência por ver que,
em tal conjuntura, em que não se trata de nada menos do que da vossa vida,
permitis que Alexandre ainda viva? Eu pensava, quando parti, encontrá-lo já
morto e não ter que vos falar senão de minha filha, a qual unicamente a
consideração por vós me levou a dá-la por esposa. Mas pelo que vejo, temos
agora que deliberar a este respeito, nós dois. Se vossa ternura por um filho não
merece mais ser considerada como tal, depois que ele se tornou quase
parricida, vos torna demasiado tardio em puni-lo; tolerai, eu vos rogo, que eu
tome o vosso lugar e vós, tomai o meu, a fim de que eu vos vingue de vosso filho
e façais de minha filha o que quiserdes."
Por maior que fosse a cólera de Herodes, estas palavras de Arquelau o
desarmaram; e assirn ele entregou-lhe os quatro documentos escritos por
Alexandre. Eles os examinaram juntos, artigo por artigo, e Arquelau deles se
serviu para fazer justamente o que tinha resolvido, lançando pouco a pouco a
causa de todo o mal sobre aqueles de que ele falava em seus escritos e
particularmente sobre Feroras.
Quando ele percebeu que Herodes já começava a ser do seu parecer,
disse-lhe: "Não poderia ser que Alexandre se tenha deixado enganar pelos
artifícios de tantos maus espíritos, que não tenha ele mesmo formado tal
projeto, de tentar contra vossa vida? Eu vos confesso não ver qual razão teria
podido levá-lo a cometer o maior de todos os crimes, pois ele já goza de todas as
honras da realeza e tem motivo de esperar suceder-vos; se ele tivesse concebido
tal desígnio, seria preciso, sem dúvida, que ele tivesse sido impelido por outros
que teriam abusado da pouca experiência de sua juventude, para lhe dar tão
detestável conselho. Pois todos sabem que essa espécie de gente é capaz de
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enganar, não somente aos moços, mas mesmo os mais idosos, arruinar as
famílias mais ilustres e subverter os mesmos reinos?"
Herodes, impressionado com estas palavras, sentia pouco a pouco
diminuir sua animosidade contra Alexandre e irritava-se contra Feroras, que
aqueles escritos acusavam claramente. Quando Feroras soube disso e viu a
ascendência que Arqueiau tinha conquistado sobre o espírito de Herodes,
julgou que o único meio de se salvar era recorrer a ele mesmo. Assim, foi
procurá-lo e o príncipe respondeu-lhe que ele não via como poderia justificar-se
de tantos crimes, pois parecia manifestamente que ele tinha tentado contra a
vida do rei, seu irmão; que ele era causa de tudo o que Alexandre sofria, que o
único meio que lhe restava era confessar tudo ao rei do qual sabia ser muito
estimado e pedir-lhe perdão. Depois disso, prometia ajudá-lo, com todas as
suas posses. Feroras seguiu aquele conselho. Tomou um hábito de luto para
comover Herodes e causar-lhe compaixão, foi lançar-se aos seus pés, confessou
que ele era culpado e rogou-lhe que o perdoasse de todas as faltas que a
perturbação em que se encontrava seu espírito, por sua louca paixão por
aquela mulher, o tinha levado a cometer. Depois que Feroras foi assim seu
próprio acusador e prestanteu testemunho contra si mesmo, Arqueiau
desculpou-o e acalmou a cólera de Herodes, alegando, por exemplo, que ele
tinha recebido ofensas muito maiores de seu irmão; mas que tinha preferido os
sentimentos da natureza aos que inspiram o desejo de vingança, porque
acontece nos reinos a mesma coisa que nos corpos grandes e pesados, que os
tumores caem sobre alguma parte e causam uma inflamação; mas que, em vez
de se eliminar aquela parte, deve-se-lhe procurar o remédio, tentando curá-la.
Arqueiau, com estas e outras semelhantes palavras, estabeleceu a paz entre ele
e Feroras, mas mostrava-se sempre tão encolerizado contra Alexandre, que
queria tirar-lhe a filha de qualquer modo e fez assim Herodes interceder em
favor do filho, para não romper o casamento. Arqueiau respondeu que tudo o
que podia fazer, para conservar a aliança, era deixar em seu poder dar a
princesa em casamento a quem quisesse, contanto que a tirasse de Alexandre.
Herodes retorquiu-lhe que se ele queria fazer-lhe um favor completo, como
restituir-lhe o filho, ele devia deixar-lhe a esposa, pois tinha filhos dela e a
amava apaixonadamente, tanto que não podia privá-lo dela sem levá-lo ao
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desespero: ao passo que deixando-a, a alegria de viver com uma pessoa que lhe
era tão querida, fá-lo-ia mudar de vida e traria a calma ao seu espírito; nada,
pois, tão capaz de acalmar os caráteres, mesmo os mais violentos, do que a
consolação que se tem no recesso da família. Arqueiau acedeu a estas razões e
com isso Herodes ficou muito agradecido; tendo assim reconciliado seu filho
com ele, aconselhou-o a fazer uma viagem a Roma, para informar Augusto de
tudo o que se havia passado, pois tendo-lhe escrito fazendo-lhe queixas do
filho, a cortesia mandava que fosse ele mesmo dar-lhe contas de tudo.
Quando esse rei da Capadócia, com tal proceder, tão prudente, impediu a
ruína de Alexandre e o restituiu às boas graças ao rei, seu pai, houve muitos
banquetes de regozijo; quando ele partiu para regressar, Herodes deu-lhe de
presente setenta talentos, um trono de ouro, enriquecido com muitas pedras
preciosas, alguns eunucos e uma linda jovem de nome Paniche. Todos os seus
parentes e amigos deram-lhe também, por ordem sua, muitos e magníficos pre-
sentes, e ele o acompanhou com os mais ilustres de seu reino até Antioquia.
107. Pouco tempo depois veio um homem da judéia que não somente des-
truiu tudo o que Arqueiau havia feito em favor de Alexandre, mas foi causa de
sua morte. Era lacedemônio e chamava-se Euricles. Seu luxo, que a Grécia não
tinha podido tolerar, era tão grande, que ele precisaria de tudo o que pertencia
ao rei para ficar satisfeito. Conquistou o afeto de Herodes com ricos presentes e
recebeu também dele, outros maiores; mas era tão mau, que nada o podia con-
tentar, se ele não visse por seu intermédio derramar-se o sangue dos príncipes
da família real. Para conseguir o seu intento, insinuou-se no espírito de
Herodes, quer por seus manejos, quer pela adulação e pelos louvores que lhe
dava: e como ele tinha conseguido conhecer perfeitamente o caráter de Herodes
nada ele dizia nem fazia que não lhe fosse agradável, que ele ocupava um dos
primeiros lugares entre seus amigos. Assim toda a corte muito o estimava,
como também por causa do seu lugar de origem. Quando ele percebeu a divisão
entre os irmãos e os sentimentos de Herodes para cada um deles, foi se
hospedar em casa de Antipatro e, para enganar a Alexandre e conquistar
confiança, insinuando-se em seu espírito, ele disse-lhe falsamente que era há
muito tempo amigo do rei Arquelau, seu sogro; e o príncipe ficou persuadido
disso e persuadiu também a Aristobulo, seu irmão. Depois que Euricles assim
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conquistou o afeto de todos os príncipes, ele agia com cada um deles, de
maneira diferente, segundo julgava mais próprio para alcançar o objetivo que
havia premeditado, de se unir a Antipatro e trair Alexandre. Dizia àquele que se
admirava de, sendo ele o mais velho, permitia que seus irmãos lhe quisessem
tirar a coroa à qual ele podia pretender, mesmo sozinho. Dizia, ao contrário, a
Alexandre, que tendo sua origem de família real, sendo esposo da filha de um
rei, do qual poderia obter suficiente auxílio, não compreendia como ele tolerava
que Antipatro, o qual tinha por mãe uma mulher de condição medíocre, se
iludisse com a esperança de suceder ao rei, no governo; estas palavras faziam
tanto mais impressão no espírito de Alexandre, quanto esse velhaco lhe havia
feito crer que ele era estimado pelo rei, seu sogro. Assim, não desconfiando de
nada, ele lhe abria seu coração, a respeito dos desgostos que tinha por causa
de Antipatro e não temia dizer-lhe que não havia motivo de se admirar de que o
rei depois de ter feito morrer a rainha sua mãe, lhe quisesse tirar o reino. A esse
respeito, Euricles mostrava-se tomado de grande compaixão e lamentava tão
sentidamente seu infortúnio e o do príncipe Aristobulo, seu irmão, que ele não
teve dificuldade em levá-lo a lhe dizer as mesmas coisas. Referiu depois a
Antipatro tudo o que eles lhe tinham dito em confiança e acrescentou
falsamente que eles tinham resolvido desfazer-se dele e que não havia um
instante sequer em que ele não corresse perigo de vida. Antipatro agradeceu-lhe
tanto esse aviso, que lhe deu uma grande soma de dinheiro, e o traidor, como
recompensa, não somente o louvava perante Herodes sem cessar, mas depois
de ter tratado com eles dos meios de matar Alexandre e Aristobulo, ele se
ofereceu para ser seu acusador perante o rei. Assim foi procurá-lo e lhe disse
que para lhe agradecer os favores que lhe devia, vinha dar-lhe um aviso, que
interessava mesmo à sua vida; havia muito tempo que Alexandre e Aristobulo
tinham determinado matá-lo; que eles se tinham sempre procurado fortificar-se
para esse fim e que o teriam já executado, se ele não lhes tivesse impedido,
fingindo querer se lhes associar; que Alexandre dizia que não era bastante ao
seu pai ter usurpado a coroa, ter feito morrer a rainha, sua mãe, ter depois de
sua morte continuado a gozar do poder, mas que ele queria mesmo ter a um
bastardo, por sucessor, escolhendo para isso a Antipatro, despojando-o a ele e
ao irmão de seus territórios, os quais seus antepassados lhes haviam deixado;
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mas que ele estava resolvido a vingar a morte de Hircano e de Mariana, pois
não era justo que um homem como Antipatro subisse ao trono sem derrama-
mento de sangue e que ele tinha todos os dias muitos motivos para continuar
seus propósitos; que ele não podia dizer uma só palavra que não se tomasse
logo ocasião de caluniá-lo; que se acontecesse falar-se da nobreza de alguém o
rei dizia imediatamente que era para ofendê-lo, que somente Alexandre era de
família ilustre e que a do pai era indigna dele; que quando ele ia à caça, achava
ruim que não se louvassem as suas habilidades e, se se louvava, então
chamava de adulador; que, por fim, nada podia ele fazer que não lhe fosse
desagradável e que somente Antipatro tinha o dom de agradá-lo. E assim ele
preferia morrer, que não viver, se sua empresa viesse a falhar; mas se desse
resultado, ser-lhe-ia fácil salvar-se junto do rei Arquelau, seu sogro, e ir em
seguida procurar Augusto, não para se justificar perante ele dos crimes de que
o acusavam, como outrora tinha feito, dominado pelo temor que lhe causava a
presença de seu pai, mas para informá-lo dos maus tratos, que ele dispensava
aos seus súditos; dos enormes impostos com que os sobrecarregava, das
voluptuosidades em que gastava aquele dinheiro que se podia dizer, era mais
puro que o sangue das pessoas que com ele se enriqueceram e das cidades que
gemiam mais sob sua cruel dominação; que, por fim, ele diria de tal modo ao
imperador, da crueldade com que tinha feito morrer Hircano, seu avô e a
rainha, sua mãe; que não seria mais possível, depois daquilo, passar em seu
espírito por um parricida. Euricles, depois de tantas calúnias contra Alexandre,
começou a louvar Antipatro; disse a Herodes que era ele o único de seus filhos
que lhe tinha afeto; que ele tinha impedido até então a execução de um crime
tão detestável.
A ferida que as suspeitas precedentes de Herodes tinham feito em seu
coração não estava ainda bem cicatrizada, e estas palavras irritaram-no em
excesso; Antipatro tomou então a ocasião para lhe dizer, por meio de outras
pessoas que havia subornado, que Alexandre e Aristóbulo haviam mantido
relações secretas com Jucundo e Tirano, dois oficiais de cavalaria, que ele tinha
destituído do cargo, por algum motivo particular. Herodes mandou prendê-los
imediatamente e os fez torturar. Nada eles confessaram do que eram acusados,
mas apresentaram uma carta, que diziam escrita por Alexandre, ao governador
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do castelo de Alexandriom, pela qual rogava-lhe que o recebesse em sua praça
com Aristóbulo, quando se tivessem desfeito do rei, seu pai, e os ajudasse com
armas e todas as outras coisas. Alexandre jurou que aquela carta era falsa e
tinha sido escrita por Diófano, um dos secretários do rei, que era um grande
falsificador, muito perito em imitar toda sorte de caligrafia. De fato, depois ele
foi condenado à morte por crimes semelhantes. Herodes mandou depois
torturar aquele governador e, — embora ele nada tivesse confessado, bem como
os demais e não se encontrassem provas daquilo de que acusavam seus filhos
— não deixou de metê-los numa prisão, e chamando seu benfeitor e seu
salvador àquele detestável Euricles, que por tão horrível maldade tinha feito
lavrar um incêndio em sua família, deu-lhe cinqüenta talentos. Esse celerado,
antes que a notícia da prisão daqueles dois príncipes se espalhasse, foi
rapidamente procurar o rei Arquelau e teve a desfaçatez de lhe dizer que tinha
reconciliado Alexandre, seu genro, com o rei seu pai, e assim, depois de ter
tirado dinheiro daquele príncipe regressou para a Grécia, onde fazia mau uso
dos bens que com tantos crimes havia conquistado. Por fim, tendo sido acusado
perante Augusto de ter posto a perturbação em toda a Grécia e prejudicado
várias cidades, foi mandado ao exílio, recebendo o castigo da traição a
Alexandre e a Aristóbulo.
108.
 Creio dever relatar aqui um fato, totalmente contrário ao de
Euricles, de um homem de nome Varate, originário de Coos. Ele tinha vindo à
corte de Herodes no mesmo tempo em que aquele pérfido lacedemônio agia de
modo como acabamos de narrar, e era muito amigo de Alexandre. Herodes
interrogou-o sobre coisas de que seus filhos eram acusados. Ele protestou-lhe
com juramento, que nada sabia de semelhante coisa. Mas um testemunho tão
sincero e tão generoso foi inútil àqueles pobres príncipes, porque Herodes não
acreditou e só aceitava os que lhe falavam continuamente em seu favor.
109. Salomé foi uma das pessoas que mais se irritou contra eles; para
poder salvar-se, arruinou-os. Aristóbulo, que era ao mesmo tempo seu sobrinho
e seu genro, para induzi-la a ajudá-lo e ao irmão, fez-lhe ver que ela corria o
mesmo risco que eles, e disse-lhe que ela devia acautelar-se também, porque o
rei tinha determinado fazê-la morrer, porque lhe haviam referido que sua
paixão e seu desejo de desposar Sileu, que ele considerava seu inimigo, a levava
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a lhe dar secretamente aviso de tudo o que ela sabia de seus segredos. Essa
imprudência de Aristóbulo foi como o último golpe do vendaval que, como uma
grade tempestade, fez naufragarem os dois príncipes. Salomé foi imediatamente
referir tudo ao rei, e ele ficou de tal modo irritado e encolerizado, que não se
conteve mais e mandou que acorrentassem os dois filhos e os prendessem
separadamente.
110.
 Mandou em seguida Volúmnio, comandante de sua cavalaria e
Olímpio, um de seus amigos particulares, procurar Augusto para levar-lhe
informações do que se havia passado, contra seus filhos. Quando eles
chegaram a Roma e apresentaram as cartas ao grande imperador, ele ficou
tomado de compaixão pela infelicidade dos jovens príncipes, mas não achou
justo tirar a um pai o poder que a natureza lhe outorga sobre os filhos. Assim,
escreveu a Herodes que podia dispor deles como quisesse; mas julgava que o
conselho que devia antes tomar era reunir os parentes e os governadores das
províncias para ponderar toda a questão e se, depois de tudo bem examinado,
os filhos fossem tidos como culpados, por terem tentado contra sua vida, ele
podia fazê-los morrer ou, se seu intento era apenas fugir, condená-los, então, a
um castigo leve.
111.
 Herodes, para executar esta ordem, convocou uma grande
assembléia em Berita, lugar que o imperador lhe havia indicado. Saturnino e
Pedânio presidiram-na, acompanhados por Volúmnio, intendente da província.
Os parentes de Herodes, no número dos quais estavam Feroras, Salomé e seus
amigos, lá estavam e com eles os maiores senhores da Síria, mas Arquelau não
quis comparecer, porque sendo sogro de Alexandre, era suspeito a Herodes.
Quanto aos seus filhos, não os quis mandar vir; fê-los ficar sob guarda severa,
numa aldeia dos sidônios, chamada Platana, porque ele julgava bem que sua
presença seria capaz de mover os juizes à compaixão e, se permitisse que eles
se defendessem, Alexandre justificar-se-ia facilmente, e seu irmão também, de
todos os crimes de que eram acusados. Falou contra eles com ardor nessa
assembléia, como se eles estivessem presentes; mas, com moderação, quando
se tratava da conjuração, que pretendia terem eles urdido contra sua vida,
porque disso não tinha provas; e com força, quando falava das maledicências,
das censuras, das injúrias, dos ultrajes e das ofensas que dizia deles ter
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recebido e que afirmava serem-lhe mais intoleráveis que a mesma morte. Nin-
guém o contradisse e ele queixou-se daquele silêncio, que parecia condená-lo;
disse que era para ele bem triste usar do poder contra seus próprios filhos e
rogou em seguida que cada qual opinasse. Saturnino falou por primeiro, e disse
que era de opinião que se castigassem os dois príncipes, não de morte, porque
ele era pai; ele também tinha três filhos, naquela assembléia, e não podia ter
um sentimento tão cruel e rude. Dois outros deputados do imperador foram da
mesma opinião e alguns outros também. Volúmnio foi o primeiro que opinou
pela pena de morte, e todos os outros seguiram-no; uns, para bajular Herodes,
outros, pelo ódio que lhe tinham; nenhum, porque estava mesmo certo de que
os príncipes merecessem tão cruel castigo. Toda a judéia e toda a Síria tinham
os olhos abertos para ver qual o fim daquela deplorável tragédia e esperava-se
com impaciência, sem que ninguém pudesse imaginar que Herodes chegasse
até aquele excesso de desumanidade, querendo mesmo a morte de seus dois
filhos. Mandou-os depois acorrentados a Tiro e de lá, pelo mar, a Cesareia,
onde depois deliberaram que gênero de morte lhes seria reservado.
112. Um velho cavaleiro, então, de nome Tirom, que nutria grande
amizade aos príncipes e cujo filho era muito amigo de Alexandre, ficou tomado
de tão grande dor que não teve receio de dizer publicamente que não havia mais
nem verdade, nem justiça no mundo; que os homens pareciam ter renunciado a
todos os sentimentos da natureza e que suas ações estavam cheias de malícia e
de iniqüidade. Acrescentava, ainda, tudo o que uma paixão violenta pode
inspirar a um homem que tem desprezo pela vida. Foi mesmo corajosamente
procurar o rei e falou-lhe deste modo: "Permiti-me, senhor, dizer-vos que vos
considero o homem mais infeliz do mundo, por prestardes fé, como fazeis, a
alguns celerados que querem destruir pessoas que vos devem ser mui queridas.
É possível que Feroras e Salomé, que tantas vezes julgastes dignos do suplício,
encontrem prestígio e crédito em vosso espírito, contra vossos próprios filhos e
não percebais que seu intento é privar-vos de vossos legítimos sucessores, a fim
de que não restando outro que Antípatro, seria mais fácil perder-vos? Podeis
duvidar de que a morte desses dois irmãos não o torne odioso aos soldados,
pois não há quem não tenha compaixão da infelicidade desses jovens príncipes
e vários dos mais ilustres não temem mesmo dizê-lo abertamente?" Tirom,
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assim
 falando,
 citou-lhes
 os
 nomes;
 Herodes
 os
 mandou
 prender
imediatamente com Tirom e seu filho. Então, um barbeiro do rei de nome
Trifom, adiantou-se, e, como agitado por um movimento de frenesi, disse-lhe:
"Tirom, senhor, quis persuadir-me a vos cortar a garganta com minha navalha
quando eu fazia a barba a vossa majestade e prometeu-me que eu com isso
receberia uma grande recompensa de Alexandre". Herodes sem titubear fez
torturar Tirom, seu filho e o barbeiro. Os dois primeiros sustentaram que nada
havia de mais falso do que aquela acusação de Trifom e ele nada mais disse do
que já havia dito. Herodes então ordenou que torturassem ainda mais a Tirom;
seu filho, não podendo tolerar que lhe infligissem tantos tormentos, disse ao rei
que confessaria tudo, contanto que deixasse de supliciar seu pai. Ele o fez e
então o moço disse que era verdade que seu pai estava persuadido de que
Alexandre queria mesmo matá-lo. Alguns pensaram que ele assim havia falado
apenas para poupar mais sofrimentos ao próprio pai, e outros estavam certos
de que aquele testemunho era verdadeiro. Herodes acusou em seguida
publicamente aqueles principais oficiais do exército, bem como Tirom. O povo
lançou-se sobre eles e os matou a bastonadas e pedradas. Quanto a Alexandre
e Aristobulo, Herodes mandou-os a Sebaste, que está perto de Cesaréia, onde
os fez enforcar por sua ordem. Seus corpos foram trazidos ao castelo de
Alexandriom e foram enterrados junto do de Alexandre, seu avô materno. Este o
fim dos dois infelizes príncipes.
CAPÍTULO 18
CABALA DE ANTÍPATRO, O QUAL ERA ODIADO POR TODOS. O REI HERODES
MOSTRA QUERER TOMAR GRANDE CUIDADO DOS FILHOS DE
 ALEXANDRE E DE
ARISTOBULO. CASAMENTOS QUE ELE PROJETA PARA ESSE FIM E FILHOS QUE
TEVE DE NOVE MULHERES, ALÉM DOS DE
 MARIANA .ANTÍPATRO FÁ-LO MUDAR
DE IDÉIA COM RELAÇÃO AOS CASAMENTOS.
 GRANDES DIVERGÊNCIAS NA CORTE
DE
 HERODES. ANTÍPATRO FAZ QUE ELE O MANDE A ROMA , ONDE SILEU
TAMBÉM VAI E DESCOBRE-SE QUE ELE PLANEJARA MATAR
 HERODES. *
__________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulos 1, 3
e 4, Antigüidades Judaicas, Parte I.
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113. Ninguém mais podia então disputar o trono a Antípatro; no entanto,
jamais ódio foi maior, nem mais geral, do que o que então se tinha dele, porque
não se duvidava de que ele tinha causado com suas calúnias a morte de seus
irmãos e os filhos que tinham deixado davam-lhe por outro lado grandes
temores. Alexandre tivera dois filhos de Glafira, Tigrano e Alexandre, Aristobulo
tivera três, da filha de Salomé, Herodes, Agripa e Aristobulo e duas filhas,
Herodíada e Mariana.
Herodes, depois da morte de Alexandre, mandou a princesa Glafira, viúva,
com seu dote, para a casa de Arquelau, seu pai, e casou Berenice, viúva de
Aristobulo, com o tio materno de Antípatro, que arranjou este casamento para
se reconciliar com Salomé, que o odiava. Antípatro conquistou também a
Feroras, com ricos presentes e com toda a espécie de favores, mandou grandes
somas a Roma, para conquistar a amizade daqueles que tinha prestígio perante
Augusto e nada poupou para conquistar também o afeto de Saturnino e dos
principais da Síria. Todavia, mais ele dava, mais era odiado, porque não se
consideravam os presentes como dádiva de sua liberalidade, mas efeitos do seu
medo; e, assim, somente lhe serviam para torná-lo ainda mais odioso e criar
mais inimigos contra si próprio, justamente aqueles que nada recebiam.
Continuou, todavia, a sua magnificência, em vez de diminuí-la, quando viu que
contra sua esperança Herodes tomava conta dos órfãos e demonstrava, pela
compaixão por eles, que estava arrependido de os ter reduzido, pela morte de
seus pais, a uma condição tão deplorável.
114. Este rei, tão feliz e tão infeliz ao mesmo tempo, reuniu seus parentes
e amigos, mandou vir os pequenos príncipes e disse, tendo os olhos marejados
de lágrimas: "Pois que a minha desdita me arrebatou aqueles de quem estas
crianças tiveram a vida, não há cuidados que a natureza e minha compaixão do
estado em que se encontram não me obrigue a tomar delas. Mas procurarei
mostrar que, se fui o mais infeliz de todos os pais, nenhum avô me superará em
afeto: nada recomendarei tanto aos mais caros dos meus amigos, do que
continuarem a mesma solicitude, quando eu não estiver mais neste mundo.
Para começar a dar-vos provas disso, quero, disse ele, dirigindo a palavra a
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Feroras, casar vossa filha com o mais velho destes filhos de Alexandre, a fim de
vos obrigar a servir-lhe de pai. Resolvi, acrescentou ele, falando a Antípatro,
que vosso filho despose uma das filhas de Aristóbulo, para vos obrigar à mesma
coisa; e eu entendo que Herodes, meu filho e neto do lado materno de Simão,
sumo sacerdote, despose a outra filha de Aristóbulo. Tal é a minha vontade e
não se poderia amar-me e achar difícil a sua realização. Rogo a Deus que faça
frutificarem esses casamentos para vantagem de minha família e de meu reino
e torne todos esses filhos tais, que eu possa ter por eles outros sentimentos que
não os tive por seus pais." Terminou seu discurso chorando, fez que seus filhos
se abraçassem, abraçou-os também, a todos, com muitas demonstrações de
afeto e de ternura e dissolveu assim a assembléia.
115. Este fato de tal modo amedrontou a Antípatro, que todos o notaram.
Ele considerava como uma diminuição de seu prestígio, demonstrações tão
favoráveis do afeto de Herodes para com os órfãos e julgava assaz que não havia
perigo que ele não corresse, se, além do auxílio que os filhos de Alexandre
podiam ter do rei Arquelau, seu avô, Feroras, que era tetrarca, entrasse ainda
em seus interesses. Ele imaginava também o ódio geral que excitava contra ele
a infelicidade daqueles jovens príncipes, de que todos o consideravam culpado,
bem como do assassínio de seus pais. Assim deliberou fazer todos os esforços
para anular aqueles casamentos. Mas sabendo como Herodes era desconfiado e
temendo o seu mau caráter, em vez de se portar com gentileza, julgou dever
falar-lhe abertamente e assim teve a ousadia de lhe dizer que ele suplicava não
privá-lo da honra que lhe havia concedido de declará-lo sucessor, dando-lhe
apenas o nome de rei e, na realidade, a outros a autoridade real, como
aconteceria sem dúvida, se o filho de Alexandre tivesse não somente a Arquelau
por avô, mas também a Feroras por sogro: que aquela razão o obrigava a rogar
que mudasse a ordem dos casamentos e que nada era mais fácil, pois a família
era muito rica de jovens, pois de nove mulheres, que tivera Herodes, ele tinha
filhos de sete, isto é, Antípatro, de Dóris, Herodes, de Mariana, filha de Simão,
sumo sacerdote, Arquelau, de Maltacé, samaritana, e uma filha chamada
Olímpia, que José, seu irmão, tinha desposado. Herodes e Filipe, de Cleópatra,
que eram de Jerusalém, e Fazael, de Pallas. Tivera também de Fedra uma filha
de nome Roxana e de Elpídia uma filha de nome Salomé. Uma das mulheres de
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que não tivera filhos era sua sobrinha, filha de seu irmão e a outra, sua prima-
irmã. Além dos filhos que acabo de citar, ele tivera da rainha Mariana, duas
filhas, irmãs de Alexandre e de Aristóbulo, e era sobre esse grande número de
filhos que Antípatro se fundava para rogar ao rei que mudasse a resolução
tomada. Herodes, que já estava comovido pela infelicidade de seus dois filhos,
aos quais ele mesmo fizera perder a vida, julgando assaz por essas palavras de
Antípatro que se ele tivesse ainda ocasião, ele não faria menos esforços do que
fizera, para perder a eles também, como havia perdido os pais com suas
calúnias, ficou tão encolerizado contra ele que o expulsou de sua presença, com
palavras violentas. Mas depois deixou-se vencer por suas bajulações, permitiu-
lhe desposar a filha de Aristóbulo e que seu filho desposasse a filha de Feroras.
Pode-se assim julgar do poder que Antípatro tinha conseguido sobre o espírito
de Herodes, por sua complacência, pois Salomé embora fosse sua irmã e a
imperatriz se interessasse em seu favor, não somente pôde obter dela a
permissão para desposar um senhor árabe, de nome Sileu, mas ele protestou
mesmo com juramento considerá-la como sua maior inimiga, se ela não
renunciasse ao seu intento e a obrigou a desposar um de seus amigos de nome
Alexas e a casar uma de suas filhas, com o filho desse Alexas, e a outra com o
tio materno de Antípatro. Fez também casar uma das filhas da rainha Mariana
com Antípatro, filho de sua irmã, e a outra com Fazael, filho de seu irmão.
116. Assim, a ordem projetada por Herodes com relação aos casamentos
foi modificada, como Antípatro desejava, e a esperança que esses pequenos
príncipes podiam disso conceber, inteiramente perdida; esse perseguidor da
família de Mariana julgou que a sorte não lhe podia ser então mais segura e sua
confiança unida à malícia, tornaram-no ainda mais insuportável. Vendo que lhe
era impossível acalmar o ódio de todos contra ele, persuadiu-se de que o único
meio de prover à sua segurança era fazer-se temer; foi-lhe tanto mais fácil
conseguir que Feroras lhe fizesse a corte, depois que ele se tinha visto
confirmado, na futura sucessão ao trono.
11 7. Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande agitação entre as
mulheres no palácio, onde a de Feroras, a quem sua mãe e sua irmã e a mãe de
Antípatro, se tinham reunido, agia tão insolentemente, que ela não temia tratar
com desprezo e ofender os dois filhos do rei, com o que Antípatro ficava muito
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descontente, porque ele as odiava e as outras mulheres não ousavam se opor a
esta cabala, exceto Salomé. Ela avisou o rei do que se passava e comunicou-lhe
os projetos que se faziam contra seu governo. As mulheres, sabendo que ele já
tivera conhecimento de tudo e que estava muito irritado, deixaram de se reunir,
abertamente, e fingiam, em sua presença, não se estimarem reciprocamente.
Antípatro, por seu lado, falava publicamente de Feroras, de maneira pouco
lison-jeira, mas elas se reuniam à noite, comiam juntas secretamente e mais
elas eram observadas, mais fortaleciam a sua união. Por mais cuidado que
tivessem em ocultá-la, Salomé tudo revelava e referia a Herodes. Como ela
odiava a mulher de Feroras, de tal modo a incitou contra ele, que tendo reunido
seus parentes e amigos, ele a acusou diante deles, entre outras coisas, da
maneira insolente como vivia com suas filhas, de que tinha ajudado os fariseus
contra ele e de que tinha dado uma bebida a seu marido para levá-lo a odiá-lo.
Disse depois a Feroras que ele devia escolher a quem preferia, ou abandonar
sua mulher, ou renunciar à amizade do rei e de seu irmão. Ao que, na
perturbação em que essa questão o tinha deixado, respondeu que a morte lhe
seria mais suave do que viver sem sua mulher. Herodes proibiu a Antípatro que
jamais tivesse alguma comunicação com ele, nem com sua mulher, nem com
nenhum daqueles que eram de seu parecer. Ele obedeceu, na aparência, mas
os via secretamente, à noite; e de medo que Salomé os descobrisse, fez que os
amigos que ele tinha em Roma escrevessem a Herodes que era conveniente que
ele o enviasse para passar algum tempo junto de Augusto. Herodes, sem
protelar, fê-lo partir para essa viagem, com grandíssima equipagem, deu-lhe
muito dinheiro e o fez levar seu testamento, pelo qual o declarava seu sucessor
no reino e em sua falta, a Herodes, que ele tivera de Mariana, filha de Simão,
sumo sacerdote.
118. Nesse mesmo tempo, Sileu, sem considerar a proibição que Augusto
lhe havia feito, foi também a Roma para dizer contra Antípatro o que ele tinha
dito contra Nicolau. Essa divergência que ele tinha com o rei Aretas, seu
soberano, não era de poucas conseqüências, pois ele tinha feito morrer vários
dos amigos desse príncipe, dentre outros um de nome Soeme, que era o homem
mais rico de Petra; Fabato, intendente do imperador, que ele havia subornado
por dinheiro, ajudava-o contra Herodes; mas Herodes depois o conquistou,
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dando-lhe mais e fazendo que ele recebesse as somas que o imperador tinha
mandado recolher. A esse respeito Sileu em vez de pagar o que devia, acusou-o
perante Augusto de abandonar seus interesses para cuidar dos de Herodes; o
que excitou de tal modo Fabato contra ele, que ele foi dizer a Herodes que ele
tinha subornado, com dinheiro, um de seus guardas de nome Corinto e
aconselhou-o a prendê-lo; Herodes acreditou tanto mais facilmente, quanto
esse Corinto era árabe. Mandou prendê-lo imediatamente, com dois outros da
mesma nacionalidade, que estavam em casa dele, um dos quais era amigo de
Sileu e o outro, da guarda pessoal de Herodes. Foram ambos torturados e
confessaram que Corinto lhes havia dado uma grande soma de dinheiro, para
induzi-los a matar Herodes. Saturnino, governador da Síria, interrogou-os e os
mandou a Roma, com as informações.
CAPÍTULO 19
HERODES EXPULSA FERORAS, SEU IRMÃO, DA CORTE, PORQUE NÃO QUERIA
REPUDIAR SUA MULHER E ESTE MORRE NA TETRARQUIA.
 HERODES VEM A
SABER QUE ELE TINHA QUERIDO ENVENENÁ-LO ANTE A INSISTÊNCIA DE
ANTÍPATRO E ELIMINA DE SEU TESTAMENTO HERODES, UM DE SEUS FILHOS,
PORQUE
 MARIANA, SUA MÃE, FILHA DE SIMÃO , SUMO SACERDOTE ,
TIVERA PARTE NAQUELA CONSPIRAÇÃO DE
 ANTÍPATRO.*
______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulos 3,
5, 6 e 7, Antigüidades Judaicas, Parte I.
119. Herodes, não sabendo como castigar a mulher de Feroras, que ele
tinha tantos motivos de odiar, insistia, mais que nunca, que a repudiasse; não
podendo conter sua cólera, porque Feroras se obstinava em conservá-la,
expulsou-os, a ambos, de sua corte. Feroras ficou muito aborrecido; retirou-se
para sua tetrarquia e jurou jamais voltar, enquanto Herodes vivesse. Observou
o seu juramento, pois Herodes numa grande enfermidade pela qual ele passou,
pediu diversas vezes que viesse visitá-lo, porque tinha ordens importantes a lhe
dar antes de morrer, mas ele jamais o atendeu. Herodes, contra toda esperança,
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sarou e manifestou logo muito do seu bom caráter, porque Feroras também, por
sua vez, adoeceu e ele foi logo visitá-lo, assistindo-o com grande cuidado. O
mal, porém, foi mais poderoso que os remédios e ele morreu alguns dias depois;
embora Herodes sempre lhe demonstrasse grande afeto, não deixou de correr o
boato de que o tinha envenenado. Ele mandou trazer seu corpo a Jerusalém,
ordenou luto público e mandou fazer-lhe magníficos funerais.
120. Este foi o fim de um daqueles que mais haviam contribuído para a
ruína de Alexandre e de Aristobulo; esta morte foi o começo da ruína de
Antipatro, o principal autor de tão horrível maldade. Na aflição em que alguns
libertos de Feroras estavam pela morte do amo, foram dizer ao rei que ele tinha
sido envenenado pela própria mulher, que ela lhe tinha dado uma bebida que o
fizera cair logo doente e, dois dias antes, ela e sua mãe tinham mandado vir
uma mulher da Arábia que era tida como grande envenenadora, a fim de lhe
dar aquela bebida, própria, dizia ela, para causar amor; mas era na verdade um
veneno mortal, que ela tinha trazido por ordem de Sileu, de quem era muito
conhecida.
Herodes, impressionado com estas palavras e com tantos outros motivos
de suspeita que já tinha, mandou torturar a alguns daqueles libertos e libertas,
uma das quais, não podendo resistir à violência das dores, exclamou: "Deus,
que tudo podeis, no céu e na terra, vingai na mãe de Antipatro os males de que
ela é causa de que sofremos agora." Essas palavras começaram por fazer
Herodes abrir os olhos e tudo ele fez para conhecer a verdade. Assim ele soube
de uma dessas libertas, dos entendimentos que a mãe de Antipatro tinha com
Feroras e com as outras mulheres, de suas reuniões secretas e de que, quando
Feroras e Antipatro voltavam do palácio, passavam com elas a noite inteira em
banquetes, sem permitir a presença de seus domésticos. Mandou depois
torturar separadamente a cada uma das mulheres e todas as suas declarações
estavam de acordo: Herodes soube também que Antipatro havia cuidado de sua
viagem a Roma e que Feroras se havia retirado para além do Jordão. Soube
também de que os haviam ouvido dizer muitas vezes, que nada havia que a
morte de Mariana, de Alexandre e de Aristobulo não desse motivo às suas
mulheres de temer por ele, pois que não tendo poupado sua própria esposa e
seus filhos, seria iludir-se crer que os pouparia e que assim o partido mais
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seguro para eles era afastar-se o mais possível daquele animal feroz.
Aquelas mulheres declararam ainda que Antípatro se queixava muitas
vezes à sua mãe de que sendo já velho, seu pai rejuvenescia todos os dias; que
ele morreria talvez antes dele e que mesmo quando ele o sobrevivesse, o que era
uma coisa ainda remota, o prazer de reinar teria já passado, quando o tivesse
apenas começado a gozar; que via, de outro lado, renascerem as cabeças da
hidra na pessoa dos filhos de Alexandre e de Aristóbulo, e que ele não podia
esperar deixar o reino aos seus filhos, pois Herodes havia declarado que queria
que depois dele, passasse a Herodes, que ele tivera de Mariana, filha de Simão,
o sumo sacerdote; mas que era preciso que ele tivesse perdido a razão, para
imaginar que ele manteria seu testamento e que não daria um só da sua
família; que embora pai algum jamais tivesse odiado tanto seus filhos como
Herodes odiava os seus, ele odiava ainda mais seus irmãos, e disso não havia
prova melhor, do que lhe ter dado cem talentos, para obrigá-lo a não falar mais
com Feroras.
Aquelas mulheres acrescentavam que quando Feroras lhes perguntava
"Que lhe fizemos?" ele respondia "Prouvesse a Deus que ele se contentasse de
nos tirar tudo, até nossa camisa, e nos deixasse pelo menos a vida: mas é o que
não poderemos esperar de um animal tão cruel, o qual não pôde tolerar que
aqueles que se amam, tenham a liberdade de o manifestar reciprocamente.
Assim, nos encontramos reduzidos a nos podermos ver somente em segredo.
Mas, se tivermos coragem e nossas mãos secundarem nossa energia,
poderíamos fazê-lo abertamente." Estas foram as confissões das mulheres
mediante tortura, quando disseram também que Feroras tinha deliberado fugir
com os outros para Petra.
121. Esta particularidade de cem talentos fez que Herodes acreditasse em
tudo o mais, porque ele só tinha falado com Antípatro. Sua cólera começou
então a explodir. Dóris, mãe de Antípatro, foi quem por primeiro lhe sofreu os
efeitos. Ele a privou de todas as jóias e pedras preciosas que lhe havia dado no
valor de vários talentos e a expulsou do palácio. Satisfeito assim, de algum
modo, ele ordenou que deixassem de torturar as mulheres. Mas seu espírito
cheio de medo tornava-o tão suspeitoso, que para não deixar de castigar todos
os que poderiam ser culpados, ele mandava torturar também inocentes.
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122. Um certo Antípatro, samaritano, intendente de Antípatro, seu filho,
confessou mediante tortura, que seu amo tinha mandado ao Egito um de seus
amigos, chamado Antifilo para trazer-lhe veneno, a fim de envenená-lo, e que
Antifilo tinha dado a Tudiom, tio de Antípatro, e Tudiom a Feroras; que
Antípatro tinha pedido que o ministrasse a Herodes, quando ele estivesse em
Roma, a fim de que não pudessem desconfiar dele, e Feroras tinha entregue
esse veneno à sua mulher. Herodes mandou buscar imediatamente a viúva de
Feroras e ordenou-lhe que lhe trouxesse o veneno. Ela saiu dizendo que ia
buscá-lo, mas atirou-se do alto de uma janela para se livrar dos tormentos que
temia Herodes a fizesse sofrer. Deus, que queria castigar Antípatro, permitiu
que ela não caísse sobre a cabeça e ficasse somente sem sentidos; levaram-na
novamente ao rei. Quando voltou a si, ele perguntou-lhe o que a havia levado a
tentar contra a própria vida, prometendo-lhe, com juramento, que não lhe faria
mal algum, contanto que lhe dissesse a verdade; mas se ela mentisse, fá-la-ia
morrer entre tormentos e a privaria da honra da sepultura. Ela ficou algum
tempo sem falar e depois disse: "Agora, que meu marido morreu, guardarei
ainda segredo, para conservar a vida a Antípatro, que é a única causa de nossa
desgraça? Escutai, majestade, o que eu vos vou declarar na presença de Deus,
que não pode ser enganado e que eu tomo como testemunha da veracidade de
minhas palavras. Quando eu estava debulhada em lágrimas, junto de Feroras,
que estava no fim da vida, ele me disse: "Eu me enganei muito, minha mulher,
no juízo que fazia dos sentimentos do rei meu irmão por mim, pois, na certeza
de que ele me odiava, eu também o odiava, de tal modo que tinha mesmo
resolvido matá-lo e agora vejo-o, ao contrário, oprimido pela dor, pelo receio que
tem de minha morte. Mas Deus me castigou como eu mereço. Vai buscar o
veneno que Antípatro te deu para guardar, a fim de queimá-lo em minha
presença e que eu não leve para o outro mundo uma alma ralada de remorsos
de tão grande crime". Eu obedeci e queimei o veneno diante de seus mesmos
olhos, mas guardei uma pequena quantidade do mesmo, pelo medo que tinha
de vossa majestade, para deles me servir contra mim mesma, se viesse a ter
necessidade disso." Ela mostrou depois a caixinha na qual havia um pouco do
pó venenoso. Herodes mandou torturar a mãe e a irmã de Antifilo e elas
confessaram que aquele veneno tinha sido trazido do Egito, naquela caixinha e
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que seu irmão, que era médico em Alexandria, lho havia entregue.
123. Parecia que os espíritos de Alexandre e de Aristóbulo andavam
vagando por toda a parte, para descobrir as coisas mais ocultas e obter
testemunhas e provas, da boca daqueles que estavam mais afastados das
suspeitas, pois os irmãos de Mariana, filha de Simão, sumo sacerdote, foram
torturados e veio-se a saber pelas suas confissões que ela era culpada daquela
conspiração. Herodes castigou nos filhos o crime da mãe: riscou do testamento
o nome de Herodes, que dela tivera e que ele tinha declarado seu sucessor.
CAPÍTULO 20
OUTRAS PROVAS DOS CRIMES DE ANTÍPATRO. ELE VOLTA DE ROMA PARA A
JUDÉIA. HERODES O CONFUNDE NA PRESENÇA DE VARO, GOVERNADOR DA
SÍRIA , FÁ-LO PÔR NA PRISÃO E O TERIA ENTÃO FEITO MORRER SE NÃO TIVESSE
CAÍDO ENFERMO.
 HERODES MODIFICA SEU TESTAMENTO E DECLARA
ARQUEIAU SEU SUCESSOR NO REINO, PORQUE A MÃO DE ANTIPAS,
EM FAVOR DO QUAL ELE HAVIA DISPOSTO ANTERIORMENTE, ESTAVA
COMPROMETIDA NA CONSPIRAÇÃO DE
 ANTÍPATRO.*
__________________________
* História dos Judeus, Livro 17, capítulo 6.
124. A chegada de Batilo foi uma última prova do crime de Antípatro, que
confirmou todas as outras. Era ele um dos libertos que voltava de Roma, de
onde tinha trazido um outro veneno de áspide e de outras serpentes, a fim de
que, se o primeiro falhasse, Feroras e sua mulher se servissem desse para
envenenar o rei. Para cúmulo da maldade de Antípatro, ele tinha também
encarregado esse liberto das cartas que escrevia a Herodes, contra Arqueiau e
Filipe, seus irmãos, que se instruíam em Roma nas ciências, porque os
considerava como obstáculos aos seus projetos, estando eles já bastante
crescidos e sendo assim príncipes de grandes esperanças. Ele tinha para isso
mesmo falsificado cartas de alguns amigos que tinham em Roma e subornado
outros com dinheiro, para obrigá-los a escrever a Herodes que aqueles jovens
príncipes falavam dele de uma maneira muito ofensiva e se queixavam
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abertamente da morte de Alexandre e de Aristobulo, e que o rei, seu pai, os
mandava regressar à judéia. Antípatro temia tanto essa volta que antes mesmo
de que ele partisse para sua viagem à Itália, tinha mandado escrever a Roma, a
Herodes, outras cartas, que diziam a mesma coisa e fingia ao mesmo tempo
defendê-los, dizendo-lhes que uma parte daquelas acusações eram falsas e que
as outras eram faltas que bem se podiam perdoar à juventude deles. Para
ocultar também a Herodes as grandes somas que ele dava àqueles impostores,
comprou uma grande quantidade de objetos preciosos e de baixelas de prata
cuja despesa chegava mesmo a duzentos talentos e tomou como pretexto usá-
los como presentes, a fim de realizar o intento que ele tinha imaginado, contra
Sileu.
125. Mas o mal que ele temia era pequeno em comparação com o que ele
devia temer, e não nos poderíamos não admirar bastante, de que, embora sete
meses antes do seu regresso a Judéia, a notícia se tivesse espalhado por todo o
reino, do assassínio que ele queria cometer e das cartas que ele tinha escrito e
feito escrever para causar a morte de Arquelau e de Filipe, seus irmãos, como já
tinha causado a de Alexandre e de Aristóbulo; não houve um só, dos que foram
nesse tempo, da Judéia a Roma, que não lhe desse disso um aviso, tanto ele era
odiado por todos e há mesmo motivo de se crer, que quando alguns tivessem
tido a intenção de lhe prestar aquele serviço, o sangue de Alexandre e de
Aristóbulo, que clamava vingança contra ele, ter-lhes-ia fechado a boca. Por
fim, ele escreveu que estava pronto para partir de regresso e que tinha grande
motivo de se vangloriar, pela maneira tão obsequiosa com que Augusto o
tratava. A esse respeito, como Herodes estava impaciente por se apoderar dele,
ele temia não escapar se se suspeitasse dele; respondeu-lhe então com grandes
demonstrações de afeto, rogava-lhe que se apressasse a voltar e fazia-o esperar
que poderia, ante seus rogos, perdoar à sua mãe, e que Antípatro bem sabia
que ele a havia expulsado.
126. Quando Antípatro chegou a Tarento, soube da morte de Feroras e
ficou muito aflito; os que não o conheciam atribuíam-no a bom caráter, mas os
que estavam inteirados da verdade, não duvidavam de que a causa da dor era
ele considerar o tio como cúmplice de seus crimes e temer que tivessem encon-
trado o veneno. Ele recebeu na Cilícia a carta do rei, seu pai, de que acabamos
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de falar e quando chegou a Calenderis, refletindo mais que nunca na infelicida-
de de sua mãe, começou a temer por si próprio. Os mais sensatos dos amigos
do rei aconselharam-no a não ir imediatamente à presença do monarca sem
saber antes o que o havia levado a expulsar a sua mãe do palácio, para ver se
ele também não estava envolvido na sua desgraça. Mas os que não eram tão
prudentes e que pensavam mais em satisfazer às próprias vantagens,
induziam-no a se apressar, para que o atraso não desse motivo a Herodes de
suspeitar, e aos seus inimigos tempo de lhe preparar alguma cilada,
indispondo-o com o rei, por meio de intrigas. Diziam-lhe que se algo tivesse
acontecido que lhe não fosse favorável, devê-lo-iam atribuir à sua ausência,
pois ninguém teria sido tão ousado de falar contra ele, se ele tivesse estado
presente; que seria loucura renunciar àqueles bens certos por causa de temores
incertos, e que ele não se poderia apressar demasiado para ir receber do rei,
seu pai, uma coroa que só poderia ser colocada sobre sua cabeça.
Antípatro deixou-se persuadir por estas razões, pois assim queria a sua
infelicidade. Continuou a viagem e depois de ter passado Sebaste, desembarcou
no porto de Cesaréia. Ficou muito admirado por ver que ninguém o fora
receber, pois embora ele fosse igualmente e sempre odiado, antes não se ousava
demonstrá-lo e mesmo então muitos fugiam dele pelo temor que tinham do rei,
porque já se havia espalhado o boato, por toda parte, do que se passava a esse
respeito e ele era o único que de nada sabia. Assim, podemos dizer que como
jamais nenhuma viagem foi feita com mais brilho do que a sua, jamais regresso
foi mais triste e mais miserável que aquele.
Esse mau espírito, não podendo mais ignorar o perigo em que se
encontrava, resolveu usar de sua hipocrisia costumeira e, embora seu coração
estivesse transido de medo, ele aparentava tranqüilidade em seu rosto. Como
não sabia para onde fugir, não via um meio para sair desse abismo de males,
que o rodeava de todos os lados, e não podia mesmo saber nada de certo do que
se passava na corte, porque as proibições do rei impediam que alguém ousasse
avisá-lo. Essa ignorância fazia que algumas vezes ele ousasse esperar que nada
se tivesse descoberto ou que, se se soubesse de alguma coisa, ele dissiparia as
suspeitas do rei, com sua habilidade, seus artifícios e sua ousadia, em
sustentar o contrário, o que eram as suas únicas armas.
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127. Nesse estado, ele entrou sozinho no palácio de Herodes, pois a porta
foi fechada rudemente aos seus amigos. Lá encontrou Varo, governador da
Síria. Chegando à presença do rei, adiantou-se com firmeza para saudá-lo. Mas
Herodes repeliu-o exclamando: "Vai! Um parricida tem a ousadia de querer me
abraçar? Que possas morrer, malvado, como teus crimes o merecem! Precisas
justificar-se antes de me tocares. Eis aqui um juiz que te dou: Varo veio a
propósito para pronunciar a sentença, e o dia de amanhã é o único tempo que
te concedo para preparares tua defesa." Essas palavras infundiram tal terror no
espírito de Antípatro que ele se retirou sem dizer uma palavra. Mas depois que
sua mãe e sua irmã o informaram de todas as coisas contra ele, imaginou de
que modo se poderia justificar.
No dia seguinte, o rei reuniu um grande conselho de todos seus parentes
e amigos, ao qual ele e Varo presidiam, e mandou vir também os amigos de
Antipatro. Mandou entrar todos os que tinham deposto contra ele, entre os
quais estavam vários domésticos de Dóris, sua mãe, prisioneira há muito
tempo, e apresentaram uma carta dela ao filho, que dizia assim: "O rei sabe de
tudo; não venha procurá-lo se não tiver certeza da proteção do imperador."
Mandaram depois entrar Antipatro. Ele lançou-se aos pés de Herodes e disse-
lhe: "Eu vos rogo, senhor, evitar toda e qualquer prevenção contra mim, mas
escuteis minhas justificativas com o espírito livre de toda preocupação e não
tereis dificuldade em constatar que eu sou inocente." Herodes ordenou que ele
se calasse e assim falou a Varo: "Não posso duvidar, senhor, de que vós e
qualquer outro juiz, se for justo, não ache que Antipatro é merecedor da pena
de morte. Mas eu tenho motivo de temer que tenhais a aversão por mim e me
julgueis merecedor de tantas amarguras, porque tenho sido tão infeliz, dando
ao mundo filhos de tal espécie. Vós deveis antes lastimar-me porque jamais pai
algum foi mais indul-gente para com os filhos do que eu com os meus. Eu havia
declarado os dois primeiros meus sucessores, quando eles ainda eram muito
jovens e os havia mandado a Roma para se educarem e se fazerem estimados
pelo imperador; mas depois de os ter posto em condição de serem invejados por
filhos de reis, vi que eles haviam tentado contra minha vida. Antipatro
aproveitou-se da sua ruína e eu pensava em deixar-lhe o trono. Mas esse
animal feroz voltou-se cheio de raiva contra mim. Vivi muito tempo à sua
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vontade e o prolongamento de meus dias se lhe tornou insuportável; o prazer de
reinar não lhe seria completo se ele não subisse ao trono por meio de um
parricídio. Não sei de outra razão, pois eu o havia tirado do campo, onde ele
passava uma vida obscura, para preferi-lo aos filhos que eu tivera de uma
grande rainha e fazê-lo herdeiro de minha coroa. Confesso não poder
desculpar-me de ter descontentado e incitado contra mim esses jovens
príncipes, enganando, para obsequiá-los, com esperanças tão justas como as
suas. Que fiz eu para os outros, em comparação, com o que eu fiz por ele?
Ainda durante minha vida, dividi com ele a minha autoridade: eu o declarei
meu sucessor, por testamento; dei-lhe, além de outras gratificações, cinqüenta
talentos de rendimento, trezentos talentos para sua viagem a Roma e foi ele o
único de meus filhos que recomendei a Augusto como um filho, ao qual eu creio
que minha vida não era menos cara do que a sua. Que fizeram então os outros,
que se aproxime de seu crime? Que provas se podem trazer contra eles que não
igualam as que me fizeram ver mais claramente que o dia, a conspiração
formada contra mim, pelo mais ingrato e pior de todos os homens? Pode-se
permitir que depois de tudo isso ele seja ainda tão imprudente que se atreva a
abrir a boca e a esperar deturpar a verdade com sua astúcia? Mas como eu lhe
permiti falar, ficai pois atento, por favor, para não vos deixardes enganar. Eu
conheço a fundo sua malícia: não haverá recurso de que ele não use para
ludibriar a verdade, nem lágrimas fingidas que ele não derrame para vos mover
à compaixão. Era assim que ele me exortava, durante a vida de Alexandre, a
desconfiar dele e a pensar em minha segurança. Era assim que ele vinha olhar
em meu quarto e em meu leito, se não havia alguém escondido, para algum fim
perverso. Era assim que ele velava junto de mim, quando eu dormia, que ele
dizia que tinha cuidado pelo meu repouso, que me consolava em minha dor
pela morte de seus irmãos e que ele me dava testemunhos úteis ou contrários
de afeto daqueles que estavam com vida. Em suma, era assim que ele me fazia
crer ser ele o único que tinha sempre os olhos abertos pela minha conservação.
Quando estas coisas me vêm à mente e eu me lembro de todos os meios de que
ele se servia e de todos os esforços que fazia para me enganar, com sua horrível
hipocrisia, eu me admiro de como ainda estou vivo e como é possível que eu
não tenha caído em tão estranhas ciladas. Agora, que sou tão infeliz, tendo
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como maiores inimigos aqueles mesmos que me são mais próximos e aos quais
mais ardentemente amei, chorarei na minha solidão a injustiça do meu destino.
Se todos os meus filhos forem culpados, não perdoarei a um só dos que se
saciaram no meu sangue." Terminou ele com estas palavras o seu discurso,
porque a violência da dor não lhe permitia continuar. Ordenou a Nicolau, um
de seus amigos, que fizesse uma relação das provas que resultavam das
informações. Antípatro, então, que estava prostrado aos pés de seu pai,
levantou a cabeça e disse-lhe: "Vós mesmo, senhor, fizeste a minha apologia.
Como aquele, que dizeis ter sempre velado por vossa conservação, pode ser um
parricida? Se a piedade que eu demonstrei era apenas dissimulação e
fingimento, como, passando por tão hábil e prudente em tudo o mais, teria sido
eu tão estúpido de não saber, que, embora eu pudesse ocultar aos olhos dos
homens tão grande crime, há um juiz no céu, que está em toda parte, que tudo
vê, tudo penetra e a cujo conhecimento nada se pode furtar? Ignoraria eu de
que maneira ele exerceu sua vingança sobre meus irmãos, por que eles tinham
conspirado contra vossa vida? E que motivo teria podido levar-me a querer
cometer semelhante crime? Seria a esperança de reinar? Mas eu já reinava.
Seria o temor de vossa ira? Vós me amáveis apaixonadamente. Seria algum
outro motivo que eu teria para vos temer? Eu vos tornava, ao contrário, temível
aos outros, pelo cuidado que tinha de vossa conservação. Seria a necessidade
de dinheiro? Que despesas não me dáveis os meios de fazer? Quando eu tivesse
mesmo sido o mais criminoso de todos os homens e mais cruel que um tigre,
vossa extrema bondade para comigo não teria acalmado meu caráter e vencido
minhas más inclinações, pela multidão de benefícios recebidos de vós, pois,
como vós mesmo dissestes, vós me havíeis feito voltar do exílio, no qual eu me
ia consumindo, vós me preferistes a todos os outros irmãos, vós me declarastes
vosso sucessor e me cumulastes de tantas outras graças que os mais
ambiciosos tinham motivo de invejar a minha sorte? Ai! Infeliz que eu fui! Como
minha viagem a Roma me foi funesta, pela ocasião que deu, durante esse
tempo, de meus inimigos indispor-vos contra mim, por meio de calúnias. Vós,
entretanto, sabeis que eu lá fora, apenas para defender os vossos interesses
contra Sileu, que desprezava vossa velhice. A capital do império e Augusto,
senhor do mundo, que me chamavam tantas vezes de filho dedicado ao próprio
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pai, podem dar testemunho de meu ardor em cumprir para convosco os meus
deveres. Vede, por favor, as cartas que esse grande imperador escreveu e que
merecem que a elas presteis toda fé, que não às falsas acusações de que todos
se servem para me destruir. Essas cartas vos darão a conhecer até que ponto
vai meu afeto por vós: e é com esse testemunho irreprochável que me pretendo
defender. Lembrai-vos, eu vos suplico, com que repugnância embarquei para
Roma, porque eu já sabia que tinha muitos inimigos ocultos, que ficavam junto
de vós. Assim, sem pensar, causastes a minha ruína, obrigando-me a fazer essa
viagem e dando por esse meio, aos invejosos de minha felicidade, o tempo e a
ocasião de me caluniar e de me destruir. Se eu fosse um parricida, teria podido
atravessar sem perigo tantas terras e tantos mares? Mas eu não quero me deter
nestas provas de minha inocência, pois sei que Deus permitiu que vós já me
tenhais condenado em vosso coração. Peço-vos somente que não presteis fé a
declarações extorquidas pelas torturas, mas empregueis antes o ferro e o fogo
para me fazer sofrer os maiores suplícios do mundo, os mais cruéis, pois que se
eu sou um parricida, não é justo que eu morra sem os ter experimentado
todos."
Antípatro acompanhou estas palavras com tantas lágrimas e gemidos que
Varo e todos os outros ficaram tomados de compaixão. Herodes foi o único que
não derramou uma lágrima, porque sua cólera contra o filho desnaturado
tornava-o atento às provas, que o convenciam do seu crime. Ele ordenou a
Nicolau que falasse: este começou por declarar tão claramente a malícia e os
artifícios de Antípatro, que apagou do espírito de todos os que se haviam
deixado levar pela piedade, a compaixão que tinham dele. Entrou depois
fortemente no fundo da questão, acusou-o de ser o causador de todos os males
do reino, de ter feito morrer, por suas calúnias, os dois irmãos Alexandre e
Aristóbulo e de ter procurado perder todos os outros irmãos, que ainda viviam,
tendo-os como um obstáculo à sua ascensão ao trono; disso não tinham motivo
de se admirar, pois um homem que queria envenenar o próprio pai, não teria
receio de eliminar seus irmãos. Citou, em seguida, por ordem, todas as provas
do veneno; insistiu muito na horrível maldade de Antípatro, que chegara a levar
Feroras ao crime detestável, de tentar contra a vida de seu irmão e de seu rei;
havia ele mesmo subornado os principais amigos de seu pai e enchido o palácio
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real de dissensões e de inimizades, de ódio e de perturbações. A isso
acrescentou diversas coisas semelhantes.
128. Varo ordenou a Antípatro que respondesse e, vendo que ele ficara
sempre deitado no chão, dizendo somente que Deus era testemunha de sua
inocência, ordenou que lhe trouxessem o veneno. Fizeram um homem
condenado à morte tomá-lo e ele morreu imediatamente. Varo disse depois
alguma coisa em particular a Herodes, escreveu a Augusto tudo o que se havia
passado naquela assembléia, e partiu no dia seguinte para regressar. Herodes
mandou encerrar Antípatro na prisão e enviou notícias ao imperador da sua
vida cheia de desgostos e da sua infelicidade.
129.
 Descobriu-se depois também a intenção de Antípatro de destruir
Salomé, pois um dos servidores de Antifilo, que voltava de Roma, entregou ao
rei uma carta de uma criada de quarto da imperatriz, de nome Acmé, dizendo
que ela lhe enviava a cópia de uma carta escrita por Salomé à sua senhora, na
qual dizia dele as coisas mais ultrajantes do mundo e o acusava de vários
crimes. Mas Antípatro havia antes subornado esta mulher com o dinheiro e a
havia obrigado a escrever aquela carta, que ele mesmo ditara, como se deduzia
de uma outra carta de Acmé a ele, cujas palavras são estas: "Escrevi ao rei
vosso pai como queríeis e mandei-lhe essa outra carta. Tenho certeza de que
depois que ele a ler, não perdoará à sua irmã e quero crer que, quando esse
assunto estiver terminado, vós vos lembrareis da promessa que me fizestes."
Herodes, depois de ter lido estas cartas, lembrou-se de que pouco faltara
mesmo para que ele tivesse mandado matar sua irmã Salomé, por aquela
maldade de Antípatro e, concluindo assim, que bem podia ter ele causado a
morte de Alexandre, com meios semelhantes, sentiu uma tão viva dor, que não
hesitou mais em dar àquele malvado o castigo de tantos crimes. Mas uma grave
enfermidade impediu-lhe executar o que tinha em mente. Escreveu somente a
Augusto, com relação àquela carta de Acmé, modificou o seu testamento,
nomeou Antipas, um de seus filhos, seu sucessor no reino e não falou de
Arquelau, nem de Filipe, que eram mais velhos do que ele, porque Antípatro os
havia tornado odiosos. Legou a Augusto, entre outras coisas, mil talentos de
prata e quinhentos talentos à imperatriz, sua esposa, aos filhos, aos amigos e
aos libertos; deu a outros, terras e somas consideráveis e deixou grandes
riquezas a Salomé, sua irmã.
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CAPÍTULO 21
ARRANCAM UMA ÁGUIA DE OURO QUE HERODES TINHA FEITO CONSAGRAR, DE
SOBRE APORTA DO
 TEMPLO. SEVERO CASTIGO QUE ELE IMPÕE,POR ESSA RAZÃO.
HORRÍVEL ENFERMIDADE DESSE SOBERANO E ORDENS CRUÉIS QUE ELE DÁ A
SALOMÉ, SUA IRMÃ, E A SEU MARIDO. AUGUSTO COMUNICA - LHE QUE ELE
PODE DISPOR DE
 ANTÍPATRO SEGUNDO SUA VONTADE . A S DORES RECRUDESCEM
E ELE QUER MATAR-SE.ANTE A NOTÍCIA DE SUA MORTE,
 ANTÍPATRO QUER
SUBORNAR SEU GUARDA E ELE MANDA MATÁ-LO.
 MODIFICA SEU TESTAMENTO E
DECLARA
 A RQUELAU SEU SUCESSOR. MORRE CINCO DIAS DEPOIS DE ANTÍPATRO.
SOBERBOS FUNERAIS QUE ARQUELAU LHE MANDA FAZER*
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulos 8, 9
e 10, Antigüidades Judaicas, Parte I.
130. Entretanto, a doença de Herodes, que então tinha setenta anos,
aumentava sempre. A velhice enfraquecia suas forças e suas aflições
domésticas davam-lhe tão profunda melancolia que mesmo que sua saúde não
tivesse sido alterada, ele seria incapaz de sentir alegria. Mas nada o
atormentava tanto quanto saber que Antípatro ainda vivia. Ele não determinou
se o faria morrer; esperava somente ficar bom da doença para ordenar a sua
morte.
131. Uma grande perturbação em Jerusalém causou-lhe novos desgostos.
Judas, filho de Sarifeu e Matias, filho de Margalote, eram muitíssimo amados
pelo povo, porque eram tidos como os mais sábios de todos, na explanação das
nossas santas leis. Eles instruíam a juventude e havia sempre um grande
número que assistia às suas lições. Quando esses dois homens souberam que a
tristeza do rei unida à sua doença o enfraquecia cada vez mais, disseram
àqueles em quem mais confiavam que era chegado o tempo de vingar a injúria
que Deus recebera por meio de obras profanas feitas contra sua ordem
expressa, que proíbe ter no Templo figuras de qualquer animal. Assim falavam
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porque Herodes havia feito colocar uma águia de ouro sobre a porta principal
do Templo. Eles exortaram então os moços a arrancar aquela águia, dizendo-
lhes que, quando mesmo houvesse nisso algum perigo, nada lhes poderia ser
mais glorioso do que expor-se à morte, para defender suas leis e para
conquistar vida e fama imortais e que, somente os fracos, que como eles não
eram instruídos na verdadeiras sabedoria, preferiam morrer de doença num
leito do que terminar seus dias na execução de empresas heróicas.
Depois de terem assim falado, espalhou-se a notícia de que o rei estava no
fim da vida. Esse boato animou-os ainda mais, e assim eles se atreveram, à
vista de grande multidão reunida no Templo, amarrar grossos cabos àquela
águia e arrancá-la, fazendo-a depois em pedaços, a golpes de machado. Aquele
que comandava as tropas do rei, apenas soube do fato, correu para lá com
grande número de soldados, prendeu quarenta daqueles moços e os levou ao
rei. Este perguntou-lhes se era verdade que eles haviam tido a ousadia de
cometer semelhante ação. "Sim", responderam-lhe. "E quem vos ordenou que o
fizésseis?", perguntou-lhes o rei. "Nossa santa lei", responderam-lhe. "Como",
retrucou o soberano, "não podendo evitar a morte pelo vosso crime, ainda
mostrais alegria em vosso semblante?" "Porque", responderam os jovens, "essa
morte nos cumulará de felicidade na outra vida". Tais respostas irritaram de tal
modo a Herodes que sua cólera, mais forte que a doença, deu-lhe forças para ir,
no estado em que se encontrava, falar ao povo. Tratou como sacrílegos os que
tinham arrancado a águia e disse que o que eles alegavam como observância de
suas leis era apenas um pretexto para algum empreendimento mais grave que
haviam imaginado e que eles deviam ser castigados como sua impiedade
merecia. O povo, no temor de que o castigo se estendesse a vários outros,
rogou-lhe que se contentasse de mandar castigar os autores do crime e os que o
haviam executado, sem levar além a sua vingança. A isso ele se resolveu, com
dificuldade; mandou queimar vivos judas e Matias e os que haviam arrancado a
águia e mandou cortar a cabeça dos outros.
132. Logo depois, sua doença estendeu-se a todas as partes do corpo e
não havia quase membro em que não sentisse dores horríveis e cruciantes. A
febre era muito alta; ele emagrecia a olhos vistos e era atormentado por
violentas cólicas. Os pés também estavam inchados e lívidos; o ventre, também;
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todos os nervos estavam frouxos, as partes do corpo que se ocultam por pudor,
estavam tão corrompidas que eram pasto de vermes e ele respirava com
extrema dificuldade. Os que o viam nesse estado refletiam sobre o justo juízo de
Deus, julgavam que era um castigo da sua crueldade para com Judas e Matias.
Mas embora ele fosse atormentado por tantos males juntamente, não deixava
de amar a vida e esperava sarar. Não havia remédios que ele não tomasse; fez-
se transportar além do Jordão, para usar águas quentes de Calliroé, que se
lançam no lago de Asfaltite e não somente são medicinais, mas boas para se
beber. Os médicos julgaram conveniente pô-lo num banho de óleo bem quente;
mas isso enfraqueceu-o de tal modo que ele perdeu os sentidos; todos então
julgaram-no morto. Os gritos dos que estavam presentes fizeram-no voltar a si;
então, perdendo a esperança de cura, mandou distribuir aos soldados
cinqüenta draemas a cada um, deu grandes somas aos oficiais e aos amigos e
voltou a Jerico.
133. Estando prestes a morrer, aquela bílis negra que lhe devorava as
entranhas, acendeu-se de tal modo que o fez tomar uma resolução abominável.
Mandou vir de todas as regiões da Judéia as pessoas mais ilustres, fê-las
encerrar no hipódromo e disse a Salomé, sua irmã, e a Alexas, marido dela: "Eu
sei que os judeus sentirão imensa alegria com a minha morte; mas se quiserdes
executar o que desejo de vós, eu os obrigarei a derramar lágrimas e meus
funerais serão muito famosos. O que tendes a fazer é o seguinte: logo que eu
tiver expirado, ordenareis aos soldados que cerquem o hipódromo e matem
todos os que lá se encontram, a fim de que não haja uma só casa nem família
na Judéia, que não tenha motivo de chorar."
134. Acabava ele de dar essa ordem cruel, quando lhe trouxeram cartas
dos que ele havia mandado a Roma, pelas quais diziam-lhe que Augusto tinha
mandado matar Acmé e julgava Antípatro digno de morte. Entretanto, se ele o
quisesse somente mandar para o exílio, ele lho permitia. Estas notícias
alegraram-lhe o espírito, mas as dores e uma forte tosse o assaltaram com
tanta violência que, não podendo mais suportá-las, resolveu matar-se. Como
estava acostumado a comer maçãs e a descascá-las, ele mesmo pediu umas
frutas e uma faca. Depois, esperou que ninguém o espreitasse, para não lhe
impedir o ato de desespero, ergueu o braço para cravar a faca. Mas Aquiabe,
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seu sobrinho, percebeu-o e correu para segurar-lhe o braço. Todo o palácio
encheu-se imediatamente de gritos e clamores, julgando que o rei tinha
morrido; essa notícia chegou até Antípatro, que concebeu então novas
esperanças; rogou aos guardas que o pusessem em liberdade, prometendo-lhes
grandes recompensas, mas o comandante não somente não quis satisfazê-lo,
mas foi imediatamente relatar tudo ao rei. Este ficou tão irritado que soltou um
horrível grito, não obstante sua extrema debilidade, e mandou no mesmo
instante matar Antípatro na prisão, ordenando que o enterrassem no castelo de
Hircaniom. Modificou em seguida o testamento, declarando Arquelau seu
sucessor no trono e estabeleceu Antipas, tetrarca.
135. Esse infeliz pai viveu ainda mais cinco dias depois da morte de
Antípatro, tendo reinado trinta e quatro anos, desde a morte de Antígono e
trinta e sete, depois de ter sido constituído rei pelos romanos. Jamais príncipe
teve tantas amarguras e desgostos em família, nem mais felicidade, em tudo o
mais; sendo apenas um cidadão qualquer, ele não somente se viu elevado ao
trono mas reinou por muito tempo e deixou a coroa aos seus filhos.
136. Antes que os soldados soubessem da notícia de sua morte, Salomé e
seu marido puseram em liberdade, e mandaram regressar para suas casas,
todos os que estavam presos no hipódromo, dizendo que o rei havia mudado de
opinião. Ptolomeu, guarda do selo de Herodes, mandou depois reunir todos os
soldados no anfiteatro, onde o povo se encontrava também, disse-lhes que o
soberano era bem feliz, consolou-os e leu-lhes uma carta que ele tinha escrito
aos soldados, pela qual os exortava a conservar pelo seu sucessor o mesmo
afeto que lhe haviam demonstrado. Leu depois seu testamento, o qual dizia que
ele declarava Arquelau seu sucessor no reino, Antipas, tetrarca, e que deixava a
Filipe, a Traconítida; ordenava que levassem seu anel a Augusto e deixava
inteiramente a ele que tudo determinasse com sua plena autoridade; quanto ao
restante, queria que seu testamento precedente fosse executado. Quando a
leitura terminou, todos se puseram a exclamar: "Viva o rei Arquelau!" Os
soldados e o povo prometeram servi-lo fielmente e desejaram-lhe um reinado
feliz.
137. Pensaram depois nos funerais do falecido e Arquelau tudo fez para
torná-lo magnífico. O corpo, adornado com as insígnias reais, tinha uma coroa
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de ouro sobre a cabeça e um cetro na mão direita; era levado numa liteira
adornada de pedras preciosas. Os filhos do morto e os parentes seguiam a
liteira, e os soldados, armados como para um combate, marchavam junto dele,
agrupados por nações.* As companhias de seus guardas trácios, alemães e
gauleses iam na frente e o restante das tropas, comandadas por seus oficiais,
seguiam-no em ordem. Quinhentos oficiais domésticos ou libertos levavam
perfumes e fechavam aquele cortejo fúnebre, tão magnífico. Foram naquela
ordem de Jerico até o castelo de Herodiom, onde ele foi sepultado conforme ele
mesmo havia determinado.
_______________________________
* Não falei da distância do caminho percorrido, porque o texto grego e
todas as traduções dizem que era de 200 estádios, ao passo que no Livro
Décimo Quinto, capítulo 6, n e 643, o texto grego e as traduções dizem apenas 8
estádios.
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Livro segundo
CAPÍTULO 1
ARQUELAU, DEPOIS DOS FUNERAIS DO REI HERODES, SEU PAI, VAI AO
TEMPLO, ONDE É RECEBIDO COM GRANDES ACLAMAÇÕES E CONCEDE AO
POVO TUDO QUANTO LHE PEDE.
138. Depois que Arquelau foi assim reconhecido como sucessor de
Herodes,* o Grande, a necessidade de ir a Roma, a fim de ser confirmado por
Augusto na posse do reino, deu motivo a novas perturbações.
_________________________
* Este registro se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 10,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
Depois de ter passado sete dias do luto de seu pai e dado um suntuoso
banquete ao povo, nas cerimônias com que se honram a memória dos mortos e
que se observam tão religiosamente entre nós — tanto que muitos preferem
uma desgraça a passar por ímpios, se a elas faltarem — esse soberano, vestido
de branco, foi ao Templo onde o receberam com grande aclamações. Ele sentou-
se no trono de ouro, num lugar elevado, e manifestou ao povo sua satisfação
por ter este cumprido todos os deveres com tanto zelo, nos funerais de seu pai e
das honras que lhe prestavam, a ele mesmo como seu rei. Disse que não queria,
entretanto, desempenhar as funções inerentes ao cargo, nem mesmo tomar-lhe
o nome, enquanto Augusto, que o falecido pai, por testamento, havia feito se-
nhor de tudo, o não tivesse confirmado a sua escolha para sucessor. Que essa
razão o havia feito recusar em Jerico a coroa, que o exército lhe havia oferecido,
mas que depois que tivesse recebido o diadema das mãos do imperador, ele lhes
agradeceria, a eles e aos soldados, o afeto que lhe demonstravam e se esforçaria
de todos os modos, e em todas as ocasiões, para os tratar favoravelmente como
seu pai havia feito. Estas palavras foram tão agradáveis ao povo que sem delon-
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gas lhe pediu coisas muito importantes: uns, isenção de tributos, outros, aboli-
ção de novos impostos, outros, a libertação de prisioneiros. Nada ele recusou;
depois de ter oferecido sacrifícios, deu um grande banquete aos amigos.
CAPÍTULO 2
ALGUNS JUDEUS PEDIAM- LHE VINGANÇA PELA MORTE DE JUDAS E DE
MATIAS E DE OUTROS QUE HERODES FIZERA MORRER POR CAUSA DAQUELA
ÁGUIA ARRANCADA DA PORTA DO
 TEMPLO; SUSCITAM UMA REVOLTA QUE
OBRIGA
 ARQUELAU A MANDAR MATAR UNS TRÊS MIL DELES. DEPOIS ELE
PARTE PARA SUA VIAGEM A
 ROMA. *
________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 11,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
139. Um pouco depois do meio-dia, uma multidão, que só desejava
perturbação e agitação, reuniu-se e, depois do luto geral pela morte do rei
Herodes, iniciaram outro, que lhes era particular, deplorando a das pessoas
que Herodes tinha mandado matar, por causa daquela águia arrancada da
porta do Templo. Não dissimularam seu sofrimento e dor, mais encheram toda
a cidade com suas queixas e lamentações. Diziam em voz alta que somente o
amor pela glória do Templo e observância de sua lei santa tinham custado a
vida aos que ele tinha tratado de maneira tão cruel que a justiça pedia vingança
de seu sangue; era necessário castigar os que Herodes havia recompensado por
terem contribuído a derramá-lo; começando por depor aquele que fora
constituído sumo sacerdote e dando o cargo a outro homem de bem, mais digno
de ocupá-lo.
Embora Arquelau se sentisse muito ofendido com estas palavras que
excitavam à rebelião e desejasse mesmo dar-lhes um merecido castigo, não quis
tornar o povo seu inimigo, pois estava de partida para Roma, e julgou dever
acalmá-lo pela afabilidade, em vez de empregar a força. Assim, mandou o
principal oficial de suas tropas, para obrigá-los a se retirar e não insistirem
mais. Quando, porém, ele se aproximou do Templo, atacaram-no a pedradas,
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sem nem mesmo escutá-lo. Trataram do mesmo modo vários outros que o
príncipe enviara; via-se claramente que, no furor em que se achavam, teriam
ido além, se fossem em maior número.
A festa dos ázimos ou pães sem fermento, que os judeus chamam de
Páscoa, havia chegado. Um número enorme de gente veio de todas as partes
para oferecer sacrifícios; aqueles que então deploravam a morte de Judas e de
Matias não se afastaram do Templo, a fim de aumentar o seu partido. Arquelau,
para impedir que o mal crescesse e envolvesse toda aquela multidão, numa
revolta bastante perigosa, mandou um oficial com soldados para prender os
mais exaltados e trazê-los à sua presença. Mas aqueles amotinadores, a
pedradas, mataram vários soldados, feriram o oficial que os comandava, o qual
com dificuldade conseguiu salvar-se; como se o ato que acabavam de fazer fosse
muito inocente, continuaram como antes a oferecer os sacrifícios. Arquelau,
vendo então que aquela revolta só se podia reprimir pela força, mandou vir o
exército. A cavalaria ficou de fora, a infantaria entrou na cidade; como aqueles
rebeldes estavam ocupados nas cerimônias sacras, uns três mil deles foram
mortos; o restante fugiu para as montanhas vizinhas e Arquelau mandou
avisar, a som de trombeta, que cada um voltasse para sua casa. Dessa forma,
os sacrifícios foram abandonados e não se continuou a celebrar aquela grande
festa.
140. O soberano, acompanhado por sua mãe, Poplas, Ptolomeue Nicolau,
três dos seus principais amigos, tomou então o caminho de Roma e deixou
Felipe, governador do reino, incumbido de dirigi-lo na sua ausência, cuidando
de todos os negócios. Salomé, com seus filhos, irmãos do rei, e os genros
acompanharam-no na viagem com o pretexto de ajudá-lo a ser confirmado na
sucessão do trono, mas, na realidade, para acusá-lo diante de Augusto do
morticínio cometido no Templo contra o respeito devido às nossas leis.
CAPÍTULO 3
SABINO, INTENDENTE DE AUGUSTO NA SÍRIA, VAI A JERUSALÉM PARA SE APODERAR
DOS TESOUROS DEIXADOS POR
 HERODES E DAS FORTALEZAS.
141. Arquelau encontrou em Cesaréia, Sabino, intendente de Augusto na
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Síria, que ia para a Judéia, a fim de guardar os tesouros deixados por Herodes.
Varo, a quem Arquelau tinha mandado Ptolomeu, para esse fim, impediu-
lhe a passagem, e assim ele não pôde se apoderar dos tesouros nem das
fortalezas; mas ficou em Cesaréia e prometeu nada fazer até que se tivesse
sabido da vontade do imperador. Entretanto, apenas Varo partiu para voltar a
Antioquia e Arquelau embarcou para sua viagem a Roma, ele foi rapidamente a
Jerusalém, alojou-se no mesmo palácio real, ordenou aos tesoureiros que lhe
prestassem contas e procurou apoderar-se das fortalezas. Mas os que as
comandavam e que tinham ordens contrárias, de Arquelau, responderam que
as conservariam para o imperador.
CAPÍTULO 4
ANTIPAS, FILHO DE HERODES, VAI TAMBÉM A ROMA, PARA CONTESTAR O
REINO A
 ARQUELAU. *
_________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo sétimo, capítulo 11,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
142. Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande, foi também a Roma,
com o fim de obter o reino, em lugar de Arquelau, tendo sido nomeado pelo rei,
para seu sucessor, no seu primeiro testamento, que pretendia ter mais valor
que o último. Salomé e vários outros de seus parentes, que com ele faziam
aquela viagem com Arquelau, prometeram abraçar seus interesses; ele levava
consigo também sua mãe e Ptolomeu, irmão de Nicolau, em quem ele tinha
grande confiança, porque sempre havia demonstrado fidelidade a Herodes, que
o considerava um dos principais amigos. Mas nenhum outro o tinha fortalecido
tanto nesse desígnio como Ireneu, que era um grande orador, e todas essas
considerações
 juntas
 o
 haviam
 impedido
 de
 escutar
 àqueles
 que
 o
aconselhavam a ceder a Arquelau, como filho mais velho, tendo sido constituído
rei pela última determinação do pai.
Quando então chegaram a Roma, os parentes deste príncipe, que odiavam
Arquelau e consideravam como uma espécie de liberdade estarem sob a
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dominação romana, uniram-se a Antipas, na esperança de que, se seu intento
de se libertar da dominação dos reis, não pudesse se realizar, eles teriam pelo
menos a consolação de serem governados por ele e não por Arquelau. Sabino
tinha mesmo escrito a Augusto de uma maneira muito vantajosa para ele e
desvantajosa para Arquelau.
Salomé e os que com ela favoreciam a Antipas apresentaram a Augusto
um memorial contra Arquelau, que, por seu lado, apresentou-lhe outro para
sua justificativa e também por meio de Ptolomeu o inventário dos tesouros
deixados pelo rei, seu pai, no envelope em que tinha sido encerrado e selado.
Depois que Augusto considerou o que lhe foi alegado de ambas as partes — a
extensão do território que Herodes possuía, a quanto orçavam os rendimentos,
o grande número de filhos que ele havia deixado e viu as cartas que Varo e
Sabino lhe haviam escrito — reuniu um grande conselho dos principais do
império, em que Caio César — filho de Agripa e de Júlia, sua filha, que ele havia
adotado — teve o primeiro lugar** e, em seguida, deu audiência aos dois
pretendentes.
___________________________
** Antigüidades Judaicas, Parte I, n9 748, diz que Caio presidiu a esse
conselho, porém há mais probabilidade de que ele tenha ocupado o primeiro
lugar, depois de Augusto.
Antípatro, filho de Salomé, que era o maior inimigo de Arquelau, falou pri-
meiro e disse que apenas pela forma ele disputava o reino pois sem esperar
qual seria a vontade do imperador, se tinha apoderado dele; que ele se
esforçaria em vão para torná-lo favorável, depois de lhe ter faltado ao respeito
daquele modo; que ele tinha logo depois da morte de Herodes conquistado
muitas pessoas para que lhe oferecessem a coroa; que se havia sentado no
trono, agido como rei, modificado as organizações militares, disposto de cargos,
concedido favores ao povo, quando este lhe pedira, e dado o perdão àqueles que
o falecido rei tinham mandado prender, por graves crimes; que depois de ter
assim usurpado a coroa, fingia só querer recebê-la das mãos do imperador,
como se ele pudesse dispor somente de nomes e não de coisas; e por fim, que o
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que lhe havia atraído o ódio do povo e causado a rebelião, fora que, fingindo,
durante o dia, chorar a morte de seu pai, ele passava as noites em banquetes e
bebedeiras. Depois destas acusações, Antipas insistiu principalmente naquela
horrível carnificina feita junto ao Templo; disse que aquela multidão lá se
encontrava para comemorar a festa da Páscoa e o cruel príncipe os havia
massacrado, e o Templo mesmo se havia enchido de cadáveres; que o furor das
nações mais inimigas e bárbaras não teria cometido coisa semelhante, na
guerra mais cruel do mundo; que Herodes, que conhecia seu caráter, jamais
tivera o pensamento de lhe dar nem mesmo a menor esperança de sucedê-lo no
trono, a não ser quando sua extrema enfermidade, tendo-lhe enfraquecido
demasiado o espírito, o corpo não sabia mais o que fazia; ao passo que ele
estava então em pleno gozo de saúde e de espírito, quando no seu primeiro
testamento tinha declarado Antipas, seu sucessor. Mas, mesmo quando sua
última vontade devesse ser executada, embora o estado em que se achava a
tornasse defeituosa, Arquelau era indigno de possuir o reino, do qual tinha
violado todas as leis; que se poderia esperar dele, depois que o imperador lhe
tivesse colocado a coroa na cabeça, se mesmo antes de tê-la recebido, tinha
mandado massacrar um grande número de homens? Antípatro acrescentou
várias coisas semelhantes e tomou como testemunhas de todas essas
acusações a maior parte dos parentes de Arquelau ali presentes. Nicolau tomou
em seguida a defesa de Arquelau. Fez ver que o morticínio feito no Templo
acontecera por uma necessidade inevitável; que os que tinham sido mortos não
eram somente inimigos de Arquelau, mas do imperador; que Arquelau nada
tinha feito, em tudo o mais, do que lhe imputavam como crime, a não ser por
conselho daqueles mesmos que o acusavam; que, com relação ao segundo
testamento, não se podia duvidar de que tinha muito grande valor, pois
Herodes colocara ao arbítrio do imperador confirmar ou não o escolhido e que
não era possível que, tendo demonstrado tanta sabedoria, deixando-lhe
absoluta vontade sobre todas as coisas, ele tivesse o espírito perturbado, quan-
do fez a escolha de seu sucessor.
Depois que Nicolau terminou de falar, Arquelau lançou-se de joelhos
diante de Augusto. Ele ergueu-o com muita amabilidade e disse-lhe que o
julgava digno de suceder ao seu pai; mas no momento nada decidiria, e
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dissolveu a assembléia para resolver com mais calma, se daria o reino inteiro a
um dos filhos de Herodes, como o testamento dizia, ou se o dividiria entre eles,
porque eram em grande número e todos precisavam de bens para viverem com
honra.
CAPÍTULO 5
GRANDE REVOLUÇÃO EM JERUSALÉM, PELO MAU PROCEDIMENTO DE SABINO, DURANTE O
TEMPO EM QUE
 ARQUELAU ESTAVA EM ROMA. *
______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 12,
Antigüidades judaicas, Parte I.
143. Antes que Augusto tivesse terminado esta questão, Maltacé, mãe de
Arquelau, caiu enferma e morreu. Ele soube por meio de cartas vindas da Síria,
que depois da partida de Arquelau, haviam sucedido grandes perturbações na
Judéia. Varo, que as tinha previsto, havia partido rapidamente para manter a
ordem, mas vendo que os ânimos estavam muito exaltados, quis esperar para
depois acalmá-los completamente e havia voltado para Antioquia, tendo deixado
em Jerusalém uma das três legiões que trouxera da Síria.
144. Sabino, fortalecido com essas tropas, além de que já tinha soldados,
por ele mesmo armados, deu motivo, por suas violências e por sua ambição, a
novas rebeliões, quer querendo obrigar os que comandavam as fortalezas a
entregá-las, quer pelo rigor que empregava em descobrir onde estava o dinheiro
deixado por Herodes. Os judeus ficaram com isso tão irritados, que durante a
festa de Pentecostes, à qual se deu esse nome, porque se realiza durante sete
vezes sete dias, não foi tanto sua devoção como seu ódio por Sabino que os fez
vir a Jerusalém. Lá se reuniu uma multidão enorme, não somente de todos os
lugares da Judéia, mas da Galileia, da Iduméia, de Jerico e de além do Jordão.
Dividiram-se em três grupos para cercar os romanos de todos os lados: um do
lado do norte, outro do lado do sul, na direção do hipódromo e o terceiro do
lado do ocidente, onde estava o palácio real.
Sabino, espantado por vê-los em tão grande número e tão resolvidos a
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atacá-lo, enviou a Varo uns emissários para pedir-lhe que o socorresse com
urgência, se ele não queria, demorando-se muito, ver perecer a legião que lá
tinha deixado. E fazia sinal com a mão aos romanos do alto da torre que
Herodes tinha feito construir chamada Fazaela, em honra de Fazael, seu irmão,
morto pelos partos — que fizessem uma incursão contra os judeus. Os romanos
fizeram o que ele desejava; atacaram o Templo e o combate foi renhido.
Enquanto os romanos não foram perturbados pelos dardos lançados do alto,
sua experiência na guerra lhes deu vantagem contra os inimigos, embora estes
fossem em tão grande número. Mas quando os judeus subiram aos pórticos do
Templo de onde lhes lançavam dardos, vários romanos foram mortos, sem que
eles, debaixo, pudessem atingi-los e sem poder combater corpo-a-corpo. Por
fim, os romanos, não podendo mais suportar que os inimigos levassem
vantagem, incendiaram os pórticos que, pelo tamanho e por seus admiráveis
adornos, eram o orgulho dos judeus. Estes, surpreendidos com tamanha
mudança, sentindo já o calor do fogo, não puderam fugir e muitos morreram
queimados. Vários foram mortos pelas chamas, outros caíam do alto e eram
mortos pelos romanos, outros precipitavam-se para escapar do fogo e outros
ainda suicidavam-se para não serem presos pelos romanos, preferindo morrer
pelo ferro do que pelo fogo. Os que tinham meio de escapar, desciam
aterrorizados, incapazes de resistir, eram imediatamente mortos, sem piedade.
Assim morreram ou fugiram todos e ninguém mais podia defender os tesouros
de Deus e os romanos saquearam tudo, levando quarenta talentos e Sabino
levou o restante.
A morte de tanta gente e esse saque do tesouro sagrado reuniu contra os
romanos um número de valentes judeus muito maior que o primeiro. Eles os
cercaram no palácio real com ameaças de não perdoar a um só, se eles não
abandonassem imediatamente a praça. Prometeram que, se se retirassem, não
lhes causariam mal algum, nem a Sabino nem aos que com ele saíssem, dentre
os quais, além da legião romana, estava a maior parte dos homens da corte e
três mil dos mais valentes do exército de Herodes, cuja cavalaria estava sob o
comando de Rufo e a infantaria, de Grato, tão ilustres por seu valor e por seu
proceder, que mesmo quando ninguém mais houvesse para comandar, somente
sua presença poderia fortalecer de muito o partido dos romanos. Os judeus
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prosseguiram então a sua empresa com extremo ardor, procurando derrubar as
muralhas, gritando ao mesmo tempo a Sabino que se retirasse, sem se opor
mais à resolução que eles haviam tomado de reconquistar a liberdade. Ele
estava muito disposto a isso, mas como não ousava confiar na palavra deles, e
atribuía a proposta que lhe faziam à intenção de enganá-lo, além de que estava
esperando auxílio de Varo, resolveu pois continuar a manter o cerco.
CAPÍTULO 6
OUTRAS GRANDES AGITAÇÕES NA JUDÉIA DURANTE A AUSÊNCIA DE ARQUELAU. *
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 12,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
145. Estando as coisas dessa forma em Jerusalém, houve também
diversas sublevações em outros lugares da Judéia, quer pela esperança de um
lucro, quer pelo desejo de reinar, que essa grande confusão fazia alguns
conceber.
Dois mil homens, dos melhores que Herodes tivera, reuniram-se na
Iduméia e foram atacar as tropas do rei, comandadas por Aquiabe, sobrinho de
Herodes. Mas como eram todos velhos soldados, muito bem armados, ele não
ousou esperá-los no campo e se retirou ao abrigo das fortalezas.
Por outro lado, judas, filho de Ezequias, chefe dos ladrões que Herodes
outro-ra tinha desbaratado, reuniu perto de Séforis, na Galiléia, um grande
número de soldados e se apoderou dos arsenais do rei, onde os armou e fazia
guerra aos que pretendiam constituir-se em autoridade.
Um certo Simão que conhecera o rei Herodes e cuja força, presença e
tamanho eram extraordinários, distinguindo-o dentre os demais, reuniu
também um grande número de homens escolhidos e teve a ousadia de pôr a
coroa sobre a cabeça. Incendiou o palácio de jerico e vários outros soberbos
edifícios, para se enriquecer com o produto do saque; teria continuado a fazer
por toda a parte, do mesmo modo, se Grato, que comandava a infantaria do rei,
não tivesse vindo ao seu encontro, com as melhores tropas que pôde tirar de
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Sebaste. Simão perdeu grande número de homens nesse combate e quando
fugia para se salvar, por um vale muito áspero, Grato alcançou-o por outro
caminho e o derrubou por terra com um golpe que lhe desferiu na cabeça.
Um grupo de soldados semelhantes aos que haviam seguido a Simão
reuniram-se a Betara e queimaram os edifícios reais, que estavam perto do rio.
Um certo Atronge, cuja origem era muito baixa, pois antes havia sido
simples pastor e seu único mérito era ser muito forte e corpulento, desprezando
a morte, chegou também ao cúmulo de querer fazer-se rei. Tinha quatro irmãos
parecidos com ele, que eram seus lugar-tenentes. Cada um deles comandava
um grupo de soldados e assim faziam incursões de todos os lados, enquanto
ele, na qualidade de rei, com a coroa na cabeça, dava ordens com soberana
autoridade. Assim fez durante certo tempo, devastando todo o país, matando,
não somente os romanos e todos os que eram das tropas do rei, que ele
encontrava, mas também os mesmos judeus, quando tinham algo a ganhar.
Um dia encontrou perto de Emaús tropas romanas que levavam trigo e
armas para sua legião. Não teve receio de atacá-los, matou ali mesmo Ario, que
os comandava, com quarenta dos mais valentes, e o restante já se julgava
perdido, quando Grato sobreveio com tropas do rei e os salvou de um grande
perigo. Esses cinco irmãos assim procederam durante algum tempo, fazendo
guerra cruel, tanto aos da própria nação como aos estrangeiros; por fim, três
dentre eles foram presos: o mais velho, por Arquelau; os outros dois, por Grato
e por Ptolomeu; e o quarto entregou-se mediante um ajuste, a Arquelau. Tais
foram no correr dos tempos os resultados de empresas tão ousadas desses
cinco homens. No momento, uma guerra de ladrões enchia toda a Judéia de
agitações, roubos e assaltos.
CAPÍTULO 7
VARO, GOVERNADOR DA SÍRIA, PELOS ROMANOS, REPRIME AS PERTURBAÇÕES NA
JUDÉIA. *
____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 12,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
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146. Apenas Varo soube do perigo que corria a legião sitiada em
Jerusalém, por isso tomou as outras duas que lhe restavam, na Síria, com
quatro companhias de cavalaria e foi a Ptolemaida, onde conferenciou com as
tropas auxiliares do rei e dos príncipes, para se unir a elas. Os habitantes de
Berita aumentaram suas tropas com mil e quinhentos homens, quando ele
passou pela sua cidade, e Aretas, rei dos árabes, que tinha odiado tanto a
Herodes, mandou-lhe um corpo mui considerável de tropas de cavalaria e de
infantaria. Depois que Varo reuniu todos os soldados perto de Ptolemaida,
mandou uma parte deles para a Galitéia, que está próxima, comandados por
Caio, um de seus amigos que derrotou os inimigos, tomou a cidade de Séforis,
incendiou-a e fez todos os habitantes escravos.
Varo marchou em pessoa com o restante do exército para Samaria, sem
nada empreender contra aquela cidade, porque ela não tivera parte na revolta e
acampou numa aldeia chamada Aro, que pertencia a Ptolomeu. Os árabes
puseram-lhe fogo, porque seu ódio por Herodes era tão grande que se estendia
até aos seus amigos. O exército avançou em seguida para Séforis; embora a
praça fosse forte, os árabes tomaram-na, saquearam-na e a incendiaram. Não
perdoaram a ninguém, atacaram a todos em seu caminho e passaram tudo a
ferro e fogo. Quanto a Emaús, que os habitantes tinham abandonado, foi por
ordem de Varo, incendiada, como vingança pela morte dos romanos que lá
foram sacrificados.
Logo que os judeus, que sitiaram a legião romana em Jerusalém,
souberam que Varo se aproximava com seu exército, levantaram o cerco. Uma
parte saiu da cidade para fugir; os que lá ficaram receberam-no e lançaram
sobre os outros a causa da sedição, dizendo que, pouca parte nela haviam tido,
que a festa os tinha obrigado a receber aquele grande número de estrangeiros, e
que não se uniram a estes homens para sitiar os romanos; pelo contrário, eles
também foram assediados. José, sobrinho de Arquelau, Grato e Rufo haviam
comparecido à presença de Varo, com as tropas do rei, os de Sebaste e a legião
romana; mas Sabino, não ousando apresentar-se diante dele, havia se retirado
primeiro, dirigindo-se para os lados do mar. Esse general mandou em seguida
uma parte de seu exército, dividido em diversos corpos, fazer uma exata
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indagação dos autores da revolta; levaram-lhe então um grande número deles.
Mandou crucificar alguns, mais ou menos uns dois mil daqueles que eram tidos
como culpados, e prender os que tinham culpa leve.
Ante a notícia de que dez mil judeus ainda estavam armados na Judéia,
despediu os árabes, porque ao desprezo de suas ordens e contra as que deviam
observar as tropas auxiliares, não observavam nenhuma disciplina, mas
devastavam e arruinavam tudo para satisfazer o seu ódio contra a memória de
Herodes. Marchou em seguida com suas forças, apenas, conta aquele corpo de
dez mil homens que ainda subsistia; mas estes dirigiram-se a ele a conselho de
Aquiabe, antes de travar combate. Ele perdoou-os, com exceção dos chefes, que
mandou a Augusto, para deles fazer o que quisesse. Esse grande príncipe
mandou castigar os parentes de Herodes, porque tinham tomado as armas
contra seu rei e concedeu graça aos outros. Depois que Varo acalmou essas
perturbações e restabeleceu a calma na judéia, deixou como guarnição na
fortaleza de Jerusalém a legião que lá estava antes e voltou a Antioquia.
CAPÍTULO 8
OS JUDEUS ENVIAM EMBAIXADORES A AUGUSTO PARA ROGAR-LHE QUE OS
DISPENSASSE DE OBEDECER A REIS E OS REUNISSE À
 SÍRIA. FALAM-LHE
CONTRA
 ARQUELAU E CONTRA A MEMÓRIA DE HERODES. *
____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 12,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
147. Enquanto estas coisas se passavam na Judéia, Arquelau encontrou
em Roma um novo obstáculo às suas pretensões, pelo motivo que passo a
expor.
Cinqüenta embaixadores dos judeus vieram, com a permissão de Varo,
procurar Augusto para lhe rogar que lhes permitisse viver segundo suas leis e
mais de oito mil judeus que moravam em Roma uniram-se a eles naquela
comissão. O imperador reuniu, para esse fim, uma grande assembléia de seus
amigos e dos principais dos romanos, num soberbo Templo de Apoio, que tinha
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mandado construir. Os embaixadores, seguidos por todos aqueles outros
judeus, apresentaram-se lá, e Arquelau também, com seus amigos. Quanto aos
parentes, não sabiam que partido tomar, porque, de um lado, eles o odiavam;
de outro, tinham vergonha de parecer favorecer, na presença do imperador, aos
inimigos de um príncipe de seu sangue. Filipe, irmão de Arquelau, que Varo
estimava muito, veio também, a seu conselho, para um destes dois fins: ou
ajudar seu irmão, ou, se Augusto dividisse o reino entre os filhos de Herodes,
obter também uma parte.
Os embaixadores falaram primeiro e começaram por declararem-se contra
a memória de Herodes. Disseram que ele jamais fora rei, mas o maior de todos
os tiranos; que não se contentara de derramar o sangue de várias pessoas
ilustres, mas sua crueldade para com os que ficavam com vida fazia-os invejar
a felicidade dos outros; que ele não oprimia somente os particulares, mas
desolava até mesmo as cidades, as despojava do que elas tinham de mais belo e
de mais raro para fazê-lo servir de ornamento às cidades estrangeiras e
enriquecer assim seus vizinhos com o que tirava de seus súditos; que em vez da
antiga felicidade de que a judéia gozava por uma religiosa observância de suas
leis, ele a tinha reduzido à extrema miséria e a havia feito sofrer por muito
tempo em virtude das suas horríveis injustiças, mais males do que seus
antepassados haviam sofrido desde que foram libertados sob o reinado de
Xerxes, do cativeiro da Babilônia; que tão rude dominação os fizera sofrer, e
apesar disso eles se haviam conformado de boa mente com receber Arquelau,
seu filho, por rei, depois da morte do tirano; que haviam até honrado com luto
público a memória de seu pai e feito votos pela sua prosperidade. Mas ele, ao
contrário, temendo que duvidassem ser ele um verdadeiro filho de Herodes,
tinha começado por mandar estrangular três mil cidadãos. Eram aquelas as
vítimas que oferecera a Deus, para torná-lo favorável em seu novo reino, sem
temer encher o Templo com um número tão grande de cadáveres, no dia mesmo
de uma festa solene; que não se deveria, portanto, achar estranho que aqueles
que haviam sobrevivido a tantos males e escapado de tal naufrágio, pensassem
em se salvar de tão horrível opressão e se declarassem abertamente contra
Arquelau, do mesmo modo que, na guerra, não se poderia, sem covardia, não se
apresentar de frente para o inimigo. E assim rogavam ao imperador que tivesse
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compaixão das relíquias da Judéia e não permitisse que ela ficasse por mais
tempo exposta à tirania daqueles que a tinham feito sofrer cruelmente; que
para lhes conceder aquela graça, devia somente uni-la à Síria e então ver-se-ia
se eles eram sediciosos como os acusavam e se não saberiam obedecer a
governadores moderados e eqüitativos.
Depois que os embaixadores assim falaram, Nicolau encetou a defesa de
Arquelau e de Herodes; depois de ter respondido às acusações feitas contra
eles, disse que os judeus eram um povo tão difícil de governar que não se
podiam resolver a obedecer a reis e, assim falando, censurava indiretamente os
parentes de Arquelau, de se terem unido contra ele no pedido daqueles
embaixadores.
CAPÍTULO 9
AUGUSTO CONFIRMA O TESTAMENTO DE H ERODES E ENTREGA AOS FILHOS O QUE ELE
LHES HAVIA LEGADO.
 *
__________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 1 3,
Antigüidades judaicas, Parte I.
148. Depois que Augusto deu esta audiência, dissolveu a assembléia e
alguns dias depois deu a Arquelau, não somente o reino da Judéia inteiro, mas
uma metade ainda, sob o título de etnarquia, com promessa de torná-lo rei se
se tornasse digno do trono, pela sua virtude. Dividiu a outra metade entre Filipe
e Antipas, dois filhos de Herodes, que haviam disputado o reino a Arquelau.
Antipas teve a Galiléia com o país que está além do rio, cujas rendas montavam
a duzentos talentos e Filipe teve a Batanéia, a Traconítida e a Auranita com
uma parte do que havia pertencido a Zenodoro** perto de Jamnia, cuja renda
era de cem talentos. Quanto a Arquelau, teve a Judéia, a Iduméia e a Samaria,
à qual Augusto perdoou a quarta parte dos impostos que antes pagava, porque
se havia conservado fiel quando as outras se haviam revoltado. A torre de
Estratão, Sebaste, Ipom*** e Jerusalém estavam também nessa partilha de
Arquelau. Mas Gaza, Gadara e Jope,**** Augusto tirou-as do reino para uni-las
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à Síria e a renda anual de Arquelau era de quatrocentos talentos.*****
_____________________________
** No grego está Zenon, mas deve ser Zenodoro, como se encontra no nQ
754, Antigüidades Judaicas, Parte I.
*** Antigüidades Judaicas, Parte I, n° 754, diz Jope.
**** Idem, diz Ipom.
***** Idem, diz seiscentos talentos.
Assim vemos o que os filhos de Herodes herdaram de seu pai. Quanto a
Salomé, além das cidades de Jamnia, Azorto, Fazaelida e o restante do que
Herodes lhe havia legado, Augusto deu-lhe um palácio em Ascalom. Sua renda
era de sessenta talentos e ela estabelecera sua residência no país governado por
Arquelau. O imperador confirmou também aos outros parentes de Herodes os
legados feitos no testamento; além do que ele havia deixado às duas filhas, que
ainda não eram casadas, deu liberalmente a cada uma delas cento e cinqüenta
mil peças de prata, em moedas, e fê-las desposar os dois filhos de Feroras. A
magnificência desse grande príncipe passou ainda muito além; ele deu aos
filhos de Herodes os mil talentos****** que lhe havia legado, contentando-se
apenas em conservar uma pequeníssima parte dos vasos preciosos, que lhe
havia deixado, não pelo seu valor, mas para mostrar que tinha prazer em
conservar uma recordação de um rei que lhe tinha estimado muito.
___________________________
****** Antigüidades judaicas, Parte I, n° 754, diz 500.
CAPÍTULO 10
DE UM IMPOSTOR QUE SE DIZIA ALEXANDRE, FILHO DE HERODES, O GRANDE. AUGUSTO
MANDA-O PARA AS GALÉS.
 *
_________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Sétimo, capítulo 14,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
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149. Ao mesmo tempo, quando Augusto ultimava o que se referia à
sucessão de Herodes, um judeu de Sidom, da casa do liberto de um cidadão
romano, intentou apoderar-se do trono, pela semelhança que tinha com
Alexandre que o rei Herodes, seu pai, tinha feito morrer e resolveu ir a Roma
para esse fim. Com o propósito de conseguir o que intentava, ele se serviu de
um judeu, que tinha um conhecimento quase perfeito de tudo o que se passara
na família de Herodes. Orientado por esse indivíduo, ele dizia que os homens
enviados para matá-lo, com Aristóbulo, seu irmão, haviam tido compaixão deles
e os haviam salvado e colocado outros em seu lugar.
Ele foi primeiramente à ilha de Creta, onde persuadiu a todos os judeus,
aos quais falou; deles recebeu considerável auxílio e passou depois à ilha de
Meios, onde todos o receberam com grandes honras; vários embarcaram com
ele para acompanhá-lo até Roma. Desembarcando em Puteolo, os judeus que lá
moravam e particularmente os que estimavam Herodes dirigiram-se a ele e
deram-lhe muitos presentes e já o consideravam como rei, porque se
assemelhava muito com Alexandre, tanto que os que o conheciam e haviam
conversado com ele estavam persuadidos disso, isto é, de que era ele mesmo em
pessoa, não temendo mesmo afirmá-lo com juramento.
Quando chegou a Roma, todos os judeus que lá moravam, reuniram-se de
tal modo para recebê-lo, que as ruas por onde ele passava ficaram repletas; os
de Meios haviam concebido tanta estima por ele, que o levavam numa cadeira
feita à moda de uma liteira e tudo faziam para tratá-lo como rei.
Embora Augusto, que conhecia mui particularmente a Alexandre, pois o
vira diversas vezes, tenha se persuadido logo de que aquele homem era um
impostor, julgou dever reservar algo a uma esperança, cujo efeito lhe teria sido
muito agradável. Mandou um certo Celado, que conhecia muito bem Alexandre,
trazer aquele indivíduo ao palácio, pois todos afirmavam ser ele mesmo.
Celado,** ao vê-lo, reconheceu, por diversos traços, a diferença entre as duas
pessoas e verificou que se tratava mesmo de um espertalhão. Estas eram as
principais diferenças: a rudeza da pele e o rosto servil, que nada tinham de
grande e de nobre. Admirou-se, porém, muito, da ousadia com a qual ele falava,
pois tendo-lhe perguntado o que era feito de Aristóbulo, seu irmão, respondeu
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que ele tinha ficado na ilha de Chipre, para segurança comum, porque ninguém
atentaria contra eles tão facilmente, se estivessem separados. Celado levou-o
então à parte e disse-lhe que garantia obter do imperador que lhe conservasse a
vida, contanto que ele lhe declarasse quem era o autor daquela estúpida
mistificação. Estas palavras encheram-no de temor. Ele prometeu confessar a
verdade e Celado levou-o imediatamente a Augusto, ao qual ele citou o judeu,
que se servira de sua semelhança com Alexandre, para tirar disso grande
proveito, pois havia recebido muito dinheiro de vários judeus, aos quais havia
enganado, tanto quanto não teriam dado ao mesmo Alexandre se estivesse vivo.
Augusto riu-se da farsa, condenou aquele falso Alexandre às galés, à qual seu
tamanho e sua força tornavam bem apto e mandou matar o impostor que o
havia induzido àquela mistificação; quanto aos judeus que se haviam deixado
enganar, ele julgou que todo o dinheiro que tinham empregado tão mal, já era
um grande castigo de sua loucura.
___________________________
** Antigüidades Judaicas, Parte I, diz que foi Augusto que reconheceu o
impostor.
CAPÍTULO 11
AUGUSTO, ANTE AS QUEIXAS QUE OS JUDEUS LHE FAZEM DE ARQUELAU,
EXILA-O PARA
 VIENA, NAS GÁLIAS, E CONFISCA-LHE TODOS OS BENS.
MORTE DA PRINCESA GLAFIRA, QUE ARQUELAU HAVIA DESPOSADO E
QUE TINHA SIDO CASADA EM PRIMEIRAS NÚPCIAS COM
 ALEXANDRE ,
FILHO DO REI
 HERODES, O GRANDE, E DA RAINHA MARIANA.
SONHOS QUE TIVERAM.
150. Quando Arquelau entrou de posse da sua etnarquia, a lembrança e
ressentimento pelas perturbações passadas fizeram que ele tratasse rudemente,
não só os judeus, mas também os samaritanos. Uns e outros, não podendo
tolerá-lo por mais tempo, mandaram no nono ano de seu governo alguns
embaixadores a Augusto, para fazer-lhe queixas. Este, então, exilou-o para
Viena, nas Gálias, e confiscou-lhe todos os bens.
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151. Diz-se que um pouco antes, Arquelau tivera um sonho, no qual viu
nove grandes espigas, bem cheias de grão, que alguns bois comiam; caldeus,
que ele consultou para lhe interpretar o sonho, haviam-no explicado de um
modo, mas um essênio, de nome Simão, disse-lhe que aquelas nove espigas
significavam o número de anos que ele tinha reinado* e os bois, a mudança da
fortuna, porque aqueles animais trabalhando a terra, a removem e a fazem
mudar de aspecto. E assim, tendo-se passado nove anos, depois que ele fora
constituído tetrarca, devia preparar-se para a morte. E cinco dias depois que
Simão assim explicara o sonho, Arquelau recebeu ordem de ir procurar
Augusto.
__________________________
* Antigüidades Judaicas, Parte I, registra dez anos.
152. Julgo dever também relatar um outro sonho que a princesa Glafira
teve, quando mulher de Arqueiau e filha também de Arqueiau, rei da
Capadocia, a qual tinha desposado em primeiras núpcias a Alexandre, filho do
rei Herodes, que o mandara matar. Ela desposara depois de sua morte a Juba,
rei da Líbia, mas, ficando ainda viúva, voltou para casa de seu pai, onde
Arqueiau, o etnarca, tendo-a visto, foi tomado de violenta paixão por ela e
repudiou Mariana, sua mulher, para desposá-la. Pouco tempo depois que
Glafira voltara para a Judéia, por esse casamento, parecia-lhe ver Alexandre,
seu primeiro marido, que lhe dizia: "Não vos foi suficiente passar a segundas
núpcias, mas quisestes ainda casar-vos uma terceira vez e não tiveste vergonha
de desposar meu próprio irmão? Não vos perdoarei tão grande ultraje e embora
o tenhais feito, eu vos retomarei". A princesa contou o sonho às amigas e
morreu dois dias depois.
CAPÍTULO 12
UM CERTO JUDAS, GALÜEU, ESTABELECE ENTRE OS JUDEUS UMA QUARTA
SEITA.
 SOBRE AS OUTRAS TRÊS SEITAS QUE JÁ EXISTIAM E,
PARTICULARMENTE, A DOS ESSÊNIOS.
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153.
 Quando os países dominados por Arqueiau foram reduzidos a
Província, Augusto deu-lhes o governo a Copônio, cavaleiro romano. Durante
sua administração, um galileu, chamado Judas, levou os judeus a se
revoltarem, censurando-os, porque pagavam tributo aos romanos, quase
igualando homens a Deus, pois os reconheciam também como senhores. Judas
foi o autor de uma nova seita, inteiramente diferente das três outras, das quais
a primeira era a dos fariseus, a segunda, a dos saduceus e a terceira, a dos
essênios, que é a mais perfeita de todas.
Eles são judeus de nascimento; vivem em estreita união e consideram os
prazeres como vícios, que se devem evitar, e a continência e a vitória sobre suas
paixões como virtudes, que muito se devem estimar. Rejeitam o casamento, não
porque julgam dever-se destruir a espécie humana, mas para se evitar a
intemperança das mulheres que não guardam fidelidade aos seus maridos. Não
deixam, entretanto, de reconhecer as crianças que lhes são dadas para
instruírem e educá-las na virtude, com tanto cuidado e caridade como se
fossem seus pais, e alimentam e vestem todas da mesma maneira.
Desprezam as riquezas: todas as coisas são comuns entre eles, com uma
igualdade tão admirável que, quando alguém abraça a seita, despoja-se de toda
propriedade, para evitar, por esse meio, a vaidade das riquezas, poupar aos
outros a vergonha da pobreza e em tão feliz união viver juntos como irmãos.
Não toleram a unção do corpo com óleo, mas se isso sucede a alguém,
ainda que contra a vontade, eles limpam aquele óleo como se fossem manchas e
julgam-se limpos e bastante puros, quando suas vestes são sempre brancas.
Escolhem para ecônomos, homens de bem, que recebem todas as suas
rendas e as distribuem segundo as necessidades de cada qual; não têm cidade
certa onde morar; estão espalhados em várias, onde recebem os que desejam
entrar em sua sociedade; ainda que jamais os tenham visto, dividem com eles o
que têm como se os conhecessem há muito tempo.
Quando fazem alguma viagem nada levam consigo, apenas armas para se
defenderem dos ladrões. Eles têm em cada cidade alguns dos seus, para receber
e alojar os de sua seita, que por ali passam e para lhes dar vestes e outras
coisas de que podem ter necessidade.
Não mudam de roupa, senão quando as suas já estão rotas ou muito
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usadas. Nada vendem e nada compram entre si; mas permutam uns com os
outros tudo o que têm.
São muito religiosos e piedosos para com Deus, só falam de coisas santas;
antes que o sol desponte fazem orações, que receberam por tradição, para pedir
a Deus que o faça brilhar sobre a terra. Depois vão trabalhar, cada qual em seu
ofício, segundo o que lhes é determinado. Às onze horas, reúnem-se e cobertos
com um pano de linho, lavam-se em água fria. Retiram-se em seguida para
suas celas, cuja entrada só é permitida aos da seita e, tendo-se purificado desse
modo, vão ao refeitório, como a um santo Templo, onde, depois de sentados, em
grande silêncio, põem, diante de cada qual, um pão e um pouco de alimento
num pequeno prato. Um sacerdote abençoa as iguarias e não se pode tocá-las
enquanto não termina a oração. Oram depois da refeição para terminar como
começaram, com louvores a Deus, a fim de testemunhar que somente de sua
libe-ralidade eles recebem tudo o que têm para sua alimentação. Deixam então
suas vestes que consideram sagradas e voltam ao trabalho. Fazem a ceia à
noitinha do mesmo modo e recebem seus hóspedes, se os houver.
154. jamais se ouve barulho em suas casas; nunca se vê a menor
perturbação; cada qual fala por sua vez e sua posição e seu silêncio causam
respeito aos estrangeiros. Tão grande moderação é efeito de sua contínua
sobriedade; não comem nem bebem mais do que é necessário para a
sustentação da vida.
Não lhes é permitido fazer coisa alguma, a não ser com a anuência de
seus superiores, exceto ajudar os pobres sem que qualquer outra razão os leve
a isso — a compaixão pelos infelizes; quanto aos parentes, nada lhes dão se não
lhes for concedida a permissão.
Têm imenso cuidado de reprimir a cólera; amam a paz e cumprem tão
inviolavelmente o que prometem, que se pode prestar fé às suas simples pala-
vras, como a juramentos. Eles os consideram mesmo como perjúrios, porque
não podem crer que um homem não seja um mentiroso quando tem
necessidade, para que nele se creia, de tomar a Deus por testemunha.
Estudam com cuidado os escritos dos antigos, principalmente no que se
refere às coisas úteis à alma e ao corpo, e adquirem grande conhecimento dos
remédios próprios para curar as doenças e a virtude das plantas, das pedras e
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dos metais.
Eles não recebem imediatamente em sua comunidade os que querem
abraçar a sua maneira de viver, mas fazem-nos esperar um ano onde eles têm
cada qual uma ração, um cântaro de água, uma veste, de que falamos, e um
hábito branco. Dão-lhes em seguida um alimento mais parecido ao deles e
permitem-lhes lavar-se na água fria, a fim de se purificar, mas não os deixam
comer no refeitório até que tenham, durante dois anos, experimentado os seus
costumes, como antes experimentaram a sua continência. Então são recebidos,
porque só assim, são tidos como dignos, mas, antes de se sentar à mesa com os
outros, juram solenemente honrar e servir a Deus de todo o coração, observar a
justiça para com os homens, jamais fazer voluntariamente mal a ninguém,
mesmo quando isso lhes fosse ordenado, ter aversão pelos maus, ajudar
sempre aos homens de bem, de todos os modos possíveis, manter fidelidade a
todos e particularmente aos soberanos, porque eles recebem o seu poder de
Deus. A isso acrescentam que, se forem constituídos num cargo, não abusarão
do poder para maltratar os inferiores; que nada terão mais que os outros, nem
em suas vestes, nem no que se refere às suas pessoas, que terão um amor
inviolável pela verdade, e repreenderão severamente os mentirosos; que
conservarão as mãos e as almas puras de todo roubo e de todo desejo de lucro
injusto; que nada ocultarão aos seus confrades dos mistérios mais secretos de
sua religião e nada revelarão aos outros, mesmo quando fossem ameaçados de
morte, para obrigá-los a isso; que só ensinarão a doutrina que lhes foi ensinada
e que guardarão cuidadosamente os livros bem como os nomes daqueles de
quem a receberam.
Tais as promessas que são obrigados a fazer todos os que querem abraçar
a sua maneira de viver, e ao fazê-lo, tem de ser solenemente, a fim de fortalecer
a virtude contra os vícios. Se contra elas cometeram faltas graves, são afastados
de sua companhia e a maior parte dos que são assim rejeitados morre
miseravelmente, porque, não lhes sendo permitido comer com os estrangeiros,
são obrigados a comer erva como os animais e chegam a morrer de fome; por
isso, às vezes, a compaixão que se tem de sua extrema miséria, faz com que
sejam perdoados.
Os desta seita são muito justos e exatos em seus juízos; seu número é de
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quase cem; os que eles pronunciam e o que uma vez determinaram, tornam-se
imutáveis.
Veneram de tal modo, depois de Deus, o seu legislador, que castigam com
a pena de morte os que dele falam com desprezo e consideram mui grande
dever obedecer aos antepassados e ao que vários deles lhes ordenam.
São tão atenciosos uns para com os outros que, de dez, nenhum ousa
falar se os outros nove não consentirem; consideram grande grosseria estar no
meio deles ou à sua direita.
Observam mais religiosamente o sábado do que qualquer outro judeu e
não somente preparam o alimento na véspera, para não serem obrigados a fazê-
lo no dia de descanso, como não ousam nem mesmo mudar um objeto de lugar,
nem satisfazer, se não forem obrigados a isso, às necessidades da natureza.
Nos outros dias, eles o fazem; num lugar afastado e com aquela ferramenta de
que falamos cavam um buraco na terra de um pé de profundidade onde, depois
de se terem descarregado, cobrindo-se com suas vestes, como se tivessem
receio de serem manchados pelos raios do sol que Deus faz brilhar sobre eles,
enchem o buraco com a terra que dali tiraram. Porque, ainda que seja uma
coisa natural, não deixam de a considerar como impureza, que devem evitar e
depois lavam-se para se purificar.
Os que fazem profissão dessa maneira de viver, estão divididos em quatro
classes; os mais jovens têm tal respeito pelos mais velhos, que quando os tocam
são obrigados a se purificar como se tivessem tocado num estrangeiro.
Vivem tanto tempo, que alguns chegam a cem anos, o que eu atribuo à
simplicidade da vida e ao fato de eles serem muito metódicos em tudo.
Desprezam os males da terra, vencem os tormentos com a constância e
preferem a morte à vida, quando o motivo é honroso. A guerra que travamos
contra os romanos fez ver de mil modos que sua coragem é invencível. Eles
sofreram o ferro e o fogo, tiveram quebrados todos os ossos, mas não disseram
uma palavra contra seu legislador, nem comeram os alimentos que lhes eram
proibidos, nem no meio de tantos tormentos derramaram uma única lágrima,
nem disseram uma palavra para abrandar a crueldade dos carrascos. Ao
contrário, zombavam deles, sorriam e morriam alegremente, porque esperavam
passar desta vida para a melhore acreditavam firmemente que, embora nosso
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corpo seja mortal e corruptível, nossas almas são imortais e incorruptíveis — de
uma substância etérea, muito sutil, encerrada no corpo, como numa prisão,
onde uma inclinação natural as atrai e retém — e que apenas se vêem livres
destes laços carnais, que as prendem em dura escravidão, quando elevam-se ao
ar e voam com alegria. Nisto estão de acordo com os gregos, que julgam que as
almas felizes têm sua morada além do Oceano, numa região onde não há
chuva, nem neve, nem calor excessivo; mas um doce zéfiro a faz sempre
agradável; e que ao contrário, as almas dos maus têm por morada lugares
gelados, agitados por contínuas tempestades, onde eles gemem eternamente em
sofrimentos infinitos. É assim, parece-me, que os gregos querem que seus
heróis, aos quais dão o nome de semideuses, morram nas ilhas a que chamam
de felizes e as almas dos ímpios estejam sempre atormentadas no inferno, como
eles dizem, de Sísifo, Tântalo, Ixion e Títio.
Esses mesmos essênios julgam que as almas são criadas imortais, para se
darem à virtude e se afastarem do vício; que os bons se tornam melhores nesta
vida pela esperança de serem felizes depois da morte, e os maus, que imaginam
poder esconder neste mundo suas más ações, são castigados com tormentos
eternos. Tais os seus sentimentos com relação à excelência da alma, dos quais
não se afastam uma vez persuadidos. Há entre eles alguns que se vangloriam
de conhecer as coisas futuras, quer pelos estudos nos livros santos e nas
antigas profecias, quer pelo cuidado que têm de se santificar.
Há uma outra espécie de essênios que estão de acordo com os primeiros,
no uso de certos alimentos, dos mesmos costumes e nas mesmas leis, mas
divergem no que se refere ao casamento. Estes acreditam que é querer abolir a
raça humana renunciar ao mesmo, pois que, se todos fossem dessa opinião,
ver-se-ia em breve a família humana completamente extinta. Mas nisso
procedem também com tanta moderação, que, antes de se casarem, observam
durante três anos se a pessoa com quem se querem casar tem saúde suficiente
para poder criar os filhos; quando depois de casadas se tornam grávidas, não
dormem mais com a esposa durante a gestação, para mostrar que não foi a
voluptuosidade, mas o desejo de dar homens ao mundo e à república, que os
induziu a se casarem; quando as mulheres se lavam, cobrem-se com um pano,
como os homens. Assim, pelo que acabo de relatar, conhecemos os costumes e
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usos dos essênios.
155. Quanto às duas primeiras seitas de que falamos, os fariseus são
tidos como os mais perfeitos conhecedores de nossas leis e de nossas
cerimônias. O principal artigo de sua crença é tudo atribuir a Deus e ao
destino; entretanto, na maior parte das coisas, depende de nós fazer o bem ou o
mal, embora o destino possa ajudar-nos muito. Eles dizem também que as
almas são imortais; que as dos justos passam depois desta vida a outro corpo e
que as dos maus sofrem tormentos que duram para sempre.
156. Os saduceus, ao contrário, negam absolutamente o destino e crêem
que, como Deus é incapaz de fazer o mal, Ele não se incomoda com o que os
homens fazem. Dizem que está em nós fazer o bem ou o mal, segundo nossa
vontade nos leva a um ou a outro, e as almas não são nem castigadas nem
recompensadas num outro mundo. Enquanto os fariseus são sociáveis e vivem
em amizade uns com os outros, os saduceus são naturalmente rudes e vivem
mesmo grosseiramente entre si, como se fossem estrangeiros.
CAPÍTULO 13
MORTE DE SALOMÉ, IRMÃ DO REI HERODES, O GRANDE. MORTE DE A UGUSTO. TIBÉRIO
SUCEDE-O NO IMPÉRIO.
157.
 Depois que os países que Arquelau possuía, sob o título de
etnarquia, foram reduzidos a províncias, Filipe e Herodes, cognominado
Antipas, continuaram como antes, em suas tetrarquias.
158. Salomé, em virtude do testamento, cedeu à imperatriz Lívia,* mulher
de Augusto, sua toparquia, com Jâmnia e as palmeiras que tinha mandado
plantar em Fazaelida.
___________________________
* Ele a chama Júlia, embora ela se chamasse Lívia.
159. Augusto, pouco depois, morreu após ter reinado cinqüenta e sete
anos, seis meses e dois dias; Tibério, filho da imperatriz Lívia, sucedeu-o no
trono do Império. Filipe, o tetrarca, construiu no território de Paneada, perto
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das nascentes do Jordão, uma cidade a que chamou de Cesaréia, uma outra na
Galaunita, a que chamou de Tiberíades e uma outra na Peréia, a que chamou
de Julíada.
CAPÍTULO 14
OS JUDEUS PROTESTAM DE TAL MODO CONTRA PILATOS, GOVERNADOR DA
JUDÉIA, QUE TINHA FEITO ENTRAR EM JERUSALÉM BANDEIRAS ONDE ESTAVA
O RETRATO DO IMPERADOR, QUE ELE AS MANDA RETIRAR.
OUTRA AGITAÇÃO DOS JUDEUS, QUE ELE CASTIGA. *
_____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Oitavo, capítulo 4,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
160. Pilatos foi mandado por Tibério, como governador da Judéia; dias
depois, à noite, fez entrar em Jerusalém umas bandeiras onde estava o retrato
do imperador. Os judeus ficaram tão atônitos e irritados com isso que surgiu,
três dias depois, uma grande agitação, porque eles consideravam aquele ato
uma violação de suas leis, as quais proíbem expressamente em suas cidades
figuras de homens e de animais. O povo dos campos veio também de todos os
lugares a Jerusalém e todos foram em grandíssimo número procurar Pilatos,
em Cesaréia, para pedir-lhe que mandasse retirar da cidade aquelas bandeiras
e lhes conservasse seus privilégios. Ele respondeu que não podia fazê-lo e os
judeus então lançaram-se por terra, em redor de sua casa, e assim ficaram
durante cinco dias e cinco noites. No sexto dia Pilatos compareceu ao tribunal
que mandara erguer expressamente para os exercícios públicos e fez vir aquela
grande multidão, como para atendê-la, mas a enganou, ordenando que os
soldados a rodeassem de todos os lados. Pode-se imaginar o terror que tal ato
causou. Pilatos disse-lhe que a mandaria matar, se se negasse a receber
aquelas bandeiras e ordenou aos soldados que puxassem das espadas. A estas
palavras todos os judeus lançaram-se por terra, como tinha combinado antes, e
apresentaram-lhes a garganta, dizendo que preferiam ser mortos a consentir na
violação de suas santas leis. Tal firmeza e zelo tão ardente pela religião
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causaram grande admiração a Pilatos; ele ordenou no mesmo instante que
levassem as bandeiras para fora de Jerusalém.
161. A essa perturbação seguiu-se outra. Nós temos um tesouro sagrado
a que chamamos de Corbã, e Pilatos, que então estava em Jerusalém, quis
apoderar-se do dinheiro para construir aquedutos para a cidade, pois as fontes
estavam muito longe, mais ou menos uns quatrocentos estádios.** O povo
revoltou-se de tal modo, que se reuniu, de todas as partes, para protestar. Não
teve ele dificuldade em compreender que assim facilmente se provocaria uma
revolução; deu ordem aos soldados que tirassem as vestes militares e se
disfarçassem em homens do povo, e misturando-se à multidão os atacassem
não com armas, mas a pauladas, quando ele começasse a gritar. Tudo estava
assim preparado: ele deu o sinal convencionado e os soldados executaram a
ordem. Muitos jovens morreram, outros foram pisoteados pela multidão,
quando procuravam fugir. Tão severo castigo assustou aquela gente e a sedição
terminou.
____________________________
** Antigüidades Judaicas, Parte I, n° 271, diz duzentos estádios.
CAPÍTULO 15
TIBÉRIO MANDA PRENDER AGRIPA, FILHO DE ARISTÓBULO, FILHO DE HERODES, O
GRANDE, E ELE PERMANECE NA PRISÃO ATÉ A MORTE DO IMPERADOR. *
____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Oitavo, capítulo 8,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
162. Agripa, filho de Aristóbulo, que o rei Herodes, seu pai, havia
mandado matar, foi procurar Tibério, para acusar Herodes, o tetrarca; mas o
imperador não levou em conta a acusação e ele ficou em Roma, como cidadão
privado, para se tornar conhecido e obter a amizade das pessoas mais ilustres
no Império. Fazia principalmente a corte a Caio, filho de Germânico, e num
soberbo banquete que lhe deu um dia, pediu a Deus que o tornasse mui
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depressa senhor de todo o mundo, em lugar de Tibério. Um dos seus criados foi
contá-lo a Tibério e este mandou-o imediatamente a uma prisão, onde ele ficou
seis meses, em grande miséria até a morte desse imperador, que reinou vinte e
dois anos, três meses e seis dias.**
____________________________
** Antigüidades Judaicas, Parte I, ne 786.
CAPÍTULO 16
O IMPERADOR CAIO CALÍGULA DÁ A AGRIPA A TETRARQUIA QUE FILIPE
TINHA E O FAZ REI.
 HERODES, O TETRARCA, CUNHADO DE AGRIPA, VAI A
ROMA PARA TAMBÉM SER DECLARADO REI, MAS EM VEZ DE OBTER O
TRONO,
 CAIO AINDA DÁ A SUA TETRARQUIA A AGRIPA. *
______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Oitavo, capítulo 9,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
163. Caio, cognominado Calígula, sucedeu a Tibério e pôs Agripa em
liberdade, deu-lhe ainda a tetrarquia de Filipe, que havia falecido, e o fez rei.
Herodes, o tetrarca, sentiu inveja, vendo-o guindado a tão alta posição:
Herodíada, sua mulher, que o incitava ainda mais, pelo desejo também de usar
uma coroa, fazia-o conceber tais esperanças, dizendo-lhe que ele não fora
elevado a tão grande dignidade, somente pela sua pouca ambição e negligência,
que o tinham prendido em casa em vez de ir procurar o imperador, pois Agripa,
de cidadão particular que era, tinha-se tornado rei e por isso não se lhe poderia
recusar idêntica honra, pois ele já era tetrarca.
O príncipe deixou-se persuadir por estas palavras e foi a Roma, para onde
Agripa o seguiu, a fim de impedir o seu intento, e o imperador, não somente
não lhe concedeu o que pedia, mas também reprovou-lhe ainda a ousadia e deu
a Agripa a sua tetrarquia. Depois ele fugiu para a Espanha com sua mulher e lá
morreu.**
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____________________________
** Antigüidades judaicas, Parte I, na 788, afirma que ele foi exilado para
Liom.
CAPÍTULO 17
O IMPERADOR CAIO CALÍGULA ORDENA A PETRÔNIO, GOVERNADOR DA
SÍRIA, QUE OBRIGUE OS JUDEUS PELAS ARMAS A RECEBER A SUA ESTÁTUA
NO
 TEMPLO . MAS PETRÔNIO, COMOVIDO POR SEUS ROGOS, ESCREVE-LHE EM
FAVOR DELES, O QUE LHE TERIA CUSTADO A VIDA, SE ESSE PRÍNCIPE NÃO
TIVESSE MORRIDO LOGO DEPOIS.
 *
_____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Oitavo, capítulo 11,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
164. O imperador Caio abusou de tal modo de sua boa sorte e deixou-se
levar até o excesso do orgulho, chegando a se persuadir de que era deus e
querendo que lhe dessem esse nome. Privou o Império, por sua crueldade, de
um grande número de cidadãos, dos mais ilustres romanos e fez a judéia sofrer
os efeitos de sua horrível impiedade. Mandou Petrônio a Jerusalém com um
exército e uma ordem expressa de pôr suas estátuas no Templo, de matar todos
os judeus que tivessem a ousadia de se opor a isso e de reduzir à escravidão o
restante do povo. Poderia Deus suportar uma ordem tão abominável?
Petrônio partiu em seguida de Antioquia, com três legiões e um grande
número de soldados e tropas auxiliares da Síria para entrar na Judéia. Essa
notícia surpreendeu de tal modo os judeus, que eles mal (he podiam prestar fé;
e os que acreditaram nela estavam impossibilitados de resistir e de se defender.
Mas o terror foi geral, quando se soube que Petrônio já tinha chegado com seu
exército a Ptolemaida. Essa cidade da Caliléia está situada à beira-mar, numa
grande planície rodeada, do lado do oriente, por montanhas daquela província,
que estão longe cerca de sessenta estádios, e do lado do sul, pelo monte
Carmelo, que dista cento e vinte estádios, e do lado do norte, por uma
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montanha muito alta chamada a montanha dos sírios, distante cem estádios.
A dois estádios dessa cidade passa um pequeno rio de nome Pelleu, perto
do qual está a sepultura de Memnon, obra admirável, de cem côvados de altura
e de forma côncava. Lá existe uma areia tão clara como o vidro; os navios vão
buscá-la e logo que é levada, o vento, em seguida, traz outra do alto da monta-
nha, a qual ocupa o espaço vazio. Posta no forno, esta areia se converte logo em
vidro e o que me parece mais admirável ainda, é que esse vidro, levado àquele
mesmo lugar, retoma a sua primitiva natureza e torna-se pura areia como
antes.
Na consternação em que os judeus se encontravam, foram com suas
mulheres e seus filhos procurar Petrônio em Ptolemaida para lhe rogar que não
violasse as suas santas leis e tivesse compaixão deles. Petrônio, comovido com
seu grande número e com seus rogos, deixou em Ptolemaida as estátuas do
imperador e dirigiu-se para a Caliléia; mandou vir todo o povo com seus chefes
a Tiberíades. Lá, falou-lhes do poder dos romanos, de como as ameaças do
imperador lhes deviam ser temíveis, de como ele se julgaria ofendido com o
pedido que lhe faziam, porque de todas as nações a ele sujeitas, somente eles se
recusavam colocar suas estátuas no número dos deuses, o que era o mesmo
que revoltar-se contra ele e também fazer-lhe grande injúria, pois sendo seu
governador, representava a sua pessoa. Eles responderam que suas leis o
proibiam
 tão
 expressamente,
 que
 não
 poderiam
 fazê-lo
 sem
 violá-las,
colocando-as no Templo, nem mesmo num lugar profano, não somente a
imagem de um homem, mas até mesmo a de Deus. "Se observais tão
religiosamente vossas leis", replicou Petrônio, "eu não sou menos obrigado a
executar as ordens do imperador que para mim são como leis, pois ele é meu
senhor e eu não poderia desobedecer-lhe, para poupar-vos, sem que isso me
custasse a própria vida. É portanto a ele, e não a mim, que vos deveis dirigir; eu
o faço por sua ordem e a ele não sou menos sujeito do que vós." A estas
palavras toda aquela multidão exclamou que não havia perigo ao qual não
estivessem prontos a se expor, com alegria, pela observância de suas leis.
Depois de ter acalmado o tumulto, Petrônio disse-lhes: "estais pois resolvidos a
tomar as armas contra o imperador?" "Não", responderam eles, "nós
oferecemos, ao contrário, todos os dias sacrifícios a Deus por ele e pelo povo
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romano, mas se vós quiserdes pôr essas estátuas em nosso Templo, será
preciso antes degolar-nos todos, com nossas mulheres e filhos." O amor tão
ardente desse povo por sua religião e essa firmeza inquebrantável que o fazia
preferir a morte à não observância de suas leis, causou tanta admiração a
Petrônio e, ao mesmo tempo, tanta compaixão, que ele dissolveu a assembléia,
sem nada resolver.
No dia seguinte e alguns dias depois, ele falou aos chefes em particular e
a todos em geral; uniu seus conselhos a exortações e suas ameaças a
conselhos, dizendo-lhes ainda do grande poderio romano, de como a cólera do
imperador lhes devia ser temível e por fim da necessidade em que eles se
encontravam de lhe obedecer. Nada, porém, foi capaz de movê-los; vendo que o
tempo de semear a terra estava se passando, porque eles, empenhados de tal
modo nessa questão, há quarenta dias haviam renunciado a todos os outros
cuidados, reuniu-os de novo e disse-lhes: "estou disposto a expor-me, por amor
de vós, aos mesmos perigos que estais ameaçados. Assim, ou Deus me fará a
graça de abrandar o espírito do imperador e terei o prazer de me salvar,
salvando-os também, ou se atrair sobre mim sua cólera, não sentirei perder a
vida, por ter me esforçado para preservar da morte tão grande povo."
Depois de lhes ter falado deste modo, mandou para casa toda aquela
grande multidão, que não se cansava de fazer votos por sua prosperidade e
reconduziu suas tropas de Ptolemaida para Antioquia, de onde mandou cartas
ao imperador, dizendo que para obedecer às suas ordens ele tinha entrado na
Judéia, com grandes tropas, e que se ele não se rendesse aos pedidos daquela
nação, seria necessário destruí-la completamente e devastar todo o país, porque
aquele povo estava tão firme na observância de suas leis, que nada havia que
eles não estivessem dispostos a sofrer, antes que cumprir aquela determinação.
Esta carta irritou de tal modo o imperador, cruel e desumano, que o
ameaçou, como resposta, fazê-lo morrer por ter ousado diferir na execução de
suas ordens; mas os que haviam sido encarregados desse terrível despacho,
tiveram uma viagem difícil com ventos contrários e demoraram-se três meses
no mar, e só chegaram vinte e sete dias depois que outros haviam trazido a
Petrônio a notícia da morte daquele feroz imperador.
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CAPÍTULO 18
O IMPERADOR CAIO FOI ASSASSINADO E O SENADO QUIS RETOMAR SUA
ANTIGA AUTORIDADE ; MAS OS SOLDADOS DECLARAM IMPERADOR A
CLÁUDIO E O SENADO É OBRIGADO A CEDER. CLÁUDIO CONFIRMA O REI
AGRIPA NO REINO DA JUDÉIA, ACRESCENTA-LHE AINDA OUTRAS TERRAS E DÁ
A
 HERODES, SEU IRMÃO, O REINO DA C ÁLCIDA. *
_______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Nono, capítulos 1, 2 e
3, Antigüidades Judaicas, Parte I.
165. Esse príncipe, que se havia tornado odioso a todos, por sua horrível
desumanidade e por sua loucura, foi assassinado depois de ter reinado somente
três anos e meio, e os soldados que estavam em Roma levaram Cláudio e o
declararam imperador. Os cônsules Sêncio Saturnino e Pompônio Segundo or-
denaram, de acordo com a resolução do Senado, às três coortes que faziam
guarda da cidade, que a conservassem, e tendo se reunido no Capitólio, deci-
diram declarar guerra a Cláudio pelo horror que sentiram das crueldades de
Caio, a fim de restabelecer o governo aristocrático e de escolher para governa-
dor aquele que por seus méritos fosse o mais digno e capaz.
O rei Agripa, nessa época, estava em Roma e cada um dos partidos
desejava que ele estivesse do seu lado. O Senado rogou-lhe que fosse tomar
assento em sua companhia e Cláudio também pediu-lhe, ao mesmo tempo, que
fosse procurá-lo no acampamento para onde os soldados o tinham levado. Esse
príncipe, vendo que Cláudio já era de fato imperador, foi logo ter com ele, e
Cláudio pediu-lhe que fosse informar ao Senado de seus sentimentos, isto é,
que tudo tinha sucedido contra sua vontade, que os soldados o haviam levado
para fazê-lo imperador. No entanto, como era uma coisa consumada, ele era
obrigado a corresponder àquela prova de seu afeto e corria mesmo grave perigo,
se quisesse recusar, porque se expõe a toda sorte de perigos aquele que é
escolhido para reinar; mas ele estava resolvido a governar como um bom
príncipe e não como um tirano, contentando-se com o nome de imperador,
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nada resolvendo nos assuntos de importância sem a participação do Senado;
nisso não se podia duvidar de que suas palavras seriam seguidas de fatos, pois
quando ele não fosse de um caráter tão moderado como todos o sabiam, o
exemplo da morte de Caio bastaria para fazê-lo tomar um caminho bem
contrário ao dele.
Como o Senado confiava nos soldados que se haviam declarado em seu
favor e na justiça de sua causa, ele respondeu ao rei Agripa que não podia
retornar a uma servidão voluntária. Cláudio, depois desta resposta, rogou ao
soberano que voltasse a dizer ao Senado que ele não podia abandonar os que o
haviam elevado ao império e que ele não desejava também fazer guerra ao
Senado; mas se a isso fosse obrigado, deveriam escolher-se a cidade ou o lugar
onde se travaria a batalha, pois não era justo que essa divergência enchesse
Roma de mortes e sangue.
Quando Agripa fazia essa declaração ao Senado, um dos soldados, dos
que se haviam declarado por eles, puxou da espada e disse aos companheiros:
"Que razão nos pode obrigar a cometer assassínios, combatendo contra nossos
parentes e amigos, que se declararam a favor de Cláudio? Que mais podemos
desejar do que ter por imperador um príncipe ao qual nada se pode censurar?
Não devemos, ao contrário, torná-lo propício, em vez de tomar as armas contra
ele?" Depois de ter assim falado, afastou-se e todos o seguiram.
O Senado, vendo-se abandonado e não lhe sendo mais possível qualquer
resistência, resolveu ir também procurar a Cláudio e com isso correu mui
grande perigo, pois os soldados, que pareciam os mais zelosos a favor do novo
imperador, vieram contra eles, de espada na mão, junto dos muros da cidade e
teriam matado os mais afoitos, antes que Cláudio tivesse sabido de alguma
coisa, se o rei Agripa não o tivesse avisado imediatamente da desgraça que
estava quase para acontecer. Disse-lhe que se ele não contivesse o furor
daqueles soldados, veria morrer diante dos próprios olhos aqueles que por seu
mérito e ilustre posição eram o ornamento do império e ele teria então de reinar
num deserto. Cláudio seguiu-lhe a advertência, conteve o ímpeto dos soldados,
recebeu favoravelmente o Senado em seu acampamento e saiu com eles,
segundo o costume, para oferecer sacrifícios a Deus e dar-lhe graças por aquela
soberana autoridade que dele recebia.
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166. O novo imperador deu em seguida a Agripa não somente o reino
inteiro, que Herodes possuíra, mas também Traconítida e a Auranita, que
Herodes lhe havia juntado, e o país a que chamavam de reino de Lisânias;
tornou aquela doação pública pela ata que mandou escrever e ordenou aos
Senadores que a fizessem gravar em placas de cobre para colocá-las no
Capitólio.
167. Concedeu o reino da Cálcida a Herodes, irmão de Agripa, que se
tornara seu genro, pelo casamento com Berenice, sua filha.
CAPÍTULO 19
MORTE DO REI AGRIPA, COGNOMINADO O GRANDE. SUA POSTERIDADE.
A POUCA IDADE DE AGRIPA, SEU FILHO, É CAUSA DE QUE O IMPERADOR
CLÁUDIO REDUZA AJUDÉIA A PROVÍNCIA. MANDA PARA LÁ, COMO
GOVERNADOR, A
 CÁSPIO FADO E , DEPOIS, TIBÉRIO ALEXANDRE. *
___________________________
* Este registro também se encontra no Livro Décimo Nono, Capítulo 7,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
168. O rei Agripa era então muito mais poderoso e mais rico do que podia
esperar e não empregou seus bens em coisas vãs, mas começou por cercar
Jerusalém com uma muralha tão forte que, se a tivesse podido terminá-la, os
romanos em vão teriam feito o cerco da cidade; mas ele morreu em Cesaréia,
antes de ter acabado tão grande obra. Reinou três anos como rei, pois nos
outros três anos anteriores, fora apenas tetrarca.
169. Teve de Cipro, sua esposa, três filhas, Berenice, Mariana e Drusila e
um filho de nome Agripa. Como este era ainda muito pequeno, o imperador
Cláudio reduziu o reino a província e para lá mandou como governador a
Cúspio Fado.
Tibério Alexandre sucedeu-o no cargo e um e outro governaram os judeus,
em tempo de paz, sem nada alterar em seus costumes.
170. Herodes, rei da Cálcida, morreu também logo depois, e deixou de
Berenice, sua mulher — filha do rei Agripa, seu irmão — dois filhos, de nome
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Berenício e Hircano, e tivera de Mariana, sua primeira mulher, um filho
chamado Aristobulo e um outro que tinha o seu mesmo nome, o qual vivia
como um homem privado, e deixou uma filha de nome Jotapá. Estes foram os
descendentes, filho do rei Herodes, o Grande, e de Mariana. Os filhos de
Alexandre, seu irmão mais velho, reinaram somente na Armênia.
CAPÍTULO 20
O IMPERADOR CLÁUDIO DÁ A AGRIPA, FILHO DO REI AGRIPA, O GRANDE, O REINO DA
CÁLCIDA QUE HERODES SEU TIO TIVERA. A INSOLÊNCIA DE UM SOLDADO DAS TROPAS
ROMANAS CAUSA EM
 JERUSALÉM A MORTE DE UM
GRANDE NÚMERO DE JUDEUS.
 OUTRA INSOLÊNCIA DE OUTRO SOLDADO. *
______________________________
* Este registro também se encontra no Livro Vigésimo, capítulos 3 e 4,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
171. Depois da morte de Herodes, rei da Cálcida, o imperador Cláudio deu
seu reino a Agripa, seu sobrinho, filho do rei Agripa, de que acabamos de falar;
Cumano sucedeu a Tibério Alexandre no governo da Judéia. Foi durante sua
administração que começaram as novas agitações que atraíram tantos males
sobre os judeus.
Uma grande multidão fora a Jerusalém para celebrar a festa da Páscoa;
uma companhia de soldados romanos fazia guarda junto do Templo, segundo o
costume, para impedir que acontecessem desordens; um dos soldados teve a
insolência de mostrar, diante de todos, o que o pudor obriga a ocultar e de
acompanhar esta ação tão desonesta, com palavras da mesma espécie. Tão
horrível desfaçatez irritou fortemente o povo. Exigiu-se de Cumano, com
grandes exclamações, que mandasse castigar aquele soldado; ao mesmo tempo,
alguns moços, irrefletidamente, lançaram pedras contra os soldados. Cumano,
temendo que o povo suscitasse uma revolta contra ele, mandou buscar mais
soldados ainda e os colocou diante das portas do Templo. Os judeus, então,
assustados, saíram do mesmo, para se refugiarem na cidade; mas aquelas
passagens eram muito estreitas para tão grande multidão e eles se apertaram
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de tal modo, que mais de dez mil** morreram sufocados.
Dessa forma, a alegria daquela grande solenidade se converteu em
tristeza*. Cessaram as preces, abandonaram-se os sacrifícios, só se ouviam
gemidos e queixas e a imprudência sacrílega de um único homem foi a causa de
tão pública e tão estranha desolação.
_____________________________
** Antigüidades Judaicas, Parte I, na 841, afirma 20.000 judeus.
172. Apenas passou esta aflição, foi logo seguida de uma outra. Um
criado do imperador de nome Estêvão levava alguns objetos preciosos e foi
roubado perto de Betorom; Cumano, para descobrir os autores do furto,
mandou prender os habitantes das aldeias vizinhas. Um dos soldados, que fazia
parte das forças, encontrou, numa dessas aldeias, um livro em que nossas
santas leis estão escritas e o rasgou e queimou. Todos os judeus daquela região
ficaram muito irritados com isso, como se ele tivesse incendiado seu próprio
país; reuniram-se imediatamente e levados pelo zelo de sua religião, correram a
Cesaréia, para pedir a Cumano que não deixasse impune tão grande ultraje
feito a Deus. Como o governador julgasse que era impossível acalmar aquele
povo, se não lhe desse uma satisfação, mandou prender e matar aquele soldado
na presença do povo e assim o tumulto cessou.
CAPÍTULO 21
GRANDE DIVERGÊNCIA ENTRE OS JUDEUS DA GALILÉIA E OS
SAMARITANOS QUE
 C UMANO, GOVERNADOR DA JUDÉIA, FAVORECE .
QUADRATO, GOVERNADOR DA SÍRIA, MANDA-O A ROMA COM VÁRIOS
OUTROS PARA SE JUSTIFICAR DIANTE DO IMPERADOR
 CLÁUDIO E
TNANDA MATAR ALGUNS.
 O IMPERADOR MANDA CUMANO PARA O
EXÍLIO, CONFIA A
 FÉLIX O GOVERNO DA FUDÉIA E DÁ A AGRIPA, EM
VEZ DO REINO DA
 CÁLCIDA, A TETRARQUIA QUE TINHA SIDO DE FILIPE
E VÁRIOS OUTROS TERRITÓRIOS.
 MORTE DE CLÁUDIO.
NERO O SUBSTITUI NO IMPÉRIO. *
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________________________________
* Este registro também se encontra no Livro Vigésimo, capítulo 5,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
173. Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande divergência entre os
judeus da Galiléia e os samaritanos, pelo fato que vou narrar. Vários judeus
vieram a Jerusalém para participar da festa, e um deles, que era galileu, foi
morto na aldeia de German, que está situada na grande planície da Samaria.
Por esse motivo, os da Galiléia reuniram-se para se vingar dos samaritanos,
pelas armas, e os principais foram procurar Cumano, para lhe pedir a sua
intervenção, antes que o mal aumentasse e que castigasse os culpados daquele
assassínio. Mas Cumano os despediu sem lhes dar satisfação.
A notícia desse assassinato chegou até Jerusalém e o povo se revoltou de
tal modo, que abandonou as solenidades da festa, não quis escutar os
magistrados e partiu para atacar os samaritanos, sob o comando de Eleazar,
filho de Dineu, e de Alexandre, que eram grandes ladrões. Chegaram às
fronteiras de Lacrabatana, onde, sem distinção de idade, fizeram grande
matança e incendiaram as aldeias.
Cumano, logo que soube disso, tomou a cavalaria de Sebaste, para ir em
socorro daquela província, e matou e prendeu vários daqueles que seguiam a
Eleazar. Os magistrados, então, e os principais de Jerusalém, vestidos de saco e
com a cabeça coberta de cinza, foram procurar os outros judeus que se
preparavam para fazer guerra aos samaritanos, para lhes pedir que não o
fizessem. Disseram-lhes que era estranho deixar-se levar de tal modo pelo
desejo de se vingar, e, irritando os romanos, causariam a perda de Jerusalém, e
que a morte de um galileu não lhes devia ser tão importante que, exigindo
satisfação por isso, eles ficassem insensíveis à ruína da própria pátria, de suas
mulheres, de seus filhos e de seu Templo. Essas considerações tiveram tanta
força que persuadiram-lhes a se retirar. Mas, como a ociosidade faz surdos
homens insolentes, vários, naquele mesmo tempo, entregaram-se à vida de
ladrões; havia roubos e assaltos por toda parte e os mais ousados oprimiam os
mais fracos.
Os samaritanos, então, foram procurar, em Tiro, Numídio Quadrato,
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governador da Síria, para pedir-lhe que fizesse justiça contra os que
devastavam o país. Os chefes de Jerusalém e os principais dos judeus foram
também para lá e Jônatas, sumo sacerdote, filho de Anano, disse-lhe que os
samaritanos tinham dado o primeiro motivo àquela agitação, pela morte de um
galileu, e Cumano o tinha mantido, recusando-se castigá-los. Quadrato, depois
de os ter ouvido, deixou para resolver esta questão quando estivesse na Judéia
e se tivesse inteirado completamente da verdade. Algum tempo depois, ele foi a
Cesaréia, onde mandou matar todos os que Cumano tinha por prisioneiros;
passou à Lídia onde ouviu os samaritanos, uma segunda vez, e mandou cortar
a cabeça a dezoito dos principais judeus que soube terem mais contribuído
para aquela revolta e agitação. Mandou Jônatas a Roma e Ananias também,
dois dos principais sacerdotes, Anano, filho de Ananias e alguns outros mais
ilustres dos judeus, como também os mais influentes dos samaritanos; ordenou
a Cumano e a um mestre de campo, chamado Celer, que também fossem se
justificar perante o imperador; depois de assim ter cuidado de tudo, partiu para
a Lídia, a fim de ir a Jerusalém, onde, tendo visto que o povo celebrava a
Páscoa em grande paz, regressou à Antioquia.
Todos os que Quadrato tinha mandado à Roma, lá chegaram; Agripa, que
lá estava, tomou com grande afeto a defesa dos judeus e Cumano foi também
ajudado por pessoas muito influentes. Cláudio, depois de os ter ouvido a todos,
condenou os samaritanos; mandou matar três dos principais; enviou Cumano
para o exílio e determinou que se reconduzisse Celer a Jerusalém para entregá-
lo nas mãos dos judeus, e depois de ter ele sido arrastado pelas ruas da cidade,
cortaram-lhe a cabeça.
174. Em seguida, o príncipe constituiu Félix governador da Judéia, da
Samaria e da Galiléia. Este era irmão de Pallas e para obsequiar a Agripa, deu-
lhe, em vez do reino da Cálcida, que antes ele possuía, todos os Estados que
estavam compreendidos na tetrarquia que Filipe tinha, a saber, a Traconítida, a
Batanéia e a Galaunita, à qual ele acrescentou ainda o reino de Lisânias e a
tetrarquia de que Varo tinha sido governador.
175. Este imperador, depois de ter reinado treze anos, oito meses e vinte
dias, deixou, por morte, como sucessor a Nero, filho de Agripina, sua mulher,
que ela havia persuadido a adotar como filho, embora ele tivesse de Messalina,
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sua primeira mulher, um filho de nome Britânico e uma filha chamada Otávia,
que ele deu como esposa a Nero.
CAPÍTULO 22
HORRÍVEIS CRUELDADES E LOUCURAS DO IMPERADOR NERO. FÉLIX, GOVERNADOR DA
JUDÉIA , FAZ GUERRA AOS LADRÕES QUE A DEVASTAVAM.
176. Quando Nero se viu guindado ao ápice do poder, num cúmulo de
prosperidade, abusou de tal modo de sua fortuna, que eu não poderia fazer
uma descrição fiel de suas ações sem causar horror. Assim, contentar-me-ei em
dizer, em geral, que ele chegou a um espantoso excesso de crueldade e de
loucura, que manchou suas mãos no sangue de seu irmão, de sua mulher, de
sua própria mãe e de outras pessoas parentes e amigos; vangloriava-se de
comparecer no teatro, no meio dos comediantes e dos palhaços. Eu não poderia
deixar de referir em particular o que ele fez, com relação aos judeus, pois a
continuação de minha história a isso me obriga.
177. Ele deu a Aristóbulo, filho de Herodes, rei da Cálcida, o reino da
pequena Armênia e acrescentou ao de Agripa, quatro cidades, com seus
territórios: Abila e Julíada, na Peréia, e Tariquéia e Tiberíades, na Galiléia; e
constituiu, como já dissemos, Félix, governador do restante da Judéia. Ele
apenas tomou posse do cargo, fez guerra aos ladrões que devastavam todo o
país há vinte anos, prendeu Eleazar, seu chefe, e vários outros, que mandou
presos à Roma, além de mandar matar um número incrível de outros ladrões.
CAPÍTULO 23
GRANDE MORTANDADE EM JERUSALÉM . CRIMES DE INDIVÍDUOS A QUE CHAMAVAM DE
SICÁRIOS.
 LADRÕES E FALSOS PROFETAS CASTIGADOS POR FÉLIX,
GOVERNADOR DA
 JUDÉIA. GRANDE LITÍGIO ENTRE OS JUDEUS E OS OUTROS HABITANTES
DE
 CESARÉIA. FESTO SUCEDE A F ÉLIX NO GOVERNO DA JUDÉIA. *
____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Vigésimo, capítulos 6 e 7,
Antigüidades Judaicas, Parte I.
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178. Depois que a Judéia ficou livre desses ladrões, apareceram outros
em Jerusalém, que de uma maneira diferente exerciam uma profissão infame e
criminosa. Chamavam-nos de sicários, e não era de noite, mas em pleno dia e
particularmente nas festas mais solenes, que eles mostravam o seu furor.
Apunhalavam, no meio do aperto, àqueles aos quais haviam deliberado matar e
misturavam em seguida seus gritos com os de todo o povo, contra os culpados
de tão grande crime; tudo lhes saía tão bem, que ficavam muito tempo
impunes, sem que deles se desconfiasse. O primeiro que eles assassinaram
dessa maneira, foi Jônatas, o sumo sacerdote, e não se passava um só dia, sem
que não matassem a outros, do mesmo modo.
Dessa forma, toda Jerusalém estava tomada de pavor, pois semelhante
perigo só existira durante a guerra mais sangrenta. Todos esperavam a morte a
cada instante; tremia-se à aproximação de qualquer pessoa; não se confiava
nem mesmo nos amigos e embora se vivesse sempre alerta, todas essas
desconfianças e suspeitas não eram capazes de garantir a vida àqueles aos
quais tais celerados tinham decretado a morte, tão astutos e espertos eles eram
num ofício tão execrável.
179. A este mal, uniu-se outro, que não veio agitar menos aquela grande
cidade. Os que o causaram não eram como os primeiros, assassinos, que derra-
mavam o sangue humano, mas ímpios e perturbadores da tranqüilidade
pública, que, enganando o povo com o falso pretexto de religião, levavam-no ao
deserto, com a promessa de que Deus faria ver, por meio de sinais
extraordinários, que os queria libertar da escravidão. Félix, considerando essas
reuniões como um princípio de revolta, mandou contra eles a cavalaria e a
infantaria, que matou logo um grande número.
180. Um outro mal, ainda maior, perturbou também a Judéia. Um falso
profeta egípcio, que era um impostor, de tal modo fascinou o povo que chegou a
reunir perto de trinta mil homens; levou-os para as montanhas das oliveiras, e,
acompanhado por algumas pessoas que confiavam nele, marchou contra
Jerusalém, com o fim de expulsar de lá os romanos e de se apoderar da cidade
e lá estabelecer o seu trono. Mas Félix partiu contra ele, com tropas romanas e
um grande número de outros judeus. O combate travou-se; os que seguiam o
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egípcio foram dizimados mas ele conseguiu escapar com o restante.
181. Depois de tantas agitações reprimidas sempre, parecia que a Judéia
iria gozar de algum descanso. Mas, como acontece num corpo, em que todas as
suas partes estão corrompidas e um membro não está curado de um mal que
logo outro, em seguida, é também atacado, alguns mágicos e ladrões uniram-
se, e exortaram o povo a sacudir o jugo dos romanos, ameaçando matar os que
continuassem a querer suportar tão vergonhosa servidão. Dirigiram-se todos
para o país, saquearam as casas dos ricos, mataram-nos, incendiaram as
aldeias e fizeram que a desolação e a tristeza campeassem por toda a parte,
enchendo a Judéia de luto e de dor.
182. Estando as coisas neste pé, surgiu um grande litígio em Cesaréia,
entre os judeus e os sírios que lá habitavam. Os judeus afirmavam que aquela
cidade lhes pertencia, porque Herodes, que era seu rei, a tinha construído. Os
sírios diziam, ao contrário, que ainda que ele fosse seu fundador, ela não podia
deixar de ser cidade grega, porque, se sua intenção era que ela pertencesse aos
judeus, ele não teria mandado construir Templos nem teria levantado estátuas.
Esta divergência acirrou de tal sorte os ânimos, que eles tomaram as
armas e não se passava um só dia sem que os mais exaltados, de ambas as
partes, não se atracassem, porque a prudência dos anciãos judeus não era
capaz de os conter e os sírios não queriam ser inferiores. Os judeus eram mais
ricos e mais valentes que os outros. Mas os sírios confiavam no auxílio dos
soldados, porque uma parte das tropas romanas, tendo sido formada na Síria,
tinha entre eles um grande número de parentes, sempre prontos a ajudá-los.
Os oficiais, que os comandavam, fizeram todo o possível para acalmar o
tumulto e mandaram mesmo vergastar e prender os mais exaltados. Mas esse
castigo, em vez de assustá-los, irritou-os ainda mais.
Félix encontrou-os em luta, quando passava pelo mercado; ordenou aos
judeus, que levavam vantagem, que se retirassem e, como estes não
obedeceram, mandou vir seus soldados que mataram a muitos ali mesmo e
saquearam-nos, e apoderaram-se de seus bens. Esse governador vendo que a
dissidência continuava, sempre com a mesma intensidade, mandou a Nero
alguns dos principais, dos dois partidos, para defenderem seus direitos perante
ele.
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183. Festo, que sucedeu a Félix, fez rude guerra contra os que
perturbavam a província; prendeu e mandou matar um grande número
daqueles ladrões.
CAPÍTULO 24
ALBINO SUCEDE A FESTO NO GOVERNO DAJUDÉIA E TRATA TIRANICAMENTE
OS JUDEUS.
 FLORO SUCEDE-O NESSE CARGO E FAZ AINDA PIOR DO QUE ELE.
OS GREGOS DE CESARÉIA GANHAM A CAUSA, PERANTE NERO, CONTRA OS
JUDEUS QUE MORAVAM NAQUELA CIDADE .
 *
_____________________________
* Este registro também se encontra no Livro Vigésimo, capítulos 8 e 9,
Antigüidades judaicas, Parte I.
184. Albino, que sucedeu a Festo, não procedeu do mesmo modo. Não
houve mal que ele não fizesse. Não se contentou em se deixar subornar por
presentes, nos negócios civis, mas tirava os bens de todos e oprimia os judeus
com novos tributos; pôs em liberdade, por meio do dinheiro, os que os
magistrados
 das
 cidades
 tinham
 condenado
 ou
 que
 os
 governadores
precedentes tinham detido por seus roubos, e só julgava culpados aqueles que
nada tinham para lhe dar.
A ousadia desses ânimos turbulentos, que só desejavam agitação e
revolta, aumentava nesse mesmo tempo em Jerusalém. Os mais ricos
ganhavam Albino com presentes, para ter sua proteção; o povo, que só desejava
agitação, estava conquistado com o seu proceder. Viam-se os mais destacados
desses malfeitores, rodeados de gente da mesma laia e o tirânico governador,
que se poderia chamar de chefe principal dos ladrões, servir-se de seus
guardas, para tomar os bens dos mais fracos, que não podiam resistir às
violências. Assim acontecia que aqueles que eram roubados, não ousavam se
queixar e os mais ricos, de medo de serem tratados do mesmo modo, eram
obrigados a fazer a corte à gente digna do patíbulo. Não havia ninguém que não
tremesse sob o domínio de tantos tiranos; todos esses males eram como a
semente da escravidão a que essa infeliz cidade depois se viu reduzida.
185. Albino, sendo tal como eu acabo de dizer, ante o procedimento de
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Gessio Floro, que o sucedeu, podia passar, comparando-se com ele, por um
homem de bem. Se aquele se escondia para fazer o mal, este vangloriava-se de
fazer abertamente toda injustiça contra nossa nação.
186. Parecia que, em vez de ter vindo para governar uma província, ele
tinha sido mandado como um algoz, para executar criminosos. Seus roubos
não tinham limites, bem como outras violências; ele era cruel para com os
aflitos e não se envergonhava das ações mais vis e infames; nenhum outro
jamais traiu mais atrevidamente a verdade, nem usou de meios mais sutis para
fazer o mal. Era pouco para ele enriquecer à custa dos particulares; ele
saqueava cidades inteiras, devastava toda a província e pouco faltou que ele
não fizesse publicar a som de trombetas que permitia roubar, contanto que lhe
dessem uma parte do roubo. Dessa forma, sua insaciável ambição reduziu logo
a um deserto todas as províncias de seu governo, tantas foram as pessoas
obrigadas a abandonar o país de seu nascimento, com o objetivo de fugir para
terras estrangeiras. Cestio Galo era nesse mesmo tempo governador da Síria e
nenhum dos judeus ousava ir procurá-lo para se queixar de Floro. Tendo,
porém, ele vindo a Jerusalém, pela festa da Páscoa, todo o povo, em número de
mais de três milhões de pessoas, pediu-lhe que tivesse compaixão das
desgraças de sua nação e expulsasse Floro, pois era ele como uma peste
pública, que a tinha reduzido inteiramente à extrema miséria. Floro, que estava
presente, em vez de se admirar, vendo tão grande multidão clamar tanto contra
ele, ao contrário, ainda zombou, e Céstio, para acalmar o povo contentou-se em
prometer-lhe que Floro agiria para o futuro com mais moderação. Voltou depois
para Antioquia. Floro o acompanhou até Cesaréia e justificou-se sempre com
suma hipocrisia. Mas, como ele via que durante a paz os judeus poderiam
acusá-lo ao imperador, ao passo que a guerra encobriria seus crimes, porque os
males menores são absorvidos pelos maiores, ele oprimia cada vez mais os
judeus, com suas violências e injustiças, a fim de levá-los à revolta.
187.
 Nesse mesmo tempo os gregos de Cesaréia ganharam a causa
perante Nero contra os judeus, e obtiveram um decreto a seu favor, dando
motivo à guerra, que começou no mês de maio, no décimo segundo ano do
reinado daquele imperador e no décimo sétimo do de Agripa.
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CAPÍTULO 25
GRANDE DIVERGÊNCIA ENTRE OS GREGOS E OS JUDEUS DE CESARÉIA. ELES TOMAM AS
ARMAS E OS JUDEUS SÃO OBRIGADOS A DEIXAR A CIDADE.
 FLORO,
GOVERNADOR DAJUDÉIA, EM VEZ DE LHES FAZER JUSTIÇA, TRATA-OS
OFENSIVAMENTE.
 OS JUDEUS DE JERUSALÉM REVOLTAM-SE E ALGUNS DIZEM
PALAVRAS OFENSIVAS CONTRA
 FLORO.ELE VAI A JERUSALÉM, MANDA FUSTIGAR
A GOLPES DE CHIBATA E CRUCIFICAR DIANTE DE SEU TRIBUNAL A ALGUNS JUDEUS QUE
ERAM HONRADOS COM A DISTINÇÃO DE CAVALEIROS ROMANOS.
188. Por maiores que fossem os males que a tirania de Floro causava à
nossa nação, ela os sofria sem se revoltar. Mas o que aconteceu em Cesaréia foi
como uma centelha que acendeu o fogo da guerra.
Os judeus dessa cidade haviam rogado muitas vezes a um grego, que
tinha um terreno perto de sua sinagoga, que o vendesse com a proposta de
pagar-lhe muito bem, mais do que valia; ele não somente não se contentou em
recusá-lo, mas também resolveu, para aborrecê-los ainda mais, mandar
construir neste terreno uns armazéns e deixar assim uma passagem muito
estreita para se ir à sinagoga. Alguns jovens judeus, levados pela raiva,
quiseram impedir que os operários continuassem a obra, mas Floro não
permitiu que o fizessem. Então os principais deles, no número dos quais estava
João, que recebia as rendas do imperador, deram oito talentos a Floro, para
fazer cessar essa obra. Ele prometeu-lhes, mas em vez de manter a promessa,
apenas recebeu o dinheiro e partiu para Cesareia, de onde foi a Sebaste, como
se tivesse vendido aos judeus àquele preço o meio e a oportunidade que ele lhes
dava de pegar em armas.
No dia seguinte, que era sábado, os judeus estavam na Sinagoga; um
rebelde grego, de Cesareia, pôs, de propósito, na entrada, antes que eles
saíssem, um vaso de terra e ali imolava aves, em sacrifício. Não se pode
imaginar até que ponto isto irritou os judeus, porque o consideravam como um
ultraje às suas leis e à Sinagoga, que julgavam profanada com aqueles
sacrifícios. Os mais moderados e os mais sensatos eram de opinião de que se
devia ir falar com os magistrados, para pedir-lhes justiça. Mas os mais jovens e
os mais violentos, não podendo conter a cólera, queriam pegar em armas e os
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gregos, que tinham sido os autores do fato e que não lhes eram inferiores em
ousadia, nada mais desejavam do que isso. Assim, mui depressa se preparou a
luta. Jucundus, comandante de uma companhia de cavalaria, que lá tinha
ficado para impedir qualquer desordem, mandou retirar aquele vaso e procurou
acalmar a agitação; mas não pôde resistir ao grande número de gregos e então
os judeus tomaram os livros de suas leis e se retiraram para Narbate, longe de
Cesareia sessenta estádios apenas. Doze dos principais foram com João
procurar Floro, em Sebaste, para se queixar do que havia acontecido e implorar
o seu auxílio, falando outrossim dos oito talentos; mas em vez de ele lhes fazer
justiça, mandou pô-los numa prisão, tomando como pretexto que eles tinham
violado suas leis.
189. Os judeus de Jerusalém não puderam deixar de ver, com estranha
indignação, ato tão tirânico. Floro, como se tivesse feito de propósito, para
incitar a guerra, mandou tirar dezessete talentos do sagrado tesouro, a fim de
os empregar, como dizia, para o serviço do imperador. O povo revoltou-se
imediatamente, correu ao Templo soltando gritos e implorando, em nome de
César, que o libertassem da tirania de Floro. Não houve imprecações que os
mais exaltados não fizessem, nem palavras ofensivas de que não usassem
contra aquele detestável governador, alguns com uma caixa na mão pediam,
por zombaria, uma esmola em seu nome, como o teriam feito para o mais pobre
e o mais miserável de todos os homens.
190.
 Um descontentamento tão geral em vez de dar a Floro motivo de
temor e de receio, principalmente quanto à sua ambição, aumentou-lhe o
desejo de enriquecer ainda mais, e bem longe de ir a Cesareia, para fazer cessar
a causa da perturbação e esmagar as sementes de uma guerra prestes a se
declarar, como seria particularmente sua obrigação, além de dever do seu
cargo, pelo dinheiro que tinha recebido, marchou com tropas de cavalaria e de
infantaria para Jerusalém, para empregar as armas romanas contra aqueles
dos quais queria se vingar e, com suas ameaças, encheu toda a cidade de temor
e de receio.
O povo, para acalmá-lo, compareceu perante suas tropas e preparou-se
para prestar-lhe todas as honras e homenagens que ele poderia desejar. Mas ele
mandou um oficial de nome Capitom, acompanhado de cinqüenta cavaleiros,
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ordenar-lhes que se retirassem, e dizer-lhes que não se deixaria enganar por
falsas homenagens, depois de tantos ultrajes que lhe haviam feito, e declarava-
lhes que, se tinham coragem, não deviam temer repetir em sua presença as
mesmas injúrias que tinham proferido em sua ausência e passar mesmo das
palavras aos fatos, tomando as armas para reconquistar a liberdade. Os
cavaleiros que acompanhavam Capitom atiraram-se imediatamente sobre eles e
aquela multidão ficou tão assustada que fugiu sem ter podido saudar Floro,
nem prestar honra alguma às suas tropas. Todos se retiraram com não menor
humilhação do que temor e passaram toda a noite sem poder dormir.
Floro alojou-se no palácio real e no dia seguinte os principais dos
sacerdotes e toda a nobreza da cidade vieram procurá-lo; ele subiu ao tribunal
e ordenou que lhe entregassem, naquele momento mesmo, os que o haviam
ofendido com palavras. Eles responderam-lhe que todo o povo em geral só
desejava paz e que se alguns haviam inconsideradamente falado contra ele,
rogavam-lhe que os perdoasse, pois, em tão grande multidão, onde há pessoas
de todas as espécies, era impossível encontrá-los e a situação em que estavam
pelo que havia acontecido, levava os que tinham cometido a falta, a não
confessá-la, e assim, se ele quisesse conservar a paz na província e a cidade aos
romanos, devia em favor dos inocentes perdoar a um pequeno número de
culpados e não por causa de uns poucos fazer sofrer a tantos inocentes.
Floro, mais irritado do que nunca, com estas palavras, mandou seus
soldados saquear o alto mercado e matar todos os que lá se encontravam. O
desejo de enriquecer, autorizado pela ordem de seu chefe, fê-los não somente
não se contentar com o saque, que lhes era permitido, mas estenderam-no a
todas as casas e cortaram a garganta a todos os que encontravam pelo
caminho. As ruas mais ocultas que alguns buscaram para se esconder de nada
lhes serviram, pois morreram do mesmo modo; a mortandade foi geral e não
houve roubo e saque que não se praticasse naquela ocasião. Os soldados
levaram a Floro várias pessoas da nobreza que ele mandou torturar e matar a
golpes de chicote e depois crucificar.
Não se perdoaram nem mesmo às mulheres nem às crianças ainda de
peito e o número dos que pereceram desse modo elevou-se a três mil e
seiscentos.
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Tão horrível ação foi tanto mais intolerável aos judeus pois era uma nova
espécie de crueldade que os romanos ainda não tinham usado, pois Floro fora o
primeiro que tivera a coragem de vergastar com chicote e crucificar diante de
seu tribunal homens da Ordem dos Cavaleiros, que embora judeus haviam sido
honrados pelos romanos com uma dignidade tão importante.
CAPÍTULO 26
A RAINHA BERENICE, IRMÃ DO REI AGRIPA, QUERENDO ACALMAR O ESPÍRITO DE FLORO,
PARA ACABAR COM SUA CRUELDADE, CORRE ELA MESMA PERIGO DE VIDA.
191. O rei Agripa tinha ido a Alexandria procurar Alexandre, a quem Nero
havia dado o governo do Egito; mas a rainha Berenice, sua irmã, estava em
Jerusalém a fim de cumprir um voto a que se obrigara para recobrar a saúde e
por outras necessidades, de cortar o cabelo, abster-se de beber vinho e fazer
orações durante trinta dias, antes de oferecer os sacrifícios.
Essa princesa ficou tão sentida por ver a crueldade do governador, que
mandou, diversas vezes, a Floro alguns oficiais de cavalaria e de sua guarda,
para rogar-lhe que deixasse de derramar tanto sangue. Mas ele, sem se
incomodar com o grande número de mortos, nem com a intercessão de uma
pessoa da sua posição, pensando somente em enriquecer, por meios infames,
não se importou com seus rogos e ela mesma correu perigo de vida, expondo-se
aos maus tratos dos seus soldados, pois não somente eles continuaram a
matar, diante de seus olhos, os que conseguiam apanhar, mas tê-la-iam
matado também se não tivesse ela em tempo fugido para o palácio. Passou toda
a noite sem poder dormir, procurando vigiar com atenção, para evitar o seu
furor; sua coragem e sua compaixão de tantos males fizeram-na ir no dia
seguinte, de pés descalços (era o dia dezesseis de maio), procurar Floro em seu
tribunal, para renovar seus rogos; ele, porém, não lhe prestanteu honra alguma
e ela correu de novo grave perigo.
192.
 No dia seguinte, uma grande multidão de povo reuniu-se no alto
mercado, onde, com altos brados, lamentava a morte dos que tinham sido tão
cruelmente martirizados; muitos falaram contra Floro. Os sacerdotes e os
principais da cidade, imaginando quanto aquilo poderia vir aumentar-lhes o
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mal, foram com as vestes rasgadas pedir-lhe que se contentasse com as
desgraças que até então haviam sucedido; com isso, porém, irritaram ainda
mais a Floro. O respeito do povo por aqueles homens ilustres e a esperança de
que Floro não os afligiria mais acalmaram o tumulto.
CAPÍTULO 27
FLORO OBRIGA, COM HORRÍVEL MALDADE, OS HABITANTES DE JERUSALÉM A
SE APRESENTAREM ÀS TROPAS ROMANAS QUE MANDARA VIR DE
 CESARÉIA
PARA SAUDÁ-LAS; MAS ORDENA A ESSAS TROPAS QUE OS ATAQUEM, EM VEZ
DE LHES RETRIBUIR A SAUDAÇÃO.
 O POVO SE PÕE NA DEFENSIVA E FLORO,
NÃO PODENDO REALIZAR O DESEJO QUE TINHA DE SAQUEAR O SAGRADO
TESOURO, RETIRA- SE PARA
 CESARÉIA.
193. Quando esse mau governador viu que a perturbação tinha cessado,
pensou em recomeçá-la; e, para consegui-lo, mandou reunir os sacerdotes e as
pessoas mais ilustres de Jerusalém e disse-lhes que o único meio de mostrar
que o povo queria para o futuro viver tranqüilo e em paz era comparecer à
presença de duas coortes, que ele mandara vir de Cesaréia. Eles prometeram-
no e em seguida ele ordenou aos oficiais dessas tropas que não retribuíssem a
saudação dos judeus quando comparecessem à sua presença, mas os
atacassem, se alguém se mostrasse ofendido ou murmurasse.
Os sacerdotes reuniram o povo no Templo e o exortaram a se apresentar
às tropas romanas e saudá-las, para evitar, desse modo, que sucedessem
outros graves inconvenientes e embora os mais revoltados não quisessem fazê-
lo, o povo obedeceu pela dor que sentia ainda ante o martírio de tantos
parentes e amigos. Os levitas e sacerdotes tomaram também os vasos sagrados
com o restante do que se usava de mais precioso para o serviço de Deus e os
cantores, diante deles, com instrumentos musicais, e rogavam de joelhos,
perante o povo, pelo zelo que deveria ter pela honra e conservação do Templo, a
não irritar os romanos para não lhes dar motivo de saquear as coisas santas.
Os mais ilustres dos sacerdotes com a cabeça coberta de cinzas, os hábitos
rasgados e o estômago descoberto, rogavam particularmente aos mais ilustres
da cidade, e a todo o povo, em geral, que não desgostassem, por pouco que
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fosse, os romanos, a fim de não atrair sobre sua pátria o furor daqueles que só
esperavam um pretexto para saquear, a fim de satisfazer sua insaciável
ambição. "Como julgais que esses soldados vos hão de ser gratos pelas
homenagens que vós mesmos lhes prestastes no passado, se agora não as
quereis prestar, para pretender imaginar que eles vos tratarão melhor para o
futuro, do que no passado? E se os receberdes com honra, à sua chegada,
tirareis todo pretexto a Floro de usar de violência e livrareis vosso país de todos
os males de que temos muitos motivos para temer, no caso contrário."
Disseram ainda que o número dos revoltosos era mui pequeno, em comparação
com aquela grande multidão e eles os deveriam obrigar a se unir a eles. O povo
ficou comovido com estas palavras e os que haviam falado com tão grande
sabedoria acalmaram o ânimo dos mais exaltados, quer com as ameaças, quer
com o respeito que infundiam com sua posição e autoridade.
Foram todos depois em boa ordem e sem tumulto à presença das tropas
romanas e quando estavam já bem perto, saudaram-nas. Mas os soldados não
lhes responderam à saudação; os mais revoltosos começaram a gritar contra
Floro, dizendo que era por sua ordem que eles os tratavam tão mal. Os
soldados, para executar as ordens recebidas, atacaram-nos a cacetadas e os
fizeram fugir; depois, perseguiram-nos, pisoteando, sob as patas dos cavalos,
aqueles que caíam por terra. Assim muitos morreram miseravelmente e outros,
assustados, escaparam. A maior desgraça aconteceu às portas da cidade; cada
qual esforçava-se por avisar seus companheiros que fugissem, e quanto mais se
apressavam menos avançavam. Ninguém quis enterrar os mortos. Os romanos,
que os perseguiam, matavam a todos os que podiam apanhar e impediam assim
que a multidão pudesse entrar pela porta de Bezeta, porque eles queriam
passar por ali, para se apoderar do Templo e da fortaleza Antônia.
Nesse mesmo tempo, Floro saiu do palácio real, com os soldados que o
acompanhavam, com esse mesmo intento, de se apoderar da fortaleza. Mas não
pôde fazê-lo, pois o povo deu meia volta, pôs-se na defensiva, deteve-os, subiu
aos telhados, atacou-os a pedradas e a golpes de dardos. Desse modo os
romanos, que não podiam vencer a massa do povo que enchia as ruas, muito
estreitas, foram obrigados a se retirar para junto das tropas que estavam no
palácio real.
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Os judeus, temendo que Floro fizesse novo ataque para se apoderar do
Templo, por meio da fortaleza Antônia, derrubaram rapidamente a galeria que
unia essa fortaleza com o Templo. E como o desejo que Floro tinha de se
apoderar da fortaleza Antônia era motivado pela vontade de se apoderar
também do tesouro sagrado, a destruição dessa galeria veio tirar-lhe todas as
esperanças, opondo um grave obstáculo à sua ambição e avareza. Ele reuniu os
principais sacerdotes e o Senado, disse-lhes que estava resolvido a se retirar e
que lhes deixaria como guarnição as tropas que eles quisessem.
Responderam-lhe eles que julgavam não se dever introduzir modificação
alguma e que assim uma só coorte seria suficiente; mas não era conveniente
que fosse uma daquelas que tinham maltratado o povo, porque todos ainda
estavam muito irritados contra elas. Ele o concedeu, deixou outras coortes e
retirou-se com o restante para Cesaréia.
CAPÍTULO 28
FLORO COMUNICA A CÉSTIO, GOVERNADOR DA SÍRIA, QUE OS JUDEUS SE TINHAM
REVOLTADO; E ELES, POR SEU LADO, ACUSAM
 FLORO PERANTE ELE.
CÉSTIO MANDA OBSERVADORES PARA SE INFORMAREM DA VERDADE. O REI AGRIPA VEM
A
 JERUSALÉM E ENCONTRA O POVO DISPOSTO A TOMAR AS
ARMAS SE NÃO LHE FIZEREM JUSTIÇA CONTRA
 FLORO. G RANDE DISCURSO ELE FAZ PARA
DISSUADI-LO , FALANDO-LHE DO PODERIO ROMANO.
194. Floro apenas chegou a Cesaréia, procurou novamente pretextos para
manter a guerra. Mandou dizer a Céstio, governador da Síria, que os judeus se
tinham revoltado e por uma vergonhosa mentira acusou-os de terem feito o mal
que ele mesmo fizera. Os principais de Jerusalém não deixaram, por sua vez,
bem como a rainha Berenice, de avisar a Céstio do que se havia passado e da
crueldade que Floro tinha feito aos judeus. Depois que Céstio leu as cartas de
uns e de outros, reuniu os oficiais de suas tropas para deliberar sobre o que se
haveria de fazer e alguns foram de opinião que ele fosse à Judéia com o exército
para castigar os judeus, se fosse verdade que eles se haviam revoltado, ou
confirmá-los em sua fidelidade, se eles tivessem sido acusados falsamente. Mas
ele julgou que era melhor mandar antes alguns observadores, que se
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informassem exatamente da verdade, para lhe dar depois um relatório fiel dos
fatos; deu essa incumbência a Napolitano, mestre de campo. Esse oficial
encontrou, perto de Jamnia, o rei Agripa que voltava de Alexandria e disse-lhe
do motivo de sua viagem.
Os sacerdotes dos judeus, os Senadores e as outras pessoas mais ilustres
vieram àquele lugar para prestar suas homenagens àquele príncipe e
apresentar-lhe suas queixas a respeito da crueldade sem nome de Floro. Ele
ficou impressionado e sentiu grande compaixão, mas não deixou de censurá-los
duramente, como se eles não tivessem razão, porque ele queria acalmar-lhes o
espírito,
 e
 não
 irritá-los
 ainda
 mais,
 mostrando
 participar
 dos
 seus
sentimentos. Os principais dentre eles, que tinham muito a perder, desejavam a
paz, para poder conservar seus bens e receberam aquelas censuras como um
sinal de afeto. O povo de Jerusalém veio também procurar o rei Agripa e
Napolitano, a uma distância de sessenta estádios da cidade; as mulheres dos
que tinham sido cruelmente massacrados enchiam o ar com seus gemidos e
gritos e o povo acompanhava-as com suspiros e lágrimas. Todos pediram ao
príncipe que os ajudasse dizendo a Napolitano da crueldade de Floro e pediram-
lhe que viesse à cidade para ver de que modo eles eram tratados. Ele foi.
Mostraram-lhe o grande mercado inteiramente abandonado e as casas
saqueadas. Rogaram depois ao rei Agripa que fizesse de modo que Napolitano,
acompanhado somente por um dos seus, desse uma volta pela cidade até à
piscina de Siloé, para ver com seus próprios olhos, que nada se podia
acrescentar à obediência que eles tinham prestado aos outros governadores
romanos e Floro era o único que eles não podiam tolerar por causa de sua
horrível crueldade. Depois que Napolitano, a rogo do rei Agripa, deu uma volta
pela cidade e ficou muito satisfeito com a submissão de todo o povo, subiu ao
Templo e ali fez reunir uma grande multidão; louvou-o, com um discurso, por
sua fidelidade aos romanos, exortou-o a permanecer sempre em espírito de paz
e depois de ter adorado a Deus e às suas santas leis, sem penetrar no mesmo,
porque nossa religião não lho permitia, voltou para falar com Céstio.
195. Depois que ele partiu, os sacerdotes e o povo insistiram com Agripa
que lhes permitisse mandar embaixadores a Nero, para lhe levar suas queixas
contra Floro, porque depois de tão grande carnificina, eles não podiam
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permanecer em silêncio, para não dar motivo de se crer que eles se tinham
revoltado e de que eles tinham por primeiro tomado as armas; quando, na
verdade, fora ele que a isso os havia obrigado; pediam-no com tanta insistência
que pareciam não poder ficar tranqüilos, se ele não o concedesse. O príncipe,
considerando que de um lado era vergonhoso mandar embaixadores para
acusar Floro, e, por outro, não lhe era conveniente descontentar o povo tão
irritado e tão inclinado à guerra, reuniu-o numa grande galeria e depois de ter
posto a rainha Berenice, sua irmã, num lugar bem elevado, que era como uma
espécie de trono, no palácio dos príncipes hasmoneus, que dava para a galeria,
do lado mais alto da cidade, onde uma ponte une a galeria ao Templo, falou-lhe
deste modo:
196. "Eu vos vejo decididos a fazer guerra aos romanos, mas eu sei
também que a maior parte deseja conservar a paz, do contrário não teria vindo
até aqui, nem me daria ao trabalho de vos aconselhar, pois quando todos em
geral estão dispostos a abraçar o pior partido é inútil proporem-se coisas
vantajosas. Mas, como eu vejo que o ardor de alguns lhes impede conhecer os
males da guerra e que outros se deixam iludir por uma vã esperança de
liberdade e que a avareza também procura aproveitar-se dessa agitação, julguei
dever reunir-vos, para vos dizer o que eu julgo necessário e impedir que os
maus conselhos de um pequeno número venham a causar a perda de tantos
homens de bem.
"Que ninguém me interrompa nem murmure quando eu disser coisas que
não lhes são agradáveis. Será permitido, aos que são inclinados à revolta, aos
quais nada lhes pode curar o espírito, permanecer em suas opiniões depois que
eu tiver terminado o meu discurso, pois eu falaria inutilmente aos que desejam
me escutar se todos não se conservarem em silêncio.
"Eu sei que muitos representam de maneira patética os ultrajes que
receberam dos governadores dessas províncias bem como o grande bem da
liberdade. Mas, antes de examinar a diferença entre vossas forças e as daqueles
aos quais quereis fazer guerra, devemos considerar duas coisas que confundis.
Se desejais somente que se vos dê razão, porque tanto sofrestes, por que
louvais tanto a liberdade? E se a servidão vos parece coisa insuportável, de que
vos servirá vos queixardes de vossos governadores, mesmo quando eles fossem
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os mais moderados do mundo, não consideraríeis uma vergonha obedecer-lhes?
"Considerai, eu vos rogo, atentamente, como é frágil o motivo que vos
levaria a empreender tão grande guerra e de que maneira devemos proceder
com relação àqueles aos quais estamos sujeitos. É preciso mantê-los calmos
com a submissão e não irritá-los com queixas. As pequenas faltas que neles
censuramos irritam-nos e os levam a cometer outras maiores. Se antes faziam o
mal secretamente, e com certa vergonha, depois não temem fazer violência,
abertamente. Nada, ao contrário, é tão frágil como a paciência para detê-los, e
um sofrimento humilde só poderia causar confusão aos mais ousados e aos
mais injustos.
"Porém, mesmo quando esses governadores abusassem de tal modo do
seu poder e vos dessem muitos motivos de queixas, deveria vosso ressentimento
se estender a todos os romanos, e mesmo ao imperador, para vos fazer tomar as
armas contra eles? É por sua ordem que eles vos oprimem? Podem eles ver do
ocidente o que se passa no oriente? Não é muito difícil que eles sejam
exatamente informados do que a nós se refere?
"Que há, então, de mais irrazoável do que querer, com razões tão frágeis,
empenhar-se numa guerra contra tão poderosos inimigos, sem que eles saibam
somente qual é a razão que a isso vos obriga? Não tendes motivos de esperar
que aquilo que sofreis terminará depressa, pois esses injustos governadores não
são perpétuos e poderão vir sucessores mais equilibrados e razoáveis? E
quando a guerra se tivesse começado, como fazê-la e ainda mais terminá-la,
sem experimentar todos os males que a ela se seguem?
"Que imprudência maior do que tentar libertar-se da servidão, quando
não se tem os meios necessários para se recuperar a liberdade? Não é, ao
contrário, um motivo de se cair numa nova escravidão, ainda mais dura que a
primeira?
"Nada mais justo do que combater, para se evitar o jugo de uma
dominação estrangeira. No entanto, depois que se recebeu esse jugo, tomar as
armas para dele se libertar não é mais amor à liberdade, mas apenas uma
revolta.
"Quando Pompeu entrou nesse país, tudo devíamos fazer para repelir os
romanos.
 Mas
 se
 nossos
 antepassados
 e
 nossos
 reis
 ainda
 que
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incomparavelmente mais ricos e poderosos do que nós não puderam resistir a
uma pequena parte de suas forças, em que vos fundais para esperar que vossos
antepassados e vós, estando sujeitos a eles, há tanto tempo, podereis agora
resistir ao ímpeto de todo esse enorme e temível império?
"Aqueles generosos atenienses, que para defender a liberdade da Grécia,
não temeram ver reduzir-se a cinzas suas cidades, que com uma pequena frota
puseram em fuga o soberbo Xerxes — cujos navios cobriam todo o mar, e cujos
exércitos de terra pareciam avassalar toda a Europa, que naquela célebre
batalha travada junto da ilha de Salamina, triunfaram sobre todas as forças da
Ásia unidas — obedecem agora aos romanos e vêem sua república, que era
como a rainha da Grécia, sujeita às ordens que recebem da Itália.
"Os
 lacedemônios,
 que
 ganharam
 aquelas
 famosas
 batalhas
 das
Termópilas e de Platéia e viram Agesilau levar tão bem longe da Ásia suas
armas vitoriosas, reconhecem também agora os romanos como seus senhores.
"Os próprios macedônios, que tinham continuamente diante dos olhos o
valor de Filipe e os troféus do grande Alexandre, e se compraziam com a posse
do império de todo o mundo, experimentaram, como os outros, as alternativas
da sorte e agora dobram os joelhos diante desses invencíveis conquistadores,
para cujo partido passaram.
"Tantas outras nações, que não julgavam possível perder a liberdade,
também sofrem o jugo desses dominadores de toda a terra; e vós pretendeis ser
os únicos a não obedecer a quem todos os outros obedecem?
"Onde estão os exércitos, onde estão as forças em que confiais? Onde
estão os navios para vos abrir passagem em todos os mares sujeitos aos
romanos? Onde estão os meios para sustentar as despesas de tão ousado
empreendimento?
"Julgais combater egípcios ou árabes e ousais opor vossa fraqueza ao
poderio romano? Já vos esquecestes de que fostes tantas vezes vencidos por
vossos vizinhos, e de que, ao contrário, por toda a parte onde os romanos
levaram a guerra sempre foram vitoriosos? A conquista de todas as terras
conhecidas ainda não os satisfez; sua ambição e coragem os levam a avançar
sempre. Não se contentaram de ter também submetido todo o Eufrates, do lado
do oriente, todo o Danúbio, do lado do norte, toda a África até os desertos da
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Líbia, do lado do sul e de penetrar do lado do ocidente até Cádiz: eles buscaram
outro mundo, além do Oceano, e mostraram à Grã-Bretanha, que se julgava
inacessível, que nada é capaz de limitar o vôo das águias romanas.
"Pensais ser mais poderosos que os gauleses, mais valentes que os
alemães e mais hábeis que os gregos? Ou melhor, pensais ser os únicos mais
fortes que todos os outros juntamente? Em que vos fundais, para vos ousardes
revoltar contra tão temível império?
"Podereis dizer que a servidão é coisa dura. Não considerais porém que ela
deve ser muito mais dura para os gregos que julgam sobrepujar em nobreza a
todos os outros povos e estenderam seu domínio tão longe e obedecem agora
sem resistência aos magistrados que Roma lhes manda?
"Os macedônios fazem do mesmo modo, embora eles possam com mais
justo título do que vós defender sua liberdade. Quinhentas cidades da Asia não
obedecem também a um cônsul, sem que nenhuma força a isso as obrigue?
Que direi dos enioqueanos, dos colqueanos, dos toreanos e dos bosforianos, dos
que moram nas margens do Ponto e nos Paludes Meótidos, que jamais tiveram
chefes, nem mesmo da própria nação, jamais ousaram pensar em se revoltar,
embora tenham como guamição apenas três mil soldados romanos? E esses
mesmos romanos não dominam com quarenta navios, somente, todo o mar, do
qual antes ninguém havia tentado a passagem?
"Que razões a Bitínia, a Capadócia, a Panfília, a Lídia e a Cilícia poderiam
apresentar em favor de sua liberdade? E, entretanto, pagam tributo aos
romanos sem que haja necessidade de exércitos para os obrigarem a isso?
"Dois mil soldados não lhes bastam também, na Trácia, para mantê-la
submissa, embora tenha uma extensão de sete dias de caminho e de cinco de
largura; e embora esse país seja muito mais rude e mais forte do que o vosso e
as geleiras possam sozinhas defender-lhe a entrada?
"Não têm eles, do mesmo modo, sob sua obediência toda a llíria, que se
estende para além do Danúbio, até a Dalmácia, com duas legiões somente, que
lhes servem também para dominar os dácios? E os dalmatas, que tomaram as
armas para reconquistar a liberdade e que o fizeram sempre com maiores esfor-
ços, não obedecem pacificamente hoje a uma legião romana?
"Se há razões bastante fortes para levar uma nação a se revoltar contra os
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romanos, quem não as teria senão os gauleses? Pois, parece-me que a natureza
mesma sentiu prazer em fortificá-los de todos os lados; ao oriente eles têm os
Alpes, ao norte o Reno, ao sul os Pirineus e ao ocidente o Oceano. Embora
defendidos pela natureza, embora reunindo trezentos e cinco povos diversos,
embora tenham em si mesmos uma fonte inesgotável de toda espécie de bens,
que difundem em todo o restante da terra, eles são tributários dos romanos e
julgam que sua felicidade depende da do grande império. A esse respeito não se
pode dizer que haja falta de coragem ou que seus antepassados tenham sido
fracos e covardes, pois eles combateram durante oitenta anos, defendendo sua
liberdade. Mas viram com espanto e admiração que o grande valor dos romanos
era acompanhado também de grande prosperidade e sua boa sorte somente fê-
los muitas vezes vitoriosos em tantas guerras. Eles se submetem a mil e
duzentos soldados somente, daquela nação, hoje senhora do mundo, número
que iguala quase o de suas cidades.
"De que serviu, outrossim, aos espanhóis, que quiseram defender sua
liberdade, ter em seu território minas de ouro? De que serviu aos portugueses e
aos biscaínos estar tão longe de Roma, à margem do Oceano, cujas
tempestades causam espanto, ameaçar a mesma terra? Esses incomparáveis
conquistadores
 galgaram
 os
 cumes
 dos
 Pirineus
 como
 se
 estivessem
caminhando através das nuvens e levaram seus exércitos além do mar, mais
longe ainda do que as colunas de Hércules, e uma somente de suas legiões não
mantém sob seu domínio tantas províncias, tão belicosas?
"Quem dentre vós não ouviu falar do numeroso povo alemão? Não
notastes tantas vezes sua estatura e sua força extraordinária, pois não há lugar
no mundo onde os romanos não tenham escravos daquela gente? Embora seu
país seja muito extenso, embora sua coragem seja ainda maior que sua
estatura, embora tenham uma firmeza de alma que os faz desprezar a morte e
embora, quando estão irritados, sejam mais ferozes que os mesmos animais,
hoje têm o Reno por fronteira e oito legiões romanas os dominam: os que são
aprisionados tornam-se escravos e os outros só podem viver submetendo-se a
eles.
"Se na força de vossas muralhas pondes vossa confiança, considerai a
Grã-Bretanha, toda rodeada pelo mar e tão extensa que pode passar por um
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pequeno mundo. Os romanos, entretanto, dominaram-na, não obstante os
ventos e as ondas que se opunham à sua passagem e quatro legiões são
suficientes para manter na obediência aquela grande ilha.
"Que direi dos partos, nação tão poderosa e tão valente, que antes
dominava tantas outras? Não dá agora reféns aos romanos e não manda a
Roma, com o pretexto de paz, mas, de verdade, como uma prova de sua
servidão, a flor da nobreza do Oriente?
"Assim, dentre tantos povos que o sol ilumina com seus raios, fazendo o
giro do mundo, não há quem não se dobre ao poder dos romanos. Quereis ser
os únicos a lhes declarar guerra? Não vedes o que sucedeu aos cartagineses,
que embora tendo sua origem dos ilustres fenícios e gloriando-se de ter por
chefe o temível e ilustre Aníbal, não puderam evitar cair sob as armas vitoriosas
de Cipião?
"Não vos lembrais de que os sirenianos, descendentes dos lacedemônios,
dos marmáridas, que se estendem até os desertos tão áridos, onde nada lhes é
mais raro do que a água, dos cirtas, de quem não se pode ouvir falar sem
espanto, dos nassamoneanos, dos mouros, e da multidão inumerável dos
númidas que não puderam resistir ao poderio romano?
"Esses soberbos vencedores não submeteram também aquela terça parte
da terra, de que seria difícil enumerar as nações e que se estendem desde o
Oceano Atlântico e as colunas de Hércules até o mar Vermelho, inclusive toda a
Etiópia? Além do trigo que esses países fornecem todos os anos, para nutrir
durante oito meses o povo romano, eles ainda pagam tributos e satisfazem sem
murmurar a várias outras despesas e só têm uma legião como guarnição.
"Mas por que procurar exemplos tão afastados para vos persuadir do
máximo poder dos romanos, pois o Egito, de que estais tão próximos, vo-lo pode
dar? Embora esse grande reino se estenda até a Etiópia e a Arábia Feliz, e se
limite com as índias, seja povoado por um número infinito de homens, além dos
de Alexandria, não se julga desonrado de pagar um tributo aos romanos, e que
é realmente muito grande, pois ele o paga por cabeça, para uma inumerável
multidão de pessoas.
"Que motivo não seria para Alexandria se revoltar, a sua maravilhosa
extensão de trinta estádios de comprimento e dez de largura, suas grandes
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riquezas e o número de seus habitantes? É fortificada de todos os lados, por
desertos impenetráveis, por um oceano sem portos, por rios profundos, por
paludes tremendos. Mas, como não há obstáculo que o valor e a sorte dos
romanos não vença, ela tem de lhe pagar cada mês mais do que vós em um ano
e de fornecer ainda o trigo para alimentar durante quatro meses o povo romano
e uma guarnição de duas legiões é suficiente para os manter na obediência,
com toda sua nobreza, a Macedônia e todo o Egito, cuja extensão é enorme.
"Assim, todo o mundo habitado está sujeito aos romanos; tereis que
procurar auxílio no deserto se, levando vossas esperanças além do Eufrates,
esperais recebê-lo dos adiabenianos. Mas eles não serão tão imprudentes de se
empenharem sem motivo em tão grande guerra; e mesmo que o resolvessem
fazer, os partos não o permitiriam, porque eles querem conservar a paz com os
romanos e a julgariam violada, se consentissem que aqueles que lhe são
sujeitos tomassem as armas contra eles.
"Não vos resta, portanto, que recorrer a Deus. Mas como podeis esperar
na vossa fé, que Ele vos seja favorável, se foi Ele mesmo que elevou o Império
Romano a tal felicidade e poder?
"Mesmo que vossos inimigos fossem mais fracos do que vós, não poderíeis
esperar um êxito favorável nessa empresa. Se observardes religiosamente o
sábado, não podereis evitar serdes atacados, como vossos antepassados o
foram, por Pompeu, que escolheu esse tempo para dominá-los, pois sabia que
eles não se atreveriam a se defender. E se não temeis violar a lei combatendo
como nos outros dias, por que dizeis que só tomais as armas para manter as
vossas leis, como podeis esperar o auxílio de Deus, quando o ofendeis,
voluntariamente
 desobedecendo
 aos
 seus
 mandamentos?
 Só
 se
 deve
empreender uma guerra quando há confiança no seu auxílio ou no dos homens;
mas, se um e outro faltarem, como não cair na escravidão?
"Se não podeis resistir ao ardor que vos excita, parti em pedaços com
vossas próprias mãos os vossos filhos e as vossas esposas, reduzi a cinzas todo
este belo país, a fim de que só se possa atribuir ao vosso furor a ruína de vossa
pátria, poupando-vos a vergonha de vê-la destruída por vossos inimigos.
"Crede-me, meus amigos, crede-me; é de grande prudência prever a
tempestade, quando o navio ainda está no porto; é mui grande imprudência
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levantar a âncora e velejar, quando ela já começou a se desencadear. Como
lamentamos, com razão, os que são vítimas das desgraças, que não haviam
podido
 prever
 e
 como
 se
 censuram
 com
 justiça
 os
 que
 se
 lançam
voluntariamente em perigos claros e inevitáveis.
"Julgais talvez que a guerra se pode fazer com condições e que os
romanos vencedores usarão de bondade em sua vitória? Não deveis, ao
contrário, pensar que, para vos fazer servir de exemplo aos outros povos, eles
destruirão pelo fogo esta cidade santa, e pelo ferro, toda vossa nação? Onde e
como se salvariam os que ficassem com vida, pois todos estão sujeitos aos
romanos ou temem cair em seu poder.
"Tão estranha desolação não se limitaria somente a vós, iria além. Os
judeus espalhados por toda a terra sentir-se-iam esmagados sob vossa ruína. A
revolta, a que os maus conselhos de alguns vos querem levar, faria correr rios
de sangue em todas as cidades, onde moram os de vossa nação, e onde eles se
julgam em segurança, sem que se possam censurar os romanos, pois a isso os
teríeis obrigado; e se eles os deixarem em paz, julgai que injustiça vos teria feito
tomar as armas contra aqueles que usariam da vitória com tanta moderação e
bondade.
"Se perdestes todos os sentimentos da humanidade por vossas mulheres e
por vossos filhos, tende pelo menos compaixão da capital da Judéia. Não sejais
tão cruéis e tão ímpios, armando vossas mãos para derrubar vossas muralhas,
para destruir vosso sagrado Templo, para arruinar o santuário e abolir vossas
santas leis. Ousais esperar que os romanos, depois de tão mal recompensados,
por vos terem poupado antes, vos poupem agora, quando de novo vos tiverem
vencido?
"Tomo como testemunha estas coisas santas, os anjos de Deus e nossa
pátria comum, de como jamais me descuidei em tudo o que pensei contribuir
para vossa salvação.
"Se seguirdes meu conselho todos gozaremos de paz. Mas se continuais a
vos deixardes levar pelo furor que vos agita, não estou disposto a me expor
convosco aos perigos que vos são tão fáceis evitar."
O rei Agripa terminou este discurso e a rainha Berenice acompanhou-o
com suas lágrimas; tantas razões e tantas provas de afeto tocaram o coração do
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povo, que moderou o furor e exclamou: "Não é contra os romanos que queremos
empunhar as armas, mas contra Floro, cuja tirania é insuportável". "Mas
vossas ações mostram", respondeu-lhes Agripa, "que é contra os romanos que o
fazeis, pois não pagais o tributo ao imperador e derribastes a galeria que unia o
Templo à fortaleza Antônia. Se quereis mostrar que não tendes intenção de vos
revoltar, apressai-vos em cumprir o primeiro dever e em reconstruir a galeria,
pois é ao imperador e não a Floro que esse dinheiro é devido e essa fortaleza
pertence."
CAPÍTULO 29
O DISCURSO DO REI AGRIPA PERSUADE O POVO. O PRÍNCIPE , EXORTANDO-O
A OBEDECER A
 FLORO ATÉ QUE O IMPERADOR LHE TENHA DADO UM SUCESSOR, FÁ-LO
FICAR IRRITADO, DE TAL MODO, QUE O EXPULSA DA CIDADE
COM PALAVRAS OFENSIVAS.
197. O povo persuadiu-se com estas palavras, acompanhou o rei e a
rainha Berenice ao Templo, e começou a trabalhar para reedificar a galeria.
Nesse mesmo tempo, alguns oficiais foram por todo o país recolher o que
faltava, para pagar os tributos e logo reuniram quarenta talentos. Assim o rei
Agripa julgou ter eliminado o motivo de se temer uma guerra e quis em seguida
persuadir o povo a obedecer a Floro até que o imperador lhe tivesse dado um
sucessor. Mas este irritou-se de tal modo, que o expulsou da cidade com pala-
vras ofensivas e alguns dos mais exaltados levaram sua insolência a lhe atirar
pedras. O príncipe, vendo que era impossível conter o furor daqueles rebeldes,
retirou-se para seu reino, censurando-os pela maneira indigna como o trata-
vam, faltando ao respeito que lhe era devido; mandou depois pessoas ilustres
procurar Floro em Cesaréia, a fim de que ele escolhesse os encarregados de
cobrar o tributo em todo o país.
CAPÍTULO 30
SEDICIOSOS ATACAM MASSADA DE SURPRESA, DEGOLAM A GUARNIÇÃO
ROMANA E
 ELEAZAR, FILHO DO SACERDOTE ANANIAS, IMPEDE QUE SE
RECEBAM AS VÍTIMAS OFERECIDAS PELOS ESTRANGEIROS, DENTRE OS QUAIS
TAMBÉM O IMPERADOR ESTAVA INCLUÍDO.
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198. Pouco tempo depois, alguns mais inclinados à guerra atacaram de
surpresa a fortaleza de Massada, degolaram toda a guamição romana e lá
puseram outra, composta pelos da sua nação.
Por outro lado, Eleazar, filho do sumo sacerdote Ananias, jovem, mas
muito ousado, comandava alguns soldados; persuadiu ele aos que cuidavam
dos sacrifícios a só receberem presentes e vítimas oferecidas pelos judeus; isto
era como lançar a semente de uma guerra contra os romanos. E assim
recusaram eles até as vítimas oferecidas em nome do imperador. Os sacerdotes
e os grandes opuseram-se com veemência à mudança desse costume de os
soberanos
 oferecerem
 vítimas,
 mas
 inutilmente,
 porque
 os
 revoltosos,
sustentados por Eleazar, confiando em seu grande número, só pensavam em
agitação.
CAPÍTULO 31
OS PRINCIPAIS DE JERUSALÉM, DEPOIS DE SE TEREM ESFORÇADO PARA ABAFAR
A REVOLTA, MANDAM PEDIR TROPAS A
 FLORO E AO REIAGRIPA . FLORO, QUE SÓ
DESEJAVA A DESORDEM, NÃO LHES MANDA, MASAGRIPA ENVIA -LHES TRÊS MIL
HOMENS .
 ELES COMBATEM CONTRA OS SEDICIOSOS, QUE SENDO EM NÚMERO
MUITO MAIOR, OS OBRIGAM A SE RETIRAREM PARA O ALTO DO PALÁCIO,
QUEIMAM O ARQUIVO DOS ATOS PÚBLICOS, COM O PALÁCIO DO REIAGRIPA E
DA RAINHA
 BERENICE, E CERCAM O ALTO DO PALÁCIO.
199. Os principais de Jerusalém, tanto sacerdotes como fariseus e outros,
vendo a cidade tão ameaçada, resolveram persuadir os sediciosos à obediência
e à sujeição. Mandaram em seguida reunir o povo diante da porta de bronze da
parte interior do Templo, que está voltada para o oriente, e começaram a falar
da ousadia em se deixar levar a uma revolta, que poderia ser causa de uma
guerra sangrenta. Disseram, em seguida, que a causa era muito injusta, porque
seus antepassados jamais se tinham recusado a receber presentes das nações
estrangeiras, como bem se podia ver, porque o Templo, na maior parte, era
adornado com as dádivas que eles tinham oferecido e que não somente não se
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haviam rejeitado suas vítimas, o que não se podia fazer sem impiedade, mas
também viam-se ainda naquele mesmo Templo as ofertas que eles haviam feito,
em todos os tempos. Por isso era estranho que se estabelecessem novas leis
para provocar as armas romanas, e além do perigo ao qual se expunha
Jerusalém, ela tornar-se-ia culpada de um grande crime, em matéria de
religião, como seria permitir só aos judeus oferecer vítimas a Deus e adorá-lo no
seu Templo. E mesmo quando essa nova lei, que se queria estabelecer, só se
referisse a um único homem, não se poderia eximi-la de desumana; mas,
tornando-a geral, ofender-se-iam todos os romanos, por um desprezo injurioso
e far-se-ia passar o mesmo imperador por um profano. Havia ainda motivo de
se temer que aqueles que rejeitavam tão ousadamente as vítimas dos outros,
não fossem privados no futuro da liberdade de as oferecer para si mesmos, se
não
 se
 arrependessem
 de
 sua
 falta,
 antes
 que
 os
 ofendidos
 tão
imprudentemente disso tivessem conhecimento.
Depois de assim ter falado, os sacerdotes que mais conheciam os
costumes de nossos antepassados disseram que eles jamais haviam recusado
vítimas oferecidas por nações estrangeiras. Mas aqueles que só queriam
agitações não escutaram tais razões e para dar motivo de guerra os ministros
do altar não se apresentaram.
200.
 Dessa forma, os chefes vendo que a revolta tinha chegado a tal
ponto, que sua autoridade já não era capaz de contê-la e que os males que se
temiam da parte dos romanos cairiam principalmente sobre eles, resolveram,
para conseguir que os sediciosos desistissem, mandar a Floro alguns homens,
dos quais Simão, filho de Ananias, era o chefe, e outros ao rei Agripa, chefiados
por Saul, Antipas e Costobaro, parente do príncipe, para pedir a ambos que
viessem em auxílio de Jerusalém, com tropas, a fim de extinguir a revolta antes
que ela crescesse ainda mais.
Tão má notícia foi muito agradável a Floro, o qual, para que o fogo da
guerra se acendesse mais ainda, não deu resposta aos enviados. Agripa, para
salvar, se ainda possível, não somente os que permaneciam fiéis ao dever, mas
também os sediciosos, para conservar a Judéia aos romanos e o Templo e sua
pátria aos judeus, julgando além disso, que a perturbação só lhes poderia ser
prejudicial, mandou em seguida três mil homens, auranitas, bataneianos e
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traconitidas, comandados por Dario e deu-lhes por general Filipe, filho de
Joaquim.
201.
 Os chefes, os sacerdotes e a parte do povo que desejavam a paz
receberam-nos e os hospedaram na cidade alta; a cidade baixa e o Templo
foram ocupados pelos revoltosos. A guerra começou com arremesso de pedras e
flechas e por vezes chegaram mesmo a combater corpo a corpo. Os revoltosos
eram mais ousados, porém os soldados do rei tinham mais experiência na
guerra. Todos os esforços destes visavam expulsar do Templo aqueles que o
profanavam de maneira tão criminosa; e o objetivo de Eleazar e dos seus
partidários era apoderar-se da cidade alta. Sete dias passaram-se dessa
maneira, com grande mortandade de parte a parte, sem progresso algum.
202. Entretanto, chegou a festa a que chamam de xiloforia, durante a
qual leva-se ao Templo uma grande quantidade de madeira para manter um
fogo, que jamais se deve apagar; os revoltosos impediram aos seus adversários
o cumprimento desse dever de piedade, ao qual sua religião obrigava. A eles
havia unido um grande número daqueles assassinos, denominados sicários,
por causa dos punhais que trazem escondidos sob as vestes; estes lançaram-se
no meio do povo, obrigando os do lado do rei a ceder à sua ousadia e ao seu
grande número, e a abandonar a cidade alta. Os amotinadores dela se apode-
raram, puseram fogo na casa do sumo sacerdote Ananias e no palácio do rei
Agripa e da rainha Berenice. Cercaram em seguida o arquivo dos atos públicos
para queimar todos os contratos e as obrigações que lá estavam, trazendo as-
sim ao seu partido todos os devedores, que não mais temiam atacar seus cre-
dores, porque não existiam mais os títulos em virtude dos quais eles os pudes-
sem perseguir, e atiraram assim os pobres contra os ricos. Os que tinham esses
títulos sob custódia fugiram e os revoltosos incendiaram todos os documentos,
reduzindo a cinzas os títulos que bem se poderiam chamar do bem público e
continuaram a perseguir seus inimigos.
203. Em tão horrível desordem, Ananias, sumo sacerdote, Ezequias, seu
irmão, e alguns outros sacerdotes e homens ilustres de Jerusalém foram se
esconder nos esgotos e os que tinham sido enviados ao rei Agripa retiraram-se
para junto dos soldados daquele príncipe, no alto do palácio do qual fecharam
as portas.
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Os amotinadores, satisfeitos com a vitória e tantos incêndios, no
momento, não foram além. Mas no dia seguinte, que era o dia quinze de agosto,
atacaram a fortaleza Antônia, tomaram-na de assalto em dois dias, dizimaram a
guarnição, cercaram as tropas do rei Agripa naquele palácio, onde se haviam
escondido e divididos em quatro partes, e procuravam derribar as muralhas. Os
sitiados não ousavam atacar um número tão grande de inimigos, mas
matavam-nos do alto das torres e dos torreões aos que lhes atacavam. O ardor
com que atacavam e se defendiam era tão grande, que não se combatia menos
de noite do que de dia, porque os de fora julgavam que os sitiados seriam
obrigados a se entregar, por falta de víveres e estes estavam persuadidos de que
os inimigos cansar-se-iam de tantos esforços inúteis.
CAPÍTULO 32
MANAHEM TORNA-SE CHEFE DOS REVOLTOSOS, CONTINUA O CERCO DO
PALÁCIO E OS SITIA; ELES SÃO OBRIGADOS A SE RETIRAR ÀS TORRES REAIS.
MANAHEM, QUE SE FAZIA DE REI, É EXECUTADO EM PÚBLICO; OS QUE
HAVIAM FORMADO UM PARTIDO CONTRA ELE CONTINUAM O CERCO,
TOMAM AQUELAS TORRES, QUE SE RENDEM E FALTAM À PALAVRA AOS
ROMANOS, MATAM-NOS A TODOS, COM EXCEÇÃO DO SEU CHEFE.
204. Entretanto Manahem — filho de Judas, galileu, o grande sofista que
desde o tempo de Cirênio censurava os judeus, que em vez de obedecer a Deus
somente, eram tão covardes que reconheciam o domínio dos romanos — com o
auxílio de algumas pessoas ilustres, tomou à força Massada, onde estava o
arsenal de Herodes e depois de ter armado um grande número de homens, que
nada tinham a perder, e ladrões, que se uniram a eles, dos quais se servia como
de guardas, voltou a Jerusalém, fazendo-se rei; tornou-se chefe da revolta e
ordenou que continuassem o cerco do palácio.
Não possuindo máquinas e não podendo forçar as muralhas por causa
dos dardos que se lhes atiravam, tiveram de recorrer a uma mina; começaram a
trabalhar de longe e quando já a haviam trazido até o pé de uma das torres,
moveram-lhes os alicerces e os sustentaram com pedaços de madeira à qual
puseram fogo, antes de se retirarem. Depois que o fogo se apagou, a torre caiu.
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Mas os sitiados, prevendo o que estava para acontecer, reconstruíram-na com a
máxima rapidez, o que surpreendeu os sitiantes e os deteve. Os sitiados
pediram então a Manahem e aos outros chefes dos revoltosos para se retirar
com segurança, o que eles concederam somente às tropas do rei Agripa e aos
judeus.
Dessa forma os romanos ficaram sozinhos em grande consternação, por-
que, de um lado, não podiam resistir a tão grande número de inimigos, e eles
julgavam, por outro, que lhes seria vergonhoso tratar com revoltosos, além de
que, quando mesmo a isso se resolvessem, não poderiam confiar em sua pala-
vra. Nessa conjuntura extrema tomaram a deliberação de abandonar o lugar
onde estavam, chamado Estratopedom, porque teriam podido facilmente serem
forçados a fazê-lo e retirarem-se às torres reais, uma das quais tinha o nome de
Hípicos, a outra, de Fazael e a terceira, de Mariana. Os revoltosos ocuparam
logo todos os lugares abandonados pelos romanos, mataram os que lá
encontraram, saquearam tudo e incendiaram Estratopedom. Isso aconteceu no
sexto dia de setembro.
205. No dia seguinte, o sumo sacerdote, que se tinha escondido no esgoto
do palácio, foi preso e morto pelos revoltosos com Ezequias, seu irmão; depois,
eles sitiaram as torres, a fim de que nenhum dos romanos pudesse escapar.
206. A morte desse sumo sacerdote e tantos lugares fortificados
conquistados tornaram Manahem tão orgulhoso e insolente que julgando não
haver ninguém melhor do que ele para governar, tornou-se um tirano
intolerável. Eleazar e alguns outros reuniram-se e disseram que depois de se
terem revoltado contra os romanos, para reconquistar sua liberdade, ser-lhes-ia
vergonhoso receber como senhor um homem de sua própria nação, que embora
não fosse tão violento como Floro, era-lhe tão inferior; e se tivessem de obedecer
a alguém ele seria o último a quem deveriam escolher para governá-los.
Resolveram em seguida abolir essa nova dominação e foram ao Templo onde
Manahem, vestido como rei, acompanhado de vários soldados, tinha entrado
com grande pompa para adorar a Deus. Atiraram-se sobre ele, tomando pedras
para matá-lo, julgando que sua morte restituiria a calma à cidade. Os que
acompanhavam Manahem fizeram a princípio alguma resistência, mas quando
viram todo o povo avançar contra ele, fugiram. Muitos destes foram mortos, e
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aprisionados os que estavam escondidos. Uns fugiram para Massada, dentre os
quais Eleazar, parente de Manahem, que por meio dessa praça exerceu depois
um governo tirânico. Quanto a Manahem, foi encontrado num lugar chamado
Oflas, onde se tinha ocultado; retiraram-no de lá e o executaram em público,
depois de tê-lo feito sofrer tor-mentos horríveis. Trataram do mesmo modo os
principais ministros do seu governo e particularmente Absalão.
207. O povo continuava a favorecer o partido que tinha feito morrer
Manahem, na esperança, como disse, de ver a agitação acalmar-se. Mas os que
o haviam formado não tinham outra intenção que acender cada vez mais o fogo
da guerra, a fim de poder com mais liberdade exercer a violência; embora o
povo lhes pedisse para não oprimir mais os romanos, eles continuaram a sitiá-
los com mais ardor ainda, e obrigaram Metílio a pedir a Eleazar para se
entregar, com a condição de apenas salvar a vida. Ele lhe concedeu e mandou
Goriom, filho de Nicodemos, Ananias, filho de Saduceu e Judas, filho de
Jônatas, para prometer-lhe com juramento. Metílio saiu em seguida com suas
tropas. Enquanto elas tinham armas, os revoltosos nada tentaram contra eles;
mas quando, depois da rendição, eles as deixaram e se retiraram sem de nada
desconfiar, massacraram-nos; não resistiram elas, e nem lhes rogaram o não
fizessem, a contentar-se de gritar que haviam violado o ajuste com um infame
perjúrio e Metílio foi o único que não foi morto, porque não somente o pediu,
mas também para salvar a vida, prometeu mesmo fazer-se circuncidar.
208.
 Embora essa perda não fosse considerável para os romanos, que
tinham um número tão grande de tropas, era fácil julgar que ela seria a ruína e
o cativeiro dos judeus. Os que achavam inevitável entrar na guerra — porque
Jerusalém, manchada por um tão grande crime, Deus não a deixaria impune,
quando mesmo os romanos não se tivessem vingado por isso — deploravam
publicamente sua desdita; toda a cidade estava amargurada e triste; os mais
sensatos e ajuizados não estavam menos aflitos do que se fossem culpados das
faltas dos amotinados. A carnificina foi tanto mais horrível, quanto sucedeu em
dia de sábado, no qual nossa religião obriga a nos abstermos de qualquer obra,
mesmo santa.
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CAPÍTULO 33
OS HABITANTES DE CESARÉIA MATAM VINTE MIL JUDEUS QUE ESTAVAM
EM SUA CIDADE.
 OS OUTROS, PARA SE VINGAR, FAZEM GRANDES
DEPREDAÇÕES E OS SÍRIOS, POR SEU LADO, FAZEM O MESMO.
 ESTADO
DEPLORÁVEL A QUE A
 SÍRIA SE ENCONTRA REDUZIDA.
209. Aconteceu, com a permissão da providência de Deus, que, naquele
mesmo dia e na mesma hora, os de Cesaréia atacaram os judeus, e dos vinte
mil que moravam naquela cidade, não escapou um só, porque Floro mandou
perseguir os fugitivos e prendê-los. Tão grande morticínio excitou tal furor à
nação judaica, que eles devastaram todas as cidades e aldeias na fronteira da
Síria, a saber: Filadélfia, Gebonite, Gerasa, Pella e Citópolis; tomaram de
assalto Gadara, Hipoim, Gaulanite, destruíram umas, incendiaram outras e
avançaram até Cedasa, que pertence aos tirios, Ptolemaida, Gaba, Cesaréia,
sem que Sebaste e Ascalom fossem capazes de os deter. Incendiaram-na e
destruíram Antedom e Gaza. Saquearam também várias aldeias da fronteira e
mataram a todos os que puderam apanhar.
210. Os sírios, por seu lado, não causavam menor prejuízo às terras dos
judeus e não matavam menos do que eles, massacrando todos os que se
encontravam em suas cidades, quer pelo antigo ódio que lhes tinham, quer
para tonar o perigo menor para si mesmos, diminuindo o número dos inimigos.
A Síria por esse motivo ficou em estado deplorável; todas as cidades estavam
expostas às desordens e às violências dos vários exércitos e por isso todos
procuravam a salvação, derramando rios de sangue. Os dias passavam-se
nesses atos tão desumanos, que as leis da guerra autorizam; o temor e o horror
tornavam a noite ainda mais terrível que o dia. Embora parecesse que os sírios
visassem expulsar os judeus, não podiam deixar de suspeitar das nações que
tinham abraçado sua religião, mas não ousavam, entretanto, por uma simples
suspeita, tratá-las como inimigas.
Por outro lado, a ambição tornava cruéis de ambos os lados àqueles
mesmos que antes pareciam os mais moderados, porque eles consideravam
como despo-jos e presas, que a vitória tornava legítimos, os bens daqueles que
matavam; e assim os mais valentes se enriqueciam cada vez mais por estes
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meios tão odiosos e bárbaros. Viam-se, com horror, as cidades cheias de
cadáveres de velhos, crianças e mulheres, nus e sem sepulturas. Por toda a
parte, inacreditável miséria; e outras, ainda maiores, se temiam.
CAPÍTULO 34
HORRÍVEL TRAIÇÃO PELA QUAL OS DE CITÓPOLIS MASSACRAM TREZE MIL
JUDEUS QUE MORAVAM EM SUA CIDADE.
 CORAGEM EXTRAORDINÁRIA DE
SIMÃO, FILHO DE SAUL, UM DELES. SUA MORTE, MAIS QUE TRÁGICA.
211. Até então, os judeus só tinham feito guerra a estrangeiros. Mas,
quando se aproximavam de Citópolis, os de sua própria nação tornaram-se
seus inimigos, porque preferiram a vida ao parentesco que havia entre eles, e
uniram-se aos citopolitanos para combatê-los. O ardor com o qual lutaram,
tornou-os suspeitos a esses estrangeiros; recearam de que eles se tornassem,
durante a noite, senhores de sua cidade e se reunissem em seguida, contra eles
aos outros judeus, para reparar com esse ato o mal que lhes havia sido feito.
Assim, declararam-lhes que se quisessem permanecer firmes em sua união com
eles e mostrar-lhes fidelidade, teriam de se retirar, com suas famílias, a um
bosque perto da cidade. Eles aceitaram a proposta e ficaram dois dias em
repouso. Mas na noite do terceiro dia, os citopolitanos atacaram o corpo das
guardas e como de nada eles desconfiavam e estavam quase todos dormindo,
foram mortos; depois também a todo aquele grande número de judeus, uns
treze mil, e apoderaram-se de todos os seus bens.
212. Dentre os que pereceram naquele dia, por esta horrível traição, creio
dever narrar o fim de Simão, filho de Saul, cuja descendência era tão nobre. Ele
tinha uma força extraordinária e grande coragem; tendo empregado uma e
outra em favor dos citopolitanos, contra os de sua nação, nenhum outro lhes
era mais temível. Não se passava um dia em que ele não matasse alguém, perto
de Citópolis; punha, às vezes, em fuga uma grande tropa e parecia que somente
seu valor era toda a força do seu partido. Mas, por fim, foi castigado como
merecia, por ter derramado tanto sangue, e sangue que lhe devia ser muito
caro. Quando os citopolitanos atacaram os judeus, de todos os lados, naquele
bosque, a flechadas, ele vendo que todos os seus esforços contra tantos
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inimigos seriam inúteis, em vez de atacá-los, gritou: "Eu sou justamente
castigado por vos ter demonstrado meu afeto, pelo morticínio de um tão grande
número de compatriotas meus e é justo que a perfídia de um povo estrangeiro
me faça sofrer o castigo que merece minha infedelidade, para com minha pátria.
Não sou digno de receber a morte pelas mãos dos inimigos, eu mesmo devo me
matar. O único meio de espiar o meu crime e de terminar meus dias com honra
é impedir que os traidores se possam vangloriar de ter me tirado a vida". Tendo
assim falado, contemplou com olhares de compaixão e de furor toda sua família
que estava em redor dele; tomou seu pai pelos cabelos e matou-o com um golpe
de espada; fez o mesmo com a mãe, que o recebeu com alegria; não poupou
nem à esposa nem aos filhos, cada um dos quais lhe ia apresentando a
garganta, recebia de suas mãos o golpe mortal, antes que os inimigos o
fizessem. Depois da morte de pessoas que lhe eram tão caras, subiu àquele
monte de corpos e levantando o braço para que todos o pudessem ver, desferiu
tão tremendo golpe de espada em si mesmo, que morreu pouco depois. Se não
considerarmos nele essa força quase incrível e sua coragem heróica, ele seria,
sem dúvida, digno de compaixão. Mas sua união com estrangeiros, contra seu
próprio país, impede-nos que o lastimemos.
CAPÍTULO 35
CRUELDADE CONTRA OS JUDEUS EM DIVERSAS OUTRAS CIDADES, PARTICULARMENTE
EXERCIDA POR
 VARO.
213. Depois dessa carnificina em Citópolis, os habitantes das outras
cidades revoltaram-se também contra os judeus, que moravam entre eles. Os de
Ascalom mataram dois mil e quinhentos e os de Ptolemaida, dois mil. Os de
Tiro massacraram também a muitos, e meteram na prisão um número ainda
maior. Os de Hipom e de Gadara expulsaram de sua cidade os mais atrevidos e
vigiavam atentamente os que eles julgavam ainda suspeitos. Quanto às outras
cidades da Síria, agiram para com os judeus, segundo seu ódio ou temor os
impelia. Os de Antioquia, de Sidom e de Apaméia foram os únicos que os
pouparam: não mataram a nenhum nem os puseram na prisão, quer porque
nada temiam de seu número exíguo, ou melhor, segundo minha opinião, por
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compaixão que deles tiveram, não vendo probabilidade de revolta. Os de
Gerasa, do mesmo modo, não fizeram mal algum aos judeus, que quiseram
ficar com eles, e levaram até a fronteira os que desejavam se retirar.
214.
 O reino de Agripa não ficou também isento de semelhante
perseguição. Esse príncipe foi procurar Céstio Galo, em Cesaréia, e deixou para
governar o seu território, em sua ausência, um de seus amigos de nome Varo,
que era parente do rei Soheme. A província de Bataneia mandou-lhe os mais
ilustres e os mais importantes do país, por posição ou mérito, para lhe pedir
tropas, a fim de reprimir os que se tentavam sublevar. Mas, em vez de se dispor
a bem recebê-los, mandou, de noite, alguns soldados, que os mataram a todos;
depois de ter, contra a vontade do rei Agripa, tão cruelmente derramado o
sangue de seus irmãos, entregou-se a toda sorte de violências, às quais a
ambição que o havia levado a cometer tão grande crime, o impelia em todo o
reino. Quando o rei Agripa soube disso, tirou-lhe o governo, mas, por ser
parente do rei Soheme, não pôde mandar matá-lo.
CAPÍTULO 36
OS ANTIGOS HABITANTES DE A LEXANDRIA MATAM CINQÜENTA MIL JUDEUS
QUE LÁ SE HAVIAM ESTABELECIDO HÁ MUITO TEMPO E AOS QUAIS
 CÉSAR
TINHA DADO, COMO A ELES, DIREITO DE BURGUESIA.
215. Entretanto, os revoltados tomara o castelo de Cipros, que está na
fronteira de Jerico, e o destruíram, depois de ter matado todos os soldados que
lá estavam.
216. O que se passou nesse mesmo tempo, em Alexandria, obriga-me a
retomar os fatos de mais longe. Os antigos habitantes sempre tinham sido
contrários aos judeus, depois que Alexandre, o Grande, em recompensa pelos
serviços que lhe haviam prestado na guerra do Egito, lhes havia dado, naquela
grande cidade, o mesmo direito de burguesia que os gregos tinham. Seus
sucessores haviam conservado aos judeus seus privilégios, haviam-lhes
reservado um quarteirão à parte, para que não estivessem misturados com os
gentios e permitido usar o nome de macedônios. Os romanos, em seguida,
conquistaram o Egito; César e os imperadores, seus sucessores, tinham-lhes
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também sempre conservado os mesmos privilégios; mas eles viviam em
contínuas altercações com os gregos; os castigos impostos pelos magistrados a
uns e outros, em vez de eliminá-las, as aumentavam ainda mais.
Assim, a agitação, no que se refere aos judeus, embora grande, por toda a
parte, como vimos, era ainda maior em Alexandria. Os gregos ali se haviam reu-
nido para mandar embaixadores a Nero, com relação aos mesmos assuntos, e
vários judeus misturaram-se com eles. Logo os gregos puseram-se a gritar que
eles tinham vindo como inimigos, com o fim de impedi-lo e se lançaram contra
eles. Os judeus fugiram e só foram presos três, que eles fizeram queimar vivos.
Todos os outros reuniram-se em seguida e voltaram para arrebatá-los,
começando por lançar-lhes pedras e, com archotes na mão, correram para o
anfiteatro para atacá-los, ameaçando queimá-los a todos, e o teriam feito se
Tibério Alexandre, governador da cidade, não lhes tivesse contido o furor. Não
empregou a força para fazê-los compreender o seu erro, mas exortou-os, por
meio dos mais ilustres de sua nação, a não se indisporem com os romanos.
Esses revoltosos, porém, não somente zombaram de seus avisos e de seus
rogos, mas clamaram contra ele.
Dessa forma, vendo que tão grande revolta poderia ser perigosa se não se
lhe detivesse o curso, resolveu atacá-los com duas legiões romanas e cinco mil
soldados líbios, que, para infelicidade daqueles amotinados, lá se encontravam
por acaso; ordenou-lhes que não se contentassem de matá-los, mas lhes
saqueassem todos os bens e incendiassem as casas. A tropa marchou
imediatamente para o quarteirão da cidade chamado Delta, ocupado pelos
judeus, e com perda de muitos homens executaram as ordens recebidas. Os
judeus puseram à frente os mais bem armados e resistiram por muito tempo.
Mas foram postos em fuga e pereceram de diversos modos, pelo ferro e pelo fogo
que os romanos puseram em suas casas, depois de saqueadas. Vitoriosos, não
deram tréguas à crueldade; não respeitaram os velhos, nem tiveram compaixão
das crianças; mataram por toda a cidade e nos campos, sem fazer distinção de
idade. A morte de cinqüenta mil pessoas fez correr um dilúvio de sangue
naquela infeliz região; nem um só teria escapado ao seu furor, se Alexandre,
levado pela piedade por tão horrível carnificina, não lhe tivesse proibido a
continuação; como estavam acostumados a obedecer, detiveram-se logo, ao
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primeiro sinal. Os habitantes de Alexandria não fizeram o mesmo; seu ódio
excessivo pelos judeus os encarniçava de tal modo na luta, que com muita
dificuldade puderam contê-los e arrancar de suas mãos aqueles corpos
inanimados que eles ainda insultavam.
CAPÍTULO 37
CÉSTIO GALO, GOVERNADOR DA SÍRIA, ENTRA COM UM GRANDE EXÉRCITO
ROMANO NA JUDÉIA, ONDE DESTRÓI VÁRIAS PRAÇAS E FAZ GRANDES
DEVASTAÇÕES.
 MAS TENDO-SE APROXIMADO DE JERUSALÉM, OS JUDEUS
ATACAM-NO E O OBRIGAM A SE RETIRAR.
217. Céstio Galo, governador da Síria, vendo que os judeus eram tão
odiados por todos, julgou não dever, também, deixá-los em paz. Assim, tomou a
décima segunda legião, que ele tinha inteira em Antioquia, dois mil homens
escolhidos das outras legiões, seis coortes de outra infantaria, quatro
regimentos de cavalaria e três mil soldados de infantaria do rei Antíoco,
armados de flechas, mil cavaleiros e três mil soldados do rei Soheme, um terço
dos quais era de cavalaria. Dirigiu-se com as tropas a Ptolemaida, onde várias
cidades lhe trouxeram mais tropas, que não eram como as suas, na experiência
da guerra, mas que supriam a tal deficiência, pelo ódio que tinham aos judeus
e pela alegria com que marchavam contra eles.
O rei Agripa não somente ajudou Céstio com suas tropas e com sua
pessoa, mas também com seus conselhos; esse general do exército romano
avançou com uma parte da tropas para Zebulom, que é uma das cidades mais
fortes da Caliléia, a que chamam por esse motivo de Androm, isto é, a cidade
dos homens e que separa a Judéia de Ptolemaida. Encontrou-a deserta porque
os habitantes haviam fugido para as montanhas, mas cheia de toda espécie de
bens que ele deixou aos seus soldados. Admirou a beleza da cidade, cujas casas
não eram inferiores às de Tiro, de Sidom e de Berita, mas não deixou de
incendiá-las; depois de ter também saqueado as cidades dos arredores e
incendiado as aldeias que dela dependiam, voltou a Ptolemaida. Essa retirada
deu ânimo aos judeus que mataram mais de dois mil sírios, dos quais a maior
parte era de Berita e que o ardor do saque tinha feito ficar para trás.
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Céstio, ao partir de Ptolemaida, foi a Cesaréia e mandou na frente uma
parte de suas topas, contra a cidade de jope, com ordem de a conservar se
pudessem tomá-la, ou de esperar que ele chegasse com o restante do exército,
se os habitantes, avisados da sua chegada, se preparassem para defendê-la.
Em seguida, atacaram a praça, por mar e por terra, e tomaram-na sem
dificuldade, antes que os habitantes tivessem tido tempo nem de se salvar,
menos ainda, de se preparar para defendê-la. Foram todos mortos sem exceção.
Os vencedores não se contentaram de incendiar a cidade, saquearam-na e o
número de mortos elevou-se a oito mil e quatrocentos.
Céstio mandou também para a toparquia de Natbatana, vizinha de
Samaria, um corpo de cavalaria, que matou um grande número de habitantes,
conquistou ricos despojos e incendiou as aldeias.
Mandou ao mesmo tempo à Galiléia, Cesênio Galo, com a décima segunda
legião, que ele comandava e outras tropas que julgou necessárias, para se apo-
derar daquela província. A cidade de Séforis, que é a mais forte de todas as
praças, abriu-lhe as portas e as outras cidades, a seu exemplo, fizeram o mes-
mo. Mas os que preferiram a rebelião e a ladroeira retiraram-se para a monta-
nha de Azamom que atravessa a Galiléia e está situada em frente a Séforis.
Galo foi atacá-los; enquanto eles levaram vantagem, combatendo de um lugar
mais elevado, que o ponto em que se encontravam os romanos, não tiveram
dificuldade em repeli-los e mataram mais de duzentos. Mas quando viram que
tinham tomado e cercado todo o vértice da montanha, não resistiram mais; os
que estavam mal armados, nãó lhes podendo reter o ímpeto, fugiram e foram
assim dizimados pela cavalaria; houve mais de mil mortos e muito poucos se
salvaram em lugares ásperos e difíceis. Galo, então, vendo que nada mais havia
a fazer na Galiléia, ordenou o regresso para Cesaréia; Céstio, com todo o exér-
cito, foi para Antipátrida, onde, tendo sabido que um grande número de judeus
se havia retirado à torre de Afeque, mandou atacá-los ali; mas eles não
esperaram e os romanos depois de ter saqueado o lugar incendiaram as aldeias
dos arredores.
Céstio, ao partir de Antipátrida, foi a Lídia; lá só encontrou cinqüenta
habitantes porque o restante tinha ido a Jerusalém para celebrar a festa dos
Tabernáculos; mataram-nos todos; incendiaram-lhes as cidades e Céstio, em
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seguida, avançou por Betorom até Gabaom, onde acampou. Esta cidade dista
de Jerusalém apenas cinqüenta estádios.
218. Os judeus, vendo que a guerra se aproximava mui depressa de sua
capital, abandonaram as cerimônias dessa grande festa, sem mesmo santificar
o dia do sábado, que antes guardavam tão religiosamente e tomaram as armas.
Como tinham confiança em seu grande número, foram desordenadamente
atacar os romanos. Aquele furor, que os havia feito esquecer tantos deveres de
piedade, incitou-os de tal modo que lhes romperam as primeiras filas, abriram
uma passagem em seu batalhão, e buscaram a vitória com tanto ardor, que, se
a cavalaria não tivesse vindo em auxílio da infantaria, todo o exército romano
corria perigo de ser totalmente desbaratado. Eles só perderam vinte e dois
homens naquele combate; os romanos perderam quinhentos e quinze,
quatrocentos de infantaria e o restante da cavalaria. Monobazo e Senebeu,
parentes de Monobazo, rei de Adibene, Niger Peraite e Silas Babilônio, que
haviam deixado o rei Agripa, depois de tê-lo servido tanto tempo, distinguiram-
se nessa ocasião, do lado dos judeus.
Por fim, os judeus foram repelidos e os romanos retiraram-se para
Betorom. Cioras, filho de Simão, atacou-lhes a retaguarda, matou vários e
tomou grande número de carros de bagagem, que levou para Jerusalém. Céstio
ficou três dias sem ousar avançar, nessa retirada, porque os judeus que se
haviam apoderado dos lugares elevados em seu caminho, vigiavam-no
constantemente e davam bem a conhecer que se ele se tivesse posto em
marcha, tê-lo-iam atacado.
CAPÍTULO 38
O REI AGRIPA MANDA DOIS GENERAIS AOS REVOLTOSOS PARA PROCURAR
TRAZÊ-LOS À OBEDIÊNCIA.
 E LES MATAM UM DESTES E FEREM O OUTRO E
NÃO OS QUEREM OUVIR.
 O POVO DESAPROVA VIVAMENTE ESSE ATO.
219.
 O rei Agripa vendo que aquela incrível multidão de judeus, que
ocupava todas as montanhas e as colinas, fazia os romanos correrem grave
perigo, resolveu tentar trazê-los pela doçura à obediência, na esperança de que,
se conseguisse o seu intento, faria também terminar a guerra; ou, se não
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pudesse persuadi-los a todos, pelo menos conquistaria uma parte deles.
Mandou-lhes para isso Borceu e Febo, dois dos seus generais, que lhes eram
muito conhecidos, com o encargo de lhes prometer em nome de Céstio, um
inteiro esquecimento do passado, se eles deixassem as armas e voltassem ao
dever. Os mais exaltados, temendo que a esperança de viver em paz, sem nada
temer, levasse o povo a seguir esse conseIho do príncipe, resolveram matar os
enviados. Assim, sem lhes dar oportunidade de falar, mataram Febo, e Borceu
salvou-se muito ferido. O povo reprovou de tal maneira essa má ação, que
obrigou os revoltosos, a pedradas e a cacetadas, a fugirem da cidade.
CAPÍTULO 39
C ÉSTIO SITIA O TEMPLO DE JERUSALÉM E TÊ-LO-IA TOMADO, SE NÃO TIVESSE
IMPRUDENTEMENTE LEVANTADO O CERCO.
220. Céstio, querendo aproveitar a confusão, marchou contra os
revoltosos, pô-los em fuga e os perseguiu até Jerusalém. Acampou a sete
estádios da cidade, em um lugar chamado Escopo; lá ficou três dias sem
atacar, na esperança de que, durante esse tempo, eles voltassem ao dever e
contentou-se em mandar seus soldados buscar trigo nas aldeias vizinhas.
No quarto dia, que era o dia treze de outubro, marchou, em boa ordem,
contra a cidade com todo seu exército, e os judeus ficaram tão surpreendidos e
atônitos com a disciplina dos romanos, que abandonaram a cidade e se
retiraram ao Templo. Céstio, depois de ter atravessado Beseta, Scenópolis e o
mercado, a que chamam o mercado dos materiais, e tê-lo incendiado,
aquartelou na cidade alta, perto do palácio real; se tivesse então dado assalto,
ter-se-ia apoderado de Jerusalém e teria posto fim à guerra. Mas Tirano e
Prisco, marechais de campo e vários oficiais de cavalaria, dissuadiram-no desse
intento e foram causa de que, pela longa duração que depois teve essa guerra,
de que os judeus sofressem males incomparavelmente maiores do que aqueles
que então teriam sofrido.
Entretanto, Anano, filho de Jônatas, e vários outros dos principais dos
judeus mandaram dizer a Céstio que lhe abririam as portas. Quer pela cólera,
quer porque julgava não poder crer neles, desprezou esse oferecimento; os
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revoltosos, então, vieram a saber da intenção de Anano e dos outros que o
seguiam e perseguiram-no tão fortemente a pedradas, que os obrigaram a se
lançarem do alto da muralha para se salvar.
Dividiram-se, em seguida, pelas torres, para defendê-las e sustentaram
durante cinco dias, com tanta força, o ataque dos romanos, que os tornaram
inúteis. No sexto dia, Céstio, com um grande número de tropas escolhidas e de
soldados que atiravam flechas, atacou o Templo do lado do norte; os judeus
lançaram-lhes dardos do alto dos pórticos e os obrigaram diversas vezes a recu-
ar. Mas, por fim, os da primeira linha dos romanos, cobriram-se com os escu-
dos, apoiando-os contra os muros; os que os seguiam uniram também os escu-
dos a estes, e assim os outros fizeram em fila a mesma coisa e formaram aquela
espécie de couraça a que dão o nome de tartaruga; pondo-se a salvo dos dardos
e das flechas dos judeus, trabalharam com segurança para derribar o muro e
incendiar as portas do Templo. Os sediciosos ficaram tão assustados que, se
julgando perdidos, vários fugiram para fora da cidade; mas o povo, ao contrário,
sentiu alegria e só pensava em abrir as portas a Céstio, que consideravam como
seu benfeitor, porque lhes dava os meios de se libertar da tirania daqueles
revoltosos. Assim, se esse general tivesse continuado o cerco, teria logo se
apoderado da cidade; mas Deus, irritado contra aqueles malvados, não permitiu
que a guerra acabasse logo.
CAPÍTULO 40
OS JUDEUS PERSEGUEM CÉSTIO EM SUA RETIRADA, MATAM-LHE GRANDE NÚMERO DE
HOMENS E O OBRIGAM A USAR DE UM ESTRATAGEMA PARA SE SALVAR.
221. Céstio foi tão mal informado do desespero dos revoltosos e do afeto
do povo por ele, que levantou o cerco, quando mais tinha motivo de esperar ser
bem-sucedido em seu empreendimento. Os sitiados, considerando uma retirada
tão improvisada, como uma fuga, retomaram ânimo, atacaram-lhes a
retaguarda e mataram alguns cavaleiros e soldados de infantaria. Céstio alojou-
se naquele mesmo dia no acampamento que havia fortificado perto de Scopur e
continuou a marcha no dia seguinte. Essa precipitação aumentou ainda mais a
coragem dos judeus. Continuaram a atacar as suas últimas tropas, mataram
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ainda outros, porque o caminho, por onde os romanos marchavam, era fechado
por estacas e eles lançavam-lhes dardos e os feriam por trás, sem que estes
lhes voltassem o rosto, porque imaginavam-se perseguidos por uma multidão
infinita de homens, além de que, estando armados pesadamente, não ousavam
romper as fileiras, tendo que enfrentar inimigos tão dispostos e tão ágeis, que
se viam por todos os lados quase ao mesmo tempo. Assim sofriam muito do
ataque dos judeus e não lhes podiam causar mal algum.
Aquela retirada continuou dessa maneira até que os romanos, depois de
ter perdido, além de vários soldados, Prisco, que comandava a sexta legião,
Longino, Tribuno, Emílio Jucundo, mestre de campo de um regimento de
cavalaria e de terem sido obrigados a abandonar muitas bagagens, chegaram a
Gabaom, onde tinham acampado antes. Céstio aí passou dois dias, sem saber a
que se resolvem-mas, vendo, no terceiro dia, que o número dos inimigos crescia
sempre mais e que eles tomavam todos os lugares vizinhos, julgou que a
demora ser-lhe-ia prejudicial e, se ele retardasse mais a sua partida, teria mais
inimigos ainda para enfrentar.
Assim, para facilitar a fuga, ordenou que se abandonasse toda a bagagem,
que matassem os burros, as mulas e os outros animais de carga, com exceção
dos que lhes eram necessários para levar os dardos e as máquinas; mas,
temiam que estes mesmos caíssem nas mãos dos inimigos. Suas tropas
marcharam então para Betorom, sem que os judeus os atacassem, enquanto
estavam em lugares espaçosos e descobertos, mas quando os viam em
passagens estreitas e nas descidas, atacavam-nos pela frente, para impedir que
avançassem, e pela retaguarda, para impeli-los ainda mais para os vales; onde,
como eles ocupavam as elevações e eram em grande número, dizimavam-nos a
golpes de flechas. A infantaria romana encontrava-se nessa situação, mas a
cavalaria ainda estava em muito maior perigo, porque aquela grande
quantidade de flechas impedia-lhe conservar as colunas na marcha, e aqueles
lugares difíceis e escarpados não lhes permitiam enfrentar os inimigos. Por
outro lado, como os judeus ocupavam todos os rochedos e todos os vales, os
que pensavam ali se refugiar, eram logo mortos.
Os romanos, vendo-se obrigados a não poder combater, nem fugir,
ficaram tão desesperados, que soltavam imprecações e uivos de raiva, bem
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como derramavam lágrimas de aflição. Os judeus, ao contrário, soltavam gritos
de alegria, continuando sempre a atacá-los e a matá-los; todo o ar ressoava
com esses clamores de alegria e de dor. Se a noite, que deu aos romanos
ocasião de se salvar em Beterom, não tivesse sobrevindo, o exército de Céstio
teria sido totalmente destruído.
Os judeus rodearam-nos em seguida de todos os lados e vigiavam todas
as passagens para impedir que eles saíssem; assim Céstio, vendo que não podia
enfrentá-los abertamente, pensou em organizar a retirada. Escolheu entre seus
soldados os mais valentes, que ele mandou subir ao teto das casas, com ordem
de gritar bem alto: Quem vem lá? Como fazem as sentinelas, a fim de fazer os
inimigos pensarem que o exército não havia deixado o acampamento. Partiu
depois com todo o restante e o fez sem rumor, trinta estádios de caminho.
Quando os judeus viram pela manhã que os romanos se tinham retirado,
lançaram-se sobre os quatrocentos homens, mataram-nos a flechadas e
puseram-se em perseguição a Céstio. Mas se ele caminhara com tanta rapidez
durante a noite, com muito mais pressa ainda marchou durante o dia, e o
espanto de seus soldados foi tão grande, que eles abandonaram todas as
máquinas para os assaltos. Os judeus, delas mesmas se serviram utilmente
contra eles e depois de os ter perseguido até Antipátrida, vendo que não podiam
alcançá-los, retiraram-se com as máquinas, despojaram aos mortos, reuniram
todos os despojos e voltaram a Jerusalém com clamores de vitória, tendo
perdido poucos homens apenas, ao passo que do lado dos romanos o número
de mortos tanto de suas próprias tropas, como das auxiliares, foi de quatro mil
soldados de infantaria e trezentos e oitenta de cavalaria. Isso aconteceu no
oitavo dia de novembro do décimo segundo ano do reinado de Nero.
CAPÍTULO 41
CÉSTIO QUER FAZER CAIR SOBRE FLORO A CAUSA DO INSUCESSO DE SUA
RETIRADA .
 OS DE DAMASCO MATAM À TRAIÇÃO DEZ MIL JUDEUS QUE
MORAVAM EM SUA CIDADE.
222. Depois de tão infeliz retirada de Céstio, vários dos principais dos ju-
deus saíram de Jerusalém, como quem sai de um navio prestes a naufragar.
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Costobaro e Saul, que eram irmãos, e Filipe, filho de Joaquim, que tinha sido
general do exército do rei Agripa, juntaram-se a Céstio. Direi em outro lugar de
que modo Antipas, que tinha sido cercado com eles no palácio real, não tendo
querido fugir, foi morto por aqueles sediciosos. Céstio mandou Saul e os outros
a Nero na Acaia, para informá-lo de sua retirada e lançar a culpa do insucesso
sobre Floro, a fim de lhe acalmar a cólera contra ele, fazendo-a cair sobre um
terceiro.
223.
 Os habitantes de Damasco, tendo sabido da derrota do exército
romano, resolveram massacrar os judeus que moravam entre eles. Mas como a
maior parte de suas mulheres tinha abraçado a nossa religião, eles usaram de
todo cuidado para lhes ocultar sua intenção. Aproveitaram a oportunidade
quando todos estavam reunidos no lugar dos exercícios públicos; esse lugar é
muito estreito e os judeus não estavam armados; assim, mataram sem
dificuldade uns dez mil.
CAPÍTULO 42
OS JUDEUS NOMEIAM CHEFES PARA O COMANDO DA GUERRA QUE FAZIAM
CONTRA OS ROMANOS, DENTRE OS QUAIS ESTAVA
 JOSEFO, AUTOR DESTA
HISTÓRIA AO QUAL ELES DÃO O GOVERNO DA ALTA E DA BAIXA
 GALILÉIA.
GRANDE DISCIPLINA QUE ELE OBTÉM A EXCELENTES ORDENS QUE DÁ.
224. Aqueles que haviam perseguido a Céstio voltaram a Jerusalém e
empregavam a força e a doçura para atrair ao seu partido os que estavam do
lado dos romanos; reuniram-se no Templo e elegeram os chefes para a direção
da guerra, josefo, filho de Goriom, e o sacerdote Anano foram escolhidos para
tomar conta da cidade e para mandar reerguer-lhe as muralhas. A Eleazar, filho
de Simão, embora tivesse se enriquecido com os despojos dos romanos, e
tomado o dinheiro que pertencia a Céstio e tirado também grande quantidade
do tesouro público, entretanto, porque viam que ele aspirava a um governo
tirânico e se servia como de guardas daqueles que eram de sua maior
confiança, não lhe deram cargo algum. Mas ele pouco a pouco conquistou de tal
modo o povo, por sua habilidade, pelo modo como se servia de seus bens, que o
persuadiu a lhe obedecer em tudo.
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Foi escolhido para comandar o exército da Iduméia, Jesus, filho de Safas,
um dos grandes sacerdotes, e Eleazar, filho do novo sumo sacerdote;
mandaram a Niger, então governador daquela província, originário de além do
Jordão, e que por isso tinha o apelido de Peraite, que lhe obedecesse.
Mandaram José, filho de Simão, a Jerico, Manasses, para além do rio, e
João, essênio, a Tamna, à qual se juntaram Lida, Jope e Amaús, para governá-
las em forma de toparquia. João, filho de Ananias, foi também escolhido para
governar a Gofnítida e Acrabatana; e Josefo, filho de Matias,* para exercer um
cargo semelhante na alta e na baixa Galiléia, acrescentando-se ao seu governo
Gamai, que é a praça mais forte de todo o país.
____________________________
* Este Josefo é o autor desta história.
225. Cada um desses governadores desempenhou o seu cargo, segundo
suas possibilidades, e sua vontade os tornava mais ou menos capaz. O primeiro
cuidado de Josefo foi conquistar o afeto do povo, para tirar grandes vantagens e
reparar assim as faltas que pudesse cometer. Para conquistar também os mais
poderosos, dividindo com eles a sua autoridade, escolheu setenta dos mais
sábios e dos mais hábeis, que constituiu administradores da província e deu
assim àqueles povos a alegria de serem governados por pessoas do próprio país
e conhecedores dos seus costumes. Além disso estabeleceu em cada cidade sete
juizes para julgar as pequenas causas, segundo a forma que ele lhes havia
determinado. Quanto às grandes, reservou para si mesmo o julgamento.
Depois de ter deste modo organizado todas as coisas no interior, levou sua
solicitude ao que se referia à segurança do exterior. Como ele não duvidava de
que os romanos viriam com armas àquela província, mandou cercar de
muralhas as praças da baixa Galiléia, que achou dever maximamente fortificar,
a saber: Jotapate, Betsaneia, Salamina, Perecho, )afa, Sigogue, Tariqueia,
Tibenades, o monte Itaburim e as cavernas que estão perto do lago de
Genesaré.
Na alta Galiléia mandou também fortificar Petra, outrora chamada
Acabarom, Sefte, Jamnite e Mero; na Galaunita, Selêucia, Sogam e Gamala. Os
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habitantes de Séforis foram os únicos aos quais ele permitiu rodear sua cidade
de muralhas, porque eram ricos, inclinados à guerra e difíceis de se governar.
Mandou também a João, filho de Levias, que cercasse de muralhas Scala. Ia às
demais praças pessoalmente verificar os trabalhos e fazer que os apressassem.
Recrutou quase cem mil homens na Galiléia, todos jovens e muito aptos
para a guerra; deu-lhes armas velhas, que pôde obter em vários lugares, e como
sabia que o que tornava os romanos maximamente invencíveis eram a
obediência e a disciplina, e via que o tempo não lhe permitia exercitar seus
homens tanto quanto ele desejara, julgou dever pelo menos torná-los
obedientes. Para isso contribuiu eficazmente o número de comandantes; ele
lhos deu, à imitação dos romanos, muitos oficiais e chefes. Além dos oficiais
superiores, havia mestres-de-cam-po e outros; criou também grande número de
oficiais inferiores, ensinou-lhes as várias maneiras de toques, a saber, alarme,
ataque e retirada; como as tropas que ainda estão intactas devem sustentar as
desbaratadas, e as que ainda não combateram, substituir as tropas cansadas,
para com elas dividir o perigo, instruía-os em tudo o que lhes podia fortalecer a
coragem e acostumar-lhes o corpo ao perigo e à fadiga. Falava-lhes
principalmente da disciplina dos romanos, que era rígida e extrema, e que eles
tinham de combater contra homens, cuja força corporal unida a uma invencível
firmeza de alma, tinha conquistado quase todo o mundo. Acrescentava que, se
eles lhe queriam demonstrar a obediência que lhe prestariam na guerra, deviam
renunciar ao roubo, à pilhagem, aos assaltos, não fazer injustiça aos da própria
nação, nem se deixar levar pelo desejo de se aproveitar do prejuízo dos
conhecidos e parentes, pois é impossível ser bem-sucedido na guerra quem age
contra a consciência, e os maus são odiados, não somente pelos homens, mas
também pelo próprio Deus. Deu-lhes várias outras instruções e já tinha
quantos soldados desejava; seu número elevava-se a setenta mil de infantaria e
duzentos e cinqüenta cavaleiros, quatro mil e quinhentos estrangeiros, que ele
tinha contratado, nos quais depositava muita confiança, e seiscentos guardas
para sua pessoa; todos homens escolhidos. Essas tropas, exceto os es-
trangeiros, eram mantidas pelas cidades, que os sustentavam de boa mente, e
sem serem incomodadas, porque cada uma das de que falei mandava a metade
de seus habitantes para a guerra e a outra metade fornecia-lhe viveres,
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provendo assim por uma assistência mútua a segurança e a subsistência uns
dos outros.
CAPÍTULO 43
PLANOS CONTRA JOSEFO, FORMULADOS POR JOÃO DA GISCALA, UM HOMEM
MUITO MAU.
 DIVERSOS PERIGOS GRAVES QUE JOSEFO CORRE E DE COMO SE
LIVROU DELES E OBRIGOU
 JOÃO A SE ENCERRAR EM GISCALA, DE ONDE
FUGIU, E COMO OS PRINCIPAIS DE
 JERUSALÉM MANDAM SOLDADOS E
QUATRO PESSOAS DE POSIÇÃO PARA DESTITUIR
 JOSEFO DO GOVERNO. JOSEFO
MANDA PRENDER ESSES DELEGADOS E OS ENVIA A
 JERUSALÉM ONDE O
POVO QUER MATÁ-LOS.
 ESTRATAGEMA DE JOSEFO PARA RETOMAR TIBERÍADES
QUE SE HAVIA REVOLTADO CONTRA ELE.
226. Enquanto Josefo procedia desse modo na Galiléia, João, filho de
levitas, de Giscala, aparece em cena. Ele era muito mau, muito astuto, fingido e
um grande mentiroso. A fraude para ele era uma virtude, dela usava mesmo
com quem mantinha cordiais relações de amizade. Sua ambição não tinha
limites; quanto mais crimes ele cometia, mais se fortalecia em suas esperanças.
A miséria em que ele se via, então, tinha-o impedido durante certo tempo de
mostrar até onde ia sua maldade. No começo, roubava sozinho, mas depois,
outros se uniram a ele nesse infame mister; seu número crescia sempre e ele só
recebia os que tinham tanta coragem quanto força física e experiência de
guerra. Depois que ele reuniu uns quatrocentos, dos quais a maior parte eram
tírios, fugitivos, começou a saquear a Galiléia; matou muitos aos quais o temor
da guerra tinha levado a fugir. Como aspirava as coisas maiores, desejou
comandar tropas organizadas e somente por falta de dinheiro não o fez.
Quando viu que Josefo o considerava como um homem de préstimos, per-
suadiu-o a lhe entregar o encargo de fortificar Giscala. Ganhou muito com isso,
porque levou a esse fim os mais ricos; em seguida, obteve que Josefo ordenasse
a todos os judeus que moravam na Síria, que não mandassem óleo aos lugares
vizinhos, sem passar pela sua nação. Comprou então uma grande quantidade;
quatro medidas custavam-lhe uma moeda tíria, que valia quatro áticas e
obtinha o mesmo preço da metade de uma dessas quatro medidas. Assim, como
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a Galiléia é muito rica de óleo, tinha recolhido, em certo ano, uma quantidade
muito grande, e ele era o único que fornecia aos que necessitavam; obteve um
lucro extraordinário, do qual se serviu contra aquele mesmo a quem devia tal
favor. Depois, na esperança de que, se josefo fosse destituído do governo, ele
poderia substituí-lo, ordenou aos ladrões que ele comandava que saqueassem
toda a região, a fim de que com a província perturbada, pudesse matar josefo à
traição, se ele quisesse impedi-lo, ou acusá-lo e torná-lo odioso aos seus, se se
descuidasse dos deveres do seu cargo. Para melhor obter o seu intento, fez
correr a notícia por toda a parte de que Josefo tinha resolvido entregar aquela
província aos romanos; e não houve estratagemas de que ele não se servisse,
também, para matá-lo.
227. Dessa forma, alguns moços da aldeia de Abarite, que montavam
guarda no Campo Grande, atacaram Ptolomeu, intendente do rei Agripa e da
rainha Berenice, e saquearam toda a bagagem que ele conduzia, na qual havia
uma grande quantidade de ricos vestuários, vasos de prata e seiscentas peças
de ouro. Como não podiam esconder aquele furto, levaram-no a josefo, que
então estava em Tariquéia. Ele os repreendeu severamente por terem usado de
violência contra os homens do rei e ordenou-lhes que entregassem a Enéias,
um dos principais habitantes da cidade, tudo o que haviam tomado. Essa ação
de justiça podia ter-lhe custado a vida; os que haviam cometido o furto ficaram
tão irritados por não poder aproveitar, pelo menos uma parte dele, porque
julgavam que josefo ia entregá-lo ao rei e à rainha, sua irmã, que foram de noite
dizer a todas as aldeias que Josefo era um traidor, e espalharam assim, de tal
modo, essa notícia pelas cidades que, no dia seguinte de manhã, cem mil
homens tomaram as armas e se dirigiram para o hipódromo perto de Tariquéia,
onde clamavam furiosamente: uns, que era preciso apedrejá-lo, outros, que
deviam queimá-lo, e João e Jesus, filhos de Safas, então magistrados em
Tiberíades, tudo fizeram para animá-los ainda mais. Os amigos e os guardas de
Josefo ficaram tão assustados por ver aquela grande multidão tão irritada
contra ele, que fugiram; menos quatro. Mas ele estava dormindo; já iam
incendiar sua casa quando despertou. Os quatro que não o tinham abandonado
exortaram-no a fugir. Mas ele, sem se espantar, vendo a quantidade de gente
que o vinha atacar, embora sozinho, apresentou-se corajosamente a eles, com
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as vestes rasgadas, com cinzas na cabeça, mãos às costas e a espada
pendurada ao pescoço. As pessoas que lhe eram afeiçoadas e, particularmente,
os de Tariquéia, ficaram muito penalizadas e cheias de compaixão, mas os
camponeses e o povo dos lugares vizinhos, que achavam que ele os
sobrecarregava com muitos impostos, ultrajaram-no com palavras, dizendo que
era preciso que ele restituísse o dinheiro do povo e confessasse a traição que
havia cometido, pois, vendo-o naquele estado, imaginavam que ele nada negaria
do que o acusavam e o que ele fazia era somente para movê-los à compaixão e à
piedade, a fim de que o perdoassem. Então, como seu intento era dividi-los,
prometeu confessar-lhes a verdade e falou-lhes deste modo: "Jamais tive o me-
nor pensamento de entregar esse dinheiro ao rei Agripa, nem de me aproveitar
dele. Deus me livre de ser amigo de um príncipe que é vosso inimigo ou de
querer tirar proveito de uma coisa que vos seria prejudicial. Mas — acrescentou
ele, dirigindo-se aos habitantes de Tariquéia — vendo que vossa cidade precisa
ser fortificada, que vós precisais de dinheiro para executar essas obns e que os
de Tiberíades e das outras cidades desejam apoderar-se dessas riquezas, eu
resolvi empregá-las em fazer rodear a cidade de muralhas. E se vós não o
quereis, estou pronto a vos entregar o que foi roubado para que disponhais de
tudo como quiserdes, mas, se, ao contrário, tendes alguma idéia da intenção
que eu tive de vos ser agradável, vós estais obrigados a me defender."
Estas palavras comoveram de tal modo os habitantes de Tariquéia, que
lhe fizeram grandes elogios. Os de Tiberíades, ao contrário, e os outros ficaram
mais irritados contra ele e o ameaçavam mais que nunca. Naquela diversidade
de sentimentos, em vez de continuar a falar-lhe, começaram a discutir entre si;
e, então, Josefo, confiando no grande número dos que lhe eram favoráveis, pois
os de Tariquéia eram uns quarenta mil, começou a falar com mais ardor a toda
a multidão. Não teve medo de censurar sua pretensão e de dizer em voz alta
que era preciso empregar aquele dinheiro em fortificar Tariquéia; que ele se
encarregava de fortificar também a outras cidades e não lhes faltaria dinheiro,
contanto que se unissem contra aqueles de quem era necessário tirar e não
contra aquele que os podia fazer obter.
A multidão, enganada daquela maneira, retirou-se; mas dois mil homens
dos que estavam irritados contra ele foram armados sitiar sua casa, com
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grandes ameaças; nesse novo perigo, ele usou de um outro estratagema. Subiu
ao lugar mais alto do edifício, de onde, depois de ter acalmado o barulho,
fazendo-lhes sinal com a mão, disse-lhes que ele nada podia ouvir no meio de
tanto barulho, de vozes confusas, o que desejavam dele. Mas, se quisessem
mandar-lhe alguns homens com os quais confabular, ele estava pronto a fazer
tudo o que quisessem. A essa proposta os principais e os magistrados foram
procurá-lo. Ele fechou-lhes as portas, levou-os às salas mais afastadas do
edifício, onde os fez açoitar severamente; de tal modo eles ficaram feridos que se
lhes viam as costelas e depois os mandou embora. A multidão que esperava o
resultado da conferência, julgava que eles estavam discutindo condições, mas
ficou tão assustada por vê-los tão ensangüentados, que todos fugiram.
A dor que João sentiu aumentou-lhe ainda mais a raiva e inveja de
Josefo, que fê-lo usar de novos recursos. Fingiu estar doente e escreveu-lhe,
pedindo-lhe permissão para tomar banhos quentes em Tiberíades. Como Josefo
ainda
 não
 desconfiava
 dele,
 mandou-lhe
 uma
 carta
 endereçada
 aos
governadores da cidade, pela qual lhe rogava que lhe dessem hospedagem e as
coisas de que necessitava. Dois dias depois da sua chegada, ele enganou alguns
e subornou outros com dinheiro para induzi-los a abandonar a Josefo. Silas,
que Josefo tinha deixado para a guarda da cidade, tendo sabido de tudo, foi
logo avisá-lo, e embora fosse noite, quando recebeu a carta, partiu no mesmo
instante e chegou bem cedinho a Tiberíades. Todo o povo, exceto os que tinham
sido comprados com o dinheiro, foi ao seu encontro; mas como João
desconfiava do motivo que o levava para lá, mandou um de seus amigos para
apresentar-lhe desculpas, por não poder ir prestar-lhe suas homenagens,
porque a enfermidade o obrigava a ficar no leito. O traidor, tendo sabido depois
que Josefo tinha feito reunir os habitantes no lugar dos exercícios públicos,
para lhes falar a respeito do aviso que lhe haviam dado, mandou soldados para
matá-lo. Quando o povo os viu sacar das espadas, soltou um grito e Josefo
voltou-se, quando já eles miravam-lhe a garganta; desceu de um pequeno
estrado, alto seis côvados, sobre o qual tinha subido para falar, correu para o
lago somente com dois de seus guardas e fugiu num pequeno barco.
Os soldados que ele mantinha tomaram imediatamente as armas para
castigar aqueles assassinos. Mas como ele temia que se houvesse uma guerra
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civil, o crime de alguns particulares causasse a desgraça de toda a cidade,
achou melhor então pensar somente na sua segurança, sem matar a ninguém,
nem acusar quem quer que fosse; e eles obedeceram.
Os habitantes dos arredores souberam da traição e conheceram-lhe o
autor; reuniram-se então para marchar contra João e ele fugiu para Giscala. Os
moradores de todas as cidades da Galiléia foram depois armados e em grande
número procurar Josefo e disseram que eles vinham para servi-lo contra João,
traidor e comum inimigo, e incendiar a cidade que o havia recebido. Ele
respondeu que lhes louvava muito a dedicação, mas pedia-lhes que não se
deixassem levar pelo entusiasmo, porque preferia confundir seus inimigos com
a moderação, que destruí-los pela força. Contentou-se em ter os nomes dos que
tinham conspirado com João, que cada cidade declarou de boa vontade e
mandou publicar, a som de trombeta, que seriam confiscados seus bens e
queimadas suas casas e as de todas as famílias dos que não abandonassem
dentro de cinco dias àquele traidor. Essa declaração fez tanto efeito que três mil
homens abandonaram João e vieram ter com Josefo, lançando as armas aos
seus pés.
228.
 João, vendo-se sem esperança de poder abertamente vencer a
Josefo, retirou-se com dois mil tírios fugitivos, que lhe restavam, mas pensou
em vencê-lo por meio de algum estratagema ou da traição: enviou homens
secretamente a Jerusalém, para acusá-lo de organizar um exército e apoderar-
se da cidade. O povo, que tinha sido informado de uma parte do que se havia
passado, não fez caso da acusação, mas os principais da cidade e alguns
magistrados mandaram ocultamente dinheiro a João, para que ele reunisse
tropas e fizesse guerra a Josefo. Organizaram uma conspiração para lhe tirar o
governo das tropas que ele tinha, a fim de executar esse intento. Mandaram
dois mil e quinhentos homens e outras pessoas de condição, isto é, Joazar, ou
Gozar, filho de Nomico, Ananias, saduceu, Simão e Judas, filhos de Jônatas,
todos peritos nas nossas leis e mui eloqüentes, a fim de dissuadir os povos da
fidelidade que mantinham a Josefo e com ordem de, se ele de boa vontade
prestasse contas de suas ações, não lhe usassem de violência, e se recusasse
isso, tratassem-no como inimigo.
229. Os amigos de Josefo avisaram-no de que vinham contra ele muitos
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soldados, mas não lhe puderam dizer qual o motivo, porque todos mantinham
searedo. Assim, Citópolis, Gamala, Giscala e Tiberíades declararam-se contra
ele antes que ele pudesse intervir. Delas, porém, ele apoderou-se sem violência
e prendeu também, com sua habilidade, aqueles quatro enviados e os
principais dos que tinham tomado as armas contra ele. Mandou-os a
Jerusalém, onde o povo de tal sorte se alvoroçou contra eles que se não
tivessem fugido, tê-los-ia matado, bem como os que eles tinham enviado.
230. O medo que João tinha de Josefo conservava-o retirado, em Giscala;
poucos dias depois, os habitantes de Tiberíades, tendo-se ainda revoltado
contra Josefo, mandaram dizer ao rei Agripa que lhe entregariam a cidade.
Marcou o dia para saber a resposta do oferecimento, mas não compareceu.
Alguns cavaleiros romanos chegaram e então revoltaram-se contra Josefo. Ele
recebeu essa notícia em Tariquéia e como tinha mandado todos seus soldados
para trazer trigo, ele encontrou-se em grave dificuldade, porque, de um lado,
não ousava marchar sozinho contra aqueles desertores que o tinham
abandonado, e, por outro, não se podia decidir a ficar inativo, com medo de que
as tropas do rei se apoderassem da cidade, além de que no dia seguinte, sendo
sábado, não lhe era permitido agir.
Por fim, formulou um plano, que deu resultado: para impedir que dessem
aviso aos de Tiberíades, mandou fechar todas as portas de Tariquéia. Tomou
depois as barcas do lago, em número de duzentas e trinta, pôs quatro homens
em cada uma e navegou bem cedo para Tiberíades. Quando estava a tal distân-
cia da cidade, quando não podia ainda ser bem percebido, ordenou a todos os
homens que parassem e batessem na água com os remos. Ele, acompanhado
então por sete de seus guardas, que não estavam armados, adiantou-se para
bem perto a fim de poder ser reconhecido pelos de Tiberíades. Seus inimigos,
que continuavam a falar ofensivamente contra ele, do alto das muralhas da
cidade, ficaram surpreendidos por vê-lo; aquele grande número de barcos, ao
longe, que eles julgavam cheios de soldados, assustou-os de tal modo, que
atiraram as armas e rogaram-no de mãos juntas, que os perdoasse e à sua
cidade. Ele começou por fazer-lhes grandes ameaças e graves censuras; tendo
empreendido a guerra contra os romanos, eles consumindo suas forças em
lutas domésticas, davam a maior das vantagens ao inimigo. Disse que era uma
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coisa horrível a intenção que tinham de mandar matar seu governador, do qual
deviam esperar o maior auxílio, e corar de vergonha, por recusar abrir-lhe as
portas de uma cidade que ele tinha rodeado de muralhas; entretanto, queria
perdoá-los, contanto que lhe enviassem alguns embaixadores para lhe dar
satisfação.
Mandaram-lhe imediatamente dez dos mais ilustres da cidade. Ele os pôs
numa barca que enviou para muito longe; pediu em seguida que lhe mandasse
cinqüenta Senadores, dos mais importantes, a fim de receber também sua pala-
vra e continuou com o mesmo pretexto a pedir outros até que teve em suas
mãos todo o Senado de Tiberíades, cujo número era de seiscentos, e dois mil
outros habitantes. E à medida que eles vinham, mandava-os como prisioneiros
a Tariquéia, nas barcas que estavam vazias.
Todo o povo então se pôs a gritar que Clito tinha sido o principal autor da
sedição e que ele se contentasse em mandar castigá-lo. josefo, que não queria a
morte de ninguém, ordenou a Levias, um de seus guardas, que fosse cortar as
mãos de Clito; mas aquele guarda, assustado por se ver sozinho no meio de
tantos inimigos, não teve coragem de executar a ordem. Clito, vendo que Josefo
ficara encolerizado e queria vir em pessoa castigá-lo, como seu crime merecia,
rogou-lhe que lhe deixasse pelo menos uma das mãos. Ele o consentiu, desde
que ele mesmo cortasse uma; imediatamente Clito puxou da espada e cortou a
mão esquerda. Desse modo, e com tal estratagema, Josefo, somente com sete
soldados e barcas vazias, reconquistou Tiberíades.
231. Alguns dias depois permitiu às suas tropas saquear Giscala e
Séforis, que se tinham revoltado. Mas restituiu aos habitantes o que pôde
reaver do saque e fez o mesmo com os de Tiberíades, para castigá-los de uma
parte do prejuízo que recebiam em seus bens e reconquistar por outro, seu
afeto, pela restituição que lhes mandava fazer.
CAPÍTULO 44
OS JUDEUS PREPARAM-SE PARA A GUERRA CONTRA OS ROMANOS. R OUBOS E
DEVASTAÇÕES FEITOS POR
 SIMÃO, FILHO DE GIORAS.
232.
 Depois que terminaram as dissensões domésticas que haviam
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acontecido somente na Galiléia, todos pensaram, então, somente em se
preparar para a guerra contra os romanos. O sumo sacerdote Anano e os
maiorais de Jerusalém, que lhes eram inimigos, apressaram-se em levantar as
muralhas da cidade, reunir grande número de máquinas e mandar forjar
armas. Toda a mocidade exercitava-se, para bem servir, e o ardor de tão grande
movimento enchia tudo de agitação e de tumulto. Os mais sensatos e os mais
judiciosos, prevendo as desgraças que lhes iam suceder, tinham o coração
amargurado e não podiam reter as lágrimas. Aqueles, ao contrário, que
alimentavam o fogo da guerra, sentiam prazer em se nutrir de vãs esperanças;
Jerusalém estava em tal estado, que a infeliz cidade cavava ela mesma sua
ruína, como se quisesse arrebatar aos romanos a glória de destruí-la. A
intenção de Anano era suspender por algum tempo todos esses preparativos de
guerra, a fim de trabalhar para sanar o espírito daqueles revoltosos, aos quais
chamavam de zelotes, e fazê-los tomar resoluções mais prudentes e mais úteis
ao povo, mas ele morreu como veremos em seguida.
233. Entretanto, Simão, filho de Cioras, reuniu na toparquia de
Lacrabatane, um grande número de homens, que como ele somente queriam
desordem e tumulto. Não se contentava de saquear as casas dos ricos; em sua
insolência
 chegava
 mesmo
 a
 espancá-los
 e
 maltratá-los;
 ele
 aspirava
abertamente a um governo tirânico. Ananias e os magistrados mandaram
soldados contra ele, e ele fugiu para junto dos ladrões que se haviam retirado
em Massada, onde tendo ficado até a morte de Anano e de seus outros inimigos,
fez tantos males à Iduméia que os magistrados foram obrigados a retirar as
tropas, para pô-las como guarni-ção, nas aldeias e nas vilas, a fim de impedir a
continuação dos assaltos e dos latrocínios.
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Livro Terceiro
CAPÍTULO 1
O IMPERADOR NERO DÁ A VESPASIANO O COMANDO DE SEUS EXÉRCITOS DA SÍRIA, PARA
FAZER A GUERRA AOS JUDEUS.
234. O imperador Nero soube com espanto e perturbação do péssimo
resultado de suas armas na Judéia, mas dissimulou e cobrindo seu temor com
uma aparência de coragem, fez rebentar sua cólera contra Céstio, como se
devesse atribuir à sua incapacidade, e não ao valor dos judeus, as vantagens
que estes tinham obtido sobre suas tropas. Ele julgava que era próprio da
dignidade do império e da suprema grandeza que o elevava tão acima de todos
os outros príncipes, testemunhar pelo desprezo das coisas mais vergonhosas
aquela firmeza que torna a alma superior a todos os acidentes da fortuna.
Naquela luta que se travava nele mesmo, entre sua altivez e seu temor, ele
lançou seus olhares para todos os lados, a fim de ver a quem poderia confiar a
direção de uma guerra, onde não se tratava somente de castigar a revolta dos
judeus, mas de conservar no cumprimento do dever o restante do Oriente,
impedindo que as outras nações quisessem também sacudir o jugo dos
romanos como pareciam estar inteiramente dispostas. Depois de ter refletido
muito, achou que somente Vespasiano seria capaz de sustentar o peso de tão
grande empreendimento. Sua vida, desde a juventude até à velhice, tinha-se
passado na guerra. O império devia ao seu valor a paz de que gozava no
Ocidente, que se vira abalado pela revolta dos alemães, e seus trabalhos tinham
dado ao imperador Cláudio, sem esforço algum, sem ter derramado uma gota
sequer de sangue, a glória de triunfar contra a Inglaterra, que não se podia
dizer, até então, ter sido verdadeiramente dominada. Dessa forma, Nero,
considerando a idade, a experiência e a coragem desse grande general e que ele
tinha filhos que eram como reféns de sua fidelidade, os quais no vigor da
juventude podiam servir como de braços à prudência de seu pai, além de que
talvez, Deus assim o permitia para o bem do império, resolveu dar-lhe o
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comando dos exércitos da Síria. E na necessidade que tinha dele, deu-lhe todas
as demonstrações de afeto e de estima, a fim de animá-lo a se esforçar para um
bom êxito, numa ocasião tão importante. Vespasiano estava então com esse
príncipe, na Acaia, e apenas honrado com esse grande cargo, ele mandou Tito,
seu filho, a Alexandria, para receber as quinta e décima legiões. Ele, depois de
ter passado o estreito do Helesponto, dirigiu-se por terra para a Síria, onde
reuniu todas as forças romanas e as tropas auxiliares que lhe deram os reis das
nações vizinhas àquela província.
CAPÍTULO 2
OS JUDEUS, QUERENDO ATACAR A CIDADE DE ASCALOM, ONDE HAVIA UMA
GUARNIÇÃO ROMANA, PERDEM DEZOITO MIL HOMENS, EM DOIS
COMBATES, COM
 JOÃO E SILAS , DOIS DE SEUS CHEFES, E NIGER, QUE ERA O
TERCEIRO, SALVA-SE MILAGROSAMENTE.
235. Esta vitória, tão inesperada, obtida pelos judeus sobre o exército
romano, comandado por Céstio, deixou-os de tal modo cheios de si e tornou-os
tão insolentes, que, incapazes de se moderar, só pensaram em levar a guerra
ainda mais longe. Depois de ter reunido o que melhor havia em tropas,
marcharam contra Ascaom, cidade muito antiga, distante de Jerusalém
quinhentos e vinte estádios e determinaram atacá-la, por primeiro, porque,
desde muito a odiavam. Tinham por chefes três homens muito valentes e que
possuíam tanto inteligência quanto valor: Niger, peraita, Silas, babilônio, e
João, essênio.
Ascalom era rodeada por uma grande muralha, bastante forte; mas a
guarnição era fraca, composta apenas de uma coorte de infantaria e de um
pouco de cavalaria, comandada por Antônio. O ardor de que os judeus estavam
possuídos levou-os até perto da cidade quase imediatamente, mas, entretanto,
não surpreenderam Antônio. Como ele fora avisado de sua marcha, já tinha
saído com sua cavalaria para esperá-los. Sem se admirar com seu grande
número e sua ousadia, resistiu tão corajosamente ao seu primeiro ataque, que
eles não puderam avançar até as muralhas da cidade, porque ainda que
sobrepujassem de muito os romanos, em número, tinham a desvantagem de
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lidar com inimigos tão peritos na guerra. Os romanos eram muito bem
armados, e eles, ao contrário, muito mal; eram bem disciplinados, e eles pouco;
e em vez de agir, pela impetuosidade e pela cólera, obedeciam perfeitamente aos
seus chefes, além de que os judeus só tinham infantaria e foram facilmente
derrotados, pois logo que a cavalaria rompeu suas primeiras linhas, eles
fugiram e os romanos então atacaram-nos de todos os lados, espalhados pelo
campo, o que lhes era muito favorável, e mataram um grande número deles.
Não que os judeus não tivessem ânimo e coragem, pois tudo faziam para
restaurar a luta, mas porque a desordem em que estavam não o permitia, e os
romanos continuaram a persegui-los, animados como estavam pela vitória,
durante a maior parte do dia, sem lhes dar tempo de se reunir. Assim, dez mil
caíram mortos na luta, com João e Silas, seus comandantes; os outros, dos
quais a maior parte estava ferida, fugiram sob o comando de Niger, para uma
aldeia da Iduméia, chamada Salis. Do lado dos romanos, alguns somente foram
feridos.
236. Tão grande desastre, em vez de abater a coragem dos judeus, irritou-
os ainda mais, pela pena que sentiam do grande número de mortos; a
lembrança de suas vitórias precedentes animou-lhes a esperança e inspirou-
lhes uma coragem, que lhes trouxe uma segunda derrota. Sem nem mesmo dar
tempo aos feridos de se curarem, eles reuniram um exército muito mais forte
que o primeiro e mais animados que nunca dirigiram-se contra Ascalom; mas,
não sendo mais aguerridos do que antes e tendo sempre as mesmas
desvantagens que lhes haviam feito perder o primeiro combate, não tiveram
neste segundo um êxito mais favorável. Antônio armou-lhes emboscadas pelo
caminho, atacou-os, cercou-os de todos os lados com a cavalaria, antes que
eles tivessem oportunidade de se preparar para a batalha; desta vez tiveram
eles ainda mais de oito mil mortos. O restante fugiu e Niger, depois de ter feito o
possível quanto se podia esperar de um bom general e de um valente e corajoso
soldado, fugiu para a torre de Bezedel, que era muito forte. A intenção de
Antônio era prender Niger, que sabia ser um excelente general e chefe; não quis
perder
 tempo
 em
 atacá-la;
 contentou-se
 em
 incendiá-la
 e
 retirou-se,
imaginando que Niger não podia deixar de perecer com os outros. Ele porém se
tinha lançado do alto da torre, e fora cair numa gruta, onde os seus o
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encontraram vivo, três dias depois, quando, oprimidos pela dor, procuravam
seu
 corpo
 para
 enterrá-lo.
 Tão
 inesperada
 felicidade
 deu-lhes
 alegria
inexprimível que eles só podiam atribuir à providência particular de Deus, e ter
assim conservado um chefe, cuja vida era tão necessária para a continuação
daquela guerra.
CAPÍTULO 3
VESPASIANO CHEGA À SÍRIA E OS HABITANTES DE SÉFORIS, A PRINCIPAL
CIDADE DA
 GALILEIA, QUE SE CONSERVAVA FIEL AO PARTIDO DOS ROMANOS,
CONTRA OS DA PRÓPRIA NAÇÃO, RECEBEM DELE UMA GUARNIÇÃO.
237. Vespasiano chegou com seu exército a Antioquia, capital da Síria,
que é sem contestação, quer pelo seu tamanho, quer pelas outras vantagens,
uma das três principais cidades de todo o Império Romano. Lá encontrou o rei
Agripa, que o esperava com suas tropas. De lá passou a Ptolemaida, onde os
habitantes de Séforis vieram encontrá-lo. O desejo de prover à própria
segurança e o conhecimento que tinham do poder dos romanos, não os havia
deixado esperar sua chegada, para lhes demonstrar fidelidade; tinham dito a
Céstio que jamais se separariam e tinham pedido e recebido dele uma
guarnição. Assim, não somente viram Vespasiano chegar com alegria, mas
prometeram servir-lhe contra os da própria nação e rogaram-lhe que lhes desse
cavalaria e infantaria de que eles poderiam ter necessidade, para resistir aos
judeus, se fossem atacados. Vespasiano fê-lo de boa vontade, porque sua
cidade, sendo a maior da Galileia, a mais forte em sua posição e a principal
defesa do país, julgou que lhe era muito útil contar com ela nessa guerra.
CAPÍTULO 4
DESCRIÇÃO DA GALILEIA, DAJUDÉIA E DE ALGUMAS OUTRAS PROVÍNCIAS VIZINHAS.
238. Há duas galiléias, uma chama-se a alta e a outra a baixa; ambas
são limitadas pela Fenícia e pela Síria. Do lado do ocidente estão a cidade de
Ptolemaida, todo seu território e o monte Carmelo, que outrora pertencia aos
galileus e agora é dos tírios, perto do qual está a cidade de Gamala, chamada a
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cidade dos Cavaleiros, porque o rei Herodes para lá mandava os dispensados.
Do lado do sul, tem na fronteira a Samaria e Citópolis, até o rio Jordão. Do lado
do oriente seus limites são Hipom, Gadaris e Galaunita, que são também as do
reino de Agripa. E do lado do norte, confinam com Tiro e seus territórios.
A baixa Galileia estende-se desde Tiberíades até Zebulom, do qual
Ptolemaida está próxima, do lado do mar e sua largura, desde a aldeia de
Xalote, situada no Campo Grande, até Bersabéia. Ali começa também o
território da alta Galiléia e vai até a aldeia de Baca, que a separa das torres dos
sírios e se estende desde Thela, aldeia próxima do Jordão, até Merote.
Embora essas duas províncias estejam rodeadas de tantas e tão diversas
nações, todavia, elas sempre lhes resistiram em todas as suas guerras, porque,
além de serem muito populosas, seus habitantes são muito valentes e
instruídos, desde a infância, na arte da guerra. As terras são tão férteis e tão
bem plantadas, com toda espécie de árvores, que sua abundância convida a
cultivá-las mesmo àqueles que têm pouca inclinação para a lavoura e não há
terras inúteis. Não somente há uma grande quantidade de aldeias e vilas, mas
também um grande número de cidades, tão populosas que a menor delas tem
mais de quinze mil habitantes. Assim, ainda que a extensão da Galiléia não seja
tão grande como a do país que está além do Jordão, não lhe é, porém, inferior
em força, porque é, como eu acabo de dizer, toda cultivada e muito fértil; ao
passo que uma grande parte daquele outro país é seca, deserta e incapaz de
produzir frutos para a alimentação. Há, entretanto, lugares onde a terra é tão
excelente, que produz toda espécie de plantas; aí vemos grande quantidade de
vinhas, de oliveiras e de palmeiras, porque as torrentes que caem das
montanhas regam-nas, e os riachos que correm sem cessar refrescam-na
durante os grande calores do verão. Essa região estende-se, em comprimento,
de Macherom até Pella e, em largura, de Filadélfia até o Jordão. Pella limita-a
do lado do norte, o Jordão, do lado do ocidente, o país dos moabitas, do lado do
sul, e a Arábia, Sibonitida, Filadélfia e Gerasa, do lado do oriente.
O país que depende de Samaria e que está situado entre a Judéia e a
Galiléia, começa na aldeia de nome Ginea e termina na toparquia de
Acrabatana. Em nada difere da Judéia, pois um e outro são montanhosos e têm
ricos campos. As terras são muito boas, fáceis de se cultivar e produzem grande
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quantidade
 de
 frutos,
 tanto
 comuns
 como
 silvestres,
 porque
 sendo
naturalmente secos não lhes falta a chuva, para os regar. As águas são as
melhores do mundo; as pastagens tão excelentes, que não se encontra, em
parte alguma, leite em maior abundância do que ali; mas o que sobrepuja a
todo o restante e faz que se apreciem estas duas províncias é a incrível
quantidade de homens que as povoam. Ambas terminam na aldeia de Anvate,
antigamente chamada Borceos.
A Judéia termina também nessa mesma aldeia, do lado do norte. Estende-
se do lado do sul, até uma aldeia da Arábia, de nome Jardam; sua largura, vai
do rio Jordão até Jope. Jerusalém, colocada no meio, é como o centro; esse belo
país tem ainda esta vantagem, que, indo até Ptolemaida, o mar não contribui
menos que a terra, para torná-lo tão delicioso quão fértil. Está dividido em onze
partes, das quais a cidade de Jerusalém é a primeira e como a rainha e chefe de
todas. As outras dez foram distribuídas em toparquias, que são Gofna,
Acrabatana, Herodiom e Jerico. Jamnia e Jope, que têm jurisdição sobre as
regiões vizinhas, não estão compreendidas nas que eu acabo de dizer, bem
como Gamalite, a Gaulanítida, a Batanéia e a Traconítida, que fazem parte do
reino de Agripa. Essa região, que é habitada pelos sírios e pelos judeus,
estende-se em largura, desde o monte Líbano e as nascentes do Jordão, até o
lago de Tiberíades, e em comprimento, desde a aldeia de Arfaque até Julíada.
CAPÍTULO 5
VESPASIANO E TITO, SEU FILHO, VÃO A PTOLEMAIDA COM UM EXÉRCITO DE SESSENTA
MIL HOMENS.
239. Eis o que eu julguei dever dizer da Judéia e das províncias vizinhas,
o mais brevemente possível. O auxílio enviado por Vespasiano aos de Séforis era
de mil cavaleiros e de seis mil soldados de infantaria comandados por Plácido. A
infantaria foi posta na cidade e a cavalaria acampou naquela grande extensão,
que se chama o Campo Grande. Uns e outros faziam continuamente pequenas
incursões aos lugares vizinhos, com que Josefo e os seus, embora não fizessem
nenhum ato de hostilidade, foram bem incomodados. Aquelas tropas romanas
não se contentavam de saquear o campo; pilhavam também tudo o que podiam
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apanhar ao sair das cidades, tratavam mal os habitantes quando eles ousavam
se afastar, e os obrigavam a ficar dentro das muralhas.
240. Josefo, vendo as coisas nesse estado, fez todo o possível para se
apoderar de Séforis; o que não conseguiu, porque ele tinha de tal modo
fortificado a cidade, que nem mesmo os romanos tê-la-iam podido tomar, e
assim, não podendo, nem atacando-os, nem pela persuasão, trazer os
seforitanos ao partido, ficou desiludido em suas esperanças. Essa idéia que
tivera irritou de tal modo os romanos, que eles não se contentavam em
continuar suas devastações, mas matavam a todos os que resistiam, reduziam
os demais à escravidão, incendiavam tudo, passavam a ferro e fogo, sem poupar
a ninguém e não se podia ter tranqüilidade, nem segurança, senão nas cidades
que Josefo tinha fortificado.
241.
 Entretanto, Tito, com as tropas que tinha levado de Alexandria,
dirigiu-se a Ptolemaida, para junto de Vespasiano, seu pai, mais depressa do
que se teria imaginado e que o inverno lhe teria permitido. Uniu assim, à
décima quinta legião, a quinta e a décima, compostas dos melhores soldados do
império e que eram seguidas de dezoito coortes fortalecidas ainda com cinco
outras e com seis companhias de cavalaria, vindas de Cesaréia, cinco das quais
eram de sírios. Dez dessas coortes, ou regimentos, tinham cada uma mil
soldados de infantaria e as outras, seiscentos e treze, além de cento e vinte
cavaleiros. Os príncipes aliados fortaleceram ainda mais esse exército, pois os
reis Antioco, Agripa e Soheme mandaram cada qual dois mil soldados de
infantaria; Malco, rei da Arábia, mandou mil cavaleiros e cinco mil soldados de
infantaria, dos quais a maior parte também estava armada de arcos e flechas.
Todas essas tropas unidas faziam mais ou menos sessenta mil homens, sem
contar os empregados, os servidores que eram em mui grande número e que
tendo passado toda a vida nos perigos da guerra e assistido a todos os
exercícios que se faziam durante a paz não eram inferiores aos seus amos, em
coragem e perícia.
CAPÍTULO 6
SOBRE A DISCIPLINA DOS ROMANOS NA GUERRA.
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242. Não se pode admirar a prudência dos romanos, que os leva a tornar
seus criados, não somente aptos para servi-los, mas também para tudo o mais,
inclusive tomar as armas e combater. Se considerarmos sua disciplina e seu
proceder em todas as coisas que se referem à guerra, não havemos de duvidar
de que somente ao valor, e não à sorte, eles devem o império do mundo. Não
esperam, para esse exercitar, que a guerra ou a necessidade a isso os obrigue;
fazem-no em plena paz e, como se tivessem nascido com as armas na mão,
jamais deixam de se servir delas. Tomar-se-iam tais exercícios por verdadeiros
combates, tanto se lhes parecem; assim, não nos devemos admirar de que eles
são capazes de enfrentar os inimigos com tão invencível coragem. Jamais
rompem a ordem, o medo nunca os faz perder o juízo e o cansaço não os abate.
Dessa forma, como não encontram inimigos em que todas essas qualidades se
reúnam, sempre saem vitoriosos; e o que acabo de dizer nos mostra que
podemos chamar os seus exercícios de verdadeiros combates, onde não se
derrama sangue, e seus combates de exercícios sangrentos. Em qualquer lugar
onde fazem guerra, não podem ser surpreendidos por um repentino ataque dos
inimigos, porque, antes de serem atacados, eles fortificam o acampamento, não
de qualquer modo, nem ligeiramente, mas de uma forma quadrangular e se a
terra é desigual, eles a aplainam, pois levam sempre consigo um grande
número de feridos e de outros operários para que nada lhes falte do que é
necessário para a fortifi-cação. O interior do seu acampamento é dividido em
quarteirões, onde se fazem os alojamentos dos oficiais e dos soldados. O
exterior parece-se com muralhas de uma cidade, porque eles erguem torres
eqüidistantes em cujos intervalos colocam máquinas para atirar pedras e
dardos. O acampamento tem quatro partes, bastante largas, a fim de que os
homens e os cavalos possam entrar e sair facilmente. O interior está dividido
em ruas, no meio das quais estão os alojamentos dos chefes, um pretório feito à
maneira de um pequeno Templo, um mercado, oficinas de operários e tribunais
onde os principais oficiais julgam as questões que surgem. Assim, tomar-se-ia o
acampamento por uma cidade, feita no momento, tão grande é o número dos
que ali trabalham; sua longa experiência os põe nessa situação, mais do que se
poderia acreditar. Quando necessário, rodeiam-no de uma defesa, em trin-
cheira, de quatro côvados de largura e outro tanto de profundidade. Os
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soldados, com suas armas sempre perto, vivem juntos, em boa ordem e de
perfeito entendimento. Vão por esquadras ao bosque, ao rio, aos campos,
buscar forragem e tomam as refeições juntos, não lhes sendo permitido comer
separadamente. O som da trom-beta indica-lhes a hora de dormir, de despertar,
de entrar em guarda, coisas todas tão bem reguladas, que tudo se faz com
ordem. Os soldados pela manhã vão cumprimentar seus comandantes, estes
vão saudar os tribunos e os tribunos e os oficiais vão juntos cumprimentar o
comandante supremo. Dão-se-lhes a senha e todas as ordens necessárias para
transmiti-las aos subalternos, para que todos conheçam a maneira como
combater, quer seja necessário em escaramuças, ou retirar-se ao acam-
pamento. Quando se vai levantar o acampamento, o primeiro som de trombeta
manda desmanchar as tendas e preparar-se para a partida. Quando a trombeta
toca uma segunda vez, eles carregam a bagagem, e esperam para partir, um
terceiro sinal, como se faria numa corrida de cavalos; incendeiam o
acampamento, porque é muito fácil fazer outro, mas também para impedir que
os inimigos dele se possam servir. Quando a trombeta toca a terceira vez todos
marcham e para que conservem as fileiras, não se permite a ninguém, ficar
atrás. Um arauto, então, que está do lado direito do general, pergunta-lhes por
três vezes se estão prontos para combater; eles respondem também por três
vezes, em voz alta, num tom que demonstra alegria, que estão todos prontos.
Muitas vezes antecipam-se
 ao arauto, mostrando com seus clamores,
levantando os braços, que querem lutar. Marcham em seguida, na mesma
ordem, como se tivessem o inimigo pela frente, sem jamais desmanchar as
fileiras. Os soldados de infantaria são defendidos por capacetes e couraças;
cada qual usa duas espadas, e a que está do lado esquerdo, é muito mais
comprida que a outra, pois a que eles têm do lado direito, só tem um palmo de
comprimento e seria mais um punhal do que uma espada. Soldados escolhidos
que acompanham o chefe levam dardos e tarjas; todos os outros têm dardos e
longos escudos, e trazem, numa espécie de cesto, uma serra, um podão, um
machado, um picão, uma foice, uma corrente, pedaços longos de couro e pão
para três dias, de sorte que não estão menos carregados que os cavalos. Os da
cavalaria trazem uma longa espada do lado direito, uma lança, um escudo
preso de lado ao cavalo e uma aljava com três dardos ou mais, cuja ponta é
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muito larga, e que não são menos longos que os da infantaria. Suas couraças e
capacetes são semelhantes aos da infantaria. Os escolhidos para acompanhar o
chefe estão armados como os outros; é por sorte que as tropas ocupam a
dianteira, isto é, marcham na frente.
Vimos, pois, a maneira de acampar e as diversas armas dos romanos.
Nada fazem em seus combates sem premeditar, mas suas ações são sempre o
resultado de outras deliberações. Assim, se cometerem faltas poderão remediá-
las facilmente; e embora essas coisas sejam maduramente preparadas,
preferem que seus efeitos não correspondam à expectativa a dever seus felizes
resultados à sorte, porque as vantagens que daí se tiram somente levam a agir
inconsi-deradamente; ao passo que a infelicidade, que se segue a uma
resolução sabiamente tomada, serve para se prever o que pode no futuro fazer
evitar outras semelhantes. Ainda mais, que não se pode pretender a honra do
que sucede fortuitamente; e, ao contrário, nas desgraças que acontecem contra
toda expectativa, tem-se pelo menos a consolação de nada ter deixado do que a
prudência aconselhava.
Esses contínuos exercícios militares não somente fortalecem o corpo dos
soldados, mas também reforçam-lhes a coragem; o temor do castigo torna-os
exatos em todos os deveres, pois as leis ordenam penas capitais, não somente
para a deserção, mas também para as mínimas negligências. Por mais severas
que sejam as leis, os oficiais que as fazem observar o são ainda mais; mas, as
honras com que recompensam o mérito são tão grandes, que os que sofrem os
mais rudes castigos não ousam se queixar. Essa maravilhosa obediência fez
com que nada seja mais belo na paz, nem mais temível na guerra, do que o
exército romano. Tão grande número de homens, porém, assemelha-se a um só
corpo, que se move todo ao mesmo tempo, pois as tropas que o compõem estão
admiravelmente bem organizadas. Seus ouvidos estão atentos às ordens, seus
olhos, abertos aos sinais, e suas mãos, preparadas para a execução do que lhes
é mandado; são valentes e infatigáveis na luta; uma vez empenhados num
combate, não recuam, nem há número de inimigos, nem rios, nem florestas,
nem montanhas que lhes possam impedir a marcha para a vitória, nem mesmo
a adversidade, porque eles não se julgam dignos do nome de romanos, se
também sobre ela não triunfarem. Não nos admiremos, portanto, de que exérci-
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tos, que executam de maneira heróica conselhos tão sabiamente tomados,
tenham levado longe suas conquistas. Esse soberbo império tem por limites o
Eufrates do lado do oriente, o oceano do lado do ocidente, a África do lado do
sul e o Reno e o Danúbio do lado do norte, e podemos dizer, sem bajulação, por
maior que seja a extensão de tantos reinos e províncias, o coração desse povo,
que sua prudência, unida ao valor, tornaram senhor do mundo, é ainda maior.
Meu fim, no que acabo de dizer, não é tanto tecer elogios aos romanos,
mas consolar àqueles que eles venceram e fazer os outros perder o desejo de se
revoltar contra eles. Talvez também estas palavras sirvam para aqueles que,
apreciando a boa disciplina, como ela merece, não estão particularmente
informados da que os romanos observam na guerra.
CAPÍTULO 7
PLÁCIDO, UM DOS CHEFES DO EXÉRCITO DE VESPASIANO, QUER ATACAR A
CIDADE DE
 JOTAPATE. M AS OS JUDEUS O OBRIGAM A ABANDONAR
VERGONHOSAMENTE ESSA EMPRESA .
243. Vespasiano empregou o tempo que ficou em Ptolemaida, com Tito,
seu filho, em organizar todas as coisas necessárias para seu exército. Plácido,
entretanto, percorreu toda a Galiléia e matou a maior parte dos que pôde
apanhar. Eram apenas homens sem coragem e incapazes de resistir; todos os
que tinham valor retiraram-se para as cidades que Josefo tinha fortificado.
Como Jotapate era a mais forte de todas, Plácido resolveu atacá-la, na
persuasão de que por um repentino esforço, ele a tomaria, sem muita
dificuldade, e conquistaria uma grande reputação perante os generais, pela
facilidade que lhes daria, em seguida, aos seus empreendimentos, o terror que
as outras cidades sentiriam, por ver cair desse modo a mais importante de
todas. Mas os efeitos não corresponderam à expectativa, pois os habitantes de
Jotapate descobriram seu desígnio, atacaram suas tropas que não estavam
preparadas para a luta. Como eles combatiam pela pátria, por suas esposas e
por seus filhos, atacaram-nas com tanto ardor, que os puseram em fuga e
feriram a muitos; mas só conseguiram matar sete, quer porque os romanos
estavam bem armados e não fugiam em desordem, quer porque os judeus, que
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não estavam tão bem armados, se contentavam de lançar-lhes dardos de longe,
sem travar combate com eles. Perderam, por sua vez, três homens apenas e
tiveram poucos feridos. Dessa forma, Plácido abandonou o seu projeto.
CAPÍTULO 8
VESPASIANO ENTRA EM PESSOA NA GALILÉIA. ORDEM DA MARCHA DE
SEU EXÉRCITO.
244. Vespasiano resolveu atacar em pessoa a Galiléia e partiu de
Ptolemaida, depois de ter organizado a marcha, segundo o costume dos
romanos. As tropas auxiliares, mais levemente armadas, marchavam na frente,
para repelir as escaramuças dos inimigos e fazerem explorações e batidas nos
bosques e em outros lugares, onde poderiam haver emboscadas. Uma parte da
infantaria e da cavalaria romana seguia, e dez soldados de cada companhia,
com suas armas e as coisas necessárias para fazer o acampamento. Os
exploradores acompanhavam-nos para aplanar os caminhos, cortar as árvores
que lhes poderiam impedir a passagem e retardar-lhes a marcha. A bagagem
dos oficiais ia depois, com a cavalaria, escoltando-a. Vespasiano marchava com
tropas escolhidas e alguns lanceiros; tirava, para esse fim, cento e vinte mestres
de cada um dos corpos de cavalaria. As máquinas, para a tomada das praças,
vinham em seguida, e depois, os tribunos e os oficiais, acompanhados por
soldados escolhidos. Vinha depois a águia imperial, ilustre insígnia dos
romanos, que eles julgavam dever colocar à frente de seus exércitos, para
mostrar que assim como a águia reina no ar sobre todas as aves, eles reinam
na terra sobre todos os homens e que em qualquer lugar ao qual levarem a
guerra, ela lhes serve de presságio de que serão sempre vencedores. As outras
insígnias, nas quais havia imagens, que eles diziam sagradas, estavam em
redor da águia. As trombetas e os clarins vinham depois; marchavam seis a
seis, de frente, com oficiais encarregados de conservar a ordem e manter a
disciplina. Os servos de cada legião acompanhavam os soldados e levavam suas
bagagens sobre mulas e cavalos. Por último vinham os que traziam os víveres,
os operários e outros mercenários escoltados ainda por um bom número de
cavaleiros e de soldados de infantaria.
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Vespasiano marchou nessa ordem e chegou à fronteira da Galiléia e ali
acampou, embora tivesse podido então avançar ainda mais; mas ele julgou
dever infundir o terror no espírito dos inimigos, com a presença do exército e
dar-lhes a oportunidade de se arrepender, antes de travar combate. Não deixou,
porém, de pôr em ordem tudo o que era necessário para um cerco.
CAPÍTULO 9
SOMENTE A NOTÍCIA DA CHEGADA DE VESPASIANO ESPANTA DE TAL MODO
OS JUDEUS, QUE
 JOSEFO, VENDO -SE QUASE COMPLETAMENTE
ABANDONADO, RETIRA-SE PARA
 TIBERÍADES.
245. O grande general conseguiu o seu intento apenas com a notícia da
sua chegada. Isto de tal modo assustou os judeus, que todos se haviam reunido
a Josefo e se tinham acampado em Garis, perto de Séforis, fugiram, não
somente antes do combate, mas mesmo sem ter visto o exército.
Josefo viu-se assim abandonado; tal consternação reinava entre os
judeus, que ele imaginou estarem eles dispostos a se entregar aos romanos,
pois não estava em condições de resistir, com tão pouca gente, que lhe restava.
Achou então que se deveria ausentar e retirou-se para Tiberíades.
CAPÍTULO 10
JOSEFO ADVERTE OS PRINCIPAIS DE JERUSALÉM DO ESTADO DAS COISAS.
246.
 Vespasiano atacou primeiro Gadara: tomou-a sem dificuldade, ao
primeiro assalto, porque lá havia muito pouca gente capaz de defendê-la. Os
romanos mataram todos os que estavam em idade de pegar em armas, de tal
modo a lembrança da derrota sofrida por Céstio os acirrava contra os judeus.
Vespasiano não se contentou de mandar incendiar a cidade, mas mandou
queimar também as aldeias e as vilas dos arredores, cujos habitantes foram
escravizados em grande parte.
247. A presença de Josefo encheu de temor toda a cidade que ele tinha
escolhido para seu abrigo; os de Tiberíades julgaram que ele não teria ido para
lá se não estivesse completamente desiludido sobre o resultado daquela guerra.
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E nisso não se enganavam, pois ele não via outra esperança de salvação para os
judeus, do que se arrependerem da falta cometida. Não duvidava de que os
romanos estavam dispostos a perdoá-los, mas teria preferido perder mil vidas,
do que trair sua pátria, abandonando vergonhosamente o cargo que lhe tinha
sido confiado, para procurar sua salvação entre aqueles contra os quais o
haviam mandado fazer a guerra. Assim, ele escreveu aos principais de
Jerusalém para informá-los do verdadeiro estado das coisas, sem exagerar
sobre a potência dos romanos e seu valor, o que lhe teria dado motivo de julgar
que ele tinha medo; nem também menosprezan-do-os, para não fortalecê-los em
sua ousadia, da qual talvez já se começavam a arrepender; e rogava-lhes, se
tinham intenção de fazer um tratado, que lhe dissessem imediatamente, ou se
estavam resolvidos a continuar a guerra, que lhe mandassem reforços capazes
de oferecer resistência ao inimigo.
CAPÍTULO 11
VESPASIANO SITIA J OTAPATE, ONDE JOSEFO SE HAVIA REFUGIADO. DIVERSOS
ASSALTOS INÚTEIS.
248.
 Como Vespasiano sabia que Jotapate era a praça mais forte da
Galiléia e que um grande numero de judeus ali se havia refugiado, resolveu
atacá-la e destruí-la; mas lá não se podia ir senão pelas montanhas porque as
estradas eram muito difíceis, ásperas e pedregosas; quase impraticáveis para a
cavalaria e muito difíceis para a infantaria. Ele mandou então um corpo de
tropas, com um grande número de exploradores e operários, que em quatro
dias puseram-na em condições de permitir que todo o exército por ali pudesse
passar sem dificuldade.
No quinto dia, era 20 de maio, Josefo foi de Tiberíades a Jotapate e
ergueu o ânimo dos judeus com sua presença. Um fugitivo avisou Vespasiano e
exortou-o a se apressar para atacar a praça, porque se vencesse e aprisionasse
Josefo, teria aprisionado toda a Judéia. Vespasiano ficou tão contente com essa
notícia que a atribuiu a uma bondade particular dos deuses, que o mais
prudente de seus inimigos se tivesse assim retirado a uma praça, e ordenou no
mesmo instante que Plácido com mil cavaleiros e Ebúcio, um dos mais sábios e
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dos mais valorosos dos seus oficiais, atacassem a cidade de todos os lados, a
fim de que Josefo não pudesse escapar.
Seguiu-os no dia seguinte, com todo seu exército, e tendo marchado até à
noite, chegou a Jotapate, acampou a sete estádios da cidade do lado do norte,
sobre uma colina, a fim de alarmar os sitiados, com a presença de seu exército.
Teve bom resultado o seu alvitre, pois eles ficaram tão atônitos que se
refugiaram na cidade e ninguém se atreveu a sair de lá. Os romanos, cansados
por terem feito aquela caminhada em tão pouco tempo, não atacaram naquele
dia; mas Vespasiano, para cercar os judeus de todos os lados, empregou dois
corpos de cavalaria e um de infantaria, que estavam um pouco mais recuados.
Como na guerra a necessidade obriga a tudo empreender, no desespero de não
se poder salvar, a que se viram reduzidos os judeus, sentiram redobrar-se-lhes
a coragem.
No dia seguinte, começou a batalha. Os judeus se contentaram em resistir
aos romanos, que tinham avançado suas posições até perto das muralhas.
Vespasiano ordenou em seguida a todos os archeiros, fundibulários e outros
atiradores de dardos, que atirassem, e ele mesmo, com a infantaria, atacou do
lado de uma colina, de onde se podia assaltar a cidade. Mas Josefo e os seus
resistiram tão corajosamente e praticaram tais atos de bravura, que repeliram
para bem longe os romanos e as perdas foram iguais de lado a lado. O
desespero animava os judeus, e a vergonha de encontrar tanta resistência
irritava os romanos; a ciência da guerra unida à coragem combatia de um lado;
a audácia e a coragem armadas pelo furor, do outro. Todo o dia passou-se
desse modo; a noite separou-os. Treze romanos somente morreram, mas muitos
ficaram feridos. Os judeus perderam dezessete homens e tiveram seiscentos
feridos.
Os romanos, no dia seguinte, deram novo ataque. De lado a lado houve
atos de valor ainda maiores que os anteriores, pela coragem que animava os
judeus, pois tinham, contra sua esperança, resistido ao primeiro assalto, e
porque a vergonha que os romanos sentiam, por ter sido repelidos, fazia com
que eles se considerassem vencidos, se ainda demorassem para obter a vitória.
Cinco dias passaram-se desse modo, em semelhantes assaltos, os
sitiantes, redobrando seus esforços e os sitiados, não somente resistindo, mas
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fazendo também incursões sem que tão grandes forças, como as dos romanos,
os assustassem, nem igualmente as grandes dificuldades que encontravam
naquele assédio diminuíssem o ardor dos romanos.
CAPÍTULO 12
DESCRIÇÃO DE JOTAPATE. VESPASIANO MANDA PREPARAR UMA GRANDE
PLATAFORMA COMO UM TERRAÇO, PARA DE LÁ ATACAR A CIDADE.
ESFORÇOS DOS JUDEUS PARA RETARDAR ESSE TRABALHO.
249. A cidade de Jotapate está quase toda construída sobre um rochedo
es-carpado e rodeada de três lados por vales tão profundos que a vista não lhe
consegue ver o fundo. O único lado, que está ao norte, e onde ela está situada,
no penedo da montanha, é acessível; mas Josefo havia mandado fortificá-lo e
encerrá-lo dentro da cidade a fim de que os inimigos não pudessem se aproxi-
mar do alto da montanha que a dominava, e outras montanhas, que estavam
em redor da cidade, ocultavam-lhe a vista de tal modo que não se podia
perceber o que havia lá dentro. Tal a situação de Jotapate.
250. Vespasiano, vendo que tinha de combater ao mesmo tempo contra a
natureza, que tornava aquela praça tão forte, e contra a obstinação dos judeus
em defendê-la, reuniu os principais oficiais do seu exército para deliberar a res-
peito dos meios de como atacar ainda com mais vigor aquela cidade. Tomaram
a resolução de levantar um grande terraço do lado da cidade, que era o de mais
fácil acesso.
Empregou para isso todo o exército, reunindo o material necessário.
Tiraram grande quantidade de madeira e de pedra das montanhas vizinhas;
fizeram couraças em grande número, para proteger os operários contra os
dardos atirados da cidade. A terra era trazida dos lugares próximos e passada
de mão em mão, continuamente, sem parar; como todos no exército
trabalhavam com grande solicitude, a obra progredia muito. Os judeus, para
impedi-lo, atiravam-lhes dardos do alto das muralhas, pedras enormes, sobre a
couraça dos trabalhadores, que causavam enorme ruído e atrasavam o serviço,
embora não pudessem impedir que eles continuassem a trabalhar.
Vespasiano montou então cento e sessenta máquinas que atiravam sem
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grande quantidade de dardos contra os que defendiam as muralhas. Mandou
também colocar em posição outras máquinas maiores, das quais algumas
lançavam dardos e outras grandes pedras; ao mesmo tempo, os árabes
atiravam tanto fogo e tantas flechas, bem como outros arqueiros de dardos, que
todo o espaço entre os muros e o terraço estava tão cheio deles que parecia
impossível abordá-lo por ali. Nada, porém, intimidava os judeus; eles não
deixavam de fazer incursões; arrancavam as fortificações e outras defesas.
Vespasiano reconheceu que o espaço vazio entre as aberturas dessas obras
dava lugar aos sitiados de o atravessar; mandou então fechá-las, e não ficou
mais nem um intervalo; levou depois todas as forças para aquele lugar, e tirou
aos judeus a oportunidade de lhe interromper os trabalhos com novas
incursões.
CAPÍTULO 13
JOSEFO MANDA ERGUER UM MURO MAIS ALTO QUE O TERRAÇO DOS
ROMANOS.
 O S SITIADOS SENTEM FALTA DE ÁGUA E VESPASIANO TENTA
TOMAR A CIDADE PELA FOME.
 U M ESTRATAGEMA DE JOSEFO O FAZ MUDAR
DE IDÉIA E ELE VOLTA A EMPREGAR A FORÇA.
251. Depois que Vespasiano levantou aquele terraço, quase tão alto como
os muros da cidade, Josefo achou que seria vergonhoso não fazer também
alguma obra grandiosa para defender a cidade, maior ainda que a que os
romanos haviam feito para atacá-la. Assim, resolveu construir um muro muito
mais alto do que o terraço. Na impossibilidade de trabalhar, que os operários
alegavam, por causa da grande quantidade de dardos atirados continuamente
pelos romanos, ele achou um meio de eliminar aquela dificuldade: mandou
fincar na terra grossos postes, aos quais ataram peles de boi, mortos
recentemente, cujas dobras não somente tornavam inúteis os golpes dos dardos
e das flechas, mas diminuíam a força das pedras lançadas pelas máquinas e
amorteciam a do fogo por sua umidade. Assim, com essa forte defesa, com esse
poderoso abrigo, pôs os operários em condições de trabalhar, sem nada temer;
trabalharam dia e noite, com tanto entusiasmo que fizeram um muro de vinte
côvados de altura, fortificado com várias torres, com ameias.
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Esse recurso, unido à constância invencível dos sitiados, causou grande
admiração aos romanos, que já se julgavam senhores da cidade, e Vespasiano
não ficou menos irritado do que surpreso, por ver que a habilidade de Josefo e
a coragem que aquela nova fortificação inspirava aos judeus lhes dava tanta
coragem que não se passava um dia, em que eles não fizessem várias incursões,
nas quais atacavam os romanos e levavam o que lhes caía nas mãos para a
cidade e incendiavam alguns lugares.
Depois de tentar tudo o que pensou ser útil, achou que seria melhor, em
vez de continuar a atacar a praça, obrigá-la a se entregar pela fome, fazendo
com que os sitiados desistissem antes de se verem reduzidos aos extremos, ou,
se eles teimassem em continuar, recomeçariam os ataques, quando a fome os
tivesse de tal modo enfraquecido, que seria fácil vencê-los. Depois destas
resoluções mandou vigiar cuidadosamente todas as passagens.
252. Os sitiados tinham muito trigo e todas as outras coisas necessárias,
menos sal, mas faltava-lhes água, pois não tendo fontes na cidade eram obriga-
dos a usar somente a que caía do céu. Porém chovia pouco no verão, época em
que se dava aquele assédio. Josefo, vendo que era aquele o único empecilho que
os afligia, e que todos os seus soldados demonstravam muita coragem, mandou
distribuir a água, em medidas, a fim de prolongar o assédio, muito mais do que
os romanos esperavam. Essa ordem aborreceu o povo, que não quis receber tal
limitação, como se não houvesse mais água, recusando-se a trabalhar.
Os romanos souberam de tudo, porque os viam, de cima da colina, se reu-
nirem no lugar onde se lhes davam a água racionada, e mataram até mesmo
alguns a golpes de dardos. Acabou-se depressa a água dos poços e Vespasiano
esperava que a praça se entregasse. Mas Josefo, para tirar-lhe aquela esperan-
ça, mandou colocar nas ameias dos muros uma grande quantidade de panos
encharcados de água, o que encheu de admiração e ao mesmo tempo irritou os
romanos, porque eles não podiam imaginar que, se esta lhes faltava para o
sustento da vida, usassem dela, com tanta profusão, daquele modo. Dessa for-
ma, Vespasiano não mais se iludiu com a esperança de tomar a praça pela fome
e voltou a empregar a força, que era justamente o que os judeus desejavam,
porque vendo-se perdidos irremediavelmente, preferiam morrer com as armas
na mão do que de sede ou de miséria, josefo serviu-se de um outro meio para
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obter mais água. Havia do lado do ocidente um riacho tão fundo que os roma-
nos não montavam muita guarda daquele lado. Ele escreveu aos judeus que
estavam fora da cidade que lhe trouxessem de noite, por ali, água e outras
coisas de que necessitavam; para isso, deveriam se cobrir com peles e andar de
quatro a fim de que os inimigos os tomassem por cães ou outros animais; assim
se fez, até que os romanos perceberam-nos e fecharam-lhes a passagem.
CAPÍTULO 14
JOSEFO, NÃO TENDO MAIS ESPERANÇA DE SALVAR JOTAPATE, QUER RETIRAR -SE; MAS O
DESESPERO DOS HABITANTES O FAZ FICAR.
 FURIOSOS ATAQUES DOS SITIADOS.
253. Josefo, vendo que não havia mais esperança de salvação para a
cidade, nem para os que a ocupavam — pois se continuassem obstinadamente
a defendê-la, dentro de poucos dias estariam reduzidos aos extremos — reuniu
em conselho os oficiais e os principais da cidade para tratar dos meios de se
salvarem. O povo soube-o e veio em massa rogar-lhe que não o abandonasse,
que toda a sua confiança estava nele, que somente ele podia salvá-lo, pois
tendo-o à sua frente combateriam com alegria ate o último respiro; se tinham
de perecer, que tivessem pelo menos a consolação de morrer todos aos seus
pés. Disseram-lhe que não era uma ação digna dele querer fugir dos inimigos,
abandonando os amigos; era como abandonar durante a tempestade o navio, de
que se tivera o comando em tempo de calma; seria, daquele modo, fazer
naufragar a cidade que ninguém mais tinha coragem de defender, depois de
terem perdido aquele em quem punham toda esperança de salvação. Josefo,
para persuadi-los de que só pensavam neles, disse-lhes que era mais para o
bem deles do que seu, que ele queria se retirar, porque sua presença ser-lhes-ia
inútil, se eles não fossem aprisionados; e se o fossem, de nada lhes serviria
morrer com ele. Se se ausentasse, ele poderia reunir grandes tropas na Galiléia
e obrigar os romanos a abandonar o cerco; o desejo de se apoderar da cidade os
fazia dobrar os esforços, e eles desanimariam quando soubessem que não mais
poderiam fazê-lo.
Não somente o povo não se convenceu com estas razões, mas insistiu
ainda mais. Os moços e os velhos, as mulheres e as crianças, banhados em
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lágrimas, lançaram-se-lhe aos pés e abraçando-lhe os joelhos, com soluços e
gemidos rogaram-no que ficasse para correr o mesmo risco que eles. Eu não
saberia imaginar o que os levava a rogar de tal modo; talvez porque desejavam
também salvar-se; mas penso que talvez eles imaginavam que enquanto eu
ficasse com eles, preservá-los-ia de tão grande perigo. Josefo já estava comovido
pelo extremo amor de todo aquele povo por ele; considerando que, se ficasse
voluntariamente, não se poderia duvidar ter ele consentido em seus pedidos e
rogos, mas se ao contrário, depois de se ter recusado eles o obrigassem a ficar,
ele seria quase como um prisioneiro; resolveu então fazer o que lhe pediam.
Pondo sua força principal no desespero em que os via e que os tornava capazes
de tudo empreender, ele disse-lhes que chegara o momento de combater mais
corajosamente do que nunca, pois não lhes restava nenhuma esperança de
salvação; e que nada era mais glorioso do que preferir a honra à vida, morrendo
com as armas na mão, depois de ter praticado atos de valor, tão extraordinários
que a posteridade jamais havia de esquecê-los.
Assim falou e procurou passar das palavras aos fatos. Deu um assalto
com os mais corajosos dos seus soldados e repeliu a guarda romana, atacou as
trincheiras, chegou até o acampamento, derrubou as peles debaixo das quais os
soldados se agasalhavam e incendiou-lhes os trabalhos.
No dia seguinte e em outros dois fez a mesma coisa; continuou ainda por
vários dias e noites, a agir com semelhante energia, sem que tão extraordinários
esforços pudessem esgotá-los.
Vespasiano, vendo os prejuízos que os romanos recebiam desses ataques
porque tinham vergonha de fugir diante dos judeus, e mesmo quando
vencessem não os poderiam perseguir, por causa do peso de suas armas — o
que fazia com que eles tivessem sempre grande vantagem, nos assaltos — antes
de entrar na cidade, proibiu aos seus soldados combater com aqueles
desesperados, que só procuravam a morte, porque nada é mais temível que o
desespero e o verdadeiro meio de lhes enfraquecer a impetuosidade é impedir
que o fomentem, como o fogo se apaga quando não se lhe dá material para
consumir; além de que os romanos não faziam a guerra por necessidade, mas
somente para aumentar seu império, e para obter vitórias uniam a prudência
ao valor. Dessa forma, esse sábio general contentou-se em lhes atirar
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continuamente flechas, dardos e pedras, por meio dos árabes, dos sírios, dos
fundibulários e das máquinas. Os judeus, embora muito oprimidos e
atribulados, em vez de se espantarem e de recuarem, avançavam com incrível
coragem, para travar combate com os romanos e nenhuma luta poderia ser
mais obstinada do que aquela.
CAPÍTULO 15
OS ROMANOS DERRUBAM OS MUROS DA CIDADE COM OS ARÍETES;
DESCRIÇÃO DOS EFEITOS DESSA MÁQUINA.
 OS JUDEUS INCENDEIAM AS
MÁQUINAS E OS TRABALHOS DOS ROMANOS.
254. Tão longo assédio e as incursões contínuas dos sitiados faziam com
que Vespasiano se considerasse, ele mesmo, como sitiado; suas plataformas
haviam sido concluídas até à altura das muralhas e ele resolveu servir-se do
aríete. Essa terrível arma é feita como um poste, semelhante a um mastro de
navio de altura e grossura enormes, cuja ponta superior é armada com uma
cabeça de ferro proporcional ao restante e semelhante à de um carneiro, o que
lhe valeu o nome, porque bate nas muralhas como o carneiro ataca também
com a cabeça os seus adversários. Esse mastro é suspenso e balançado por
meio de grossos cabos, como o braço de uma balança, sobre um outro grande
poste apoiado sobre a terra e sustentado de ambos os lados por escoras muito
fortes e bem ligadas. Assim o aríete, balan-çando-se no ar, levantado e abaixado
com violência por um grande número de homens, bate com a cabeça,
fortemente, sobre um muro que se quer derrubar, e toda resistência possível
cede-lhe à violência dos golpes repetidos.
255. A impaciência de Vespasiano em tomar a praça, por causa do
prejuízo que a duração do cerco estava trazendo aos seus negócios, e pela
oportunidade que dava aos judeus de se prepararem, como eles faziam com
todas as suas posses, para resistir à guerra, fizeram-no decidir-se a se entregar
àquele derradeiro esforço; os romanos começaram por aproximar ainda mais as
máquinas que atiram dardos, flechas, pedras e avançar os arqueiros e os
fundibulários, a fim de impedir que os judeus subissem às muralhas para
defendê-las. Mandaram em seguida avançar o aríete coberto de telhas e de
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peles, para conservá-lo e escondê-lo. Logo com os primeiros golpes, derrubou a
muralha e os habitantes da cidade soltaram um grande grito, como se já os
inimigos tivessem tomado a praça.
Mas como Josefo tinha previsto que os muros não poderiam resistir por
muito tempo aos ímpetos de uma máquina tão poderosa, cogitou um meio de
lhe diminuir o efeito. Mandou encher de palha uma grande quantidade de sacos
que eram descidos com cordas do alto do muro, ao lugar onde o aríete batia;
assim os golpes que d=ava não faziam estragos, perdiam a força, encontrando
um anteparo mole que lhe anulava a pancada.
Esse estratagema retardou muito o trabalho dos romanos, porque de
qualquer lado que eles voltassem o aríete, encontravam sacos cheios de palha,
que lhe inutilizavam os golpes. Por fim, cortaram com foices amarradas a
longas varas as cordas onde os sacos estavam presos. Assim, o aríete continuou
a fazer o seu ofício e o muro que tinha sido construído há pouco tempo não
resistiu mais; Josefo e os seus então recorreram ao fogo. Reuniram em três
lugares diversos todo o material combustível, misturaram-lhe betume, piche,
enxofre, puseram-lhe fogo, e queimaram assim em menos de uma hora todas as
máquinas e todas as obras que haviam custado aos romanos tempo e trabalho,
embora tudo fizessem para impedi-lo; nuvens de fogo que vinham de todos os
lados tornavam o incêndio tão grande que quem se aproximasse corria risco de
perecer nas chamas, e via-se com espanto até a que excesso de furor o
desespero dos judeus era capaz de levá-los.
CAPÍTULO 16
ATOS EXTRAORDINÁRIOS DE VALOR DE ALGUNS DOS SITIADOS, EMJOTAPATE.
VESPASIANO É ATINGIDO POR UMA FLECHADA. OS ROMANOS, IRRITADOS
POR VÊ-LO FERIDO, DÃO UM FURIOSO ASSALTO.
256.
 O ato de valor, praticado naquela ocasião por Saméias, filho de
Eleazar, de Saabe, na Galiléia, é por demais ilustre para dele não conservarmos
memória à posteridade, deixando de relatá-lo nesta história. Ele atirou, com
tanta violência, uma pedra muito grande sobre a cabeça do aríete que a
quebrou; saltou em seguida para o meio dos inimigos, tomou aquela cabeça
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com ousadia incrível e a levou até os pés do muro, onde, não estando mais
armado, foi ferido com cinco golpes de flechas; nada pôde detê-lo e ele subiu ao
muro e ali ficou exposto, à vista de todos, que admiraram sua coragem, até que
a dor das feridas fê-lo cair, com a cabeça do aríete, que ele não quis largar.
257.
 Dois irmãos chamados Netiras e Filipe, de Ruma, na Galiléia,
praticaram também um feito de coragem quase incrível. Atacaram com tal furor
a décima legião que puseram em fuga todos os que apareceram diante deles.
Josefo, ao mesmo tempo, seguido por muitos soldados, com fogo nas mãos,
queimou todas as máquinas, as cabanas e todos os trabalhos daquela décima
legião.
258. Na tarde daquele mesmo dia, os romanos reconstruíram o aríete e
atacaram o muro do lado onde ele já estava abalado. Vespasiano foi então ferido
na planta do pé, por uma flecha atirada da cidade, mas levemente, porque ela
perdera a força antes de chegar a ele. Os que estavam perto dele, vendo o
sangue correr-lhe do ferimento, ficaram tão irritados, que sua excitação se
estendeu por todo o acampamento, pela notícia que se espalhou. O pesar que
todos sentiram por esse fato foi tão grande, que vários abandonaram seus
postos para ir ter com ele, e particularmente Tito, que não podia pensar, sem
temor, no perigo em que se julgava encontrar seu pai. Mas Vespasiano bem
depressa livrou-os do temor e fez cessar a perturbação, dissimulando a dor que
sentia pelo ferimento; os animou a combater com mais ardor ainda. Cada qual
se considerava obrigado a vingar a afronta feita ao seu general; partiram para o
assalto, animando-se mutuamente com grandes gritos a enfrentar o perigo.
Embora vários dos sitiados tivessem morrido, feridos pelos dardos e pelas
pedras que as máquinas lançavam continuamente, Josefo e os seus não
abandonaram as muralhas, mas empregaram o fogo, o ferro e as pedras contra
os que, cobertos de anteparos, moviam o aríete. Sua resistência, por maior que
fosse, não podia, entretanto, ter grande resultado, porque eles combatiam sem
uma proteção, e o fogo de que eles se serviam contra os inimigos fazia com que
fossem vistos, como em pleno dia; estes preparavam seus golpes, e eles não
podiam evitá-los, porque não sabiam de onde vinham, nem viam as máquinas
que os atiravam. As pedras, que as máquinas lançavam, abatiam as ameias,
faziam aberturas nos ângulos das torres e nos lugares em que os sitiados
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estavam reunidos; matavam os que estavam atrás, e os que estavam na frente
não podiam defendê-los. Poder-se-á julgar o efeito extraordinário dessas
máquinas, pelo que aconteceu naquela mesma noite.
CAPÍTULO 17
ESTRANHO EFEITO DAS MÁQUINAS DOS ROMANOS. FURIOSO ATAQUE DURANTE A NOITE .
OS SITIADOS RESTAURAM A BRECHA, COM UM TRABALHO EXAUSTIVO.
259. Uma daquelas pedras levou, a três estádios dali, a cabeça de um dos
que combatiam no alto do muro perto de josefo, e uma outra atravessou o corpo
de uma mulher e levou a meio estádio dali a criança que ela tinha no ventre. Se
a violência daquelas máquinas era terrível, o barulho das que lançavam dardos
não era menor. A esse rumor unia-se o grito das mulheres na cidade, os
gemidos dos de fora, que estavam feridos, e o repetir-se do eco nas tantas
montanhas vizinhas. Via-se ao mesmo tempo correr o sangue de tantos corpos
mortos, lançados das muralhas, em tal quantidade, que se podia, passando por
cima deles, ir ao assalto; nada faltava nessa funesta noite de tudo o que
impressiona os olhos e os ouvidos, do mais estranho horror que se possa
imaginar. Todavia, por maior que fosse o número dos mortos e dos feridos que
combatiam tão generosamente pela pátria, e embora as máquinas não
cessassem de bater durante toda a noite, o muro foi derrubado só no dia
seguinte, pela manhã. Mas antes que os romanos pudessem preparar um lugar
para dar o assalto, os sitiados repararam a brecha com exaustivo trabalho.
CAPÍTULO 18
TERRÍVEL ASSALTO A JOTAPATE, ONDE, DEPOIS DE ATOS INCRÍVEIS DE VALOR, DE
PARTE A PARTE , OS ROMANOS PÕEM O PÉ NA BRECHA.
260. No dia seguinte, de manhã, depois que o exército romano havia
descansado um pouco, do exaustivo trabalho de tão horrível noite, Vespasiano
deu suas ordens para o assalto. A fim de impedir que os sitiados ousassem
aparecer na brecha, mandou que os mais corajosos da cavalaria apeassem,
para atacar ao mesmo tempo, por três lugares, e entrar na frente, quando as
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portas estivessem abertas. Eram seguidos pela melhor infantaria e o restante
da cavalaria teve ordem de ocupar a torre das muralhas, para impedir que os
sitiados pudessem escapar, depois da queda da cidade. Dispôs também todos
os arqueiros, fundibulários e todas as máquinas para atirar ao mesmo tempo, e
ordenou que se iniciasse a escalada nos lugares onde os muros estavam
inteiros, para enfraquecer desse modo o número dos que defendiam a brecha e
obrigar a fugir, por aquela chuva de flechas, dardos e pedras, os que lá
estavam.
Josefo, que tinha previsto todas essas coisas, para resistir àquela escala-
da, que ele não julgava muito perigosa, designou somente os velhos e os que
estavam muito cansados pelo trabalho da noite precedente, e escolheu os mais
valentes e os mais fortes, para a defesa da brecha, e com cinco, dentre os mais
valorosos, pôs-se à frente do exército. Disse-lhes que zombassem dos gritos dos
inimigos, que se cobrissem com os escudos e que retrocedessem um pouco
quando eles atirassem, até que se esgotassem os dardos e as flechas. Mas logo
que tivessem fixado as pontes, tudo deveriam fazer para repeli-los, lembrando-
lhes, para incitá-los aos maiores atos de valor, que, não havendo mais
esperança de salvação, eles combatiam, não para conservar sua pátria, mas
para vingá-la e fazer sentir os efeitos do seu justo furor àqueles, de cuja
crueldade não podiam duvidar, e que fariam correr, depois da queda, o sangue
de seus pais, de seus filhos e de suas esposas.
Estas foram as ordens de Josefo; entretanto, os que eram incapazes de
pegar em armas, as mulheres, e as crianças, vendo a cidade atacada por três
pontos diversos, as colinas dos arredores reluzindo com as armas dos inimigos,
e os árabes prestes a atirar suas flechas, compreenderam todo o mal que os
ameaçava, e fizeram ressoar o espaço com gritos e gemidos, como se a cidade já
tivesse sido tomada. Josefo teve medo de que isso enfraquecesse a coragem dos
soldados e mandou então trancar as mulheres em suas casas, ameaçando-as,
se não se calassem, e foi ao lugar do ataque, que ele tinha escolhido para
defender. A escalada não lhe dava muito trabalho, pois ele estava muito atento
ao que se seguiria àquela quantidade incrível de dardos e flechas que os
inimigos atiravam. Logo que as trombetas das legiões tocaram o assalto, todo
aquele grande exército soltou gritos militares; dado o sinal, o ar escureceu e
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rugia com o ruído incrível dos dardos e das flechas. Os judeus, lembrando-se
das ordens de Josefo, fecharam os ouvidos àqueles gritos, cobriram-se com os
escudos e, quando os inimigos quiseram fixar suas pontes, marcharam contra
eles com tanto ardor e coragem, que, à medida que eles subiam, eram
derrubados. Jamais se viu tanto valor do que então; o perigo, tão grande e
temível, redobrava-lhes a coragem, em vez de abatê-la; eles não demonstravam
menos firmeza de alma em tal contingência, do que se corressem menos risco
que os inimigos; uma luta tão obstinada só terminava com a morte de uns e de
outros. Os judeus tinham a desvantagem de não poder ser substituídos por
novos combatentes, ao passo que o grande número de romanos fazia com que
novas tropas tomassem o lugar das que eram repelidas. Assim, animando-se
reciprocamente, impelindo-se, cobrin-do-se com os escudos, formaram como
um muro impenetrável, e atacando todos ao mesmo tempo, como se aquele
grande corpo fosse animado por uma única alma, repeliram os judeus e
puseram os pés na brecha.
CAPÍTULO 19
OS SITIADOS ATIRAM TANTO ÓLEO FERVENTE SOBRE OS ROMANOS QUE OS OBRIGAM A
DESISTIR DO ASSALTO.
261. Em tão extremo perigo, o desespero fez josefo cogitar um novo meio
de defesa. Mandou atirar sobre a temível tropa romana óleo fervente; como os
sitiados tinham-no em grande quantidade, executaram a ordem e começaram a
atirar, até mesmo caldeiras e baldes cheios. Aquele dilúvio ardente dividiu a
tropa que parecia inseparável e viam-se cair os romanos, contorcendo-se,
porque o líquido que se esquenta facilmente, demora muito para se esfriar, por
causa da umidade untuosa, e que se espalhando sobre eles, da cabeça aos pés,
através das mesmas armas, devorava-lhes a carne, como uma chama, a mais
viva e penetrante; eles não podiam deixar as armas, para fugir, porque as
couraças e os capacetes estavam atados, nem se retirar, rapidamente, quando
necessário, para evitar perecer daquele modo. A grande dor que sentiam, fazia-
os cair do alto das pontes e de várias maneiras e os que procuravam fugir eram
detidos pelos dardos atirados pelos judeus, que os perseguiam.
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No meio de tantos males, ao mesmo tempo, nem os romanos perderam a
coragem, nem os judeus faltaram à prudência. Os romanos, embora torturados
por dores horríveis, esforçavam-se para avançar contra os que lhes atiravam
óleo, e os judeus, para deter o ímpeto, empregaram ainda outro meio:
espalharam
 sobre
 as
 pontes
 feno
 grego,
 cozido,
 que
 as
 tornava
 tão
escorregadias, que eles não podiam ficar de pé e caíam confusamente uns sobre
os outros; alguns, vinham abaixo onde os judeus, que não tinham mais
inimigos pela frente, matavam-nos a dardos. Muitos romanos perderam a vida
ou ficaram bem feridos nesse combate, a vinte do mês de junho, e Vespasiano,
naquela mesma noite, fez tocar a retirada. Os sitiados perderam somente seis
homens, mas tiveram mais de trezentos feridos.
CAPÍTULO 20
VESPASIANO MANDA LEVANTAR DE NOVO AS PLATAFORMAS OU TERRAÇOS E COLOCÁ-LAS
ACIMA DAS TORRES.
262. Vespasiano quis consolar os seus pelo mau resultado daquele
assalto; mas os encontrou tão animados, que lhes seria inútil falar e muito
melhor entrar logo em ação. Assim fê-los levantar de novo as plataformas ou
terraços e construir no alto torres de madeira, de cinco pés de altura, cobertas
de ferro, para firmá-las com seu peso e fazê-las à prova de fogo. Colocou por
cima, além das máquinas leves, que atiravam flechas e dardos, os mais hábeis
dos seus arqueiros e de seus fundibulários; estes, tinha a vantagem de, por
causa da altura das torres e de suas defesas, não serem vistos pelos sitiados,
ao passo que aqueles eram facilmente vistos e por isso mesmo atingidos pelos
projéteis, e não podiam evita-lo. Assim os judeus foram obrigados a abandonar
a brecha, mas atacaram fortemente os romanos, quando eles lá quiseram
passar. Sofreram, contudo, muitas perdas, e os romanos, ao contrário, bem
poucas.
CAPÍTULO 21
TRAJANO É MANDADO POR VESPASIANO CONTRA JAFA . TITO TOMA EM SEGUIDA ESSA
CIDADE.
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263. No entanto, a extraordinária resistência de Jotapate ergueu o ânimo
dos de Jafa, que lhe está bem perto. Mas Vespasiano para lá mandou Trajano,
que comandava a décima legião, com dois mil soldados de infantaria e mil de
cavalaria. Ele achou que a praça era muito forte, não somente pela posição,
mas porque além de suas grandes fortificações, era rodeada por uma dupla
série de muralhas. Seus habitantes também tiveram muita coragem e vieram
contra eles. Travou-se a luta; mas depois de uma ligeira resistência, Trajano os
pôs em fuga. Perseguiu-os tão fortemente, que entrou com eles no primeiro
recinto das muralhas; o temor que os habitantes sentiram de que ele se
apoderasse também da segunda, fê-los fechar as portas da cidade a todos,
mesmo aos seus concidadãos, que lá pensavam em se salvar, como se Deus,
para castigar a Galiléia, quisesse entregá-los aos mesmos inimigos. Assim,
depois de terem em vão implorado o socorro daqueles que poderiam ajudá-los,
muitos se mataram e o restante foi morto pelos romanos, sem se defenderem,
tal o temor que tinham dos inimigos e o espanto, por se verem abandonados
pelos próprios amigos, abatia-lhes a coragem. De doze mil que eram, nem um
só se salvou, e ao morrer, faziam imprecações, não contra os romanos, mas
contra os da própria nação.
Trajano, certo de que a cidade não tinha mais defensores e de que quando
mesmo ainda deles houvesse um número considerável, o medo ter-lhes-ia gela-
do o coração e eles não teriam mais coragem de resistir, julgou dever deixar ao
seu general a honra de tomá-la. Assim, mandou comunicar-lhe que mandasse
Tito, seu filho, para terminar aquela empresa. Vespasiano imaginou ante esse
aviso que restava ainda alguma coisa importante a se fazer e mandou Tito com
quinhentos cavaleiros e mil soldados de infantaria. Logo que chegou dividiu as
tropas em duas partes para atacar; a da esquerda teve o comando de Trajano e
ele se pôs à frente da outra; depois de ter colocado escadas mandou escalar os
muros de todos os lados. Os galileus, após uma leve resistência, abandonaram
as muralhas e Tito, seguido pelos seus, pulou para dentro e entrou na cidade.
Travou-se então no interior da mesma um grande combate. Os mais valentes
dos habitantes postados nas ruas estreitas atacavam os romanos e as mulheres
lançavam do alto das casas tudo o que lhes podia servir de arma de ataque.
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Durou a luta cerca de seis horas, e por fim os que podiam resistir foram mortos
e o restante do povo, tanto os moços como os velhos, foram assassinados em
suas casas e nas ruas, sem que nem um daqueles cujo sexo tornava capaz de
pegar em armas fosse poupado, exceto as crianças, que foram levadas escravas
com as mulheres. Foi de dois mil e trinta, o número dos escravos, e o de
homens mortos no combate, quinze mil. Esta batalha travou-se a vinte e cinco
de junho.
CAPÍTULO 22
CEREALIS, MANDADO POR VESPASIANO CONTRA OS SAMARITANOS, MATA MAIS DE ONZE
MIL DELES, NO MONTE
 GERIZIM.
264. Os samaritanos experimentaram também os tristes efeitos dessa
guerra sangrenta. Reuniram-se no monte Gerizim, que consideravam santo.
Essa reunião fazia crer, mesmo sem considerarmos sua fraqueza e o poderio e a
sorte dos romanos, que eles se preparavam para uma revolta. Vespasiano soube
de tudo e achou que devia prevenir qualquer acontecimento, porque, embora
eles estivessem rodeados de guarnições romanas, seu número excessivamente
grande dava motivos a temores. Ordenou então a Cerealis, tribuno da quinta
legião, que para lá partisse com quinhentos cavaleiros e três mil soldados de
infantaria.
Quando ele chegou com as tropas, não julgou conveniente atacar os
samaritanos sobre o monte, onde estavam em tão grande número, mas cercou-
os com uma trincheira defendida cuidadosamente. Vários dias assim se
passaram e os samaritanos começaram a sentir falta de água, pois era verão e o
calor, demasiado; eles não tinham feito provisão alguma desse precioso líquido
e alguns já haviam morrido de sede. Vários outros, preferindo a escravidão ao
estado a que se encontravam reduzidos, entregaram-se aos romanos. Cerealis
pôde assim perceber a situação extrema a que estavam reduzidos os outros;
avançou em ordem de batalha contra o monte, depois de os ter exortado a se
entregar, prometendo deixá-los viver em liberdade, se entregassem as armas.
Porém, vendo que se obstinavam em resistir, atacou-os, a vinte e sete de junho
e, de todos os onze mil, nem um só escapou com vida.
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CAPÍTULO 23
VESPASIANO, AVISADO POR UM FUGITIVO, DO ESTADO DOS HABITANTES
CERCADOS EMJOTAPATE, SURPREENDE-OS AO ALVORECER, QUANDO QUASE
TODOS AINDA ESTAVAM ADORMECIDOS.
 EXTRAORDINÁRIO MASSACRE.
VESPASIANO MANDA DESTRUIR A CIDADE E INCENDIAR AS FORTALEZAS.
265. Os de Jotapate resistiram contra toda esperança, durante quarenta e
sete dias e suportaram com incrível coragem todas as amarguras, as penas, os
incômodos e as misérias mais terríveis daquele cerco. Finalmente, depois que
Vespasiano fez levantar de novo as plataformas, mais altas que os muros da
cidade, um deles foi ao seu acampamento e disse-lhe que tantas vigílias e
combates os tinham reduzido a um número tão pequeno e de tal modo
debilitado os que resistiam, que já não estavam em condições de suportar um
grande ataque e, menos ainda, se soubesse escolher o tempo apropriado. Que,
para isso, devia atacá-los ao alvorecer, quando tomava um pouco de descanso,
depois de tanta fadiga e, mesmo aqueles que estavam de guarda, não podendo
resistir ao sono, quase sempre também adormeciam.
Vespasiano sabia da extrema fidelidade dos judeus, uns para com os
outros, e da sua incrível constância em suportar grandes males; as palavras
desse fugitivo tornaram-no tanto mais suspeito, quanto um dos sitiados, tendo
antes sido feito prisioneiro, não proferira uma palavra, embora submetido a
terríveis tormentos, nem mesmo do fogo, e, antes que dizer em que estado a
cidade se encontrava, tinha sido crucificado, continuando, porém, a zombar do
que a morte tem de mais terrível. Havia, porém, probabilidade de ser verdade o
que aquele traidor estava dizendo; Vespasiano, vendo que não era perigoso dar
fé às suas palavras, mandou prendê-lo e preparou-se para o ataque.
Dessa forma, no momento de que ele havia falado, fez avançar o exército,
sem ruído. Tito marchava na frente, acompanhado pelo tribuno Domício Sabino
e por alguns soldados escolhidos da quinta legião. Mataram as sentinelas,
degolaram os do corpo da guarda, apoderaram-se da fortaleza e de lá entraram
na cidade. Os tribunos Sexto Cerealis e Plácido entraram depois deles, com as
tropas que comandavam. Embora os romanos fossem senhores da praça e o dia
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claro, aqueles infelizes habitantes estavam tão cansados e sonolentos, que
ainda não tinham tomado conhecimento da gravidade de sua situação e de sua
desgraça; alguns que se haviam levantado, nada viram, porque a manhã estava
coberta de neblina. Por fim, todo o exército penetrou na cidade e eles puderam
então constatar que haviam chegado ao auge da desgraça; nem os sofrimentos
da morte puderam fazê-los ignorar por mais tempo, que eles estavam perdidos.
A lembrança dos males sofridos pelos romanos durante aquele cerco havia
apagado de seus corações todo sentimento de compaixão e de humanidade e
assim não perdoaram a ninguém. Atiraram do alto da fortaleza a todos os que
lá estavam. Os que queriam ainda resistir não puderam fazê-lo, porque as ruas
eram muito estreitas e ásperas e eram ocupadas pelos romanos; assim não
podiam combater e eram derrubados e dizimados pela multidão dos inimigos.
Isso foi causa de que muitos daqueles em quem mais Josefo confiava e que ele
havia escolhido para combater com ele, se suicidassem, num lugar onde se
haviam retirado, nos confins extremos da cidade, porque, não estando em
condições de poder se vingar dos romanos, misturando seu sangue com o deles,
quiseram, pelo menos, arrebatar-lhes a glória de lhes dar a morte, suicidando-
se.
Os que estavam de guarda foram os primeiros a perceber a queda da
cidade; fugiram logo para uma torre que está no norte, onde depois de terem
resistido por algum tempo, oprimidos pelo grande número dos inimigos,
entregaram-se; mas não foram recebidos, e sofreram a morte sem temê-la. Os
romanos teriam podido vangloriar-se de que aquele dia, que os tinha tornado
senhores da cidade, não lhes havia custado sangue, a não ser a morte de um
dos oficiais de nome Antônio, morto à traição. Tendo ido atacar, nas cavernas,
os que em grande número lá estavam escondidos, um deles pediu-lhe que lhe
poupasse a vida e lhe desse a mão, como sinal de que lhe concedia. Ele a
estendeu, sem desconfiar de nada, e aquele traidor deu-lhe um golpe nas
virilhas e o matou.
Os romanos também mataram naquele dia a todos os que encontraram.
Nos dias seguintes procuraram-nos nas cavernas e nos lugares subterrâneos e
só pouparam às mulheres e às crianças. Mil e duzentos foram escravizados e o
número dos judeus mortos durante o cerco foi de quarenta mil. Vespasiano
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ordenou que destruíssem totalmente a cidade e incendiassem as fortalezas. A
tomada dessa praça cuja extrema resistência tornou-se tão célebre, deu-se a
primeiro de julho do décimo terceiro ano do reinado de Nero.
CAPÍTULO 24
JOSEFO SALVA-SE , ESCONDENDO-SE NUMA CAVERNA, ONDE ENCONTRA
QUARENTA DOS SEUS.
 É DENUNCIADO POR UMA MULHER. VESPASIANO
MANDA UM SEU AMIGO TRIBUNO DAR - LHE AS GARANTIAS QUE ELE PUDESSE
DESEJAR;J OSEFO RESOLVE ENTREGAR-SE .
266. Como os romanos estavam muito irados contra Josefo e Vespasiano
estava persuadido de que uma grande parte da continuação daquela guerra
dependia de tê-lo em suas mãos, procuraram-no com grande interesse, por toda
a parte, onde se julgava estar ele escondido, mas também entre os mortos. Ele
fora tão feliz, que depois da queda da cidade, fugindo pelo meio dos inimigos,
desceu a um poço muito profundo, ao lado do qual havia uma caverna
espaçosa, que não podia ser vista do alto. Lá encontrou quarenta dos mais
valentes dos seus, que também ali se tinham refugiado e que tinham todo o
necessário para vários dias. Lá ficou o dia todo e só saiu à noite para observar
os guardas inimigos e ver se havia algum meio de salvação. Não o encontrando,
porém, tanto os guardas eram fiéis, voltava para a caverna. Dois dias assim se
passaram; no terceiro, uma mulher o denunciou. Vespasiano mandou Paulino e
Calicano, dois tribunos, garantir-lhe que o trataria bem, exortando-o a sair; ele
não quis fazê-lo, porque, não estando persuadido da clemência dos romanos, e
sabendo do seu ressentimento, pelo mal que lhes havia feito, temia que quando
o tivessem em seu poder, procurassem vingar-se. Vespasiano mandou-lhe outro
tribuno, de nome Nicanor, muito conhecido de Josefo, que lhe falou da
generosidade dos romanos para com os vencidos; que sua virtude, em vez de ter
granjeado o ódio de seus generais, lhes havia causado admiração; que eles
estavam tão longe de querer torturá-lo como o poderiam fazer, se quisessem,
sem que para isso fosse preciso que ele se entregasse, que só pensavam, ao
invés, em conservá-lo pelos seus méritos; e se Vespasiano tivesse tido algum
mau desígnio, não teria escolhido um de seus amigos para mandar-lho, como
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ministro de uma perfídia, com o pretexto de amizade; mas, quando mesmo lho
tivesse ordenado, ele desobedeceria, antes que executar uma ordem tão indigna
de um homem honrado. Estas palavras, embora tão claras, não conseguiram,
porém, persuadir de todo a Josefo, e os soldados romanos, irritados com tal
resistência, quiseram incendiar a caverna; mas Vespasiano os conteve, porque
o queria vivo em suas mãos. No entanto, Nicanor insistia cada vez mais e as
ameaças dos soldados aumentavam sempre, porque seu número também
aumentava. Josefo então lembrou-se dos sonhos que tivera, nos quais Deus lhe
fizera ver as desgraças que sucederiam aos judeus e os felizes resultados
obtidos pelos romanos, pois ele sabia explicar os sonhos e ver a verdade mesmo
no meio das trevas, a qual Deus muitas vezes se compraz em esconder e como
ele era sacerdote, também conhecia as profecias que estão nos livros santos.
Como se, naquele momento, estivesse cheio do Espírito de Deus, tudo o que Ele
lhe havia feito ver nos sonhos, pareceu renovar-se, e ele dirigiu-lhe esta oração:
"Grande
 Deus,
 Criador
 do
 universo,
 pois
 que
 resolvestes
 terminar
 a
prosperidade dos judeus, para aumentar a dos romanos e me escolhestes para
lhes predizer o que está para acontecer, eu me submeto à vossa vontade,
entrego-me aos romanos e consinto em continuar a viver. Mas protesto diante
de vossa eterna majestade que, como um vosso ministro e não como um
traidor, eu me entrego a eles."
CAPÍTULO 25
JOSEFO DETERMINA ENTREGAR-SE AOS ROMANOS E OS QUE ESTAVAM COM
ELE, NAQUELA CAVERNA, FAZEM-LHE VEEMENTES CENSURAS E EXORTAM-NO
A TOMAR A MESMA RESOLUÇÃO QUE ELES, ISTO É , MATAR-SE.
PALAVRAS QUE LHES DIRIGE PARA DISSUADI-LOS DESSE INTENTO.
267. josefo, depois dessa oração, prometeu entregar-se a Nicanor;
imediatamente os que estavam com ele, naquela caverna, rodearam-no de todos
os lados, exclamando: "Onde está o amor pelas nossas leis? Onde estão aquelas
almas generosas, aqueles verdadeiros judeus, nos quais Deus, ao criar,
infundiu tão grande desprezo pela morte? Josefo, tendes tanto amor à vida, que
para conservá-la vos determinastes entregar, tornando-vos escravo? Ousareis
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ainda ver a luz do dia, depois de ter perdido a liberdade? Esquecestes tão
depressa tantas exortações que nos fizestes, para nos levar a sacrificar tudo
para defendê-la? A opinião que tínhamos de vossa coragem e de vossa
prudência, quando combatíeis contra os romanos, estava mal fundada, se
esperais agora encontrar entre eles vossa salvação. E se ela corresponder ao
juízo que dela fazíamos, como podeis dever vossa vida àqueles que então
consideráveis como vossos mortais inimigos; se sua boa sorte vos fez esquecer
vossos primeiros sentimentos, nós não os perdemos, como vós. Conservamos
sempre o mesmo amor pelas nossas santas leis e pela glória de nossa pátria e
vos oferecemos para conservá-los, nossos braços e nossas espadas. Se sois
bastante generoso para vos matardes a vós mesmos, conservareis, morrendo, a
qualidade de chefe dos judeus, do contrário, não deixareis de morrer, pois
recebereis a morte de nossas próprias mãos, mas vós morrereis como um
covarde e como um traidor".
Depois destas palavras puxaram das espadas ameaçadoramente, para
matá-lo, se ele se entregasse aos romanos. Josefo, então, temendo faltar ao que
devia a Deus, se morresse antes de ter comunicado aos seus compatriotas
todas aquelas coisas que ele mesmo lhe havia manifestado, recorreu à razão,
que julgou ser a mais própria para persuadi-los, e falou-lhes deste modo:
268. "De onde vem essa vontade que sentis de vos matar a vós mesmos e
em querer separar corpo da alma, dividindo o que a natureza tão fortemente
uniu? Se alguém imagina que eu mudei de idéia, os romanos sabem-no se é
verdade a afirmação, de que nada é mais glorioso do que morrer na guerra, mas
pelas leis da guerra e pelas mãos dos vencedores. Estou ainda de acordo em
que não deveria criar dificuldade em me matar do mesmo modo que rogar aos
romanos que me matem; mas, ainda que sejamos seus inimigos, eles nos
querem conservar a vida, com quanto mais forte razão somos nós levados a
conservá-la e em nada haveria mais loucura do que em nos tratarmos mais
cruelmente do que queremos que eles nos tratem? É certamente uma bela coisa
morrer pela liberdade, contanto que seja combatendo para defendê-la, caindo
sob as armas daqueles que nô-la querem arrebatar. Mas essas circunstâncias
cessam agora, pois os combates terminaram e os romanos não nos querem tirar
a vida. Quando nada nos obriga a buscar a morte, não há menos covardia em
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dá-la a si mesmo do que temê-la e fugir dela, quando o dever e a honra nos
obrigam a tal nos expormos. Que nos impede entregarmo-nos aos romanos, se
não o temor da morte? E que vantagem há, então, em se escolher uma certa
para se evitar uma incerta? Se se disser que é para se evitar a escravidão, eu
pergunto, se o estado em que nos encontramos pode passar como um estado
livre; e se se acrescentar que é um ato de coragem, matar-se a si mesmo, eu
afirmo, ao contrário, que é uma covardia, como imitar um piloto tímido que,
pelo temor da tempestade, afundasse, ele mesmo, seu navio, antes de correr
risco de perecer, e por fim, que é combater o sentimento de todos os animais e
por uma impiedade sacrílega ofender a Deus mesmo, o qual criando-os, deu a
todos um instinto contrário. Pois vemos que eles se matam a si mesmos,
voluntariamente; mas a natureza não lhes inspira como uma lei inviolável o
desejo de viver? Essa razão não faz também que consideremos como nossos
inimigos e castiguemos como tais os que tentam contra nossa vida? Como a
recebemos de Deus, podemos crer que Ele tolere, sem se ofender, que os
homens ousem desprezar o dom que lhes fez? E como é dele que recebemos o
ser, ousaríamos querer deixar de existir a não ser segundo lhe apraz e Ele
determina? E verdade que nossos corpos são mortais, porque são feitos de uma
matéria frágil e corruptível; mas nossas almas são imortais e participam de
algum modo da natureza de Deus. Assim não podemos sem impiedade tirar aos
homens essa graça, que eles dEle recebem como um depósito que lhes quis
confiar. E se alguém quiser fazê-lo, poder-se-á iludir em ocultar aos olhos de
Deus a ofensa que lhe faz? Todos estão de acordo em que é justo castigar um
escravo que foge de seu senhor, embora esse senhor seja mau e nós julgaremos
poder sem crime abandonar a Deus que não somente é nosso senhor mas um
senhor soberanamente bom? Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a
posteridade daqueles, que depois de ter chamado para junto de si, entregaram
em suas mãos, a vida, que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que
suas almas voam puras para o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr
dos séculos, a animar corpos que sejam puros como elas* e que ao contrário, as
almas dos ímpios, que por uma loucura criminosa dão a morte a si mesmos são
precipitadas nas trevas do inferno; e que Deus, o Pai de todos os homens, vinga
as ofensas dos pais nos filhos? Foi por isso que o nosso sapientíssimo
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legislador, conhecendo o horror de tal crime, determinou que os corpos dos que
se matam, voluntariamente, fiquem sem sepultura até o pôr-do-sol, embora
seja permitido enterrar antes os que foram mortos na guerra; e há mesmo
nações que cortam as mãos dos assassinos que se mataram a si mesmos,
porque julgam justo separá-las de seus corpos, como estão separados seus
corpos de suas almas. Deixemo-nos, pois, persuadir pela razão. Por maiores
que sejam as nossas desgraças, todos os homens a elas estão sujeitos; mas não
acrescentemos ainda a tudo a desgraça de ofender a Deus, nosso Criador, com
uma ação que atrairia sobre nós a sua indignação e a sua ira. Se queremos
viver, não temamos não poder fazê-lo com honra, depois de ter demonstrado
com tantos feitos nosso valor e nossa virtude. Se nos obstinarmos em querer
morrer, morramos gloriosamente, recebendo a morte das mãos daqueles de
quem seremos prisioneiros de guerra. Não quero me tornar inimigo de mim
mesmo, faltando, por uma indesculpável traição à fidelidade, que devo a mim
mesmo,
 nem
 ser
 mais
 imprudente
 do
 que
 aqueles
 que
 se
 tornam
voluntariamente inimigos, fazendo, para tirar a minha vida, o que fazem para
salvar a sua. Desejo, entretanto, que os romanos não faltem à palavra e eu não
somente morrerei com coragem, mas com prazer, se depois de me terem dado
sua palavra, eles me tirarem a vida, porque nada tanto me poderia consolar por
nossas perdas, como ver que, com essa vergonhosa perfídia, eles obscureceriam
o brilho de sua vitória."
______________________________
* Parece, segundo estas palavras, que Josefo acreditava na metempsicose.
CAPÍTULO 26
JOSEFO, NÃO PODENDO DISSUADIR OS QUE ESTAVAM COM ELE DA
RESOLUÇÃO QUE TINHAM TOMADO DE SE MATAR, CONSEGUE INDUZI-LOS A
TIRAR A SORTE, PARA CADA QUAL SER MORTO POR COMPANHEIROS E NÃO
POR SI MESMO.
 SOMENTE ELE, COM UM OUTRO, RESTAM COM VIDA E
ENTREGAM - SE AOS ROMANOS.
 ELE É LEVADO A VESPASIANO. SENTIMENTOS
FAVORÁVEIS DE
 TITO PARA COM ELE.
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269. Com estas e outras razões, Josefo tentou afastar seus amigos da
funesta resolução que eles haviam tomado, mas os encontrou surdos à sua voz,
porque seu desespero os havia levado a escolher a morte. Em vez de se acalma-
rem, irritaram-se ainda mais, vieram a ele de espada na mão, censurando-lhe a
fraqueza, e todos pareciam querer matá-lo. Em tão extremo perigo ele chamava
a um pelo nome; olhava para outro, como um general que sabe comandar e
cuja virtude infunde respeito nos que estão acostumados a obedecer, tomou um
outro pelo braço e assim desviava de vários modos os golpes dos que haviam
determinado sua morte, como um animal selvagem rodeado por vários
caçadores volta a cabeça para aquele que está prestes a feri-lo. Por fim, como,
apesar do furor que os incitava, não podiam deixar de respeitar um chefe, ao
qual dedicavam tanta estima, sentiram seus braços enfraquecer, as espadas
caíam-lhes das mãos e ao mesmo tempo, ao desferir os golpes, sentiam que seu
afeto por ele opunha-se à cólera, diminuindo-lhes cada vez mais a força e
tornando-a inútil.
Josefo, por seu lado, não perdeu a calma em tão grave perigo: confiando
na proteção de Deus, assim lhes falou: "Pois que estais mesmo resolvidos a
morrer, lancemos a sorte para ver quem deverá ser morto, por primeiro, por
aquele que o seguirá; continuemos a fazer sempre do mesmo modo, a fim de
que nenhum de nós se mate por si mesmo, mas receba a morte das mãos de
um outro". Essa proposta foi por todos recebida com alegria, porque não
duvidavam de que ele também estaria no número dos mortos e que prefeririam
à vida, uma morte comum a todos eles.
270. Foi então lançada a sorte e o que era determinado apresentava o
pescoço ao que o devia matar. Isso continuou até que restavam somente Josefo
e um outro; o que aconteceu, talvez, por uma especial proteção de Deus ou por
casualidade.
Josefo, vendo que se lançasse a sorte, ela, ou lhe custaria a vida ou ele
teria que manchar suas mãos no sangue de um amigo, aconselhou-o a viver,
dando-lhe garantia de salvá-lo.
271.
 Assim, Josefo conseguiu escapar daquele tremendo perigo que
correra, quer do lado dos romanos, quer dos de sua própria nação, e entregou-
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se a Nicanor. Este levou-o a Vespasiano e jamais interesse foi maior do que o
dos soldados romanos em se reunirem junto do chefe para vê-lo. No meio do
tumulto, notavam-se os vários sentimentos, pelas diversas maneiras de agir:
uns demonstravam alegria, por ter ele sido aprisionado; outros, ameaçavam-no;
outros apertavam-se ainda mais para vê-lo de perto; os que estavam mais
afastados gritavam que se devia matar aquele inimigo do povo romano e os que
estavam mais perto dele, lembrando seus admiráveis feitos, comentavam as
vicissitudes da sorte. Mas todos os chefes, embora antes irritados contra ele,
sentiram seu ódio acalmar-se e Tito, mais que qualquer outro, pois tinha a
alma muito nobre, pela grandeza da coragem que Josefo demonstrava em sua
infelicidade e por sua idade, ainda em plena virili-dade, sentiu extrema
compaixão. Considerando, além disso, que um homem que se tinha tornado
temível em tantos combates, encontrava-se agora preso e escravo nas mãos dos
inimigos, não podia admirar muito as vicissitudes da guerra e a inconstância
das coisas humanas. Vários, imitando-o, foram favoráveis a Josefo e ele foi
principalmente causa de que Vespasiano também a isso se inclinasse.
CAPÍTULO 27
VESPASIANO QUER MANDAR J OSEFO PRISIONEIRO A NERO, MAS JOSEFO O FAZ MUDAR
DE OPINIÃO, PREDIZENDO QUE ELE SERIA IMPERADOR E
 TITO,
SEU FILHO, DEPOIS DELE.
272. Vespasiano ordenou que vigiassem cuidadosamente a Josefo, porque
queria enviá-lo a Nero. Josefo veio a sabê-lo e mandou dizer-lhe que tinha algo
a lhe comunicar, mas a ele somente, em segredo. Vespasiano deu-lhe
audiência, na presença de Tito e de seus amigos, e ele assim falou: "Vós julgais,
sem dúvida, senhor, que tendes somente a Josefo, prisioneiro em vossas mãos.
Mas eu venho por ordem de Deus comunicar-lhe uma coisa que muito vos
interessa, e é muito mais importante. Eu bem sei de que modo os que têm a
honra de comandar os exércitos dos judeus devem morrer, por terem caído
vivos em vossas mãos. Quereis mandar-me a Nero.
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E por que mandar-me, pois que ele e os que lhe devem suceder até vós,
têm tão pouco tempo de vida? E somente a vós e a Tito, vosso filho, que eu
considero imperadores; a este, depois de vós, porque ambos subireis ao trono.
Fazei-me pois guardar quanto vos aprouver, mas como vosso prisioneiro, não
de outro; somente vós vos tornastes, pelo direito da guerra, senhores da minha
liberdade e de minha vida; mas sê-lo-eis dentro em breve de toda a terra e eu
merecerei um tratamento muito mais severo do que a prisão, se eu for tão mau
e tão ousado, em abusar do nome de Deus, para vos obrigar a prestar fé a uma
impostura".
Persuadido de que Josefo lhe falava daquele modo, para obrigá-lo a lhe
ser favorável, a princípio não quis acreditar, mas pouco a pouco foi se dispondo
a fazê-lo, porque Deus, que o destinava ao império, fazia-o conhecer por outros
sinais e indícios que podia mesmo esperar chegar a tal e via que Josefo era
verdadeiro em tudo o que dizia. Um de seus amigos, por exemplo, na presença
dos quais ele lhe havia falado, pergunta a josefo, se aquelas predições não eram
meras ilusões, como é que ele não tinha previsto a ruína de Jotapate, a sua
prisão e evitado, se pudesse, tal desgraça e infelicidade, ele respondeu que
havia predito aos de jotapate, que sua cidade seria tomada, depois de uma
resistência de quarenta e sete dias, e que ele mesmo cairia vivo nas mãos dos
romanos. Vespasiano, ante estas palavras de seu amigo, mandou indagar
secretamente dos outros prisioneiros, se tudo tinha acontecido como ele dissera
e constatou que era verdade. Assim, começou a acreditar no que ele lhe havia
dito, referindo-se a ele em particular, mas não deixou de vigiá-lo menos
cuidadosamente; não havia, porém, favor com que não o distinguisse em tudo o
mais. Tito, por sua vez, tratava-o com grande deferência.
CAPÍTULO 28
VESPASIANO COLOCA UMA PARTE DE SUAS TROPAS NOS QUARTÉIS DE INVERNO EM
CESARÉIA E EM C ITÔPOLIS.
273. A quatro de julho, Vespasiano voltou a Ptolemaida e, marchando ao
longo da costa marítima, dirigiu-se a Cesaréia, que é a maior das cidades da
Judéia. Como a maior parte dos habitantes eram gregos, receberam-no muito
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bem, com seu exército, quer pelo afeto para com os romanos, quer pelo ódio
para com os judeus. Era este tão grande, que lhe pediram, com grandes
exclamações, que mandassem matar Josefo. Mas aquele sábio general,
considerando tais clamores como efeito da paixão de uma multidão confusa,
não lhes deu importância alguma. Colocou somente duas legiões em quartéis de
inverno, naquela cidade, onde podiam ficar comodamente, porque o ar é
temperado durante o inverno, e o calor é excessivo durante o verão, porque ela
está situada numa planície à beira-mar; e para não sobrecarregá-la com o
alojamento de tantos soldados, ele mandou a Citópolis a quinta e a décima
segunda legiões.
CAPÍTULO 29
OS ROMANOS TOMAM SEM DIFICULDADE A CIDADE DEJOPE, QUE
VESPASIANO MANDA DESTRUIR; UMA HORRÍVEL TEMPESTADE PROVOCA A
MORTE DE TODOS OS HABITANTES QUE HAVIAM FUGIDO EM NAVIOS.
274. No entanto, um grande número de judeus, tanto dos que se haviam
revoltado contra os romanos, como dos que haviam fugido para as cidades de
que se haviam apoderado, reconstruíram Jope, que Céstio havia destruído e,
não podendo encontrar com o que viver em terra, por causa da devastação dos
campos, construíram um grande número de pequenos navios, puseram-se ao
mar e percorrendo as costas da Fenícia, da Síria e mesmo do Egito, perturba-
ram com sua pirataria, todo o comércio daqueles mares. Vespasiano veio a
sabê-lo e mandou tropas de cavalaria para Jope, bem como de infantaria, e,
como aquela praça era mal defendida, nela entraram durante a noite, mui facil-
mente. Surpreendidos, os habitantes não tiveram coragem de resistir; fugiram
para seus navios e passaram a noite fora do alcance dos dardos e das flechas
dos inimigos.
Para bem compreendermos em que perigo eles se encontravam, devemos
considerar a situação de Jope. Essa cidade, embora situada à beira-mar, não
tem porto. A praia sobre a qual está construída é excessivamente pedregosa e
muito elevada. Seus dois lados, que são rochedos, naturalmente profundos,
estendem-se em forma decrescente, adentrando bem o mar. Assim, quando
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sopra o vento do verão, as ondas atiradas sobre esses rochedos cobrem-nos
com sua espuma e fazem um ruído espantoso; não há lugar onde os barcos
possam correr maior perigo. Aí vemos ainda os sinais das cadeias de
Andrômeda; elas foram aparentemente gravadas, para se prestar fé à antiga
fábula.
275. Os que haviam fugido de ]ope estavam então naquela baía e apenas
o dia começou a raiar, o vento, a que chamam de verão negro, soprou com
tanta violência, que jamais se viu tempestade mais horrível. Uma parte dos
navios quebrou-se, chocando-se uns contra os outros, outros se espatifaram
contra os rochedos, outros querendo, à força de remos, alcançar o mar alto,
para evitar a praia, onde as pedras os esperavam e os romanos também
tornavam-na igualmente temível, acharam-se, num momento, elevados sobre
montanhas de água e precipitados em seguida aos abismos, que aquela
espantosa tempestade lhes abria. Assim, não restava àquele povo miserável, em
tal contingência, nenhuma esperança de salvação, porque, quer eles se
afastassem da terra, quer dela se aproximassem, não podiam evitar de perecer,
tanto pelo furor do mar, como pelas armas dos inimigos. O ar entrecortava-se
de gemidos dos que haviam ficado nos navios esfrangalhados; viam-se de todos
os lados, uns, afogarem-se, outros matarem-se de desespero, outros, atirados
pelas vagas contra os rochedos, onde eram mortos pelos romanos. Assim o mar
não somente estava coberto de naufrágios, mas também tinto de sangue;
contaram-se até quatro mil e duzentos corpos que ele atirou à praia.
276. Os romanos, assim, tornaram-se senhores de Jope, sem combater, e
destruíram-na completamente; aquela infeliz cidade foi por eles tomada duas
vezes, em pouco tempo. Vespasiano, para impedir que os piratas lá se
reunissem, mandou fortificar a parte mais alta, deixou uma guarnição de
soldados de infantaria e muita cavalaria, para fazerem incursões às regiões
vizinhas e incendiarem as aldeias e as vilas; o que logo fizeram.
CAPÍTULO 30
A FALSA NOTÍCIA DE QUEJOSEFO TINHA SIDO MORTO EM J OTAPATE PÕE
TODA A CIDADE DE
 JERUSALÉM EM INCRÍVEL AGITAÇÃO. MAS ESTA SE
CONVERTE EM IRA CONTRA ELE, QUANDO SOUBERAM QUE ELE ESTAVA
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APENAS PRISIONEIRO E ERA BEM TRATADO PELOS ROMANOS.
277. Quando a notícia do que havia acontecido em Jotapate chegou a
Jerusalém, a importância de tal perda e a ausência de alguém que tivesse visto
o que se dizia, fez que a princípio não se acreditasse; do grande número de
homens que estavam naquela miserável cidade, não ficara um só que lhes
pudesse levar as notícias. A fama, que espalha tão prontamente os maus
resultados, foi a única pela qual se soube a princípio tudo aquilo. Mas a
verdade veio, em seguida, de todos os lados e dissipou pouco a pouco todas as
dúvidas. Acrescentavam-se até mesmo coisas de que ainda não se havia falado
e dizia-se que )osefo tinha sido morto. Toda Jerusalém ficou aflita. Os outros
mortos eram lamentados por parentes e amigos, mas ele era chorado por todos
e o luto que se tomou por ele, durante trinta dias, foi tão grande que todos
buscavam ansiosamente músicos, para entoar cânticos fúnebres, como se usa
nas homenagens aos mortos. Mas o tempo trouxe a verdade. Soube-se como
tudo se havia passado: Josefo estava vivo entre os romanos e seu general, em
vez de tratá-lo como escravo, prestava-lhe ainda grandes honras. Então, por
uma mudança estranha, aquele grande amor que se tinha por ele, quando o
julgavam morto, converteu-se em tal ódio, apenas se soube que ele estava vivo,
que o chamavam de fraco, covarde e traidor. A indignação era geral; por toda a
cidade ouviam-se injúrias contra ele; as desgraças que os oprimiam irritavam-
lhes de tal modo o espírito que eles agiam sem nenhuma prudência; as aflições,
que para os sensatos fazem-nos evitar caírem em outras, para eles só serviam
de aguilhão, para excitá-los ainda mais. Assim, parecia que o fim de uma fosse
o começo de outra e eles animavam-se cada vez mais contra os romanos,
persuadidos de que, vingando-se deles, vin-gar-se-iam também de Josefo.
CAPÍTULOS 31
O REI AGRIPA CONVIDA A VESPASIANO PARA IR COM SEU EXÉRCITO
DESCANSAR EM SEU REINO E
 VESPASIANO RESOLVE SUBMETER À
OBEDIÊNCIA DESSE PRÍNCIPE,
 T IBERÍADES E TARIQUÉIA, QUE CONTRA ELE SE
HAVIAM REVOLTADO.
 MANDA UM OFICIAL EXORTAR OS DE T IBERÍADES A
VOLTAR AO CUMPRIMENTO DO DEVER.
 MAS JESUS, CHEFE DOS REVOLTOSOS,
OBRIGA-O A SE RETIRAR.
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278. Entretanto, o rei Agripa convidou Vespasiano para vir com seu
exército ao seu reino, quer pelo desejo de homenageá-lo, quer porque pretendia
reprimir, por meio dele, as agitações em seu território; aquele general do
exército romano partiu de Cesaréia, que está à beira-mar, para ir a Cesaréia de
Filipe. Durante os vinte dias em que lá esteve, suas tropas puderam se refazer,
e ele deu graças a Deus com grandes banquetes por seus felizes êxitos. Quando
soube que Tiberíades e Tariquéia, que dependiam do reino de Agripa, se haviam
revoltado, julgou não poder encontrar uma ocasião mais favorável para
demonstrar seu afeto por aquele príncipe do que submeter aquelas duas
cidades ao seu poder. Assim, determinou marchar contra eles e mandou Tito a
Cesareia buscar tropas para atacar Citópolis. Esta cidade está perto de
Tiberíades, é a maior de todas as do território que tem o nome de Decápolis,
porque consta de dez cidades. Vespasiano chegou primeiro e lá esperou o filho.
Depois da chegada deste, avançou mais, com três legiões; foi acampar a três
estádios de Tiberíades, num lugar denominado Senabris, de onde podia ser
visto pelos revoltosos. De lá mandou um oficial de nome Valeriano, com
cinqüenta cavaleiros para exortar os seus habitantes a permanecerem fiéis, pois
ele soube que o povo era dessa opinião, e somente por violência eles haviam
tomado as armas, coagidos por alguns revoltosos. Quando Valeriano estava
perto da cidade, desceu do cavalo e mandou seus homens fazer o mesmo, para
mostrar que não vinha como inimigo. Mas os revoltosos, comandados por
Jesus, filho de Tobias, que era chefe de ladrões, atacaram-nos antes que ele
tivesse tido tempo de falar. Valeriano, surpreendido com tal ousadia, e não
ousando combater sem ordem do seu general, mesmo tendo certeza de vencer,
não vendo probabilidade de poder sustentar, com tão poucos homens, e em
desordem, um numero tão grande de inimigos, que vinham em ordem contra
ele, quis salvar-se a pé, com cinco outros, que também não haviam tido tempo
de alcançar seus cavalos. Os velhacos apanharam-lhes os animais, levaram-nos
à cidade e mostraram-se mais orgulhosos com isso do que se tivessem vencido
uma guerra.
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CAPÍTULO 32
OS PRINCIPAIS HABITANTES DE TIBERÍADES IMPLORAM A CLEMÊNCIA DE
VESPASIANO E ELE PERDOA - LHES EM ATENÇÃO AO REI AGRIPA. JESUS, FILHO
DE
 TOBIAS , FOGE DE TIBERÍADES PARA TARIQUÉIA. VESPASIANO É RECEBIDO
EM
 TIBERÍADES E EM SEGUIDA CERCA T ARIQUÉIA.
279. Essa má ação deu tanto motivo de temor aos habitantes de
Tiberíades, que, governados por Agripa, seu rei, eles se foram lançar aos pés de
Vespasiano, para rogar-lhe que tivesse compaixão deles e que não atribuísse a
toda a cidade o crime de alguns; mas perdoasse a um povo que sempre fora
afeiçoado aos romanos e se contentasse em castigar os revoltosos que lhes
haviam impedido abrir-lhe as portas. Vespasiano, comovido com suas palavras
e pelo receio que Agripa sentia por aquela cidade, determinou perdoá-los,
embora se sentisse muito ofendido por lhe terem tomado aqueles cavalos.
Assim, garantiu ao povo que não lhe faria mal algum; quando Jesus e seus
revoltosos viram que não havia mais segurança para eles, fugiram para
Tariquéia.
280. Vespasiano mandou no dia seguinte Trajano com a cavalaria para
apoderar-se da fortaleza e averiguar se todo o povo tinha mesmo os sentimentos
que aqueles homens lhe haviam manifestado. Tendo constatado que de fato era
assim mesmo, relataram-no a Vespasiano, o qual marchou para a cidade com
todo o exército. Os habitantes compareceram à sua presença, com grandes
aclamações, chamando-o de benfeitor e salvador. Suas tropas avançavam
lentamente porque as portas eram muito estreitas; mandou então derrubar um
pedaço do muro, da parte do sul e proibiu ao mesmo tempo, em atenção a
Agripa, que se fizesse qualquer mal aos habitantes. Confirmou ao príncipe a
graça que lhe havia concedido, de não mandar derrubar o restante dos muros,
ante a palavra que lhe deu, de que a cidade permaneceria tranqüila; não houve
cuidados que o príncipe não tomasse, para aliviar os males, que a divisão em
que se encontrava lhe tinham causado.
Vespasiano partiu de Tiberíades para ir acampar perto de Tariquéia e
fortificou o acampamento com um muro, porque achou que o cerco daquela
cidade iria durar muito tempo, pois os revoltosos lá se haviam reunido,
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confiantes em sua força e na que lhes dá o lago de Genesaré. A cidade é como
Tiberíades, construída sobre uma montanha; nos lugares onde não é defendida
pelo lago, Josefo a fizera rodear por uma muralha muito forte cujo perímetro
não era menor que o de Tiberíades. Desde o começo da revolta, para lá havia
feito levar todo o dinheiro e todas as provisões possíveis e a tinha posto assim
em condições de gozar de grandes vantagens. Os sitiados tinham ainda, a mais,
sobre o lago, várias barcas armadas, que lhes podiam servir em combates nas
águas e, para nelas se salvarem, se a luta em terra não lhes fosse favorável.
Jesus e os de seu partido, sem se intimidarem nem com numerosas forças
dos romanos nem com sua disciplina, deram um furioso assalto contra os que
fortificavam o acampamento, afugentaram os trabalhadores, derrubaram uma
parte do muro, antes que eles pudessem impedi-lo e só se retiraram quando
viram os inimigos reunidos em tão grande número que não lhes poderiam
resistir. Os romanos perseguiram-nos até o lago, onde, entrando nas barcas,
colocaram-se fora do alcance dos dardos e das flechas. Lançaram as âncoras ao
largo e todas as barcas ficaram em ordem de batalha, apertadas umas contra
as outras, parecendo que, de sobre as águas, queriam combater contra os
romanos, que estavam em terra. Vespasiano soube que naquele mesmo tempo
haviam aparecido muitos judeus, em um lugar perto da cidade; então, para lá
mandou seu filho, com seiscentos cavaleiros, escolhidos entre os melhores de
suas tropas.
CAPÍTULO 33
TITO DECIDE, COM SEISCENTOS CAVALEIROS, ATACAR UM NÚMERO MUITO
GRANDE DE JUDEUS QUE SAÍRA DE
 TARIQUÉIA. DISCURSO QUE ELE FAZ AOS
SEUS, PARA ANIMÁ - LOS AO COMBATE.
281. O grande número de inimigos obrigou Tito a mandar dizer a
Vespasiano que tinha necessidade de mais soldados, para atacá-los. Mas, antes
que o reforço tivesse chegado, vendo que aquela grande multidão havia
atemorizado os seus, embora a maior parte mostrasse que não os temia, assim
falou-lhes, de um lugar alto, de onde todos podiam ouvi-lo: "Romanos! É por
nomeá-los que eu começo, porque esse nome tão glorioso basta para pôr diante
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de vossos olhos as ações heróicas dos vossos antepassados ilustres; falarei em
seguida daqueles contra os quais deveis combater. No que depende de vós, que
nação em toda a terra ousou resistir-nos e contra a qual não fomos sempre
vencedores? Quanto aos judeus, é preciso convir que, ainda que eles tenham
sempre sucumbido sob a força de nossas armas, jamais se deram por vencidos.
Que motivo haveria, então de termos menos coragem na prosperidade, do que
eles na
 adversidade? Mas noto
 com
 alegria
 em vossos rostos
 vossa
generosidade, mas temo que o grande número de inimigos atemorize a alguns
de vós. É isso que me obriga a vos exortar a vos lembrardes quem sois e quem
são eles. Embora seja verdade que os judeus são corajosos e desprezam a
morte, eles têm tão pouca disciplina e conhecimento da guerra, que por maior
que seja seu número, são mais uma multidão confusa, do que um exército.
Todos sabem, ao contrário, que nada se pode acrescentar à nossa disciplina e à
nossa experiência. Por que, entre todas as nações do mundo, nós somos os
únicos que continuamos, durante a paz, a fazer todos os exercícios da guerra,
se não para não temermos atacar os que são muito mais numerosos do que
nós? De que nos serviriam nossos contínuos exercícios, se não nos tornassem
muito mais temíveis do que aqueles que não têm experiência alguma?
Considerai também que combateis armados, contra homens quase sem armas,
com cavalaria contra infantaria e com excelentes chefes contra tropas, que
podemos dizer, não os têm. Pensai que tantas vantagens que tendes sobre eles
lhes devem diminuir o número e em vosso espírito aumentar o vosso. Por mais
valentes que sejam os inimigos que temos de combater, embora sejam em
número muito maior, não deixaremos de vencê-los, quando os atacarmos com
coragem, porque podemos mais facilmente conservar a ordem e socorrer-nos a
nós mesmos, ao passo que a grande quantidade de tropas, recebe, o mais das
vezes, muito mais prejuízo pela confusão que traz, do que pelas armas inimigas.
A ousadia, o desespero, o furor em que consiste a principal força dos judeus,
pode sem dúvida servir muito quando ajudado pela sorte, mas o menor
insucesso apaga essa grande chama e a torna inútil e desprezível. Ao contrário,
o proceder, a firmeza e a coragem que nos fazem levar tão além a felicidade de
nossas armas não nos deixam, quando essa felicidade nos abandona. Que
vergonha
 para
 nós demonstrar
 menos coragem, em
 confirmar nossas
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conquistas e sustentar nossa glória, do que os judeus para defender sua
liberdade e sua pátria? E depois de termos dominado toda a terra, poderíamos
tolerar que esse povo tivesse por mais tempo a ousadia de nos resistir? Que
temos nós a temer, quando mesmo nos sentíssemos muito fracos? Nosso
auxílio está tão perto que restauraria o combate. Mas sozinhos teríamos a
honra dessa vitória, se sem esperarmos o auxílio que meu pai nos mandará,
sem permitir que eles tomem parte na luta, nós os combatêssemos. Trata-se
hoje do juízo que se deve fazer de meu pai, de mim e de vós; dele, para saber se
merece a alta reputação que tantos grandes feitos lhe granjearam; de mim, para
se conhecer se sou digno de ser seu filho e de vós, para se ver se eu devo me
julgar feliz por vos comandar. Como meu pai está acostumado a vencer sempre,
com que olhos poderia ele me contemplar se eu fosse vencido? Poderíeis vós
tolerar a vergonha de não serdes vitoriosos, vendo que vosso chefe despreza os
maiores perigos para vos abrir o caminho da vitória? Segui-me, então, com
firme confiança de que Deus nos ajudará no combate e não duvideis de que
venceremos muito mais facilmente os inimigos, aproximando-nos deles, do que
atacando-os apenas de longe."
CAPÍTULO 34
TITO DERROTA UM GRANDE NÚMERO DE JUDEUS E EM SEGUIDA APODERA- SE DE
TARIQUÉIA.
282. Estas palavras de Tito inspiraram aos seus soldados tal entusiasmo
e desejo de combater, que pareciam ter algo de divino; eles viram com tristeza
Trajano chegar com quatrocentos soldados de cavalaria, porque consideravam
uma diminuição de glória, a parte que eles tivessem na vitória. Vespasiano
mandou também nesse mesmo tempo Antônio Silom, com dois mil arqueiros
ocupar a montanha em frente da cidade, a fim de impedir, como fizeram, que
aqueles que deviam montar guarda nas muralhas, se apresentassem para
defendê-las. Tito, para parecer mais forte, colocou seus soldados em batalha,
sobre uma linha que compreendia também uma grande frente, como a dos
inimigos, impeliu por primeiro seu cavalo para rompê-la e todos seguiram-no
com grandes gritos. Os judeus, embora assustados com tal ousadia e tanta
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ordem, opuseram alguma resistência; mas, não podendo por mais tempo
resistir à cavalaria, foram calcados sob as patas dos cavalos; muitos morreram
ali mesmo e outros fugiram em desordem para a cidade. Os romanos
perseguiram-nos com ardor, mataram os da retaguarda, anteciparam-se aos
outros, pela rapidez de seus cavalos e feriram a muitos e obrigaram os que já
estavam perto das trincheiras a voltar para o campo; lá mataram-nos quando,
em tanta desordem, eles caíam uns sobre os outros. Dessa grande multidão só
se salvaram os que puderam voltar à cidade.
Ocorreu então uma grande divergência entre os habitantes e os
estrangeiros; os primeiros, que se tinham contra vontade imiscuído nessa
guerra, tinham por isso muito maior aversão, depois de tão infeliz resultado;
estes, cujo número era muito grande, continuavam a obrigá-los a isso. Assim,
surgiu uma grande dis-sensão, como era fácil de se imaginar pelos gritos, que
eles estavam prestes a combater entre si mesmos. Como Tito estava perto das
muralhas, pôde ouvi-los facilmente e para aproveitar a ocasião disse aos seus
com um tom de voz que poderia animá-los ainda mais: "Por que vos demorais,
companheiros, em conquistar a vitória que Deus colocou em vossas mãos? Não
ouvis os gritos dos que a fuga salvou da vossa vingança? A cidade é nossa,
contanto que a ataquemos com rapidez e coragem. Não poderíamos, de outro
modo, nada fazer de grande. Mas não perdendo um só momento, nossos
inimigos não terão a oportunidade de se reunir, nem nossos amigos, tempo de
nos vir ajudar. Assim acrescentaremos à vitória que acabamos de conquistar
com tão poucos homens sobre um número tão grande, a honra de termos
sozinhos nos apoderado da cidade".
Depois de ter assim falado, montou a cavalo e seguido pelos seus, atacou
do lado do lago e foi o primeiro a entrar na cidade. Tão extraordinária ousadia
espantou de tal modo os que estavam de guarda daquele lado, que fugiram;
Jesus, com os dele, fugiu para o campo; outros correram para o lago e caíram
nas mãos dos romanos; outros eram mortos, quando queriam subir às barcas;
outros ainda, quando tentavam a nado alcançar os que estavam mais
afastados. A matança era, ao mesmo tempo, muito grande, na cidade, não sem
resistência dos estrangeiros, que não tinham podido fugir com Jesus; mas os
habitantes da cidade não se defendiam, porque, não tendo aprovado a guerra,
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esperavam que os romanos os perdoassem.
Tito, depois de ter dizimado os revoltosos, ordenou que poupassem o
povo; os que se haviam salvado no lago, vendo a cidade tomada, afastavam-se
quanto mais possível. Pode-se imaginar a alegria de Vespasiano ante este
glorioso resultado, por seu filho, que, se podia dizer, tinha terminado uma
grande parte daquela guerra. Ele ordenou imediatamente que vigiassem toda a
cidade e seus arredores, a fim de que ninguém pudesse escapar; foi no dia
seguinte ao lago e ordenou que se fizessem barcos para perseguir os que ali se
haviam refugiado. Como havia na cidade grande abundância de material para
isso e muitos operários, em poucos dias eles os fizeram em grande número.
CAPÍTULO 35
DESCRIÇÃO DO LAGO DE GENESARÉ, DA ADMIRÁVEL FERTILIDADE DA TERRA DOS
ARREDORES E DA NASCENTE DO
 J ORDÃO.
283. O lago de Genesaré toma seu nome da terra que o rodeia. Seu
comprimento é de cem estádios e tem quarenta de largura. Não há rios, nem
mesmo fontes, que sejam mais tranqüilos. Sua água é muito boa para se beber
e muito fácil de se obter, porque nas suas margens há apenas um cascalho
muito leve. É tão fria, que não perde nem mesmo a sua temperatura quando
posta ao sol, pelos habitantes, segundo o costume, para esquentá-la, durante
os dias mais quentes do verão. Há grande quantidade de peixes de todas as
espécies, que não são encontradas em outros lugares. O Jordão atravessa o
lago, bem no meio; parece que tem a sua origem de Paniom. Mas a verdade é
que ele vem por baixo da terra de uma outra nascente, chamada Fiala, distante
cento e vinte estádios de Cesaréia, do lado direito, perto do caminho por onde
se vai a Traconítida. E tão redonda que por isso mesmo recebeu o nome de
Fiala e enche sempre de maneira igual a sua concavidade que jamais é vista
vazia ou cheia. Sempre se havia ignorado até Herodes, o tetrarca, que essa
nascente era a origem do Jordão; mas esse príncipe lá lançou palha e depois
encontrou-se também certa quantidade de palha na nascente de Paniom, de
onde não se imaginava antes que esse rio procedesse. A nascente de Paniom é
naturalmente muito bela, mas a magnificência do rei Agripa ainda a embelezou
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muito mais. Depois que o Jordão, que parece ter ali o seu início, atravessa os
pantanais lodosos do lado de Semechonite, e continua seu curso por outros
cento e vinte estádios, passa abaixo da cidade de Julíada, através do lago de
Cenesaré, de onde depois de ter ainda corrido durante um longo espaço, no
deserto, ele se dirige para o lago Asfaltite.
A terra que rodeia o lago de Genesaré e que tem o mesmo nome é igual-
mente admirável por sua beleza e pela sua fecundidade. Não há plantas que aí
a natureza não produza nem algo que a arte e o trabalho dos que nela moram,
não contribua, para que tal vantagem não lhes seja inútil. O ar é tão temperado
que se torna próprio para toda espécie de frutos. Aí vemos em grande quanti-
dade nogueiras, árvores que se adaptam muito bem aos climas mais frios e as
que têm necessidade de mais calor, como as palmeiras, de um ar doce e mode-
rado, como as figueiras e as oliveiras; aí encontram não menos, tudo o que
desejam; de modo que parece que a natureza, por um esforço de seu amor por
esse belo país, tem prazer em aliar coisas contrárias, e por uma agradável com-
binação, todas as estações favorecem constantemente essa feliz terra, porque
ela não somente produz tão excelentes frutos, mas são eles ainda conservados
por tanto tempo, que se podem comer durante seis meses, uvas, figos e outros
frutos, durante todo o ano. Além da temperatura do ar, correm as águas de um
rio mui abundante, de nome Capernaum, que alguns julgam ser um pequeno
afluente do Nilo, porque aí encontramos peixes semelhantes ao Coracim, de
Alexandria, que só é encontrado ali e naquele grande rio. A extensão desse país,
ao longo do lago de Cenesaré, que tem o mesmo nome, é de trinta estádios e
sua largura, de vinte.
CAPÍTULO 36
COMBATE NAVAL, ONDE VESPASIANO DERROTA, NO LAGO DE GENESARÉ, A TODOS OS
QUE HAVIAM ESCAPADO DE
 TARIQUÉIA.
284. Os navios que Vespasiano mandara construir ficaram prontos, foram
postos no lago e ele embarcou com tantos soldados quantos necessários para a
empresa que intentava, contra os que haviam fugido para o lago. Então não
lhes restanteu mais esperança de salvação. Eles não ousavam vir por terra,
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porque lá tudo lhes era contrário; só podiam, com extrema desvantagem,
combater sobre as águas, porque suas barcas, que eram próprias para assaltos
e pirataria, eram muito fracas para resistir aos navios e tendo poucos homens
em cada uma delas, não ousavam atacar os romanos. Por isso, o mais que
podiam fazer, era navegar em redor deles, atirando-lhes pedras, de longe e
algumas vezes, mesmo, de perto; mas quer de um modo quer de outro,
causavam-lhes pouco mal, recebendo ao contrário, graves perdas e prejuízos.
Aquelas pedras só faziam barulho contra as armas dos romanos e quando se
aproximavam eram atirados à água, e suas barcas reviradas. Os romanos
matavam a golpes de dardos os que lhes estavam ao alcance das armas e a
golpes de espada, os que estavam nas barcas. Aprisionaram ainda outros com
barca e tudo, quando rodeados por mais de uma embarcação; matavam a
golpes de flechas, ou faziam afundar com as barcas, os que procuravam salvar-
se; cortavam a cabeça ou as mãos, aos que, no auge do desespero a eles
vinham nadando. Assim aqueles infelizes iam perecendo um por um, de
maneiras diferentes, até que, inteiramente derrotados e querendo fugir para a
terra, foram mortos no lago, a flechadas, e os outros, que estavam perto da
terra, bem como os que já tinham desembarcado não tiveram melhor sorte, de
tal modo, que nem um só escapou com vida, naquela horrível matança. O lago
estava todo vermelho de tanto sangue, suas margens, cheias de náufragos e
ambos cobertos de cadáveres.
Poucos dias depois, aqueles corpos inchados e lívidos corromperam o ar
de tal modo, com seu mau cheiro, que toda aquela região ficou contaminada. O
espetáculo era tão horrível que não somente causava espanto aos judeus, mas
obrigava os romanos a se lastimarem também, embora eles mesmos fossem os
culpados de tudo. Tal o desenlace do combate naval, que pereceram nele e na
cidade cerca de seis mil e quinhentos homens.
Vespasiano, depois desses dois feitos, subiu a Tariquéia, ao seu tribunal,
para deliberar com os principais do seu exército, se haveria de tratar menos
favoravelmente do que aos habitantes, os estrangeiros que tinham sido causa
da guerra ou se lhes perdoaria também, conservando-lhes a vida. Todos foram
de opinião que os matassem, porque jamais ficariam em paz, se continuassem
em liberdade, mas obrigariam a fazer novas guerras, àqueles com os quais
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convivessem. Vespasiano não duvidava de que eles eram indignos de perdão e
de que se lho concedesse, não se insurgiriam contra os que lhes haviam salvado
a vida; mas estava hesitante de como fazê-los morrer, porque se os fizesse
executar em Tariquéia, seus habitantes veriam com grande dor, derramar-se o
sangue daqueles pelos quais haviam intercedido e não queria dar tal desgosto
aos que se haviam entregue ao seu domínio, ante a promessa de tratá-los bem.
Julgou, entretanto, não se dever opor aos sentimentos de tantos oficiais, que
afirmavam não haver rigor de que se não devesse usar contra os judeus e que
era necessário preferir o útil ao honesto numa ocasião em que, como naquela,
não se podia satisfazer a ambos. Assim, permitiu aos estrangeiros que se
retirassem pelo único caminho que leva a Tiberíades; e como se acredita
facilmente naquilo que se deseja, eles partiram sem temer, nem que se tentasse
contra sua vida, nem que se lhes tirasse o dinheiro. Os romanos, para impedir
que algum escapasse, levaram-nos a Tiberíades e os encerraram na cidade.
Vespasiano chegou logo depois e mandou colocá-los no lugar dos exercícios
públicos. Ali fez matar todos os velhos e os incapazes de pegar em armas, em
número de mil e duzentos; mandou a Nero seis mil homens fortes e robustos
para trabalhar no istmo da Moréia. O povo foi feito escravo; foram vendidos
trinta mil e quatrocentos deles; o restante foi dado a Agripa, para fazer o que
quisesse dos que eram do seu reino. Os outros eram da Traconítida, da
Galaunita, de Hipom e vários de Gadara, dos quais a maior parte eram
revoltosos e fugitivos, que não podendo viver em paz, tinham insuflado a
guerra. Haviam sido aprisionados no dia oito de setembro.
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Livro Quarto
CAPÍTULO 1
C IDADES DA GALILÉIA E DA GALAUNITA QUE AINDA ERAM CONTRA OS ROMANOS.
NASCENTE DO PEQUENO JORDÃO.
285. As praças da Galiléia que se tinham revoltado contra os romanos,
depois da tomada de Jotapate, voltaram à obediência, quando eles tomaram
também Tariqueia. Assim apoderaram-se de todas as cidades e de todas as
praças fortificadas, exceto Giscaia e o monte Itaburim. Gamala, que está
situada no lago, em frente de Tariqueia e que depende do reino de Agripa,
também se tinha revoltado; Sogam e Selêucia, que são da Galaunita, haviam-
lhe seguido o exemplo. Sogam está na parte superior dessa província, e
Gamala, na inferior. Selêucia está situada no lago de Semechom, tem de
extensão sessenta estádios e de largura, trinta e a maré chega até Dafné. Além
das outras vantagens da natureza que tornam esse país muito delicioso, há
nascentes que aumentam o rio chamado pequeno Jordão, no lugar do Templo
do boi dourado, onde desemboca no grande Jordão. O rei Agripa tinha desde o
começo da revolta feito um tratado com os de Sogam e de Selêucia.
CAPÍTULO 2
SITUAÇÃO E FORÇA DA CIDADE DE GAMALA.VESPASIANO CERCA-A. O REI AGRIPA QUER
PERSUADIR OS SITIADOS A SE ENTREGAREM E É FERIDO COM UMA PEDRADA.
286. Gamala, confiando em sua situação, que é ainda muito mais forte
que a de Jotapate, não quis entrar naquele tratado. Ela está construída sobre
uma colina, que se eleva do meio de um alto monte, o que lhe mereceu o nome
de Damel, que significa camelo; mas os habitantes corromperam-no e o
chamam de Damal, em vez de Damel. Sua frente e seus lados são protegidos
por vales inacessíveis. O lado que está perto da montanha não é difícil de se
abordar, mas os habitantes tornaram-no também inacessível, por uma grande
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trincheira que ali cavaram. Os sopés estão cobertos de grande número de
casas; olhando-se do lado do sul a cidade, construída como sobre um precipí-
cio, parece que está prestes a desabar. Eleva-se desse mesmo lado uma colina
muito alta; o vale que lhe está ao pé, é tão profundo que servia de fortaleza; e
no lugar onde terminava a cidade, havia uma fonte, dentro de suas muralhas.
Parecia que a natureza sentia prazer em tornar essa praça inexpugnável e
josefo lá tinha feito grandes fossas e várias minas. Seus habitantes eram ainda
mais valentes do que os de Jotapate, e embora não fossem tão numerosos, sua
confiança na força de sua cidade e na grande abundância de todas as coisas,
tornavam-nos negligentes e tirava-lhes o temor de seus inimigos; lá se reuniram
e para lá levaram bens de todas as partes, como a um lugar garantido e seguro;
o rei Agripa a tinha inutilmente sitiado durante sete meses.
287. Vespasiano levantou o acampamento de Amaus, perto de Tiberíades,
que tem esse nome por causa de uma fonte de água quente que cura diversas
doenças, e foi para Gamala. A situação da praça não lhe permitiu rodeá-la com-
pletamente, por uma circunvalação, mas fortificou todos os quarteirões, que
podiam ser fortificados e ocupou o monte que está acima da cidade. Os roma-
nos, segundo o costume, fortificaram o acampamento, rodearam-no com um
muro e dividiram seus trabalhos. A décima quinta legião encetou aquele onde
havia uma torre construída no lugar mais alto da cidade do lado do oriente; a
quinta legião, o que está fronteiro ao centro da cidade e a décima enchia as
fossas e outros lugares vazios.
288. O rei Agripa aproximou-se das fortificações para exortar os sitiados
a se entregarem, mas foi ferido no cotovelo direito por uma pedrada. Aquela
ferida pôs os seus em grande aflição e irritou muito os romanos, quer pelo afeto
que tinham por ele, quer porque não duvidavam de que, se os judeus tinham
tão pouco respeito por um príncipe da sua nação, não haveria crueldades de
que eles não fossem capazes contra os estrangeiros.
CAPÍTULO 3
OS ROMANOS TOMAM GAMALA E SÃO DEPOIS OBRIGADOS A SAIR DE LÁ
COM GRAVES PERDAS.
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289. A atividade infatigável dos romanos, unida ao seu grande número,
fê-los terminar seus trabalhos em pouco tempo e então eles colocaram as
máquinas. Charés e José, dois dos mais influentes da cidade, dispuseram seus
homens e exortaram-nos a se defenderem com coragem, porém os mais
sensatos não estavam muito tranqüilos porque não acreditavam poder
sustentar um cerco tão prolongado, pois tinham falta de água e de várias
outras coisas necessárias. Assim resistiram somente um pouco; quando se
sentiram atingidos pelos dardos e pelas pedras, que as máquinas atiravam,
retiraram-se para a cidade. Os romanos, depois de terem feito uma brecha com
o aríete, atacaram por três lugares ao mesmo tempo e o ruído de suas
trombetas e de suas armas aumentou ainda mais com o vozerio dos habitantes.
Os sitiados resistiram muito e corajosamente, até que se sentiram oprimidos
pelo grande número dos inimigos; foram então obrigados a ceder e a se retirar
para os lugares mais elevados da cidade, mas os romanos perseguiram-nos e os
atacaram; dispersaram-nos e os mataram nas ruas estreitas e inclinadas onde
eles não podiam ficar de pé para se defender. Lançaram-se em massa para se
salvar sobre as casas que estavam abaixo; como elas eram mal construídas, tão
grande peso as fazia desmoronar; caindo, faziam também cair outras, e estas
ainda outras; os romanos, entretanto, preferiam isso a ficar num lugar
descoberto. Muitos foram assim exterminados; outros, sufocados pela poeira;
outros estropiados e assim um grande número morreu. Os sitiados que viam
com prazer caírem suas casas, apertavam-nos cada vez mais por obrigá-los a
sair de lá e matavam do alto, a golpes de dardos os que caíam nos caminhos
escorregadios. As ruínas das construções forneciam-lhes pedras; os mortos,
davam-lhes armas e eles se serviam das espadas dos que ainda respiravam
para acabar de matá-los. Vários romanos mataram-se, atirando-se para baixo,
para se salvar das casas, que viam prestes a desabar; os que podiam fugir não
sabiam para onde ir, porque não conheciam os caminhos e a poeira era tão
espessa que não se podiam reconhecer e por isso lançavam-se uns contra os
outros. Os que podiam escapar saíam logo da cidade.
CAPÍTULO 4
VALOR EXTRAORDINÁRIO DE VESPASIANO NESSA OCASIÃO.
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290. Tito não estivera nesse perigo, porque algum tempo antes tinha sido
mandado à Síria contra Mutiem. Mas Vespasiano lá esteve todo o tempo e
jamais sofreu tanto, por ver assim seus homens esmagados pelos escombros de
uma cidade que eles tinham tomado. Colocara-se num lugar bem elevado, de
onde, embora estivesse ainda em extremo perigo, não quis fugir, porque julgava
vergonhoso e perigoso voltar as costas aos inimigos. Os grandes feitos que
haviam tornado sua vida gloriosa vinham-lhe à memória e animavam-no a nada
fazer indigno de sua virtude; como se Deus o ajudasse particularmente, num
perigo tão grave, ele ficou com aquele pequeno número de homens no mesmo
lugar; cobrindo-se com as armas, ficaram firmes, para resistir aos dardos que
lhes eram atirados do alto. Tão grande coragem e valor parecia aos judeus ter
algo de divino; a admiração diminuiu sensivelmente os esforços e quando esse
grande general viu que eles não atacavam mais, retirou-se pouco a pouco e só
lhes voltou as costas quando já estava fora da cidade. Esta luta custou a vida a
um grande número de romanos, dentre outros a Ebúcio, que se havia
distinguido em tantos combates e que tinha causado tantos danos aos judeus.
Um oficial chamado Callo que se havia escondido numa casa com dezessete
soldados, sírios, tendo ouvido à noite, aqueles que ali moravam, falar, à mesa,
da maneira como tinham deliberado agir contra os romanos, matou-os todos
durante a noite e salvou-se com os seus no acampamento, sem ter recebido mal
algum.
CAPÍTULO 5
PALAVRAS DE VESPASIANO AO SEU EXÉRCITO, PARA CONSOLÁ-LO DO MAU
ÊXITO QUE TIVERA .
291. Como os romanos jamais haviam tido tão mau êxito, Vespasiano,
vendo os seus muito abatidos pela dor de tal perda e mais ainda pela vergonha
de tê-lo abandonado em tão grande perigo, tudo fez para consolá-los; não quis
falar de si mesmo para não parecer que lhes fazia censuras. Contentou-se em
dizer-lhes que era necessário suportar generosamente as adversidades comuns
a todos os homens; que jamais se conquistam vitórias sem derramamento de
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sangue; que a sorte deixaria de se sorte, se fosse constante; e como ela se
compraz com as mudanças, não deveriam achar estranho que lhes tivesse feito
sentir por aquela pequena perda, a gratidão que lhe deviam por tê-los feito
obter tantas vantagens sobre os judeus e que não há menos covardia em se
deixar abater pelos maus resultados do que insolência em se gabar dos
favoráveis. "Considerai, pois", acrescentou ele, "que podemos passar em um
momento de uns aos outros, que são verdadeiramente valentes aqueles cuja
alma permanece inalterável na felicidade e na desgraça e que sabem se
aproveitar das adversidades. O que nos aconteceu não deve ser atribuído nem à
falta de coragem de nossa parte, nem ao valor dos judeus. A natureza combateu
por eles contra nós; é unicamente a ela que eles devem não termos nós sido os
vencedores, depois de os termos vencido. Se tivéssemos que vos censurar seria
somente por esse excesso de coragem que vos fez perseguir os inimigos até a
parte mais alta da cidade, que lhes dava vantagem sobre vós, quando vos
devíeis contentar de vos terdes tornado senhores da cidade baixa e de obrigá-
los em seguida a travar um combate que a dificuldade de tal posição não teria
tornado tão desigual. Mas devemos reparar com um procedimento bem sensato
a falta que um excessivo ardor vos fez cometer. Essa impetuosidade
inconsiderada é indigna dos romanos, que nada devem fazer imprudentemente;
ela é própria dos bárbaros e devemos deixá-la para os judeus. Retomemos pois
nossa maneira ordinária de agir. Que esse mau êxito em vez de nos assustar,
nos incite pelo desprazer de lhe termos dado motivo e que cada qual procure na
sua coragem e na sua espada consolar-se pela perda de seus amigos, matando
os que lhes tiraram a vida. Dar-vos-ei o exemplo, continuando a me expor por
primeiro ao perigo e a dele retirar-me por último."
292. Estas palavras de tão grande general restituíram a alegria a todo o
exército. Os sitiados, por seu lado, sentiram também muito prazer, primeiro,
pela vantagem que tinham obtido contra toda espécie de probabilidade; prazer
que depressa cessou, porque eles não podiam mais esperar, nem entrar num
acordo, nem escapar e começavam também a lhes faltarem os alimentos. Assim
começaram a perder a coragem; mas não deixaram, nesse desânimo, de
trabalhar com todas as suas forças, para se defenderem. Os mais valentes
tomaram a guarda da brecha, os outros, a das muralhas que estavam intactas.
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Os romanos reconstruíram suas plataformas para um novo ataque. Vários
habitantes fugiram para os vales mais bem defendidos, onde não se punham
guardas; outros, para os esgotos, onde aqueles que não ousavam sair com
medo de serem aprisionados, morriam de fome. Reunia-se tudo o que havia de
alimentos para os que ainda estavam em condições de combater e para aqueles
aos quais o extremo a que estavam reduzidos não fazia perder a coragem.
CAPÍTULO 6
VÁRIOS JUDEUS FORTIFICAM-SE NO MONTE HABURIM E VESPASIANO MANDA PLÁCIDO
CONTRA ELES; SÃO TOTALMENTE DERROTADOS.
293. A preocupação que este cerco tão difícil dava a Vespasiano não lhe
impedia, porém, de pensar ao mesmo tempo em dispersar os judeus que
haviam ocupado o monte Itaburim. Esse monte, onde uma grande multidão de
povo se havia reunido e cuja altura é de trinta estádios, está situado entre o
Campo Grande e Citopolis. É inacessível pelo lado do norte e há no seu vértice
uma planície de vinte e seis estádios. José e os judeus que o seguiram tinham-
no rodeado de muralhas, em quarenta dias, embora ele não tivesse água
naquele lugar, a não ser a que caía do céu; mas haviam-na providenciado em
baixo com o material necessário para essa obra.
294.
 Vespasiano para lá mandou Plácido, com seiscentos cavaleiros e
como teria sido imprudência atacar os judeus com tão poucas tropas, quando
eles estavam no monte, contentou-se em exortá-los à paz, com a promessa de
perdoá-los. Vários adiantaram-se para ele, fingindo estarem de acordo, mas
com a intenção de atacá-lo, de improviso. Ele tinha, por seu lado, o mesmo
intento e conseguiu o que queria, pois falando-lhes com mais suavidade atraiu-
os insensivelmente para o campo. Lá os judeus atacaram-no; ele fingiu querer
fugir, e quando eles se adiantaram muito na planície, Plácido fez meia volta,
matou muitos, dispersou e afugentou os outros, impedindo que voltassem para
o monte. Os que lá haviam ficado abandonaram-no, em seguida, a fim de fugir
para Jerusalém e os habitantes do lugar entregaram-se a Plácido porque
sentiam muita falta de água.
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CAPÍTULO 7
DE QUE MANEIRA A CIDADE DE GAMALA FOI POR FIM TOMADA PELOS ROMANOS. TITO FOI
O PRIMEIRO A ENTRAR NA CIDADE.
 GRANDE CARNIFICINA.
295.
 No entanto, uma grande parte dos sitiados em Gamala, que
pareciam ser os mais corajosos, escondia-se para se salvar. Os que não podiam
pegar em armas, morriam de fome; havia apenas um pequeno número de
verdadeiros valentes que ainda sustentavam o cerco; no dia vinte e dois de
outubro, três soldados da décima quinta legião, que estavam de guarda,
aproximaram-se mansamente, antes da noite, do pé da mais alta das torres da
cidade que estava do seu lado. Lá, com o auxílio das trevas e sem que os
guardas daquela torre o percebessem, arrancaram-lhe dos alicerces, cinco
grandes pedras, e retiraram-se imediatamente. A torre caiu em seguida, com
grande ruído e esmagou sob seus escombros todos os que nela estavam. Esse
imprevisto acontecimento lançou tal espanto no espírito dos que defendiam os
outros postos, que fugiram para todos os lados e os que saíam da cidade para
se salvar, eram mortos pelos romanos. Charés estava então muito doente e o
temor que sentiu apressou sua morte.
Os romanos, lembrando-se do que lhes havia acontecido antes, não
ousavam entrar na cidade; queriam esperar até o dia seguinte. Mas Tito, que já
estava de volta, animado pelo ressentimento da desgraça que haviam sofrido
durante sua ausência, entrou mansamente, com duzentos cavaleiros e alguns
soldados escolhidos. Imediatamente espalhou-se a notícia, por toda a cidade, de
sua chegada. Uma parte dos sitiados fugiu desesperada para o castelo, levando
as mulheres e as crianças; outros, foram apresentar-se a Tito, mas foram
mortos por seus soldados; outros, não podendo entrar no castelo e não sabendo
o que fazer, atacaram os corpos de guarda dos romanos. A imagem da morte
campeava por toda a parte de diferentes maneiras; o ar ecoava lugubremente
com tantos uivos e gemidos e toda a cidade estava imersa em rios de sangue,
que corriam dos lugares elevados.
Vespasiano levou todas as suas tropas contra o castelo. Estava ele
situado sobre o vértice da montanha num lugar pedregoso e de dificílimo
acesso, todo rodeado de rochedos e tão elevado que as flechas atiradas pelos
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romanos não chegavam até lá. Os judeus tinham, ao contrário, a vantagem de
repeli-los facilmente a golpes de dardos e de pedras. Mas como o céu se tinha
declarado em favor dos romanos, contra aquele infeliz povo, começou a soprar
um vento forte que impelia seus dardos para os judeus e trazia os que eles
mesmos lançavam, sem que pudesse chegar até eles. Esse vento impetuoso
fazia também que eles não pudessem ficar de pé nos lugares que deveriam
defender e a espessura da nuvem tirava-lhes a visão dos romanos. Dessa
maneira, estes, tendo chegado ao alto da montanha, rodearam-nos de todos os
lados e a recordação daquele dia que lhes havia sido tão funesto animava-os de
tal modo que mataram indiferentemente os que resistiam e os que se
entregavam. Os outros, não tendo mais esperança de salvação, atiravam as
mulheres e as crianças do alto do rochedo e se precipitavam também, para não
sobreviver, e nisto, sua crueldade para consigo mesmos sobrepujou em número
a que a cólera dos romanos fê-los experimentar: cinco mil pereceram desse
modo e, ao invés, houve somente quatro mil mortos. De restante, nunca
vingança foi tão além como essa dos romanos. Não pouparam nem mesmo às
crianças e desse infeliz povo só restaram duas filhas de Filipe, filho de Joaquim,
homem de alta posição, que tinha sido general do exército do rei Agripa, ainda
que elas não devessem a sua salvação à clemência dos romanos, mas por terem
se escondido, foram encontradas somente depois da matança. Assim nesse dia,
vinte e três de outubro, deu-se a inteira destruição de Gamala, que se tinha
começado a revoltar, a vinte e um de setembro.
CAPÍTULO 8
VESPASIANO MANDA TITO, SEU FILHO, SITIAR GISCALA, ONDE JOÃO, FILHO DE LEVI,
ORIGINÁRIO DESSA CIDADE, ERA CHEFE DOS REVOLTOSOS.
296. Restava então somente Giscala, única cidade da Galiléia que ainda
não tinha sido tomada. Uma parte daqueles que lá estavam, desejava a paz,
porque quase todos eram trabalhadores, cujos bens consistiam em tudo o que
podiam tirar do seu emprego e trabalho. Havia, porém, outros, em muito grande
número e mesmo dos habitantes do lugar, que haviam sido corrompidos pelas
suas relações com os ladrões e assaltantes, e João, filho de Levi, os impelia à
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revolta. Era um homem muito mau, grande mentiroso, inconstante em seus
afetos e que não punha limites às suas esperanças; tudo fazia para conseguir
os seus fins, e ninguém duvidava de que assim procedia pelo desejo de se elevar
em autoridade, incitando com tanto ardor esta guerra. Todos os revoltosos
obedeciam-lhe; embora o povo estivesse bastante disposto a tratar com os
romanos, não podia, porém, fazê-lo pelo temor que tinha dos revoltosos.
Vespasiano ordenou a Tito que marchasse contra aquela praça com mil
cavaleiros, mandou a décima legião a Citópolis e foi com as duas outras a
Cesaréia, a fim de dar ocasião às suas tropas de descansar, depois de tantas
fadigas e pô-las em condições de suportar o que lhes restava ainda a
empreender, pois ele julgava que Jerusalém lhe daria ainda ocasião para isso,
por ser a capital da Judéia extremamente forte e nada era mais difícil do que se
apoderar de uma cidade defendida por um número tão grande de homens,
como o que chegava de todas as partes e cujo extremo valor tornava difíceis de
vencer, mesmo quando a força da praça não lhes aumentasse ainda a coragem.
Assim, ele queria preparar seus soldados para tão grandes objetivos e tão
perigosos combates, como se preparam atletas para as competições.
CAPÍTULO 9
TITO É RECEBIDO EM GISCALA, DE ONDE JOÃO, DEPOIS DE O TER ENGANADO, FOGE DE
NOITE, REFUGIANDO- SE EM
 JERUSALÉM.
297. Depois que Tito viu a cidade de Giscala, achou que era fácil tomá-la,
mas como o sangue derramado em Gamala tinha satisfeito plenamente à sua
vingança, ante as perdas sofridas pelos romanos naquele cerco e sua clemência
tinha horror ao tratamento que os soldados dispensariam sem dúvida aos de
Giscala, confundindo os inocentes com os culpados, se a tomasse de assalto,
resolveu procurar antes conquistá-la pelas boas maneiras. Assim, disse àquele
grande número de homens que lá estavam, dos quais a maior parte eram
revoltosos, que ele não compreendia por que razão, se todas as outras cidades
tomadas se tinham submetido, eles se julgavam os únicos que podiam resistir
ao poder dos romanos, depois de ter visto que as cidades muito mais fortes que
a deles tinham sido tomadas ao primeiro assalto e que as que lhes tinham
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aberto as portas viviam tranqüilamente sob sua proteção. Se queriam fazer
como eles, não insistindo mais num intento que não poderiam absolutamente
conseguir, ele dava-lhes sua palavra de tratá-los do mesmo modo e esquecer as
insolência que haviam tido, em se revoltar, porque julgava dever perdoá-la, com
a esperança de que se iludiam de reconquistar a liberdade. Mas, se recusassem
ofertas tão vantajosas, ele os trataria com todo o rigor, e conheceriam então,
muito tarde, que aquelas muralhas, em cuja força confiavam, ser-lhes-iam
fraca defesa contra as máquinas dos romanos e que eles, embora os mais
corajosos de todos os galileus, por sua culpa, tornar-se-iam escravos.
Tito falou assim e nenhum dos habitantes lhe deu resposta, nem podia
responder-lhe, porque os sediciosos se haviam apoderado das muralhas e
tinham posto guardas em todas as portas, com a proibição de deixar entrar
quem quer que fosse. João tomou a palavra por todos e disse que aceitava o
oferecimento e persuadiria os outros a aceitá-la também ou a isso os obrigaria
pela força; mas rogava que lhe concedesse ainda aquele dia para a observância
de suas leis, que os obrigavam a santificar o sábado e não lhes permitia
outrossim fazer naquele dia tratados de paz, bem como tomar as armas para
fazer a guerra, ao que eles não se podiam opor, nem obrigá-los, sem impiedade;
que aquela demora em nada importaria, pois se alguém quisesse fugir, de noite,
era fácil a Tito impedi-lo, fazendo boa guarda e ele teria mesmo vantagem, pois
sendo sua intenção salvá-los não era uma ação menos digna ter consideração à
observância de suas leis, bem como a eles, o dever indispensável de não as
violar.
Tito não se contentou de lhes conceder o que lhe pediam, mas foi acampar
bem longe da cidade perto de uma aldeia chamada Cidessa, que pertencia aos
tírios e que sempre fora inimiga dos galileus. Mas não era por respeito ao dia de
sábado que João havia falado daquele modo. O temor de ser abandonado, se
fossem atacados, fazia-o pôr sua única esperança na fuga. Seu fim era enganar
Tito e fugir de noite; há motivo de se crer que Deus o quis preservar para a
ruína de Jerusalém.
Chegou a noite e os romanos não montaram guarda; ele, então, fugiu para
Jerusalém e não somente levou consigo o que tinha de soldados, mas também
alguns dos principais habitantes com suas famílias. Como o temor da morte ou
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da escravidão lhes dava coragem e força, eles fizeram vinte estádios de
caminho; os velhos, as mulheres e as crianças não podendo mais, começaram a
clamar e a se queixar; mas os que ficavam viam os outros avançar e abandoná-
los, e eles imaginavam que os inimigos estavam perto e prestes a fazê-los
prisioneiros; o barulho que os mesmos faziam, caminhando, dava-lhes a
impressão de que os perseguiam e eles olhavam continuamente para trás, como
se os outros já estivessem perto. Apertavam-se de tal modo, na fuga, que caíam
uns sobre os outros e nada causava tanta piedade como ver as mulheres e as
crianças pisados na confusão. Algumas, às quais restava ainda um pouco de
força, clamavam com a voz entrecortada de gemidos a seus maridos e parentes
que as esperassem. Mas eles não as escutavam tanto a sua voz como a de João
que lhes dizia pensassem só em se salvar, para alcançarem um lugar de onde
se pudessem vingar dos romanos se os levassem prisioneiros. Aquela multidão,
reduzida aos extremos e em deplorável estado, andava de um lado para outro,
confirme se sentiam ou não, com força.
Quando raiou o dia, Tito aproximou-se da cidade para executar o tratado.
Os habitantes não somente abriram-lhe as portas, mas vieram-lhe à presença
com suas esposas, chamando-o de benfeitor e de libertador. Disseram-lhe que
os perdoasse e que se contentasse em castigar os revoltosos, que ainda estavam
entre eles. Tito mandou, então, uma parte da cavalaria perseguir João, mas ele
chegou a Jerusalém, antes que o pudessem apanhar. Mataram perto de seis mil
dos que tinham fugido com ele, e levaram cerca de três mil mulheres ou
crianças, que estavam espalhados por diversos lugares.
Tito ficou muito desgostoso por não ter podido prender João, para castigá-
lo como ele merecia; mas o grande número de mortos e de prisioneiros acalmou
a sua cólera. Assim, entrou na cidade com espírito de paz, mandou derrubar
apenas uma pequena parte dos muros, para mostrar seu domínio e usou mais
de ameaças do que de castigos com os que tinham sido causa da agitação, não,
porém, que ele não desejasse castigar os culpados, mas porque não duvidava de
que muitos para satisfazer à cólera e ao ódio particulares, acusariam mesmo os
inocentes e nessa dúvida ele preferia deixar viver os culpados, do que fazer
morrer os inocentes, porque os culpados poderiam talvez tornar-se mais
sensatos pela vergonha de recair num crime que lhes havia sido generosamente
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perdoado, ao passo que a injustiça, que teria custado a vida aos inocentes,
seria irremediável.
Deixou uma guarnição na cidade, quer para conter na obediência os que
estivessem dispostos a promover novas agitações, quer para garantir a
tranqüilidade daqueles que só desejavam a paz; e assim terminou a conquista
da Galileia, que custou tanto trabalho aos romanos.
CAPÍTULO 10
JOÃO DE GISCALA FOGE PARA JERUSALÉM E ENGANA O POVO, DIZENDO-LHE
FALSAMENTE DO ESTADO DAS COISAS.
 DIVISÃO ENTRE OS JUDEUS
E MISÉRIAS DA
 JUDÉIA.
298. Quando João e os revoltosos que o haviam seguido chegaram a
Jerusalém, todo o povo reuniu-se junto deles para lhes pedir notícias sobre as
desgraças que havia desabado sobre sua infeliz nação. Estavam eles tão
cansados e ofegantes pela fuga que mal podiam falar, o que respondia muito
bem por eles; nada, porém, fê-los abater o orgulho e eles disseram que não
fugiam dos romanos, mas vinham voluntariamente unir-se a eles, para
combatê-los de um lugar mais vantajoso, porque seria imprudência perecer
inutilmente num lugar tão difícil como Giscala, quando deviam conservar-se
para defender sua capital. João e os seus assim falando, apresentaram a
retirada com um pretexto tão honesto, que muitos acharam que era verdade e a
narração de alguns prisioneiros espantou de tal modo o povo, que ele
considerou a ruína de Giscala como a de Jerusalém. Mas João, sem demonstrar
a menor vergonha, por ter abandonado na fuga um número tão grande de
pessoas, tudo fez para incitá-los à guerra, animando-os com a persuasão de
que eles eram muito mais fortes que os inimigos. Procurava persuadir aos
simples de que mesmo que os romanos tivessem asas, jamais poderiam entrar
em Jerusalém, e disso não havia melhor prova do que o extremo trabalho que
tiveram para tomar pequenas praças da Galiléia, onde todas as suas máquinas
foram destruídas. Os moços deixavam-se enganar por estas palavras, porém, os
mais velhos, os mais sensatos, previam todas as desgraças e já se
consideravam perdidos.
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299. Era grande a perturbação e a confusão que reinavam em Jerusalém;
antes da rebelião que surgiu em seguida, uma parte do povo do campo já se
tinha começado a dividir. Quando Tito, depois da tomada de Giscala, se dirigiu
a Cesaréia, Vespasiano já tinha partido e ele se apoderou de Jamnia e Azoto,
colocou guarnições nas mesmas e levou com ele, regressando, um grande nú-
mero de pessoas que se haviam colocado sob a obediência dos romanos. Todas
as cidades eram agitadas por revoltas e rebeliões e as armas romanas não lhes
davam nem mesmo um momento de folga; elas mesmas, porém, as tomavam
contra si próprias reciprocamente, tal a animosidade entre os que queriam con-
servar a paz e os que desejavam a guerra. A divisão começou pelas famílias que
há muito já eram inimigas; passou depois ao povo, que antes era tão unido e
cada qual se colocava no partido dos que tinham as mesmas idéias e manifes-
tavam-se sem temor quando chegavam a um grande número. Assim, tudo era
agitação e os que desejavam a revolução e a guerra prevaleciam, por sua moci-
dade e coragem, sobre os outros cuja idade, mais madura, levava a abraçar
uma opinião mais sensata.
Em tal confusão cada qual roubava, por primeiro; mas depois de se terem
reunido praticavam abertamente toda sorte de furto e não causavam menos mal
que os romanos. Dessa forma, não havia qualquer diferença entre o mal que as
pessoas sofriam de uns e de outros, senão que era muito mais doloroso ser
assim tratado por homens de sua própria nação do que por estrangeiros.
CAPÍTULO 11
OS JUDEUS, QUE ROUBAVAM NOS CAMPOS, LANÇAM-SE SOBRE JERUSALÉM.
HORRÍVEL CRUELDADE E IMPIEDADE QUE LÁ PRATICAM.
O SUMO SACERDOTE ANANO SUBLEVA O POVO CONTRA ELES.
300. Em tal miséria, as guarnições das cidades, pensando somente em
viver, segundo sua vontade, sem se incomodar com a pátria, não cuidavam em
defender os oprimidos; os chefes dos ladrões depois de se terem unido e
organizado, dirigiram-se para Jerusalém. Não encontraram obstáculo, quer
porque ninguém tinha autoridade, quer porque a entrada estava sempre aberta
para todos os judeus segundo o costume dos nossos antepassados, e naquele
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tempo, mais que nunca, porque se pensava que para lá se ia, levado apenas
pelo afeto e pelo desejo de servir à cidade, naquela guerra. Daí nasceu um
grande mal, que, mesmo que não tivesse havido divisão, naquela grande cidade,
teria sozinho causado sua ruína, porque uma parte dos víveres que seria
suficiente para alimentar os que eram capazes de a defender foi consumida
inutilmente por aquela grande multidão de homens inúteis, mas também foi
causa de revoltas que vieram depois da carestia.
301. Outros ladrões deixaram os campos para lançar-se sobre Jerusalém,
unindo-se aos primeiros, que eram ainda piores do que eles. Não se
contentavam de roubar e de assaltar; sua crueldade chegava ao assassínio; sua
ousadia era tal que o cometiam à luz do dia, sem poupar nem mesmo às
pessoas de condição. Começaram por prender Antipas, que era de família real e
ao qual estava confiada a guarda do tesouro público, como o primeiro de todos,
em dignidade. Trataram do mesmo modo Levias e Sophas, filho de Raguel, que
também eram de família real e outras pessoas muito importantes. Essa horrível
insolència, lançou tal terror no espírito do povo, que como se a cidade já tivesse
sido tomada, todos só pensavam em fugir.
Aqueles celerados foram ainda além. Julgaram que haveria perigo para
eles, se retivessem por mais tempo na prisão, homens tão ilustres e que outras
pessoas que os visitavam, poderiam querer vingar a afronta que se lhes fazia e
havia mesmo motivo de temer que o povo se sublevasse. Resolveram então fazê-
los morrer e mandaram um deles, de nome João, ou melhor, Dorcas, com
outros dez matá-los na prisão. Para dar a essa ação um pretexto, mandaram
divulgar que eles haviam prometido aos romanos, introduzi-los na cidade, e que
por isso não deviam ser considerados como cidadãos, mas como traidores. Sua
ousadia levou-os mesmo a se vangloriarem de ter conservado, com sua morte, a
liberdade da pátria.
302.
 No temor e no abatimento em que o povo se encontrava, a
presunção e o poder desses rebeldes chegou a tal excesso que eles ousaram
mesmo dispor do sumo sacerdócio. Afastavam as famílias que segundo a
tradição a possuíam, sucessivamente, e constituíam nessa alta dignidade,
pessoas sem nome, nem descendência ilustre, a fim de torná-las cúmplices de
seus crimes; homens indignos de tão grande honra não podiam recusar-se a
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obedecer aos que os haviam elevado àquele cargo. Por outro lado, não havia
estratagemas e calúnias de que eles não se servissem para atacar as pessoas de
condição, que eles tinham motivo de temer, a fim de ter vantagem de sua
inteligência e de sua divisão. Mas ainda não era muito para esses malvados
manifestar aos homens tantos efeitos de seu favor; sua horrível impiedade
levou-os a ofender a Deus, entrando com os pés manchados e armas
criminosas no Santuário. O povo, então, sublevou-se contra eles, a conselho do
sumo sacerdote Anano, não menos venerável por sua idade, do que por sua
grande sabedoria e pela elevação da sua dignidade, e que teria sido capaz de
impedir a ruína de Jerusalém, se não tivesse caído na cilada que aqueles
celerados lhe armaram.
CAPÍTULO 12
OS ZELOTES QUEREM ALTERAR A ORDEM ESTABELECIDA, REFERENTE À ESCOLHA
DOS GRANDES SACERDOTES.
 ANANO, SUMO SACERDOTE, E OUTROS DOS
PRINCIPAIS SACERDOTES INCITAM O POVO CONTRA ELES.
303. Os zelotes (pois esses ímpios davam-se a si mesmos tal nome) para
se salvar dos efeitos da ira do povo, fugiram para o Templo e lá fizeram sua
fortaleza, estabelecendo nele a sede de seu governo tirânico. Dentre tantos
males que causavam, nada era tão intolerável quanto seu desprezo pelas coisas
mais santas. Para experimentar até onde poderiam chegar suas forças e o
temor do povo, tentaram servir-se da sorte para escolher o sumo sacerdote,
afirmando que assim se fazia antigamente, quando tal dignidade era
hereditária; aboliam a lei para estabelecer sua injusta autoridade. Mas eles
ficaram confundidos em sua malícia, pois tendo feito lançar a sorte sobre uma
das famílias da tribo, consagrada a Deus, caiu a mesma sobre Fanias, filho de
Samuel, da aldeia de Hafrasi, que não somente era indigno de tal cargo, mas
ainda tão rústico e tão ignorante, que nem sabia o que era o sacerdócio. Contra
sua vontade tiraram-no de suas ocupações do campo e o revestiram dos hábitos
sacerdotais, que lhe assentavam muito mal, quase como se estivessem vestindo
um ator de teatro; ensinaram-lhe depois o que devia fazer; tão grande
impiedade passava em seu espírito apenas por um gracejo. Os verdadeiros
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sacerdotes, olhando de longe essa comédia e de que modo se calcava aos pés a
honra devida às coisas santas, não puderam reter as lágrimas, nem o povo
suportou por mais tempo tão horrível insolência; todos sentiram-se inflamados
pelo mesmo ardor, para se libertarem de tal tirania.
304. Goriom, filho de Josefo, e Simão, filho de Gamaliel, mostraram-se os
mais entusiastas. Exortaram a cada qual em particular e a todos em geral, a
castigar aqueles usurpadores, pelos seus excessos e a vingar a afronta feita a
Deus pelos profanadores de seu santo Templo.
305. Por outro lado, Jesus, filho de Gamala, e Anano, filho de Anano, que
eram os mais ilustres em virtude e os mais atacados dentre os sacerdotes,
censuravam o povo porque não se decidia a castigar os zelotes, que era, como
dissemos, o nome que eles davam a si mesmos, como se tivessem no coração o
zelo pela glória de Deus, quando viviam sempre sedentos de sangue e suas
mãos, prontas a cometer os maiores crimes. O povo reuniu-se então e a
indignação era geral, por ver os mais malvados de todos os homens terem-se
tornado senhores do lugar santo e praticar impunemente, à vista de todos,
grandes furtos e rapinas, crimes e assassínios.
CAPÍTULO 13
PALAVRAS DO SUMO SACERDOTE ANANO AO POVO, QUE O ANIMAM DE TAL MODO QUE ELE
SE RESOLVE A TOMAR AS ARMAS CONTRA OS ZELOTES.
306. Por mais irritada, porém, que estivesse a multidão contra homens
tão detestáveis não se resolvia a atacá-los, porque os julgava muito fortes, e
temia não poder fazê-lo com resultado. Então o sumo sacerdote Anano, fitando
o Templo, com os olhos marejados de lágrimas, assim lhes falou: "Não devia eu
morrer, antes que ver a casa de Deus manchada, com tanta abominação e
celerados calcarem aos pés os santos lugares, que deveriam ser inacessíveis
mesmo aos homens de bem? Entretanto, eu o vejo, embora revestido dos hábi-
tos sacerdotais, embora tenha escrito sobre minha fronte esse nome tão santo e
tão augusto que não é permitido proferir e embora nada me possa ser mais
glorioso na minha idade do que morrer de dor. Mas, pois que o amor da vida me
conserva ainda neste mundo, pelo menos, irei terminar meus dias nalguma
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solidão, onde desabafar-me-ei na presença de Deus. Como permanecer por
mais tempo no meio de um povo insensível aos males que o oprimem e aos
quais não há ninguém que se oponha? Sois assaltados e o tolerais. Atiram-vos
ofensas e vos calais. Derrama-se na vossa presença o sangue de vossos
parentes e de vossos amigos e não ousais demonstrar nem pelo menos com um
suspiro, que vosso coração está confrangido. Houve jamais tão cruel tirania?
Mas por que me queixar daqueles que a praticam, mais do que de vós, pois eles
a usurparam porque tivestes pouca coragem, dispondo-vos a suportá-la? Quem
impedia de exterminar esses celerados quando eles eram ainda poucos? Não foi
devido à vossa covardia que eles aumentaram tanto seu número? Em vez de
tomar as armas para exterminá-los, vós as voltastes contra vós mesmos; em vez
de reprimir, por primeiro, sua insolência e vingar vossos parentes de suas ofen-
sas, vós permitistes que eles saqueassem impunemente as casas e os
animastes em suas roubalheiras. Vendo que nenhum de vós se dispunha a lhes
fazer frente, sua ousadia chegou a levar presos por cadeias, através da cidade e
a encerrar numa prisão homens ilustres que não haviam sido condenados e
nem mesmo acusados; e vós também o tolerastes. Não faltava a esses celerados
para satisfazer à sua cólera que lhes tirar a vida, depois de lhes terem tirado os
bens e a liberdade; foi o que os vimos fazer. Eles mataram diante de nossos
olhos, como se sacrificam vítimas, pessoas muito ilustres por sua dignidade e
virtude, sem que não somente não tomásseis armas para sua defesa, mas nem
pelo menos abrísseis a boca para clamar contra crimes tão detestáveis. Estais
pois resolvidos a ficar sempre em tão vergonhosa apatia? Vendo, como vedes,
profanar as coisas sagradas, conservareis respeito para com esses inimigos
declarados do que merece mais que tudo ser reverenciado, por esses demônios
em carne, a quem nada impede cometer crimes ainda maiores, do que aqueles
que, no auge da impiedade eles não poderiam cometer? Ocupando o Templo,
eles ocuparam o lugar mais forte da cidade e ao qual o sagrado nome que tem,
não impede de ser uma verdadeira fortaleza. Tendo assim escolhido esse lugar
sagrado, para lá estabelecer a sede de sua tirânica dominação e tendo-vos o pé
sobre a garganta, dizei-me, eu vos peço, quais os vossos pensamentos e as
vossas intenções. Esperais que os romanos venham em vosso auxílio, para res-
tituir à santidade desse Templo seu primitivo esplendor e seu antigo brilho; por
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que chegamos a tal excesso de infelicidade que mesmo nossos inimigos não
poderiam não sentir compaixão de nossas misérias? Não despertareis então de
tal sonolência e sereis mais insensíveis que os mesmos animais, que olhando
para suas chagas e feridas exasperam-se contra os que os feriram? Parece que
esse amor da liberdade, que é o mais forte e o mais natural de todos os afetos,
está apagado em vosso coração e o da escravidão tomou-lhe o lugar, como se
nossos antepassados nos tivessem dado, com a vida, o desejo de sermos escra-
vos, quando eles sustentaram tantas guerras contra os egípcios e os medas
para se conservarem livres. Mas por que citar a esse respeito o exemplo de
nossos antepassados? Que outra causa, que manter nossa liberdade nos fez
participantes dessa feliz ou infeliz guerra que empreendemos agora contra os
romanos? Oh! Não podemos tolerar ter como senhores os dominadores do
mundo nem suportar como tiranos, os da nossa própria nação. Quando se está
sujeito a estrangeiros, tem-se pelo menos a consolação de atribuí-lo à injustiça
da sorte, mas toca somente aos fracos e aos amantes da servidão obedecer
voluntariamente aos piores de todos aqueles que têm o nascimento de comum
com eles. A este respeito eu não poderia dissimular o que me vem ao pensa-
mento, falando-vos dos romanos, os quais quando mesmo nos tivessem ataca-
do, não nos poderiam tratar mais cruelmente do que esses sacrílegos nos tra-
tam. Poder-se-ia contemplar com os olhos enxutos os judeus despojarem o
Templo dos dons que os romanos mesmos ofereceram, mancharem suas mãos
no sangue daqueles que eles teriam poupado depois da vitória e desfigurar toda
a beleza dessa rainha de nossas cidades, que outrora vimos tão homenageada e
florescente? Esses soberbos conquistadores jamais ousaram pôr os pés
naqueles lugares, cuja entrada é proibida aos profanos. Eles honraram nossos
santos costumes e só contemplaram de longe, com respeito, essa casa santa. E
homens nascidos entre nós, instruídos nos nossos costumes e que têm o nome
de judeus, com as mãos ainda tintas de sangue de seus concidadãos, têm a
ousadia de entrar nesses lugares, cuja santidade devê-los-ia fazer tremer. Tem
a guerra estrangeira alguma coisa de comparável com essa guerra doméstica?
De quanto o mal que recebemos dos nossos sobrepuja o que nos fazem nossos
inimigos? Falando segundo a verdade, não podemos dizer que os romanos
foram os protetores de nossas leis, ao passo que esses ímpios, educados em
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nosso meio, lhes são os violadores? Há muitos grandes suplícios para castigar
tão grandes crimes, como os desses novos tiranos; o sentimento dos vossos
males não vos deve levar, sem que eu vos exorte a isso, a castigá-los como
merecem? Eu sei que muitos os temem por causa do seu grande número, de
sua ousadia e da defesa e respeito do lugar que eles ocupam. Mas como eles
devem somente à vossa covardia todas essas vantagens, eles a aumentarão
ainda se vos demorardes para tomar uma generosa resolução. Seu número
crescerá cada dia mais, porque os maus procuram os maus; sua ousadia cres-
cerá também, porque nada encontrarão que a ela faça frente; fortificarão ainda
mais esse lugar santo, se lhes dermos oportunidade para isso. Porém, se
marcharmos corajosamente contra eles, as recriminações de sua consciência os
encherão de espanto; em vez de tirar vantagem da posição desse lugar santo,
que está sobre todos os outros, a imagem de tão grande crime, como o de se
terem apoderado dele por meio de um sacrilégio, apresentar-se-á aos seus olhos
e lançará o terror em seu espírito. Por que não esperarmos que Deus, para
exercer sua justa vingança contra esses ímpios, não fará voltarem-se contra
eles os dardos que eles nos atiram para que assim morram por suas mesmas
mãos? Somente a nossa presença fá-los-á perder a coragem. Mas, mesmo que
nos devesse custar a vida e nós não pudéssemos salvar nem nossas esposas e
filhos, não seríamos nós ainda mui felizes de morrer pela glória de Deus e pela
honra dos lugares consagrados ao seu serviço, expirando às portas do seu
santo Templo? Não vos faltaram bons conselhos, nem vo-los faltarão, para
agirdes com prudência nessa empresa; e não é somente com palavras, mas
expondo-me aos maiores perigos que eu pretendo animar-vos a isso, com meu
exemplo".
307. Por maiores e fortes que fossem estas razões para induzir o povo a
tomar as armas, Anano, entretanto, não esperava ter bom resultado em
empresa tão difícil, quer por causa do grande número de zelotes, quer pela sua
força, pela sua pertinácia, e porque eles não esperavam, se fossem vencidos,
obter o perdão de tantos crimes. No entanto, as ele julgava que nada havia que
não devessem antes tentar, do que abandonar a república em tão grave perigo.
O povo ficou tão impressionado com suas palavras, que pediu com grandes
gritos que o levasse contra aqueles traidores, pois não havia perigo que todos
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eles não estivessem dispostos a correr, por uma causa tão justa.
CAPÍTULO 14
LUTA ENTRE O POVO E OS ZELOTES, QUE SÃO OBRIGADOS A ABANDONAR O
PRIMEIRO RECINTO DO
 TEMPLO E A SE RETIRAR PARA O INTERIOR DO
MESMO, ONDE
 ANANO OS CERCA.
308. Anano, vendo o povo tão bem disposto, escolheu os que julgou mais
aptos para tal empresa e os organizou. Os zelotes, que tinham espiões, foram
avisados de sua intenção; atacaram-nos com pequenas tropas e confusamente,
e não perdoaram a um só dos que puderam apanhar. Anano, então, reuniu o
povo. Eram mais numerosos que os inimigos, mas os zelotes estavam muito
bem armados; a coragem supria de ambos os lados ao que faltava. Os
habitantes, vendo-se com armas na mão, reduplicaram sua animosidade contra
aqueles ímpios; os zelotes, sua ousadia. Os primeiros estavam persuadidos de
que sua segurança dependia do extermínio daqueles malvados e estes sabiam
muito bem que não havia recurso para eles, entre a vitória e o suplício. Com
essa disposição iniciaram a luta. Os zelotes tinham a vantagem de estar
acostumados a obedecer aos seus chefes.
309. O primeiro combate travou-se perto do Templo, a pedradas; os que
fugiam eram mortos a golpes de espadas, pelos inimigos. Assim, muitos, de
ambos os lados, foram mortos na luta; os feridos, do lado dos habitantes, eram
levados para suas casas, os zelotes levavam os seus para o Templo, sem temer
violar a santidade de nossa religião, manchando-o de sangue. Mas os zelotes
tinham sempre vantagem.
O povo, cujo número crescia, não podendo mais tolerá-lo, irritou-se
contra os que demonstraram pouca coragem, e em vez de lhes dar passagem,
para fugir, obrigava-os a voltar ao combate; todos marchavam em seguida,
unidos; os zelotes não lhes puderam resistir, e fugiram. Anano perseguiu-os
com entusiasmo e os obrigou a abandonarem o primeiro recinto que ocupavam,
para se retirar no interior e fechar as portas do Templo. O respeito de Anano
por aquelas portas santas, fez que não ousasse arrombá-las. Embora os zelotes
lançassem dardos, do alto, ele não julgou, em consciência, poder, quando
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mesmo os tivesse vencido, permitir que o povo entrasse no Templo, antes de ser
purificado. Contentou-se em escolher naquele grande número, seis mil dos
mais bem armados, para pô-los de guarda junto dos pórticos e determinou que
seriam sucessivamente substituídos por outros seis mil. Os mais ilustres, disso
não estavam isentos; mas quando chegava sua vez de entrar de guarda,
tomavam entre o povo outras pessoas, às quais pagavam para ir em seu lugar.
CAPÍTULO 15
JOÃO DE GISCALA, QUE FINGIA ESTAR DO LADO DO POVO O TRAI, PASSA PARA OS
ZELOTES E OS PERSUADE A CHAMAR OS IDUMEUS EM SEU AUXÍLIO.
310. Assim, o partido do povo era o mais forte; mas João, que sabemos ter
fugido de Giscala, foi a causa de sua ruína. Como ele era muito mau e tinha
desmedida ambição, havia muito tempo que acariciava a idéia de erguer sua
fortuna particular, sobre as ruínas da pública. Para conseguir o seu intento,
fingiu unir-se a Anano e querer secundar seu zelo. Por esse motivo assistia,
durante o dia, com os seus auxiliares mais importantes a todas as suas
reuniões e conselhos, e visitava de noite todos os guardas; depois informava os
zelotes de tudo o que se passava e os tinha bem avisados de que o povo não
tomaria uma deliberação qualquer, sem que ele logo lha comunicasse. Mas, ao
mesmo tempo, a fim de impedir que sua maldade fosse descoberta, não havia
atenções que ele não dispensasse a Anano e aos outros chefes do povo, nem
solicitude que não tomasse, para lhes ser agradável. Ia a tal excesso a sua
gentileza que chegou a produzir um efeito contrário naqueles que ele pretendia
trair. Sua excessiva complacência, o fato de ele assistir a todos os conselhos,
sem ser chamado, e ainda Anano, vendo que os inimigos eram avisados de
tudo, por fim, veio a suspeitar dele. Mas era difícil e mesmo impossível afastá-
lo, tanto ele era esperto e conseguira conquistar a confiança dos que tinham a
direção de todos os negócios. Assim, julgou-se que o melhor que se podia fazer
era obrigá-lo com juramento a ser fiel ao povo, a conservar em segredo todas as
deliberações e a servir-se delas, com todas as suas forças, contra os rebeldes. O
traidor não hesitou em fazer o juramento; então Anano e os outros, confiando
na sua palavra, não somente não tiveram dificuldade em admiti-lo em todos os
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conselhos, mas o escolheram para levar aos zelotes propostas de um acordo,
tanto temiam que, por sua culpa, o Templo fosse manchado com o sangue de
algum dos judeus. O pérfido homem foi falar com os zelotes e fez um papel
totalmente contrário. Como se o juramento que fizera houvesse sido em favor
deles e não contra, disse-lhes que não havia perigos aos quais não se havia
exposto para informá-los de todos os intentos de Anano e vinha avisá-los de que
todos não tinham ainda passado tão grande perigo se Deus não os ajudasse,
porque Anano tinha persuadido o povo a pedir auxílio a Vespasiano, rogando-
lhe que viesse imediatamente tomar posse da cidade, e tinha declarado que no
dia seguinte todos se purificariam, a fim de que, com o pretexto de piedade,
entrassem, por bem ou por mal, no Templo; que ele não via, no estado em que
as coisas se encontravam, como resistir por mais tempo a um cerco, contra tão
grande número de inimigos. Mas, que por uma providência particular de Deus,
ele lhes tinha sido mandado, para fazer propostas de acordo, com o fim de que
Anano tinha de surpreendê-los e de atacá-los quando menos o suspeitassem;
que eles, para se salvar, tinham um único meio, isto é, tomar um destes dois
partidos: ou entregar-se, suplicando a vida aos que os mantinham cercados, ou
pedir auxílio estrangeiro para se porem em condições de lhes opor resistência,
pois, do contrário, estariam vencidos e não poderiam esperar obter deles o
perdão de tantos males, que lhes tinham feito, por maior arrependimento que
mostrassem; e, ao contrário, seu desejo de se vingar aumentava sempre mais,
quando se vissem em condições de poder fazê-lo, sem temor; que nada havia
que eles não devessem temer dos parentes e dos amigos, dos que eles haviam
matado e do furor que dominava o povo por causa da abolição de suas leis e de
seus costumes, mas que quando mesmo alguns estivessem dispostos a perdoá-
los, eles seriam obrigados a ceder à sua violência.
311. João, com estas palavras falsas e fingidas, lançou o terror no espírito
dos zelotes; não lhes declarou abertamente qual o socorro com que eles se
deveriam fortalecer; entretanto, via-se que ele queria falar dos idumeus. Dizia
em particular aos chefes dos zelotes que Anano era um homem cruel e que era
particularmente deles que ele se tinha resolvido vingar. Eleazar, filho de Simão,
e Zacarias, filho de Anficano, ambos de família sacerdotal, eram dos principais
chefes e nenhum outro era tão importante como Eleazar, quer pela prudência
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quer pela ação. Como o discurso de João os havia persuadido de que a intenção
de Anano era fortalecer o seu partido, com o auxílio dos romanos, e que eles
tinham ódio particular contra eles, não sabiam o que fazer nas diversas
contingências do momento, porque, de um lado, julgavam que o povo estava
prestes a atacá-los e eles viam, por outro, que o auxílio proposto estava tão
longe que se julgavam perdidos antes que pudessem obter. Mas, por fim,
determinaram pedir o auxílio dos idumeus e escreveram-lhes dizendo que
Anano, depois de ter enganado o povo, queria entregar a cidade aos romanos;
eles se tinham retirado ao Templo para não abandonar a defesa da liberdade
pública; que eles tinham sido cercados e estavam prestes a ser atacados, se não
se impedisse, com um auxílio imediato, que eles caíssem nas mãos dos inimigos
e a cidade, nas dos romanos. Encarregaram os portadores dessas cartas de
dizer verbalmente várias outras coisas aos daquela nação que tinham mais
autoridade; as pessoas que escolheram para essa incumbência chamavam-se
ambos Ananias, ambos muito corajosos, eloqüentes e capazes de persuadir e o
que mais importava, aptos para desempenhar tão importante incumbência.
Estavam eles certos de que os idumeus viriam imediatamente, porque esse povo
é tão brutal e tão amigo das novidades, que nada é mais fácil do que induzi-los
à guerra e ele vai com a mesma alegria para um combate como os outros, para
uma festa.
CAPÍTULO 16
OS IDUMEUS VÊM EM SOCORRO DOS ZELOTES; ANANO RECUSA -LHES A
ENTRADA EM
 JERUSALÉM. DISCURSO QUE JESUS, UM DOS SACERDOTES,
LHES FAZ DO ALTO DE UMA TORRE .
 A RESPOSTA.
312.
 Aqueles enviados conseguiram sair, sem que Anano nem as
sentinelas não só lhes impedissem a passagem, mas nem mesmo vieram a
saber do que acontecia; os governadores da Iduméia apenas receberam as
cartas, correram como loucos por todo o país, incitando os outros à guerra.
Todos tomaram das armas, com tanto entusiasmo para defender a
liberdade da capital, que, em menos tempo de que se poderia imaginar,
reuniram-se uns vinte mil, comandados por quatro chefes: João e Tiago, filhos
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de Sosa, Simão, filho de Catlas, e Finéias, filho de Clusote.
313.
 Ante o aviso de que os idumeus estavam para chegar, Anano
resolveu não os deixar entrar na cidade e colocou guardas nas defesas e nas
trincheiras. Não julgou, entretanto, conveniente tratá-los como inimigos, mas
procurou com razões levá-los à paz; Jesus, que era o mais antigo dos
sacerdotes, falou-lhes a esse respeito, do alto de uma torre, de onde podiam
muito bem ouvi-lo: "No meio", disse-lhes ele, "de tantas perturbações e males
que afligem a capital da nossa nação, nada é mais surpreendente, pelo que nos
parece, que a sorte conspira juntamente com os piores homens do mundo para
destruí-la. Que há de mais estranho do que virdes contra nós em favor desses
celerados, com a mesma solicitude como se nós vos tivéssemos chamado em
nosso auxílio, para nos defender contra esses bárbaros? Se tínheis a mesma
intenção que aqueles que vos fizeram vir, não haveria motivo de nos
admirarmos, pois nada une mais os homens do que a conformidade de
sentimentos. Mas como os vossos podem ter relação com os desses malvados,
pelos quais vos declarais? Não poderíamos considerar suas ações, sem ver que
não há suplícios que eles não mereçam. Eles são o que há de mais vil do povo
dos campos, que depois de ter gasto na devassidão o pouco de bens que
possuíam, e pilhado em seguida as vilas e aldeias, não sentiram temor de vir a
esta cidade santa, não somente para continuar a praticar roubos e assaltos,
mas para acrescentar os assassínios aos roubos e sacrilégios. O bem dos que
eles massacram só servem para satisfazer à sua ambição; e pela mais horrível
de todas as profanações eles se embriagam mesmo aos pés do altar. Vós vindes,
ao contrário, armados, como soldados prontos a combater, como se esta capital
tivesse recorrido ao vosso auxílio, para resistir a inimigos externos. Assim, não
tenho razão de dizer, que parece que a sorte seja tão injusta que conspira
convosco em favor daqueles celerados contra vossa própria nação? Confesso
não poder compreender de onde vem essa deliberação tão pronta que tomastes,
nem que razão vos pode levar a auxiliar homens tão detestáveis contra um povo
que é vosso aliado. Será que vos disseram que nós queremos chamar os
romanos e trair nossa pátria? Pois eu sei que alguns dentre os vossos disseram
que viestes para impedir que Jerusalém seja escravizada. Se for assim, jamais
poderei compreender a maldade daqueles que ousaram inventar tão negra calú-
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nia. Há, entretanto, motivo de crer que vos querem persuadir disso, pois, aman-
do tanto a liberdade como vós a amais e estando sempre prontos a combater
para impedir que ela sucumba sob uma dominação estrangeira, puderam inci-
tar-vos contra nós, declarando-vos falsamente, que nós éramos tão covardes a
ponto de suportar escravidão. Mas, considerai, eu vos rogo, quem são os que
nos caluniam desse modo e julgai da verdade, não por palavras vãs, mas com
provas sólidas e evidentes. Que vantagem há de que, depois de nos termos ex-
postos a tantos perigos, para conservarmos nossa liberdade, queiramos agora
receber os romanos, como senhores? Não podíamos ou não sacudir o seu jugo
ou depois de tê-lo sacudido voltar à obediência sem esperar que eles devastas-
sem nossos campos e assaltassem nossas cidades? Mas, mesmo quando
quiséssemos tratar com eles, podê-los-íamos fazê-lo agora, que a conquista da
Galiléia aumentou tanto a sua altivez e ousadia? Não seria a morte muito mais
suportável do que a vergonha de dobrar os joelhos diante deles, quando os
víssemos se aproximar de nossas muralhas? Acusam-se alguns dos principais
dentre nós de ter tratado secretamente com os romanos, ou acusa-se todo o
povo de tê-lo feito depois de uma deliberação geral. E se forem somente alguns
particulares que se acusam, devemos então dizer que são nossos amigos ou
domésticos que empregamos nessa traição e apresentar pelos menos um que
tenha sido preso nesse mister com documentos em seu poder. Se tudo isso
fosse verdade, como algum desse grande número que somos, nada teria
descoberto? Como, ao contrário, esses poucos homens, encerrados no Templo,
sem poder sair para entrar na cidade, como poderiam ter tido conhecimento do
que se estava tratando secretamente? Quando eles não se julgavam em perigo,
nós éramos tidos como traidores, e agora, precisamente, quando estão a ponto
de receber o castigo de seus crimes, inventaram essa calúnia. E se a todo o
povo se acusa de ter entrado em entendimentos com os romanos, deveria tal
deliberação ter sido tomada num conselho ou assembléia geral. Se assim fosse,
não o teríeis sabido tão depressa, não somente por uma notícia vaga e geral,
confusa, mas por meio de alguém, que vos teria sido enviado expressamente,
para vos avisar de uma coisa tão importante? Quem não vê que se nós nos
quiséssemos submeter aos romanos, não precisaríamos nem de tratados, nem
de embaixadores? Ninguém se pode citar, que tenha sido escolhido para esse
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fim; são suposições de pessoas que se vêem à borda do precipício e se essa
cidade fosse tão infeliz por ter que perecer por uma traição, somente aqueles
que nos acusam falsamente seriam capazes de acrescentar este último crime a
tantos outros que cometeram, a fim de completar, por uma tão vergonhosa
suposição e uma tão negra perfídia, a medida de seus sacrilégios e de suas
impiedades. Estando armados como estais, não vos obriga a justiça a vos
unirdes a nós para exterminarmos esses tiranos que espezinharam todas as
nossas leis, para fazer reinar em seu lugar o assassínio e a violência; que depois
de ter ousado eliminar, à vista de todos, homens da mais ilustre nobreza,
inocentes, acorrentaram-nos, encerraram-nos em cárceres e por fim assassina-
ram-nos? Quando tiverdes entrado na cidade como amigos e não como inimi-
gos, podereis constatar com vossos próprios olhos, a verdade do que vos estou
dizendo. Vereis as casas saqueadas, as mulheres e os parentes dos que foram
tão cruelmente massacrados vestidos de luto, e por toda parte gemidos e
lágrimas, porque não há ninguém que não tenha experimentado os efeitos da
raiva desses ímpios; a desolação é geral. Seu furor chegou ao excesso, pois não
se contentando de ter devastado todos os campos e saqueado as cidades, eles
não pouparam nem mesmo ao que podemos dizer ser o chefe, o ornamento e a
glória da nossa nação; e por uma ousadia criminosa que sobrepuja toda
imaginação, eles se apoderaram do Templo de Deus. Foi desse lugar sagrado
que eles nos atacaram; esse lugar sagrado lhes serviu de abrigo, quando os
perseguimos, e, por fim, é esse lugar santo que lhes fornece um arsenal de
armas de que eles se servem para nos atacar e para se defender. Assim, esses
monstros de impiedade nascidos entre nós, gloriam-se de calcar aos pés a
augusta casa do Senhor, a qual todas as nações da terra respeitam e veneram.
Sentem alegria em ver tudo levado ao excesso; cidades armadas contra cidades,
povos contra povos, e províncias inteiras conspirarem para sua própria ruína.
Que há pois de mais digno do que unirdes vossas armas às nossas para
exterminar esses malvados, castigá-los pelos embustes e injúrias que vos
fizeram, quando, em vez de vos temer, como vingadores de seus crimes, eles vos
chamaram em seu auxílio? Se julgais dever ter alguma consideração às suas
palavras, podeis, sem que vossas tropas sejam consideradas, nem como
inimigas nem como auxiíiares, entrar sem armas na cidade e julgar sobre as
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nossas questões. Pois ainda que não vejamos o que poderiam alegar em sua
defesa esses sediciosos, manifestamente culpados de tantos crimes, e que não
somente não permitiram abrir a boca a tantos homens de bem que eles
cruelmente fizeram morrer, sem que tivessem sido acusados, nós consentimos
que vossa chegada lhes conceda essa graça. Mas se não quereis nem tomar
parte na nossa justa indignação contra esses ímpios, nem serdes juizes entre
eles e nós, não vos resta que um terceiro partido a tomar, isto é, ficar neutros,
sem ofender à nossa desgraça nem vos unirdes àqueles que pretendem destruir
esta cidade metropolitana; se tendes ainda suspeitas de que algum de nós
tenha tratado com os romanos, podereis colocar homens em todos os caminhos
para surpreendê-los e castigá-los severamente, se isso for verdade; mas se
todas essas razões não vos impressionarem, não deveis julgar estranho que nós
vos fechemos nossas portas, até que tenhais deixado as armas".
314. Jesus, assim falando, irritou ainda mais os idumeus por verem que
se lhes impedia a entrada na cidade e muito mal o escutaram; seus chefes não
podiam
 tolerar,
 igualmente,
 a
 proposta
 de
 deixar
 as
 armas,
 porque
consideravam como um sinal de escravidão essa submissão a uma autoridade
que não tinha nenhum direito de dar ordens. Assim, Simão, filho de Catlas, um
deles, depois de ter com muita dificuldade acalmado a multidão, subiu a um
luqar elevado, de onde podia ser ouvido pelos sacerdotes e lhes falou nestes
termos: "Não me admiro por ver que sitiais no Templo os defensores da
liberdade pública, pois nos fechais as portas de uma cidade, cuja entrada deve
ser livre a todos de nossa nação e sem dúvida vos ides coroar de flores, para
receber os romanos. Vós vos contentais de nos falar do alto de uma torre, e
quereis nos obrigar a deixar as armas que tomamos pela liberdade pública. Em
vez de vos servirdes delas para a defesa de nossa capital, vós nos propondes
sermos juizes de vossas questões; ao mesmo tempo, quando acusais os outros
de ter feito morrer alguns dos vossos cidadãos, sem que tenham sido
condenados, vós vos condenais a vós mesmos e a toda a nossa nação, pelo
ultraje que fazeis aos vossos irmãos, recusando-nos a entrada de uma cidade, o
que não se faz nem mesmo aos estrangeiros que a ela vêm trazidos pela
piedade. E assim que reconheceis os favores que nos deveis por termos tão
prontamente tomado as armas e feito tanto esforço para vos vir ajudar e para
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vos manter livres? Devemos prestar fé às vossas acusações contra os que estão
cercados? E que o fazeis unicamente para impedir os efeitos de sua tirania,
recusando a todos a entrada em vossa cidade, quando vós mesmos pretendeis
exercer sobre nós uma verdadeira tirania, obrigando-nos a obedecer às vossas
ordens imperiosas e injustas? Tão grande contradição entre vossas palavras e
vossas ações não é talvez intolerável? Vós nos recusais, recusando-nos a
entrada em vossa cidade, a liberdade de oferecer sacrifícios a Deus, como
fizeram nossos antepassados, e vós acusais ao mesmo tempo os que tendes
cercados no Templo, porque eles castigaram traidores, aos quais vós dais o
nome de inocentes e pessoas de condição. A única falta que eles cometeram, foi
não terem começado por vós, que tínheis parte mais que qualquer outro em tão
infame traição. Mas se seu proceder foi tão fraco, o nosso será mais vigoroso,
nós conservaremos a casa de Deus, defenderemos nossa pátria comum, contra
os inimigos estrangeiros e domésticos; conservar-vos-emos sempre sitiados até
que os romanos vos venham libertar ou que o desejo de manter a liberdade vos
faça voltar ao cumprimento do dever".
CAPÍTULO 17
SOBREVEM ESPANTOSA TEMPESTADE DURANTE A QUAL OS ZELOTES, SITIADOS
NO
 TEMPLO , SAEM E VÃO ABRIR AS PORTAS DA CIDADE AOS IDUMEUS, QUE
DEPOIS DE TER DERROTADO O CORPO DA GUARDA DOS HABITANTES, QUE
CERCAVA O
 TEMPLO, APODERAM-SE DE TODA A CIDADE ONDE PRATICAM
TODA SORTE DE HORRÍVEIS CRUELDADES.
315.
 Simão falou assim e todos os idumeus demonstraram com gritos
que aprovavam o que ele tinha dito; Jesus retirou-se muito triste por ver na
disposição em que eles se achavam que a cidade era presa de uma dupla
guerra. Os idumeus, por seu lado, não estavam em menor agitação de espírito;
eles não podiam tolerar a ofensa que se lhes haviam feito, por não se lhes terem
aberto as portas; achavam que os zelotes não eram tão fortes como eles haviam
imaginado e o desgosto por não poder socorrê-los, os fazia arrependerem-se de
ter vindo. A vergonha de voltar sem nada ter feito levou-os, entretanto, a outros
sentimentos; assim, resolveram ficar e acamparam perto das mulhares da
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cidade.
316. Na noite seguinte, sobreveio uma horrível tempestade: a violência do
vento, a impetuosidade da chuva, a quantidade de relâmpagos, o ribombar hor-
rível do trovão, e um tremor de terra, acompanhado de rugidos, perturbou de
tal modo a ordem da natureza, que todos julgaram presságio de grandes
desgraças.
Os habitantes de Jerusalém e os idumeus eram, a esse respeito, da
mesma opinião. Estes últimos acreditavam que Deus estava encolerizado, por
eles terem tomado as armas; julgavam não poder evitar o castigo, se
continuassem a fazer a guerra à sua capital. Anano e os do seu partido estavam
persuadidos de que Deus declarando-se daquele modo em seu favor, eles
seriam vencedores, sem combater. Mas os fatos demonstraram que uns e
outros se enganavam.
317. Os idumeus, durante a tempestade, uniram-se apertando-se uns
contra os outros, cobrindo-se com seus escudos. Os zelotes, que estavam ainda
mais aflitos do que eles mesmos, reuniram-se para deliberar sobre os meios de
ajudá-los. Os mais ousados propuseram atacar o corpo de guarda dos sitiantes
e depois de os terem repelido, abrir as portas da cidade aos idumeus. Disseram,
para apoiar sua opinião que a execução daquele projeto não era tão difícil como
se poderia imaginar, porque a maior parte dos que compunham o corpo de
guarda eram homens mal armados e pouco aguerridos; atacando-os de
improviso seria fácil vencê-los; a grande tempestade havia encerrado a todos os
outros em suas casas e dificilmente eles se poderiam reunir. Porém, mesmo
quando a empresa fosse mais arriscada, não havia perigo aos quais eles não se
devessem expor, antes que ter vergonha de deixar perecer tantas tropas que
tinham vindo socorrê-los.
Os mais prudentes eram de parecer contrário, porque viam que não
somente haviam dobrado o número de guardas, do lado em que eles estavam,
contudo os muros da cidade eram também mais cuidadosamente vigiados, por
causa dos idumeus que estavam perto e não duvidavam de que Anano fazia,
segundo o costume, a ronda em todas as horas da noite, pois era certo que ele
sempre fazia assim. No entanto, para sua infelicidade e dos seus, mais do que
por negligência, naquela noite ele tinha ido descansar um pouco e quando a
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tempestade começou a amainar, os que montavam guarda à porta do Templo
estavam cansados e com sono.
318. Os zelotes decidiram-se: serraram com ferramentas que acharam no
Templo os ferrolhos e os gonzos das portas e nisso o vento e os trovões muito os
ajudaram, pois os que vigiavam não ouviram ruído algum. Saíram depois do
Templo, deslizaram mansamente até as portas da cidade e abriram-nas, do
mesmo modo como haviam aberto as do Templo. A princípio os idumeus
julgaram que era Anano que vinha contra eles e tomaram as armas; mas logo o
perceberam e entraram na cidade. Se no furor em que estavam eles tivessem
naquele momento voltado suas armas contra o povo, tê-lo-iam passado a fio de
espada; mas os zelotes disseram-lhes que, como eles tinham vindo para
socorrê-los, deveriam começar por libertar os que estavam encerrados no
Templo e que depois de ter dizimado o corpo de guarda dos sitiantes, ser-lhes-ia
fácil apoderar-se da cidade; ao passo que, se antes da libertação os habitantes
dessem o alarme, eles reunir-se-iam em tão grande número, que poderiam sem
dificuldade atingir os lugares mais elevados onde seria impossível atacá-los. Os
idumeus aceitaram essa advertência, entraram, pela cidade, no Templo e
seguidos por aqueles que lá os esperavam com tanta impaciência, tornaram a
sair imediatamente para juntos atacarem o corpo da guarda dos sitiantes.
Mataram os que estavam dormindo; os gritos dos demais deram o aviso; os
habitantes então tomaram as armas com aquele espanto que bem se pode
imaginar. Entretanto, como eles julgavam, a princípio, que só tinham que
combater contra os zelotes, não punham em dúvida poder vencê-los por seu
grande número, mas quando viram que os idumeus haviam entrado na cidade,
juntamente com eles, foram tomados de tal terror, que a maior parte
abandonou as armas e começou a gritar e a se lastimar. Outros, iam
espalhando pela cidade a triste notícia de sua ruína e somente um pequeno
número de jovens teve coragem de opor resistência, enfrentando vigorosamente
os inimigos. Ninguém, porém, ousava vir em seu auxílio, tanto a entrada dos
idumeus lhes havia abatido o ânimo; contentavam-se com vãs lamentações que
ressoavam no ar com os gritos das mulheres. A tanto barulho juntavam-se os
gritos dos idumeus que os dos zelotes aumentavam e a tempestade tornava
ainda mais espantoso. Os idumeus eram naturalmente muito cruéis
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e o que eles tinham sofrido com essa grande tempestade os havia irritado
muito contra os que lhes haviam fechado as portas; por isso não pouparam a
ninguém. Os que recorriam aos rogos não experimentavam menos sua
desumanidade do que os que lhes resistiam e era-lhes inútil alegar serem todos
do mesmo sangue e comum a todos, aquele augusto Templo, consagrado a
Deus; os idumeus sufocavam-lhes, com a morte, as palavras na boca e não
restava àqueles infelizes habitantes um meio de escapar nem qualquer
esperança de salvação. Seu temor contribuía ainda mais para sua ruína, do que
o furor dos idumeus, porque os fazia apertarem-se de tal modo, que não
podendo recuar, eles não erravam um golpe sequer. Alguns, para evitar serem
mortos pelos idumeus, matavam-se, ati-rando-se do alto das muralhas. O
sangue corria de todos os lados em redor do Templo, e quando o dia começou a
raiar, havia oito mil e quinhentos corpos estendidos pelo chão.
CAPÍTULO 18
OS IDUMEUS CONTINUAM A PRATICAR ATOS DE CRUELDADE EM JERUSALÉM E
PARTICULARMENTE CONTRA OS SACERDOTES.
 MATAM ANANO, SUMO SACERDOTE, E
JESUS, OUTRO SACERDOTE . ELOGIOS DESSES DOIS GRANDES PERSONAGENS.
319. Tanto sangue derramado não satisfez o furor dos idumeus; eles
continuaram a derramá-lo por toda a cidade; saquearam as casas e mataram a
todos os que encontraram. Pouparam somente o povo, da camada mais baixa,
porque não o julgavam digno de sua cólera; eram principalmente os sacerdotes
o objeto de sua vingança. Apenas caíam-lhes nas mãos, eram logo mortos;
calcaram aos pés os corpos de Anano e de Jesus, verberando ao primeiro o
afeto que o povo lhe tinha, e ao outro, o discurso que ele tinha feito de uma das
torres da cidade. Sua impiedade chegou a ponto de lhes recusarem a sepultura,
embora os judeus sintam-se inclinados a prestar essa honra aos mortos, tanto
que retiram da cruz e sepultam antes do pôr-do-sol, os que sofreram a morte
como punição de seus crimes. A esse respeito eu penso poder dizer que a morte
de Anano foi o começo da ruína de Jerusalém e suas muralhas foram
derrubadas e a república dos judeus destruída, quando esse soberano
sacerdote, com seu sábio proceder, no qual estava toda esperança de salvação,
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foi tão cruelmente massacrado. Era um homem de tal mérito, que não há
louvores de que não seja digho. Nada se poderia acrescentar ao seu amor pela
justiça, sua humanidade era tão grande que em vez de se elevar pela grandeza
da sua linhagem e pela sublimidade de sua posição e dignidade, sentia prazer
em se diminuir; nenhum outro jamais desejou conservar com mais ardor a
liberdade de seu país e a autoridade de sua nação. Ele preferia o interesse geral
ao seu particular, desejava com paixão a paz com os romanos, porque conhecia
muito bem o seu poderio, e sabia que era impossível aos judeus qualquer
resistência; não duvido mesmo de que, se ele tivesse vivido, teria conseguido o
seu intento. Ele era na verdade tão eloqüente que conseguia do povo tudo o que
queria; já tinha reduzido ao extremo os perturbadores do descanso público, que
ousavam tão falsamente tomar o nome de zelotes; e os judeus teriam podido,
sob sua orientação, com tal chefe, dar muito trabalho aos romanos, e levá-los a
um acordo justo e razoável. Ele tinha ademais a vantagem de ser secundado
por Jesus que sobrepujava, depois dele, a todos os demais em mérito; mas
Deus, querendo purificar com o fogo, tanta maldade e abominação que tinham
desonrado aquela santa cidade, privou-a do socorro desses grandes homens,
cuja coragem, prudência, atividade e amor ao povo, opondo-se às suas
desgraças, lhe poderiam ter retardado a destruição. Vimos assim esses dois
grandes personagens, antes revestidos dos hábitos sacerdotais, reverenciados
por todo o povo, considerados como protetores da religião e conhecidos em toda
a terra pela fama de sua virtude, expostos, nus, sobre o pavimento e entregues
aos cães e aos animais. A virtude jamais foi tão insolentemente ultrajada;
poder-se-ia ver, sem lágrimas, o vício triunfar desse modo sobre ela?
CAPÍTULO 19
CONTINUAM AS HORRÍVEIS CRUELDADES EM JERUSALÉM DA PARTE DOS
IDUMEUS E DOS ZELOTES; MARAVILHOSA CONSTÂNCIA DOS QUE AS SOFRIAM.
OS ZELOTES MATAM ZACARIAS NO TEMPLO.
320. Depois que Anano e Jesus foram tão cruelmente massacrados, os
zelotes e os idumeus levaram sua raiva contra o baixo povo e fizeram também
entre eles uma horrível mortandade. As pessoas da nobreza eram encarceradas,
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com a esperança de que elas passassem para seu lado; nem um sequer, porém,
preferiu evitar a morte, a fim de se unir àqueles malvados para a ruína de sua
pátria. Não se contentavam em lhes fazer perder a vida; aqueles tigres
sanguinários faziam-nos sofrer antes todos os tormentos imagináveis e só lhes
concediam a graça de lhes tirar a vida, pela espada, depois que seus corpos
estavam esgotados, sob o peso de tantas dores e incapazes de continuar a
senti-las. Durante a noite enchiam as prisões com os que apanhavam durante o
dia, de lá tiravam os mortos para dar lugar aos vivos, que queriam trucidar do
mesmo modo. O terror do povo era tal, que ninguém se atrevia abertamente
nem a sepultar os mortos, nem a se lamentar, fossem mesmo parentes ou
amigos. Para derramar lágrimas e lamentar seus mortos, eles tinham de
encerrar-se em suas casas, olhar antes de todos os lados, para ver se não eram
observados ou ouvidos por alguém, porque a compaixão era tida como um
grande crime por aqueles monstros de crueldade, e não se podiam chorar os
mortos sem perigo de perder também a vida. Tudo o que se podia fazer era
cobrir durante a noite aqueles corpos com um pouco de terra, depois de terem
sido tão desumanamente massacrados; fazê-lo durante o dia, era considerado
ato de extrema coragem, e doze mil homens de nobre origem e que ainda se
encontravam em pleno vigor de sua idade morreram dessa maneira.
321. Por fim, aqueles tiranos, cansados de derramar tanto sangue,
fingiram querer observar alguma forma de justiça e tendo determinado matar
Zacarias, filho de Baruque, porque, além de sua ilustre origem, sua virtude, sua
autoridade, seu amor pelos homens de bem e seu ódio pelos maus, tornavam-
no temível a eles mesmos e suas grandes riquezas eram um grande incentivo
para sua ambição. Escolheram setenta dos mais notáveis dentre o povo que
constituíram aparentemente juizes, mas sem lhes dar, na verdade, poder
algum. Perante eles, acusaram-no de ter querido entregar a cidade aos romanos
e ter tratado a esse respeito com Vespasiano. Não se encontrando prova
alguma, nem pelo menos a mínima probabilidade desse pretenso crime, não
deixaram de afirmar que era verdadeiro e queriam que o testemunho que eles
davam fosse suficiente para condenar o acusado.
Zacarias facilmente compreendeu que aquele julgamento era uma
hipocrisia que iria terminar com sua prisão e depois com sua morte. Mas,
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embora não visse esperança alguma de salvação, nada diminuiu da firmeza de
sua coragem. Começou por censurar com desprezo os seus acusadores e o
expediente tão vergonhoso de que se serviam para ocultar a verdade, com tão
visíveis calúnias. Destruiu depois em poucas palavras os crimes de que o
acusavam e os fez recair sobre eles mesmos; disse-lhes como e qual fora, desde
o princípio até então, a concatenação de crimes, que se sucedendo, uns aos
outros, haviam produzido aquele amontoado de tudo o que a injustiça, o furor e
a impiedade podem cometer de mais horrível, e terminou deplorando aquele
estado, mais infeliz do que se poderia imaginar, a que sua pátria se encontrava
reduzida. Palavras tão generosas acenderam tal raiva no coração dos zelotes,
que nada lhes pôde impedir de matar Zacarias, naquele mesmo instante,
embora quisessem dar àquele julgamento uma aparência de justiça, até o fim, e
ver se aqueles que eles haviam escolhido para juizes, teriam bastante coragem
para não temer fazê-lo, numa circunstância em que eles não podiam agir sem
correr risco da própria vida. Assim permitiram a esses setenta juizes que se
pronunciassem e não havendo um só deles que não preferisse se expor à morte
do que ao remorso de ter condenado um homem de bem, pela maior de todas as
injustiças, todos a uma voz declararam-no inocente. Ao ouvirem tal sentença os
zelotes soltaram um grito de furor. Sua raiva não pôde tolerar que aqueles
juizes não houvessem compreendido, que o poder que lhes haviam dado era
imaginário, e do qual não queriam que eles fizessem uso algum; dois dos mais
ousados daqueles homens atiraram-se sobre Zacarias e o mataram no meio do
Templo, insultando-o ainda, depois de morto, dizendo com a mais cruel de
todas as zombarias: "Recebe esta absolvição que nós te damos e que é muito
mais garantida que a outra". Lançaram em seguida seu corpo numa vala
comum que estava abaixo do Templo. Os setenta juizes foram expulsos
indignamente a golpes de espada para fora do Templo, não porque um
sentimento de humanidade os havia isentado de manchar as mãos no sangue
daqueles homens, mas para que se tendo espalhado por toda a cidade fossem
como outras tantas testemunhas, cuja deposição já não poderia permitir a
ninguém duvidar de que a capital de um reino outrora florescente, não estava
reduzida à escravidão.
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CAPÍTULO 20
OS IDUMEUS, TENDO SIDO INFORMADOS DA MALDADE DOS ZELOTES E TENDO
HORROR DAS SUAS INCRÍVEIS CRUELDADES, RETIRAM-SE PARA O SEU PAÍS;
OS ZELOTES DUPLICAM AINDA SUA CRUELDADE.
322. Os idumeus, não podendo aprovar tantos excessos horríveis,
começaram a se arrepender de ter vindo. Um dos zelotes advertiu-os
secretamente de tudo o que acontecia. Disse-lhes que era verdade que eles
tinham tomado as armas porque lhes haviam feito crer que os habitantes
queriam entregar a cidade aos romanos; mas que não se havia encontrado a
menor prova dessa pretensa traição e que aqueles que queriam passar por
defensores da liberdade, tendo ateado o fogo da guerra civil, exerciam tal
tirania, que seria para se desejar que eles tivessem sido contidos desde o
começo. Mas, como se haviam entregue com eles a tais crimes, seria pelo menos
necessário procurar um fim a tantos males e não fortalecer àqueles que tinham
determinado subverter todas as leis de seus antepassados; que a morte de
Anano e a de um tão grande número de homens do povo, executados numa
única noite, os havia vingado plenamente, porque eles tinham sido sitiados no
Templo; que vários, mesmo dentre eles, vendo a que horríveis excessos se
entregavam aqueles que os haviam impelido à guerra e que não tinham mesmo
vergonha de cometê-los mesmo na presença dos idumeus, seus libertadores,
arrependiam-se de os ter seguido e censuravam os idumeus por tolerá-los, em
vez de os abandonar; e assim, pois que constava que aquele pretensa
combinação com os romanos era mera suposição, não havia presentemente
nada que temer de sua parte e Jerusalém era inexpugnável, a não ser que fosse
dividida por dissensões domésticas, eles nada melhor podiam fazer do que
regressar, para mostrar a todos, separando-se daqueles malvados, que eles não
queriam tomar parte em seus crimes, e que se não os tivessem enganado, eles
não teriam vindo em seu auxílio. As palavras e as razões desse zelote
persuadiram os idumeus e eles resolveram regressar, começando por dar
liberdade a dois mil habitantes que se uniram a Simão, do que falaremos em
seguida.
323. Tão inesperada partida, que surpreendeu igualmente os zelotes e os
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habitantes, causou o mesmo efeito em seu espírito, embora seus sentimentos
fossem contrários. Uns e outros alegraram-se: os habitantes, porque não
conheciam o arrependimento dos idumeus por terem vindo; o afastamento
deles, que sempre eram considerados como inimigos, dava-lhes um pouco de
coragem; e os zelotes, que julgavam não ter mais necessidade do socorro dos
idumeus, consideravam-se livres da obrigação de agir por causa deles, com
certa precaução e numa tal liberdade de cometer de ali por diante com
desenfreada liberdade, todos os crimes que sua raiva lhes inspirava. Assim não
conservaram mais medida alguma; não tomaram mais nenhuma deliberação
em seus conselhos, suas mãos seguiam no mesmo instante o movimento de seu
espírito e por mais detestável que fosse uma resolução, apenas era imaginada,
logo em seguida, sem mais, também executada.
324. Como as pessoas mais generosas e da mais ilustre nobreza eram o
principal objeto de seu ódio, começaram por eles a encher a cidade novamente
de sangue e crimes, porque sua virtude lhes causava temor e eles não podiam
ver sem inveja o brilho de sua ilustre origem, nem se julgar em segurança,
enquanto alguns deles vivessem. Assim, procuraram matar, além de outros,
Goriom, cujos méritos o tornavam tão ilustre como sua descendência e que não
cedia a nenhum outro dos judeus, naquela nobre ousadia que lhe inspirava o
amor da liberdade pública, o que eles consideravam o maior de todos os crimes.
Niger Peraita, que se havia distinguido por tantos feitos de valor na guerra
contra os romanos, experimentou também os efeitos da raiva desses homens
furiosos. Embora lhes mostrasse as feridas recebidas na defesa de sua pátria
comum e lhes falasse de suas benemerências e dos serviços prestados, não
deixaram de arrastá-lo vergonhosamente pela cidade. Quando depois de o
terem levado para fora das portas, ele viu que não lhe restava mais nenhuma
esperança de salvação, rogou-lhes que lhe prometessem pelo menos enterrá-lo.
Mas até isso eles recusaram. Então, antes de morrer sob seus golpes, fez
imprecações contra eles, almejando que os romanos fossem os vingadores do
seu sangue e que a carestia, a guerra, a peste e uma divisão mortal enchesse a
medida dos castigos que merecia a enormidade de seus crimes.
A justiça de Deus não tardou mesmo, para fustigar àqueles ímpios sob
todos os flagelos e para seu castigo, em lhes mandar estranha divisão, que pôs
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em seu meio. Depois da morte de Niger, aqueles malvados julgaram nada mais
ter a temer e não houve crueldade que eles não exercessem contra o povo; não
perdoavam a ninguém; consideravam crime capital ter outrora resistido a eles;
imaginavam-no, em todos os que permaneciam indiferentes; tratavam como
gloriosos os que não lhes vinham fazer a corte e como espiões os que a faziam, e
a morte era o castigo geral com que puniam, sem distinção, tudo o que lhes
aprazia fazer passar por crimes horríveis e irremissíveis. Assim, ninguém
escapava à sua crueldade, a não ser os que eram de tão desprezível condição,
que eles não julgavam dignos de sua ira.
CAPÍTULO 21
OS OFICIAIS DAS TROPAS ROMANAS INSISTEM COM VESPASIANO, PARA ATACAR
JERUSALÉM, APROVEITANDO A DIVISÃO DOS JUDEUS. SÁBIA RESPOSTA QUE ELE LHES
DÁ PARA MOSTRAR QUE A PRUDÊNCIA O OBRIGAVA A DIFERI -LA.
325. No entanto, os oficiais das tropas romanas, que tinham os olhos
abertos a tudo o que se passava em Jerusalém, julgando que se devia
aproveitar de uma divisão tão favorável para eles, insistiam com Vespasiano,
seu general, que não a deixasse escapar. Diziam-lhe eles que aquilo acontecia
por uma especial providência e auxílio de Deus que seus inimigos voltassem
assim suas armas contra si mesmos e que os momentos eram preciosos, pois se
os deixassem escapar, os judeus poderiam num instante reunirem-se, quer pelo
excesso de males que sofriam, quer por se arrependerem de ter tão
imprudentemente permitido a cisão entre eles. O grande general respondeu-
lhes que aquele ardor em enfrentar o perigo, sem considerar o que era mais
útil, era uma prova de sua coragem; mas que a prudência o obrigava a dela
usar de outro modo, "porque", acrescentou ele, "que se nos apressarmos em
atacá-los, nós os obrigaremos a se reunirem para voltar contra nós todas as
forças, que são ainda muito fortes; ao passo que se nós o diferirmos, elas
continuarão a se enfraquecer por meio dessa guerra doméstica, que já começou
a diminuí-las. Não vedes que Deus, que luta por nós, quer que lhe sejamos
devedores dessa vitória sem que nos faça correr perigo algum? Quando uma
guerra civil que é o maior de todos os males leva os inimigos até esse excesso de
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furor, a se degolarem reciprocamente, que temos nós a fazer senão continuar
como espectadores de tão sangrenta tragédia e por que nos expormos ao perigo
para combatermos pessoas que já se destróem a si mesmas? Se alguém
imagina que uma vitória obtida sem combater não deve ser tida como gloriosa,
aprenda que as vicissitudes da guerra, sendo incertas, a verdadeira glória
consiste em se servir das vantagens que podem fazer obter o intento pelo qual
se tomaram as armas; e assim a prudência não é menos louvável do que o
valor, quando produz o mesmo efeito. Enquanto nossos inimigos enfra-quecer-
se-ão uns pelos outros, nossos soldados refazer-se-ão, no descanso, de todas as
suas fadigas passadas e colocar-se-ão em condições de suportar ainda outras
maiores, com um novo vigor. Contudo, mesmo que buscássemos o brilho de
uma vitória obtida por meio de grandes combates, não seria agora o tempo para
isso, pois os judeus não pensam nem em mandar forjar armas, nem em
fortificar suas praças, nem em se garantir com algum outro auxílio, e o
encarniçamento com que se consomem a si mesmos os reduz a tal estado, que
eles encontrariam alívio na escravidão. Assim, quer consideremos a prudência,
quer consideremos a glória, não temos outra coisa a fazer que deixar que eles
acabem de se destruir, pois se agora nos apoderássemos dessa grande cidade
isso não seria atribuído ao nosso valor, mas ao fato de terem eles mesmos
causado sua ruína". Estas razões, de um chefe tão prudente, persuadiram a
todos os oficiais e os fizeram estimar ainda mais sua admirável sabedoria.
CAPÍTULO 22
VÁRIOS JUDEUS ENTREGAM- SE AOS ROMANOS PARA EVITAR A FÚRIA DOS ZELOTES.
C ONTINUAM AS CRUELDADES E IMPIEDADES DOS ZELOTES.
326. Muito depressa se constataram os efeitos dessa prudente ação de
Vespasiano, pois muitos judeus vinham todos os dias entregar-se a ele, para
evitar o furor dos zelotes, não sem grande dificuldade e sem grande perigo,
porque todas as portas e avenidas de Jerusalém estavam cuidadosamente
guardadas e eles matavam a todos os que por qualquer pretexto procurassem
sair, quando houvesse motivo de se suspeitar que era para esse fim. O único
meio de conservar a vida era resgatá-la por meio de dinheiro. Assim, os ricos
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escapavam e aqueles homens desnaturados não perdoavam a um só dos
pobres. Os caminhos estavam cobertos de montes de cadáveres que serviam de
alimento aos animais e o horror de tal espetáculo fazia que muitos que
desejavam fugir, preferissem morrer na cidade, na esperança de que, pelo
menos, não seriam privados da honra da sepultura. A barbárie desses monstros
de crueldade recusou-lhes mesmo essa graça e chegou a tal excesso, que sem
fazer distinção entre os que eram mortos dentro ou fora da cidade, não
permitiam que se enterrasse nem um só. Mas era muito pouco para eles calcar
aos pés as leis de seus antepassados; vangloriavam-se em violar as da natureza
e em ultrajar o mesmo Deus, com suas horríveis impiedades. Não perdoavam
tanto aos que enterravam os corpos dos parentes e amigos, como aos que
queriam fugir para junto dos romanos; a morte era a recompensa de sua
piedade e era suficiente, para ter necessidade de sepultura, tê-la dado a um
outro. A compaixão, que é um dos mais louváveis de todos os sentimentos,
estava inteiramente extinta no coração daqueles malvados; tudo o que poderia
causá-la, redobrava-lhes o furor; sua crueldade passava dos vivos aos mortos e
voltava dos mortos aos vivos.
A impressão que tantos males causavam no espírito das pessoas que os
suportavam tornava-lhe a imagem tão espantosa, que aqueles que ainda viviam
invejavam a felicidade dos mortos e achavam que era preferível ser privado da
honra da sepultura a sofrer os tormentos pelos quais os faziam passar, na
prisão. Aqueles homens animados pelos demônios não se contentavam de
calcar aos pés tudo o que é mais digno de respeito; eles zombavam do mesmo
Deus e tomavam como loucura e ilusão as predições dos profetas. Mas as
conseqüências os fizeram ver que eram bastante verdadeiras. Aqueles celerados
foram os executores da predição feita há muito tempo, de que, depois de uma
grande divisão, Jerusalém seria tomada e depois que os que mais deviam
respeitar o Templo de Deus, o tivessem profanado com sua impiedade, ele seria
queimado e reduzido a cinzas, por aqueles aos quais as leis da guerra
permitiam usar como lhes aprouvesse de sua vitória.
CAPÍTULO 23
JOÃO DE GISCALA, ASPIRANDO A UM GOVERNO TIRÂNICO, FAZ COM QUE OS ZELOTES SE
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DIVIDAM EM DOIS PARTIDOS, DE UM DOS QUAIS ELE FICA SENDO O CHEFE.
327. Como João há muito tempo aspirava a um governo tirânico, ele não
podia tolerar que outros partilhassem com ele da autoridade. Assim, separou-se
deles, depois de ter trazido para o seu partido os que a impiedade tornava
capazes dos maiores crimes, e não querendo mais obedecer a ninguém, ele dava
ordens com firmeza e severidade, sem deixar lugar a dúvidas, de que ele estava
resolvido a usurpar o soberano poder. Alguns seguiam-no por temor; outros,
por afeto, tão difícil era esquivar-se dos seus artifícios e do poder que ele tinha
de persuadir; mas a maior parte, porque julgava que lhes seria vantajoso
lançar-se sobre ele somente a culpa de todos os crimes nos quais tinham parte.
Sendo muito valente e tendo tanto de inteligência quanto de coragem,
conseguiu atrair para o seu partido a muitíssimos. Mas, ao mesmo tempo, os
principais desse partido abandonaram-no, porque a inveja não lhes permitia
obedecer-lhe, porque o tinham visto como igual e temiam tê-lo como senhor.
Não tinham dificuldade em imaginar que uma vez consolidado o governo, com
poder absoluto, seria muito difícil despojá-lo do mesmo e jamais ele lhes
perdoaria a resistência e a má vontade. Estas razões fizeram com que eles
resolvessem a se expor a tudo antes que se tornar, voluntariamente, escravos
de tal tirano. Assim eles se dividiriam em dois partidos, de um dos quais João
ficou sendo o chefe. Sendo partidos opostos por vezes chegaram a lutas e
guerrilhas
 que
 não
 passavam
 de
 ligeiras
 escaramuças;
 seus
 maiores
empreendimentos eram contra o povo e eles pareciam porfiar quem saquearia
mais.
328.
 Assim estava Jerusalém tão amargurada e oprimida, ao mesmo
tempo pela guerra e pela tirania, pela contestação de dois partidos. A guerra,
por mais temível que fosse, parecia o mais suportável dos três males; os
habitantes deixavam suas casas para refugiar-se junto dos romanos e procurar
na compaixão de um povo estrangeiro a segurança que não podiam encontrar
entre os de sua própria nação.
CAPÍTULO 24
AQUELES QUE ERAM CHAMADOS DE SICÁRIOS OU ASSASSINOS, APODERAM-SE DA
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FORTALEZA DE
 MASSADA E PRATICAM MIL DEPREDAÇÕES.
329. A estes três tão grande males de que acabamos de falar, juntou-se
um quarto que também contribuiu para a ruína de nossa pátria. Havia perto de
Jerusalém um castelo bastante forte, de nome Massada, que nossos reis
tinham ou-trora mandado construir, para lá guardarem seus tesouros, muitas
armas e também para segurança de suas pessoas. Os sicários, ou assassinos,
não eram em número tal que os levasse a cometer seus crimes abertamente,
por isso matavam à traição; apoderaram-se dessa fortaleza e vendo que o
exército romano estava em descanso, e que os judeus se digladiavam em
Jerusalém, imaginaram empreender coisas em que jamais haviam pensado,
nem ousado fazer. Assim, na noite da festa de Páscoa, tão solene entre os
judeus, porque se celebra em memória da sua libertação da escravidão do
Egito, para ir tomar posse da terra que Deus havia prometido aos nossos
antepassados, esses assassinos atacaram de improviso a pequena cidade de
Engedi antes que os habitantes tivessem tido tempo de tomar as armas,
mataram mais de setecentos deles, dos quais a maior parte eram mulheres e
crianças, saquearam todas as casas e levaram todos os despojos para Massada.
Trataram do mesmo modo todas as aldeias e todas as vilas dos arredores; seu
número crescia cada vez mais e não havia um lugar sequer na Judéia que não
estivesse naquele tempo exposto a toda sorte de depredação. Como acontece no
corpo humano, quando a parte mais nobre é atacada por uma grave enfer-
midade, todas as outras também se ressentem, assim essa horrível divisão que
tinha reduzido a tal extremo a capital, abrindo as portas à licença, havia feito
que o mal se espalhasse por toda a parte; nada havia que aqueles celerados não
julgassem poder fazer, impunemente. Após terem devastado tudo o que estava
perto deles, retiraram-se para o deserto, onde, depois de se terem reunido em
grande número para formar, se não um pequeno exército, pelo menos um ban-
do considerável de ladrões, atacaram as cidades e os Templos. Aqueles aos
quais faziam tanto mal não os poupavam quando podiam agarrá-los, mas lhes
era muito difícil, porque eles fugiam imediatamente, com os despojos
conquistados. Assim, podia-se dizer que não havia um lugar sequer na Judéia
que não participasse dos males que faziam Jerusalém perecer.
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CAPÍTULO 25
A CIDADE DE GADARA ENTREGA-SE VOLUNTARIAMENTE A V ESPASIANO, E
PLÁCIDO, MANDADO POR ELE, CONTRA OS JUDEUS DISPERSOS PELOS
CAMPOS, MATA TAMBÉM UM GRANDE NÚMERO DELES.
330. Vespasiano estava a par de tudo o que acabamos de narrar, por
aqueles que vinham de Jerusalém entregar-se a ele; ainda que os zelotes
guardassem cuidadosamente todas as passagens, e não perdoassem a um só
dos que lhes caíam nas mãos, alguns sempre conseguiam escapar. Esses
desertores pediram a Vespasiano que tivesse pena deles e da sua cidade, tão
aflita, e que salvasse as relíquias de seu povo do qual, uma parte, já tinha sido
degolada por causa do seu afeto pelos romanos, e os que estavam ainda com
vida corriam o mesmo risco. O grande general, comovido pela desgraça que os
atormentava, resolveu aproximar-se de Jerusalém, aparentemente para sitiá-la,
mas na realidade para libertá-la da opressão daqueles malvados, que podemos
dizer, conservavam-na sitiada permanentemente. Seu intento era também
apoderar-se de todas as praças dos arredores, a fim de que, quando ele
quisesse verdadeiramente executar o grande cerco, nada restasse no exterior,
que lhe pudesse mover obstáculos.
331. Como os principais e os mais ricos dos habitantes de Gadara, que é
a mais poderosa e a mais forte de todas as cidades de além do Jordão,
desejavam a paz e queriam conservar seus bens, mandaram secretamente
alguns representantes a Vespasiano, para lhe oferecer a posse da cidade; disso
os facciosos só vieram a saber quando os viram aproximar-se da cidade. Não
tiveram dificuldade em julgar que como os habitantes que os favoreciam
superavam-nos em número, eles não podiam conservar a praça contra tantos
inimigos que tinham ao mesmo tempo interna e externamente, e que a fuga era
o único partido que eles tinham a tomar. Mas julgaram que lhes seria
vergonhoso resolver-se a isso, sem que alguém viesse a perder a vida, daqueles
que eram a causa da sua desgraça. Assim, para satisfazer à sua vingança,
mataram a Doleso, que ocupava a primeira linha, pela nobreza do nascimento, e
que tinha sido o autor dessa delegação. Seu furor levou-os até mesmo a lhe dar
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vários golpes depois de sua morte; tendo-se satisfeito com esse ato de
crueldade, de alguma maneira fugiram.
Os habitantes receberam Vespasiano com grandes aclamações e não se
contentaram em lhe fazer juramento de fidelidade, mas, para assegurá-lo ainda
mais do verdadeiro desejo que tinham de permanecer em paz, derrubaram as
muralhas, a fim de se porem em condições de não poder fazer a guerra mesmo
quando eles o quisessem. Vespasiano deu-lhes uma guarnição de cavalaria e de
infantaria para defendê-los dos ataques dos revoltosos, que haviam fugido;
mandou Plácido contra eles, com quinhentos cavaleiros e três mil soldados de
infantaria e voltou a Cesaréia, com o restante do exército.
332. Os revoltosos, vendo aquela cavalaria dirigir-se a eles, refugiaram-se
numa aldeia de nome Bethnabre, onde encontraram um grande número de
homens de defesa. Uns tomaram as armas voluntariamente para se reunirem a
eles; aos outros, eles os obrigaram; e confiando então em suas forças não
tiveram receio de atacar Plácido. Este, recuou um pouco, de propósito, quer
para deixar acalmar-se seu primeiro ardor, quer para afastá-los de sua
fortaleza; mas logo que eles se haviam retirado a um lugar mais vantajoso
cercou-os, atacou-os e os pôs em fuga. Os que pensavam escapar eram detidos
pela cavalaria, os que resistiam eram mortos pela infantaria. Perderam então
aquela ousadia, que os tornava tão afoitos; sua coragem arrefeceu, porque,
quando eles queriam atacar os romanos, encontravam-nos tão unidos e de tal
modo defendidos por suas armas, que nenhum golpe os podia atingir, nem lhes
romper as fileiras; ao passo que eles eram, ao contrário, atingidos pelos golpes
de seus dardos, nos quais alguns se espetavam como fariam animais selvagens;
outros eram mortos a golpes de espadas e outros desbaratados pela cavalaria.
Como o principal cuidado de Plácido era impedir que eles tornassem a en-
trar na aldeia, ele e os seus antecipavam-se-lhes pela velocidade de seus cava-
los, não permitindo que aqueles que dela estavam próximos lá conseguissem
entrar e os obrigavam a fazer meia volta e a tornar ao campo onde eram mortos,
exceto um pequeno número dos mais fortes e dos mais ágeis que conseguiu,
com dificuldade, entrar na aldeia. Os que guardavam as portas ficaram bem
atrapalhados, porque, de um lado, eles não se resolviam a abri-las aos seus
habitantes e fechá-las aos de Gadara; e, por outro lado, eles temiam, se os
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recebessem, que eles fossem causa de sua ruína, como de fato isso quase che-
gou a acontecer, pois a cavalaria romana tendo-os impelido até lá pouco faltou
que não entrasse confusamente com eles; as portas foram fechadas, e Plácido
durante todo o restante do dia atacou tão fortemente toda a aldeia que lhe
abriu uma brecha e dela se apoderou. Mataram o baixo povo, incapaz de se
defender; os outros fugiram; a aldeia foi saqueada e em seguida incendiada; os
que escaparam levaram o terror a todo o país.
Por maior que fosse sua infelicidade eles a imaginavam ainda maior e
afirmavam que todo o exército dos romanos marchava contra eles. Tão extremo
terror fê-los abandonar tudo; fugiram para Jerico, onde esperavam ficar em
segurança, porque a cidade era forte e muito populosa. Plácido, animado pela
sorte favorável, perseguiu-os até o Jordão e aquela grande multidão de judeus,
não podendo passá-lo, porque as chuvas o haviam tornado mais fundo, foi
obrigada a travar um combate. Sentindo-se então muito fracos para sustentar o
ataque dos romanos e não sabendo para onde fugir, quinze mil foram mortos,
um número infinito atirou-se ao rio e morreu afogado; dois mil e duzentos
foram aprisionados com uma grande quantidade de camelos, bois, carneiros e
asnos.
Embora os judeus tivessem já sofrido grandes perdas, esta pareceu
sobrepujar a todas as demais, porque não somente todo o caminho que eles
tinham feito em sua fuga e o lugar onde se tinha dado o combate estavam
juncados de cadáveres, mas também porque o Jordão estava tão cheio que não
podia ser atravessado; e uma parte desses corpos foi levada pelo rio e por
outros rios, ao lago Asfaltite.
333. Plácido, para levar além a sua fortuna, marchou contra as pequenas
praças vizinhas, tomou Abila, Julíada, Bezemote, e todas as outras até o lago
Asfaltite; lá deixou como guarnição os judeus que se tinham entregue aos ro-
manos, nos quais pensou poder confiar mais; embarcou, em seguida, seus ho-
mens no lago, onde derrotou todos os que lá iam buscar sua salvação; e, assim,
todo o país que está além do Jordão, até Macherom, foi reduzido ao domínio
dos romanos.
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CAPÍTULO 26
VINDEX REVOLTA - SE NAS GÁLIAS CONTRA O IMPERADOR NERO . VESPASIANO ,
DEPOIS DE TER FEITO ESTRAGOS EM DIVERSOS LUGARES DAJUDÉIA E DA
IDUMÉIA, DIRIGE-SE A JERICO, ONDE ENTRA SEM RESISTÊNCIA .
334. Enquanto estas coisas se passavam na Judéia, Vindex, com os mais
poderosos gauleses, se havia revoltado contra Nero; dessa rebelião falam as
outras histórias em seus particulares. Essa notícia aumentou ainda o desejo
que Vespasiano tinha de terminar imediatamente a guerra que havia iniciado,
porque ele previa que aquela rebelião poderia ser seguida de muitas outras, e
julgava que o meio de fazer que a Itália tivesse menos motivo de temer, era
pacificar o Oriente antes que aquelas dissensões domésticas tivessem acendido
ainda mais o fogo da guerra. Mas o inverno opôs-se aos seus desígnios e tudo o
que pôde fazer foi colocar guarnições em todas as cidades pequenas e nas
aldeias que tinha tomado, comandadas por oficiais e subalternos, e mandar
restaurar algumas daquelas praças que haviam sido destruídas.
335. À entrada da primavera, ele veio com seu exército, de Cesaréia a
Antipátrida, onde depois de ter permanecido dois dias para pôr em ordem ali
todas as coisas, mandou devastar e incendiar os lugares das vizinhanças.
Destruiu também os arredores da toparquia de Tamna e marchou para Lida e
Jâmnia. Essas duas praças entregaram-se e ele as povoou com habitantes de
outras cidades, nos quais pensou poder confiar; avançou para Emaús, ocupou
a passagem que leva a Jerusalém, mandou fortificar um campo com um muro,
lá deixou a quinta legião e passou com o restante de suas forças para a
toparquia de Betleptom. Ali incendiou todas as terras e os arredores da Iduméia
com exceção de alguns castelos que fortificou e onde colocou guarnições,
porque a posição lhe parecia muito vantajosa.
Tendo tomado no meio da Iduméia duas pequenas cidades chamadas
Bethari e Cafartoba, mandou matar ali mais de dois mil homens, reservou perto
de mil para escravos, expulsou o restante do povo e deixou como guarnição
uma grande parte de suas tropas para fazerem incursões e devastações nos
montes. Depois voltou a Emaús, com o seu exército, e de lá, passando pela
Samaria e por Neápolis, que os do lugar chamam de Mabarta, chegou, a dois de
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junho, a Core, onde acampou e no dia seguinte apresentou-se diante de Jerico,
onde Trajano, um dos seus chefes, depois de ter submetido tudo o que estava
além do Jordão, juntou-se a ele com as tropas que comandava. Antes da
chegada dos romanos, vários haviam fugido de Jerico, para se refugiar nos
montes que estão em frente de Jerusalém e uma parte dos que lá tinham
ficado, foram mortos.
CAPÍTULO 27
DESCRIÇÃO DE JERICO, DE UMA ADMIRÁVEL FONTE QUE LHE ESTÁ PERTO, DA
EXTREMA FERTILIDADE DO PAÍS, DOS ARREDORES, DO LAGO
 ASFALTITE E DAS
ESPANTOSAS SOBRAS DO INCÊNDIO DE
 SODOMA E DE G OMORRA .
336. Vespasiano achou a cidade de Jerico, outrora tão célebre,
completamente despovoada. Ela está situada numa planície dominada por um
alto monte árido e pedregoso, muito estéril e tão longo que se estende do lado
do norte até o território de Citópolis e do lado do sul, até Sodoma, sem que por
essa grande esterilidade, aí encontremos habitantes. Outra montanha que lhe
está fronteira e situada do outro lado do Jordão começa em Julíada, ao norte, e
estende-se muito longe, do lado do sul, até Gomorra, onde se limita com Petra,
cidade da Arábia. Há também um outro nome denominado Monte Ferrato, que
vai até às terras dos moabitas. Entre estes dois montes está a planície chamada
o Campo Grande, que começa na aldeia de Genabata e vai até o lago Asfaltite.
Seu comprimento é de mil e duzentos estádios, sua largura de cento e vinte e o
Jordão o atravessa pelo meio.
337. Aí vemos dois lagos, o Asfaltite e o de Tiberíades, cuja natureza é
completamente diversa. A água do Asfaltite é salgada e nele não há peixes; a do
Tiberíades é muito doce e ali vive grande quantidade de peixes. Como esse país
é árido porque é irrigado somente pelas águas do Jordão, o calor é
ardentíssimo, durante o verão, e o ar que respiramos é tão quente que causa
doenças. Essa mesma razão faz que tanto as palmeiras que crescem ao longo
das margens desse rio, sejam férteis, quanto as que estão afastadas, são-no, ao
contrário, muito pouco.
Há perto de Jerico uma nascente muito rica, cujas águas irrigam os
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campos vizinhos e está bem perto da antiga cidade, que foi a primeira de que
Jesus, filho de Nave, valoroso chefe dos hebreus, se apoderou, pelo direito da
vitória. Dizem que as águas dessa fonte outrora eram tão perigosas que não
somente corrompiam os frutos da terra, mas também faziam as mulheres dar a
luz antes do tempo e contaminavam com seu veneno todas as coisas por onde
passavam. Depois, o profeta Eliseu, digno sucessor de Elias, as tornou tão boas
para se beber e tão saudáveis, quanto antes eram malsãs e prejudiciais, e tão
capazes de fertilizar, quanto antes eram inúteis para esse fim. O que aconteceu,
do modo que vamos dizer: Esse homem admirável havia sido muito
caridosamente recebido pelos habitantes de Jerico e quis demonstrar-lhes sua
gratidão com um favor, cujos efeitos nem eles, nem seu país jamais veriam
cessar. Colocou então no fundo do poço uma vasilha cheia de fel, levantou os
olhos ao céu, ordenou que fizessem oblações à borda da fonte, rogou a Deus
que adoçasse as águas dos regatos com que se irrigava a terra, como outras
tantas veias, que temperasse o ar para torná-lo ainda mais saudável e desse em
abundância os frutos da terra, e que os homens a cultivassem, sem que as
águas jamais cessassem de lhes ser favoráveis, enquanto eles permanecessem
na justiça. Tão ardente oração teve o condão de mudar a natureza da fonte,
que, depois, tornou as mulheres e as terras tão fecundas quanto antes as fazia
estéreis. A virtude das águas é tão grande que basta molharem um pouco a
terra para que ela se fertilize; e os lugares onde elas ficam por mais tempo
produzem o mesmo que aqueles por onde passam rapidamente, como se
quisessem castigar os que as detêm em suas propriedades, por desconfiança
dos seus efeitos maravilhosos. Não há em toda essa região regato algum cujo
percurso seja tão longo.
338. O país que ela atravessa tem setenta estádios de comprimento e
vinte de largura. Aí vemos grande quantidade de belíssimos jardins onde
crescem palmeiras de diversas espécies e cujos nomes bem como o sabor de
seus frutos são diferentes. Há alguns, que quando os apertamos, segregam mel,
que em nada difere do mel natural, de que aquele país é muito rico. Há também
em grande número, além de ciprestes, árvores, das quais se tira o bálsamo,
líquido que nenhum fruto pode igualar. Assim, podemos dizer, parece-me, que
um país onde tantas plantas, tão excelentes, crescem em tal abundância, tem
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alguma coisa de divino e eu duvido de que em todo o restante do mundo haja
um outro que se lhe possa comparar, pois tudo o que aí se semeia e se planta,
multiplica-se de maneira incrível. Devemos, segundo a minha opinião, atribuir-
lhe a causa ao calor do ar e ao poder singular que essa água tem de contribuir
para a fecundidade da terra; um, faz abrirem-se as flores e as folhas e o outro
fortifica as raízes, pelo aumento de sua seiva, durante os ardores do verão, que
lá são extraordinários, e sem tal resfriamento, nada ali poderia crescer, exceto
com muita dificuldade, por maior que seja esse calor, sopra pela manhã um
vento leve que refresca a água que é haurida antes do nascer do sol; durante o
inverno ela é tépida e o ar é tão temperado que um simples hálito leve basta,
quando neva, nos outros lugares da Judéia. Esse país está distante de
Jerusalém cento e cinqüenta estádios e sessenta, do Jordão. O espaço que vai
até Jerusalém é pedregoso e deserto, embora o que se estende até o Jordão e o
lago Asfaltite não seja tão elevado, não é menos estéril nem mais cultivado.
339.
 Eu penso ter mostrado suficientemente com quantos favores a
natureza embelezou e enriqueceu as cercanias de Jerico; eu creio dever falar
agora do lago Asfaltite. Sua água é salgada, imprópria para os peixes, e tão leve
que as coisas, mesmo as mais pesadas, não afundam. Vespasiano teve vontade
de lá ir e atirou à água alguns homens que não sabiam nadar com as mãos
atadas às costas. Todos voltaram à tona, como se alguma força estranha os
impelisse de baixo para cima. Não se poderia admirar que esse lago mude de
cor três vezes ao dia, segundo os diversos aspectos do sol. Ele impele para
vários lugares massas de betume, negras, que parecem touros sem cabeça e
que nadam nas águas. Os do país, que navegam no lago, vão com barcas
recolher esse betume e como ele é tão extremamente pegajoso, gruda de tal
modo que só pode ser desligado com urina de mulher e com aquele mau sangue
de que elas se desfazem de tempos em tempos. Esse betume não somente serve
para calafetar os navios, mas entra também em vários remédios, próprios para
muitas doenças. O comprimento desse lago é de quinhentos e oitenta estádios e
ele se estende até Zoara, que está na Arábia. Sua largura é de cinqüenta
estádios.
340. As terras de Sodoma, vizinhas deste lago e que outrora eram
abundantes não somente em toda espécie de frutos, mas também muito
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célebres por suas riquezas e pela beleza de suas cidades, agora só conservam a
imagem espantosa daquele incêndio que a detestável impiedade de seus
habitantes atraiu sobre ela, quando Deus, para castigar seus crimes, lançou do
céu seus raios vingadores, que a reduziram a cinzas. Ali vemos ainda alguns
restantes das cinco cidades abomináveis e suas cinzas malditas produzem
frutos que parecem bons para se comer, mas apenas nós os apanhamos,
reduzem-se logo a pó. Assim, não é somente pela fé que nos persuadimos desse
horrível acontecimento; mas pode-se ainda constatá-lo com os próprios olhos.
CAPÍTULO 28
VESPASIANO COMEÇA A BLOQUEAR JERUSALÉM.
341. Vespasiano, querendo atacar Jerusalém por todos os lados, mandou
construir fortes em jerico e Abida, onde colocou guamições, misturadas com
tropas romanas e auxiliares, e mandou Lúcio Anio a Gerasa, com um corpo de
cavalaria e de infantaria. Tomou a praça de assalto, matou ali uns mil homens,
da defesa, que não puderam escapar, escravizou a todos os demais e deixou a
cidade entregue ao saque dos soldados, que a incendiaram depois. Dali passou
além. Os ricos fugiam; a morte era a herança dos que não tinham nem a força
nem os meios para escapar, e os romanos incendiavam todos os lugares de que
se apoderavam. Os montes bem como as planícies estavam destruídos pelas
tempestades dessa guerra e os que estavam encerrados em Jerusalém eram
obrigados a lá permanecer, porque os zelotes não permitiam sair aos que que-
riam ir se entregar a Vespasiano, e os que eram contra os romanos, vendo que
toda a cidade estava rodeada por suas tropas, não ousavam se arriscar a cair
em suas mãos.
CAPÍTULO 29
A MORTE DOS IMPERADORES NERO E GALBAFAZ VESPASIANO SUSPENDER SEU PROJETO
DE SITIAR
 JERUSALÉM.
342. Vespasiano voltou a Cesaréia, a fim de se preparar para marchar
com todas as suas tropas contra Jerusalém. Recebeu então a notícia da morte
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do imperador Nero, depois de ter reinado treze anos e oito dias. Não direi em
particular de que maneira esse príncipe desonrou seu reinado, confiando a
direção dos negócios a Ninfídio e Tigelino, dois dos seus piores e dos mais
infames libertos e de como tendo sido traído por eles e abandonado por seus
guardas, fugiu para um arrabalde, com quatro dos seus libertos, que lhe
permaneciam fiéis e ali se matou; de como no correr dos tempos os que tinham
sido causa de sua ruína foram castigados; de como terminou a guerra das
Cálias e Galba, depois de ter sido declarado imperador, foi da Espanha para
Roma, mas os soldados, tendo-o acusado de covardia, mataram-no, no meio da
grande praça; de como Otom, tendo sido elevado ao império, marchou com seu
exército contra Vitélio. Não falarei também das perturbações durante o reinado
de Vitélio, nem do combate ao pé do Capitólio, nem da maneira como Antônio
Primo e Múcio depois de terem matado e derrotado as tropas alemãs, puseram
termo à guerra civil. Como não posso duvidar de que vários historiadores, não
somente romanos, mas também gregos, não tenham escrito mui exatamente de
todas essas coisas, eu me contento de ter dito, nestas poucas palavras, o que
não poderia ter omitido sem interromper a seqüência de minha história.
343. Vespasiano, ante essa notícia, susteve a marcha contra Jerusalém.
Quis antes saber quem seria o sucessor de Nero e quando viu que o império
tinha caído nas mãos de Galba, julgou dever adiar seu projeto, nada
empreendendo, até receber suas ordens. Mandou para esse fim, Tito, seu filho,
procurá-lo e prestar-lhe em seu nome suas primeiras homenagens. O rei Agripa
quis fazer também a mesma viagem, para saudar o novo imperador, mas como
era inverno e eles tinham embarcado em grandes navios, não tinham ainda
passado a Acaia quando souberam que Galba tinha sido morto, depois de ter
reinado somente sete meses e sete dias e que Otom o havia substituído. Essa
mudança não impediu que Agripa continuasse com a mesma resolução de ir a
Roma. Mas Tito, como inspirado divinamente, voltou logo para junto de seu pai,
e com ele foi a Cesaréia.
Tão grandes e extraordinários movimentos, capazes de causar a ruína do
império, mantinham todos os espíritos em suspensão e não se podia mais
pensar na guerra da judéia, porque não se podia pensar em dominar os
estrangeiros, quando se tinha tanto motivo de temer pela salvação da mesma
pátria.
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CAPÍTULO 30
SIMÃO, FILHO DE GIORAS, COMEÇA POR SE TORNAR CHEFE DE UM BANDO DE LADRÕES,
E REÚNE EM SEGUIDA GRANDES FORÇAS.
 OS ZELOTES ATACAM.
ELE DERROTA-OS. TRAVA BATALHA COM OS IDUMEUS E A VITÓRIA FICA
INDECISA.
 VOLTA CONTRA ELES COM FORÇAS MAIORES E TODO SEU EXÉRCITO
É DESTRUÍDO PELA TRAIÇÃO DE UM DE SEUS CHEFES.
344. Entretanto, surgiu uma nova guerra entre os judeus. Simão, filho de
Gioras, originário de Gerasa, não era tão astuto como João, que se tinha
apoderado de Jerusalém, mas era mais jovem, mais forte e ainda mais ousado
que ele. O sumo sacerdote Anano o tinha expulsado por esse motivo da
toparquia de Acrabatana, de que ele era o governador e se havia juntado aos
ladrões que haviam ocupado Massada. A princípio ele lhes era suspeito e
permitiram-lhe somente ficar na fortaleza na parte inferior com as mulheres
que havia levado, sem deixá-lo entrar na parte superior. Mas, pouco a pouco,
pela conformidade
 de seus costumes, e
 tendo lhes parecido fiel, foi
conquistando a confiança de todos, servindo-lhes de guia para saquearem as
regiões circunvizinhas. Fez depois tudo o que pôde para levá-los a empresas
maiores, mas inutilmente, porque considerando aquele lugar como um refúgio
garantido, para eles, não queriam se afastar dali. Mas como ele era muito
ambicioso e só aspirava a um governo tirânico, apenas soube da morte de
Anano, foi aos montes, mandou publicar a todos que daria liberdade aos
escravos e recompensas aos livres. Todos os que gostavam da desordem e da
licença, imediatamente uniram-se a ele e, depois de lhes ter reunido um grande
número, saqueou as aldeias dos arredores e dos montes. Suas tropas cresciam
sempre e ele se atreveu a descer às planícies e tornou-se temível às cidades.
Sua coragem e seus felizes êxitos levaram mesmo várias pessoas ilustres a se
unirem a ele; suas tropas não eram somente compostas de escravos e de
ladrões; havia ainda outros de boa posição, no meio do povo, e todos lhe
prestavam obediência, como se ele fosse rei. Ele fazia incursões em Acrabatana
e na alta Iduméia. Uma aldeia chamada Naim, que ele tinha rodeado de
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muralhas, servia-lhe de refúgio; e além das cavernas que encontrou no vale de
Faram, alargou algumas, para onde levava o produto de seus saques, todo o
cereal e as frutas que roubava nos campos. Um grande número dos seus
alojava-se nessas cavernas e não se podia duvidar de que tal quantidade de
homens e de provisões não fosse feita com o fim de se servir de tudo contra
Jerusalém.
345. Os zelotes, para impedi-lo e não permitir que se fortificasse ainda
mais, saíram em grande número para atacá-lo. Ele veio corajosamente contra
eles, combateu-os, matou a muitos e pôs os restantes em fuga.
346.
 Não se julgando ainda, entretanto, bastante forte para sitiar
Jerusalém, quis antes de se arriscar em tão grande empresa, dominar a
Iduméia; com esse fim, marchou contra ela com vinte mil homens. Os idumeus
reuniram vinte e cinco mil soldados dos melhores e deixaram o restante para
resistir às incursões daqueles ladrões, que estavam refugiados em Massada.
Simão esperou-os na fronteira. Travou-se o combate que durou desde manhã
até à noite, sem que se pudesse dizer de que lado pendia a vitória. Simão
regressou em seguida a Naim e os idumeus, para suas terras.
Pouco tempo depois ele voltou com mais forças e acampou perto da aldeia
de Técua; mandou Eleazar ao castelo de Herodiom, para persuadir aos que lá
estavam que o entregassem a ele. Os chefes, antes de saber o motivo que o
levava, receberam-no bem. Mas depois que lhes expôs a sua comissão, puseram
mãos à espada para matá-lo; como ele não podia fugir, atirou-se do alto da
muralha ao vale e morreu.
Os idumeus, temendo as forças de Simão, quiseram antes de travar
combate, examinar o estado de suas tropas. Tiago, um de seus chefes, ofereceu-
se para ir lá, a fim de atraiçoá-lo. Partiu da aldeia de Olura, onde seu exército
estava reunido e prometeu a Simão entregar-lhe o país, contanto que ele
garantisse com juramento tê-lo em grande consideração. Simão, depois de o ter
tratado muito bem, despediu-o cheio de promessas. O traidor, de volta,
começou por fazer crer aos principais da cidade que as forças de Simão eram
muito maiores do que eram de verdade; procurou depois dispor todo o restante
do exército a recebê-lo e a entregar em suas mãos a soberana autoridade antes
que decidir-se a um combate; logo depois, pediu a Simão que avançasse em
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seguida, com a promessa de destruir todo o exército dos idumeus. Simão partiu
imediatamente; e quando esse pérfido homem o viu aproximar-se, fugiu com
todos os do seu partido e lançou assim tal terror no exército, que todos só
pensaram em fugir, como ele, sem ousar combater.
CAPÍTULO 31
DA ANTIGÜIDADE DA CIDADE DE CHEBROM NA IDUMÉIA.
347. Simão, entrando assim contra sua esperança na Iduméia, sem derra-
mamento de sangue, atacou e tomou a cidade de Chebrom, onde encontrou
grande quantidade de trigo e fez grandes presas. Os do país afirmam que ela
não somente é a mais antiga da província, mas que precede mesmo em
antigüidade a Mênfis, no Egito, e que há dois mil e trezentos anos fora
construída. Acrescentam que Abraão, de quem os judeus são descendentes, lá
tinha estabelecido sua morada depois que deixara a Mesopotâmia e que foi de
lá que partiram seus descendentes para o Egito. Com efeito, lá vemos, ainda
hoje, o que acabo de referir, gravado em pedaços de mármore, enriquecido
ainda com vários ornamentos.
Vemos também a seis estádios dali, um terebinto de grande altura, que
dizem ser tão antigo como o mundo.
CAPÍTULO 32
HORRÍVEIS DEVASTAÇÕES FEITAS POR SIMÃO NA IDUMÉIA. OS ZELOTES
APODERAM-SE DE SUA MULHER .
 ELE VAI COM O EXÉRCITO ATÉ ÀS PORTAS DE
JERUSALÉM, ONDE PRATICA INÚMEROS ATOS DE CRUELDADE E FAZ TANTAS
AMEAÇAS, QUE SÃO OBRIGADOS A LHE DEVOLVER A MULHER.
348. Simão atravessou em seguida toda a Iduméia e não se contentava de
destruir as cidades e as aldeias; detestava também os campos, porque além dos
soldados que tinha, quarenta mil outras pessoas seguiam-no e não havia
víveres suficientes para tanta gente. Mas sua crueldade natural, que era ainda
aumentada pela ira que tinha contra os idumeus, não contribuía menos que o
restante. Assim, nada mais se podia acrescentar à desolação daquela miserável
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província; e um bosque não fica menos desprovido de folhas em suas árvores
depois da passagem dos gafanhotos, do que a região que Simão atravessava
com seu exército ficava desprovida absolutamente de tudo. Aquelas tropas
desumanas saqueavam tudo, incendiavam tudo e sentiam prazer em pisar as
terras semeadas, para torná-las ainda mais duras, do que se jamais tivessem
sido cultivadas.
349. Estes atos de tão cruel hostilidade incitaram ainda mais os zelotes
contra Simão; mas eles não ousaram declarar-lhe uma guerra aberta.
Contentaram-se em armar-lhe ciladas em todos os caminhos e por esse meio
prenderam sua mulher e vários domésticos. Levaram-nos a Jerusalém, com
tanta alegria, como se o tivessem aprisionado a ele mesmo, alegrando-se com a
esperança de que ele deixaria as armas, para reaver sua esposa. Mas a cólera
de Simão superou-lhe a dor de vê-la escrava. Ele chegou até às portas de
Jerusalém e como um animal feroz, quando não se pode vingar dos que o
feriram, descarrega sua raiva sobre tudo o que encontra, ele apanhava a todos,
moços e velhos, que saíam da cidade para colher ervas ou apanhar lenha e os
mandava açoitar até morrer, com tanta crueldade que só faltava, ao seu furor,
saciar-se com suas carnes, depois de lhes ter tirado a vida. Para horrorizar
ainda mais seus inimigos e obrigar o povo a abandoná-los, mandou cortar as
mãos a vários e nesse estado os tornou a mandar para a cidade, com ordem de
dizer publicamente que ele tinha jurado por Deus vivo, que se eles não lhe
restituíssem imediatamente sua esposa, ele entraria na cidade pela brecha e
trataria a todos os habitantes do mesmo modo, como os havia tratado, sem
distinção de idade e sem fazer diferença entre inocentes e culpados. Essas
ameaças espantaram o povo de tal modo, e mesmo os zelotes, que eles lhe
restituíram a mulher; acalmando-se assim sua cólera, ele deixou de cometer
tantos assassínios.
CAPÍTULO 33
O EXÉRCITO DE OTOM FOI VENCIDO PELO DE VITÉLIO E AQUELE SUICIDA-SE .
VESPASIANO AVANÇA PARA JERUSALÉM COM SEU EXÉRCITO E TOMA, DE
PASSAGEM , DIVERSAS CIDADES .AO MESMO TEMPO
 CEREALIS, UM DOS SEUS
PRINCIPAIS OFICIAIS, TAMBÉM TOMA OUTRAS.
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350. Não era somente a Judéia que experimentava os males que causa
uma guerra civil; a mesma Itália também os sentia ao mesmo tempo. Galba fora
morto no centro de Roma, e Otom, declarado seu sucessor; mas as legiões da
Alemanha escolhem Vitélio para a mesma honra e este disputa o império. Seus
exércitos travam um combate perto de Bebriaque, na Gália Cisalpina. No
primeiro dia o de Otom levou vantagem, mas no dia seguinte o de Vitélio,
comandado por Valente e por Cesina, saiu vitorioso e destruiu um grande
numero de inimigos. Otom ficou tão assustado que se matou em Bruxelas,
depois de ter reinado somente três meses e dois dias. Os que tinham seguido
seu partido entregaram-se a Vitélio, que já tomava o caminho de Roma, com
seu exército.
351. Entretanto, Vespasiano, não querendo ficar mais tempo sem agir,
partiu de Cesaréia a cinco de junho para ir contra os que restavam ainda, a fim
de dominar toda a Judéia. Começou por se apoderar, nos montes, das
toparquias de Gofnítida e de Acrabatana; tomou as cidades de Betei e Efrem,
onde colocou guarnições; avançou em seguida para Jerusalém e matou, nessa
marcha, um grande número de judeus.
352. Cerealis, um dos principais oficiais do seu exército, devastava, ao
mesmo tempo, a alta Iduméia com um grande corpo de tropas. Tomou, de
passagem, o castelo de Cafetra e cercou o de Cafarabem. Como essa praça era
forte, ele pensou ficar ali por muito tempo, mas quando menos o esperava, os
habitantes se entregaram. De lá foi a Chebrom, cidade antiga, de que acabamos
de falar e que está nos montes, perto de Jerusalém; tomou-a de assalto, matou
todos os que lá encontrou, saqueou-a e depois incendiou-a. Assim, todas as
praças foram reduzidas ao domínio dos romanos, exceto Herodiom, Massada e
Macherom, que ainda estavam ocupadas pelos revoltosos; nada mais restava a
Vespasiano para pôr fim a essa guerra, que tomar Jerusalém.
CAPÍTULO 34
SIMÃO VOLTA SEU FUROR CONTRA OS IDUMEUS E PERSEGUE ATÉ À PORTAS DE
JERUSALÉM OS QUE FUGIAM. CRUELDADE HORRÍVEL E ABOMINAÇÃO DOS
GALILEUS QUE ESTAVAM COM
 JOÃO DE GISCALA. OS IDUMEUS, QUE
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HAVIAM ABRAÇADO O SEU PARTIDO, INSURGEM-SE CONTRA ELE, SAQUEIAM
O PALÁCIO QUE ELE TINHA OCUPADO E OBRIGAM-NO A SE ENCERRAR NO
TEMPLO. ESSES IDUMEUS E O POVO CHAMAM SIMÃO EM SEU AUXÍLIO
CONTRA ELE E O SITIAM.
353. Depois que Simão reconquistou sua mulher voltou seu furor contra
o que restava de idumeus. Perseguiu-os de tal modo, que estando reduzidos ao
desespero, vários fugiram para Jerusalém. Ele os perseguiu até às muralhas e
lá matou os que voltavam do campo, quando pretendiam entrar na cidade.
Assim, Simão era, no exterior, mais temível aos habitantes do que os romanos,
e os zelotes eram-no, no interior, muito mais que os romanos e Simão.
354.
 Por mais horrível que fosse sua desumanidade e seu furor, os
galileus as aumentavam ainda mais e João inspirava-lhes novos meios de a
praticar, pois nada havia que ele não lhes permitisse, como gratidão pelo favor
que lhe haviam feito, tendo-o elevado a tão grande poder. Tudo o que se
encontrava de mais precioso nas casas dos ricos não era suficiente para
contentar à sua insaciável ambição. Matar os homens e ultrajar as mulheres
era para eles um divertimento e um gracejo. Eles borrifavam suas presas com
sangue e encontravam prazer na multiplicação dos crimes. Depois de se terem
abandonado aos que são praticados pelos maus, eles se aborreciam com os
mesmos, como muito ordinários e comuns; para satisfazer à sua abominável
brutalidade, não tinham vergonha de procurar outros, que causavam horror à
mesma natureza. Vestiam-se de mulheres, penteavam os cabelos, adornavam-
se como elas e não as imitavam somente em suas vestes e adereços, mas até na
impudência mais desavergonhada, superavam-nas ainda com ações de uma
impudicícia abominável. Assim encheram Jerusalém de crimes execráveis, de
tal modo que aquela grande cidade parecia um lugar público de prostituição, a
mais detestável e a mais horrível de todas as infâmias. Mas ainda que esses
monstros de impudicícia, de crueldade e de ambição tivessem rosto tão
efeminado, suas mãos não estavam menos prontas a cometer assassínios. Ao
mesmo tempo que andavam devagar e afetadamente eram vistos puxar de suas
espadas de sob as vestes de diversas cores e assassinar os que encontravam.
Os que podiam escapar das mãos de João, caíam nas de Simão e achavam que
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ele ainda os superava em crueldade; depois de ter evitado o furor desse tirano
doméstico, o outro que cercava a cidade fazia-os também perder a vida ,e os
que desejavam fugir para os romanos não podiam fazê-lo.
355. Entretanto, os idumeus que tinham abraçado o partido de João,
invejando seu poder e não podendo tolerar sua crueldade, insurgiram-se contra
ele. Travou-se um combate, mataram a muitos dos dele, impeliram-no até
quase o palácio, construído por Grapta, primo de Izate, rei dos adiabenianos,
que João havia escolhido para sua residência e onde ele guardava todo seu
dinheiro, como produto dos roubos e saques, que eram efeito de sua tirania;
entraram lá com ele e o obrigaram a se retirar ao Templo; voltaram depois para
saquear o palácio. Os zelotes então que estavam dispersos pela cidade, foram
juntar-se aos que estavam no Templo e João preparava-se para dar um ataque
ao povo e aos idumeus. Não era isso que eles temiam, porque os superavam de
muito em número; seu único temor era que ele atacasse de noite e incendiasse
a cidade. Reuniram-se para esse fim com os sacerdotes para deliberar o que
deveriam fazer. Mas Deus confundiu seus desígnios, pois eles recorreram a um
remédio muito mais perigoso que o mesmo mal. Resolveram receber Simão para
opô-lo a João; mandaram Matias, sacerdote, rogar-lhe que entrasse na cidade e
fizeram assim seu tirano àquele mesmo ao qual tanto tinham temido. Os que
haviam fugido da cidade para evitar o furor dos zelotes uniram suas súplicas às
de Matias, pelo desejo que tinham de voltar às suas casas e ao gozo de seus
bens. Simão respondeu altivamente, e como senhor, que aceitava o seu pedido,
entrou na cidade na qualidade de libertador e o povo recebeu-o com grandes
aclamações; isto aconteceu no terceiro mês a que chamamos de Xantico.
Vendo-se assim em Jerusalém, ele só pensou em consolidar a sua autoridade e
não considerava menos como inimigos os que o haviam chamado, do que
aqueles contra os quais eles haviam recorrido ao seu auxílio.
356. João, ao contrário, perdia as esperanças de salvação, porque se via
encerrado no Templo e Simão tinha acabado de saquear tudo o que restava na
cidade. Este, confortado com o auxílio do povo, atacou o Templo; mas os siti-
ados, que se defendiam de cima dos pórticos e de outros lugares que haviam
fortificado, repeliram-no, mataram e feriram a muitos dos dele, porque tinham
a vantagem de combater de um lugar mais elevado e particularmente de quatro
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grandes torres que tinham construído; a primeira entre o oriente e o norte; a
segunda na galeria; a terceira no ângulo oposto à cidade baixa e a quarta no
vértice de uma espécie de tabemaculo, chamado Pastoforio, onde segundo o
costume de nossos antepassados um dos sacerdotes de pé, diante do sol posto,
dizia, a som de trombeta, que o dia do sábado começava e na tarde seguinte
terminava, e também declarava ao povo os dias que ele devia festejar e os em
que devia trabalhar. Os sitiados tinham guarnecido essas torres com máquinas,
arqueiros e fundibulários; tão grande resistência enfraqueceu o ardor dos que
sitiavam. Mas Simão, confiando no grande número dos seus, não deixava de
fazer seus homens avançarem, embora as máquinas dos sitiados lançassem
dardos que matavam e feriam a muitos deles.
CAPÍTULO 35
DESORDENS CAUSADAS EM ROMA PELAS TROPAS ESTRANGEIRAS QUE VITÉLIO
PARA LÁ HAVIA CONDUZIDO.
357. Enquanto o fogo assim ardia em Jerusalém, Roma sofria por seu
lado os males de uma guerra civil. Vitélio lá havia chegado com seu exército,
aumentado por um grande número de tropas estrangeiras; os lugares
destinados para alojar os soldados não eram suficientes e eles se espalharam
pelas casas e transformaram a cidade num acampamento. O brilho do ouro e
da prata feriu de tal modo os olhos desses estrangeiros, pouco acostumados a
ver tantas riquezas, que ardendo no desejo de possuí-las, não somente se
puseram a saquear e a roubar, mas matavam mesmo a todos os que lhes
queriam impedir a posse desses bens.
CAPÍTULO 36
VESPASIANO É DECLARADO IMPERADOR POR SEU EXÉRCITO.
358. Vespasiano, depois de ter devastado todas as terras dos arredores de
Jerusalém, soube, ao seu regresso a Cesaréia, do que se passava em Roma e
que Vitélio tinha sido declarado imperador. Essa notícia causou-lhe extrema
indignação, pois embora ninguém soubesse melhor do que ele obedecer, tão
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bem como comandar, ele não podia tolerar como senhor um homem que se
havia apoderado do império, como se o mesmo tivesse sido exposto, como
presa, ao primeiro que o quisesse ocupar. Tão sensível desprazer impressionou-
o de tal modo, que já não lhe era possível pensar em empreendimentos
estrangeiros, quando sua pátria se achava reduzida a tal estado. Mas embora
ele ardesse no desejo de vingar o ultraje que a escolha de Vitélio fazia aos que
mereciam muito mais do que ele ser elevados ao supremo poder, era obrigado a
reter sua cólera, porque estava tão longe de Roma e o inverno retardava ainda
mais sua marcha; além de que poderia acontecer outra novidade qualquer
antes que tivesse chegado à Itália.
359. Quando tudo isso se passava no espírito de Vespasiano, os oficiais e
os soldados de seu exército começaram a se preocupar livremente com os
negócios públicos e a testemunhar abertamente sua cólera, porque as tropas
que estavam em Roma, mergulhadas nas delícias, sem querer ouvir falar de
guerra, dispunham como bem lhes aprazia do império e o davam àquele de
quem esperavam obter mais dinheiro, ao passo que eles, depois de ter
suportado tantas fadigas e envelhecido nas armas, eram tão covardes, que os
deixavam tomar toda a autoridade, embora tivessem como comandante um
homem digno do cargo. Acrescentavam que se eles deixassem escapar a ocasião
de lhe testemunhar sua gratidão, pelo extremo afeto que tinha por eles, não
podiam esperar encontrar outra semelhante. Que era tanto mais justo declarar-
se por Vespasiano contra Vitélio, quanto os sufrágios em seu favor eram mais
numerosos do que os sufrágios daqueles que tinham nomeado Vitélio,
imperador, pois que eles não eram menos valentes e não tinham combatido em
menor número de guerras do que as legiões que tinha trazido da Alemanha
aquele usurpador para a capital do império e aquela escolha de Vespasiano não
tinha contraditares, porque o Senado e o povo romano jamais se resolveriam a
preferir as desordens de Vitélio à temperança de Vespasiano, e a crueldade de
um tirano à clemência de um bom imperador; que eles não podiam também não
ter em consideração o mérito tão extraordinário de Tito, porque nada pode
manter a paz dos impérios como as eminentes virtudes dos soberanos. E assim,
quer se considerasse a experiência que a velhice tem, quer o vigor da juventude,
não se podia deixar de escolher Vespasiano, ou Tito, e não havia vantagem que
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não se pudesse tirar dessa diferença de idade. Aquele admirável pai, daquele
excelente filho, sendo chamado ao império não o fortificaria somente com três
legiões e com as tropas auxiliares dos reis, mas também com todas as forças do
Oriente, daquela parte da Europa que não temia Vitélio e dos que abraçavam o
partido de Vespasiano na Itália, onde ele tinha seu irmão e o outro filho, o
primeiro dos quais era prefeito de Roma, cargo assaz considerável, sobretudo
no começo de um reinado, e o outro tinha tanto prestígio entre a juventude de
mais ilustre nobreza, que muitos a ele se uniriam; e, por fim, se eles tardassem
em declarar Vespasiano imperador, poderia acontecer que o Senado lhe
concedesse aquela honra e eles teriam então a vergonha de não lha ter dado,
embora nenhum outro fosse mais obrigado a isso do que eles, pois o haviam
tido como chefe em tantas, tão grandes e gloriosas empresas.
Tais as palavras dos soldados: a princípio, apenas entre eles, em
pequenos grupos, mas seu número crescia sempre e fortalecia-se o sentimento
até que declararam Vespasiano imperador e pediram-lhe que aceitasse aquela
dignidade para salvar o império do perigo que o ameaçava. Havia já muito
tempo que aquele grande homem dirigia seus cuidados a tudo o que se referia
ao bem público, mas embora ele não pudesse não se julgar digno de reinar, não
tinha aquela ambição, porque preferia a segurança de uma condição particular,
aos perigos inerentes àquele supremo cargo, que expõe os homens aos
acidentes da fortuna. Assim, ele recusou a honra oferecida. Mas em vez de essa
recusa amortecer o entusiasmo de seus chefes e soldados, eles insistiram ainda
mais para que aceitasse e chegaram mesmo a puxar de suas espadas,
ameaçando matá-lo, se ele se recusasse a ser o senhor do mundo. No entanto,
ele continuou a resistir; vendo que não os podia persuadir, foi por fim obrigado
a ceder às suas instâncias tão fortes e que lhe eram tão gloriosas.
CAPÍTULO 37
VESPASIANO COMEÇA POR SE APODERAR DE ALEXANDRIA E DO EGITO DE QUE TIBÉRIO
ALEXANDRE ERA GOVERNADOR. DESCRIÇÃO DESSA PROVÍNCIA E
DO PORTO DE
 ALEXANDRIA.
360.
 Depois dessa escolha de Vespasiano para o supremo cargo do
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império, Múcio, os outros chefes de suas tropas e todo o exército rogaram-lhe
que os levasse contra Vitélio. Mas ele quis antes apoderar-se de Alexandria,
porque sabia que o Egito é uma parte considerável do império pela grande
quantidade de trigo que produz, e esperava, se pudesse apoderar-se dele, que
Roma preferiria expulsar Vitélio, do que se ver exposta à carestia, se se
obstinasse em conservá-lo, além de que ele desejava fortalecer-se com as duas
legiões que estavam em Alexandria.
361. Considerava também que tão poderosa província poder-lhe-ia ser de
grande auxílio, contra as vicissitudes da fortuna, pois a região é de mui difícil
acesso do lado da terra e sem portos do lado do mar. Tem por limites do lado do
ocidente as terras áridas da Líbia, do lado do sul, Siené separa-a da Etiópia e as
cataratas do Nilo fecham a entrada para os navios. Do lado do oriente, o mar
Vermelho serve-lhe de defesa até a cidade de Coptom e do lado do norte, esten-
de-se até à Síria e está como defendida pelo mar do Egito, onde não há um só
porto. Dessa forma, parece que a natureza sentiu prazer em fortificá-lo de todos
os lados. O espaço entre Pelusa e Siené é de dois mil estádios e o da navegação,
desde Plintia até Pelusa é de três mil e seiscentos estádios. Os navios podem
navegar no Nilo até a cidade de Elefantina, mas as cataratas de que acabamos
de falar não lhes permitem passar além.
362.
 A entrada do porto de Alexandria é muito difícil para os navios,
mesmo durante a calma, porque a passagem é muito estreita e rochedos
escondidos no mar os obrigam a se desviar do curso. Do lado esquerdo um
dique forte é como um braço que aperta o porto; ele é fechado do lado direito
pela ilha de Faros, na qual construiu-se uma grandíssima torre, onde uma luz
sempre acesa, cuja claridade se estende à distância de trezentos estádios,
mostra aos marítimos o caminho que devem seguir. Para defender essa ilha da
violência do mar, rodearam-na de cais cujos muros são muito espessos; mas
quando o mar, em seu furor, se irrita pela oposição que encontra, as ondas, que
se levantam umas sobre as outras, estreitam ainda mais a entrada do porto e o
tornam mais perigoso. Depois de ter vencido estas dificuldades, os navios que
chegam ao porto lá permanecem em grande segurança e sua extensão é de
trinta estádios. Para lá se leva tudo o que pode faltar à felicidade dessa fértil
província e de lá se tiram as riquezas de que ela é abundante, para espalhá-las
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em todas as outras partes da terra.
363.
 Assim, não era sem motivo que Vespasiano, para consolidar sua
autoridade, quisesse apoderar-se de Alexandria. Escreveu a Tibério Alexandre,
que era seu governador, que o exército o havia elevado ao império, com tanto
afeto e tanto ardor, que lhe havia sido impossível não aceitar a imposição e ele o
escolhia para ajudá-lo a carregar tão grande peso. Apenas Alexandre recebeu
essa carta fez as legiões prestar juramento e todo o povo também, em nome
desse novo imperador. E eles o fizeram com muitíssima alegria, porque a
maneira como Vespasiano os havia governado os tinha feito a todos admirar a
sua virtude. Alexandre continuou do mesmo modo a se servir para o bem do
império do poder que lhe tinha sido outorgado e procurou preparar todas as
coisas necessárias para a recepção do novo soberano.
CAPÍTULO 38
INCRÍVEL JÚBILO QUE AS PROVÍNCIAS DA Á SIA DEMONSTRAM PELA ESCOLHA
DE
 VESPASIANO, PARA O IMPÉRIO. ELE PÕE JOSEFO EM LIBERDADE DE
MANEIRA MUITO HONROSA.
364. Foi incrível a rapidez com que a notícia da escolha de Vespasiano
para o trono do império se divulgou pelo Oriente e a alegria que causou esta
notícia foi tão geral, que todas as cidades festejaram aquele dia e se ofereceram
inúmeros sacrifícios para lhe desejar um feliz reinado.
365. As legiões que estavam na Moésia e na Hungria e que pouco antes
se haviam revoltado contra Vitélio, porque não podiam tolerar sua insolência,
prestaram juramento a Vespasiano, com demonstrações incríveis de afeto.
366. Quando ele voltou de Cesaréia a Berita vários embaixadores da Síria
e das outras províncias, em nome de todas as cidades, ofereceram-lhe coroas,
com cartas cheias de votos pela sua prosperidade. Múcio, governador da Síria,
também veio procurá-lo parta trazer-lhe o protesto de afeto dos povos e do
juramento que haviam feito de reconhecê-lo como imperador.
367. Este sábio príncipe, vendo que a fortuna secundava seus desígnios
de tal sorte, que tudo lhe saía como ele poderia desejar, julgou que não fora
sem uma determinação particular de Deus, que a providência o havia
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conduzido por tantos e tão variados caminhos, até o cúmulo da grandeza,
chegando mesmo a dominar sobre toda a terra. Vários sinais que lhe tinham
sido preditos, voltavam-lhe agora à mente e de modo especial, que josefo não
havia temido, mesmo quando Nero ainda vivia, afirmar-lhe que Deus o
destinava ao império. Essa recomendação impressionou-o tanto que ele não
pôde pensar, sem pasmar, que ainda o conservava prisioneiro. Reuniu Múcio,
os comandantes de suas tropas e seus amigos particulares, falou-lhes do
grande valor de josefo, das dificuldades que lhe havia criado no cerco de
Jotapate e de como ele, sozinho, havia sido causa de que o assédio se
prolongasse tanto e o tempo lhe havia demonstrado a veracidade das predições
por ele feitas, de que ele chegaria ao trono do império e que no momento ele
atribuía apenas ao temor; parecia-lhe vergonhoso conservar ainda por mais
tempo, como escravo e na miséria, aquele de quem Deus se quisera servir para
pressagiar-lhe tão grande felicidade, à qual se pode chegar neste mundo.
Depois de ter assim falado, mandou chamar Josefo e o pôs em liberdade.
Essa generosidade comoveu vivamente a todos os seus oficiais. Julgaram que,
tratando tão generosamente a um estrangeiro, imaginavam que tudo poderiam
esperar de sua gratidão. Tito, que estava presente, disse-lhe: "É, Senhor, uma
ação digna de vossa bondade, dar a liberdade a Josefo, livrando-o das suas
cadeias. Mas parece-me que seria também digno de vossa justiça prestar-lhe a
honra de quebrá-las, para restaurá-lo no estado em que ele estava, antes do
seu cativeiro, pois é esta a maneira de que se usa, para com aqueles que foram
injustamente postos em ferros". Vespasiano aprovou essa proposta. As cadeias
foram quebradas e o efeito da predição de Josefo granjeou-lhe tal reputação de
ser verdadeiro, que todos estavam dispostos a crer no que ele dissesse, para o
futuro.
CAPÍTULO 39
VESPASIANO MANDA MÚCIO A ROMA COM UM EXÉRCITO.
368. Depois que Vespasiano conferenciou com todos os embaixadores e
deu os vários postos de governo a pessoas cujo mérito as tornava dignas deles,
foi para Antioquia. Seu primeiro desejo era ir a Alexandria, mas vendo que lá
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tudo corria da maneira como desejava, julgou preferível voltar seus cuidados ao
que se passava em Roma, onde Vitélio promovia agitações e podia embaraçá-lo
muito mais. Mandou então para lá Múcio, com um exército, e como ele não
podia sem grande perigo fazer essa viagem por mar, porque se estava no
inverno, fê-lo tomar o caminho por terra, passando pela Capadócia e pela
Frígia.
CAPÍTULO 40
ANTÔNIO PRIMO, GOVERNADOR DA MOÉSIA, MARCHA EM FAVOR DE VESPASIANO CONTRA
VITÉLIO. VITÉLIO MANDA CESINA CONTRA ELE COM TRINTA MIL HOMENS. CESINA
PERSUADE OS SEUS SOLDADOS A PASSAR
PARA O LADO DE
 PRIMO. ELES, PORÉM, ARREPENDEM-SE E QUEREM MATÁ-LO. PRIMO OS
DESBARATA E DIZIMA.
369. Nesse mesmo tempo, Antônio Primo, governador da Moésia,
querendo marchar contra Vitélio, tomou a terceira legião que estava naquela
província. Vitélio mandou Cesina com trinta mil homens contra ele; esse oficial
merecia toda sua confiança, por causa da vitória que havia conquistado contra
Otom. Partindo de Roma com seus soldados ele encontrou Primo perto de
Cremona, cidade da Lombardia, província das Gálias, nos limites da Itália; mas
apenas pôde avaliar as forças de Primo, sua ordem e disciplina, não se atreveu
a travar combate. Vendo, além disso, quanto lhe seria perigoso recuar, julgou
que seria melhor abandonar o partido de Vitélio para tomar o de Vespasiano.
Reuniu os oficiais de seu exército e para persuadi-los a se entregar a Primo,
disse-lhes que as forças de Vespasiano eram muito mais numerosas que as de
Vitélio; que este, de imperador só tinha o nome, e o outro tinha ademais a
virtude e o mérito; e como ele não estava em condições de resistir a tantas
tropas, a prudência os obrigava a fazer voluntariamente o que eles não podiam
deixar de fazer, porque Vespasiano podia sem eles tornar-se senhor das
províncias que ainda não o reconheciam, ao passo que Vitélio não podia
conservar as que estavam do lado dele. Cesina, com estas e outras razões,
chegou a persuadi-los e passou em seguida para o lado de Primo. Mas na noite
seguinte, os soldados do exército de Cesina impressionados com o que
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acabavam de fazer e de medo do castigo, se Vitélio fosse vencedor, vieram de
espada desembainhada a Cesina e o teriam matado se seus tribunos não
tivessem se prostrado de joelhos, diante deles, para impedir-lho. Assim eles se
contentaram em prendê-lo como traidor, para mandá-lo a Vitélio. Apenas Primo
veio a sabê-lo marchou contra eles como contra desertores. Por algum tempo
eles resistiram ao combate, mas depois fugiram para Cremona. Primo alcançou-
os com sua cavalaria, não permitiu que lá entrassem, e tendo-os cercado de
todos os lados matou um grande número deles, dispersou os demais e permitiu
aos seus soldados que saqueassem a cidade. Vários habitantes e mercadores
estrangeiros que lá se encontravam pereceram e todo o exército de Vitélio, em
número de trinta mil e quinhentos soldados, foi completamente destruído e
derrotado. Primo também ali perdeu quatro mil e quinhentos soldados, pôs
Cesina em liberdade e o mandou levar ele mesmo a Vespasiano a notícia de
tudo o que se tinha passado. Vespasiano louvou-o e apagou de seu espírito,
com honras que ele não esperava, a vergonha de ter traído Vitélio.
CAPÍTULO 41
SABINO, IRMÃO DE V ESPASIANO, APODERA-SE DO CAPITÓLIO ONDE OS
SOLDADOS DE
 VITÉLIO O ATACAM, PRENDEM-NO E O MANDAM A VITÉLIO
QUE O MATA.
 DOMICIANO, FILHO DE VESPASIANO, CONSEGUE ESCAPAR.
PRIMO DERROTA EM ROMA TODO O EXÉRCITO DE VITÉLIO QUE É, DEPOIS,
MORTO.
 MÚCIO CHEGA, RESTABELECE A CALMA EM ROMA, E VESPASIANO É
RECONHECIDO POR TODOS, COMO IMPERADOR .
370. Quando Sabino, irmão de Vespasiano, que estava em Roma, soube
que Primo se aproximava, sua coragem cresceu ainda mais, pela notícia.
Reuniu as companhias que montam guarda na cidade, durante a noite e
apoderou-se do Capitólio. Logo que raiou o dia vários homens da nobreza
juntaram-se a ele, dentre outros, Domiciano, seu sobrinho, que fazia, sozinho,
mais do que todos os outros, esperar um feliz êxito naquela empresa. Vitélio,
sem se intimidar pela aproximação de Primo, só pensou em descarregar sua
cólera sobre Sabino e os que se tinham revoltado contra ele; ficou
extremamente irritado e tão sedento de sangue que ardia de impaciência em
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derramá-lo. Mandou então contra ele todos os seus soldados e houve mesmo de
lado a lado grandes feitos de valor. Mas os alemães que eram muito mais
numerosos que os outros, por fim venceram-nos. Domiciano e alguns dos mais
ilustres escaparam como por milagre, mas todos os outros pereceram; Sabino
foi levado a Vitélio que o mandou matar naquele mesmo instante. Os soldados
saquearam os presentes ofertados aos deuses que estavam naquele Templo.
371. No dia seguinte Primo chegou com seu exército. O de Vitélio foi ao
seu encontro e o combate travou-se em três lugares ao mesmo tempo, no centro
de Roma. Todo o exército de Vitélio foi derrotado. Esse príncipe infame saiu
completamente embriagado do palácio e no estado em que um homem se podia
encontrar, que mesmo naquele transe, tendo segundo o costume ficado muito
tempo à mesa do maior excesso de prazer que o luxo é capaz de inventar, não
havia posto limites à sua gula. Arrastaram-no pela cidade e depois que o povo
se saciou, fazendo-lhe toda a espécie de ultraje, ele foi por fim degolado. Só
reinou oito meses e meio e se seu reinado tivesse sido mais longo, creio que
todas as riquezas do império não teriam sido suficientes para as despesas de
suas horríveis e incríveis manifestações de luxúria e devassidão. Houve ainda
outros cinqüenta mil mortos e tudo isso aconteceu no dia três de outubro.
372. No dia seguinte, Múcio entrou em Roma com seu exército e conteve
o furor dos soldados de Primo, que sem distinguir os culpados dos inocentes,
procuravam e matavam nas casas os soldados que ainda restavam, do exército
de Vitélio e os habitantes que o haviam seguido. Apresentou em seguida
Domiciano ao povo e colocou a autoridade em suas mãos até a chegada do novo
imperador,
 seu
 pai.
 Cessando
 então
 todo
 temor,
 todos
 proclamaram
unanimemente a Vespasiano imperador e não se manifestou menor alegria em
estar-se sujeito ao seu domínio, do que em se ter libertado do de Vitélio.
CAPÍTULO 42
VESPASIANO ORGANIZA TUDO EM ALEXANDRIA, E PREPARA-SE PARA,
DURANTE A PRIMAVERA , VIR À ITÁLIA E MANDA
 TITO À JUDÉIA PARA
TOMAR E DESTRUIR
 JERUSALÉM.
373. Vespasiano chegou a Alexandria e soube de todas as notícias de que
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acabo de falar. E embora essa cidade seja, depois de Roma, a maior do mundo,
era então pequena para receber os embaixadores que vinham de todas as
partes da terra, manifestar-lhe regozijo pela sua elevação ao trono do império.
Vendo então seu poder já bem consolidado, as perturbações em Roma bastante
acalmadas e nada mais tendo a temer, julgou dever levar seus esforços para
dominar e exterminar o restante da judéia. Assim, ao mesmo tempo em que se
preparava para vir à Itália, no começo da primavera, depois de ter organizado
todas as coisas em Alexandria, fez Tito, seu filho, partir com suas melhores
tropas para se apoderar de Jerusalém e destruí-la.
374.
 Esse excelente príncipe partiu por terra até Nicópolis, distante
somente vinte estádios de Alexandria, onde embarcou suas tropas em grandes
navios, desceu ao longo do Nilo, pelas margens de Mendesina, até a cidade de
Tamaim e desembarcou em Tanim. De lá foi a Heracléia e de Heracléia a Pelusa.
Depois de aí ter ficado dois dias, para dar um pouco de descanso às tropas,
marchou pelo deserto e acampou perto do Templo de Júpiter Casieno. No dia
seguinte foi a Ostracina, lugar tão árido, que seus habitantes não têm outra
água que a que lhes vem de outros lugares. Depois chegou a Rinocolura, onde
ficou um pouco. De ali partiu para Rafia que é a primeira cidade da Síria,
naquela fronteira, onde se deteve ainda alguns dias. Gaza foi o quinto lugar
onde parou; de lá foi a Ascalom, a Jâmnia e a Jope, chegando a Cesaréia, com o
fim de reunir ainda outras tropas.
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Livro Quinto
CAPÍTULO 1
TITO REÚNE EM CESARÉIA SUAS TROPAS, PARA MARCHAR CONTRA
JERUSALÉM. O PARTIDO DE JOÃO DE GISCALA SE DIVIDE EM DOIS;
ELEAZAR, CHEFE DESSE NOVO PARTIDO, OCUPA A PARTE SUPERIOR DO
TEMPLO. SIMÃO, POR OUTRO LADO, ERA SENHOR DA CIDADE E HAVIA AO
MESMO TEMPO ENTÃO EM
 JERUSALÉM TRÊS PARTIDOS QUE SE
GUERREAVAM MUTUAMENTE.
375. Depois que Tito, como vimos, atravessou os desertos que estão entre
o Egito e a Síria, chegou a Cesaréia para ali reunir novas tropas. Enquanto
ainda estava em Alexandria, onde, com Vespasiano, seu pai, ocupava-se em
organizar todos os interesses da cidade e do império que Deus lhes havia
entregado, formou-se em Jerusalém um terceiro partido. Todos eram inimigos e
devia-se antes considerar como um bem, que como um mal, essa oposição entre
eles, pois é para se desejar que os maus se destruam uns aos outros.
Vimos, pelo que acabo de relatar, o início e o crescimento progressivo do
partido dos zelotes, que tendo usurpado o poder foram a primeira causa da
ruína de Jerusalém. Este partido dividiu-se e produziu um terceiro, como um
animal feroz, que volta seu furor contra si mesmo, quando, em sua raiva, não
encontra nada que lhe possa resistir.
Eleazar, filho de Simão, que desde o princípio havia, no Templo, incitado
os zelotes contra o povo, não sentia menor prazer do que João em manchar
suas mãos de sangue; e como ele não podia tolerar sem ira que ele se tivesse
apoderado do governo, porque ele também o desejava, separou-se dele, com o
pretexto de não poder suportar por mais tempo sua ousadia e insolência.
Judas, filho de Chelsias, e Simão, filho de Efrom, ambos homens de posição, e
Ezequias, filho de Chobaro, que era de ilustre família, juntaram-se a ele e cada
um, seguido por muitos zelotes, ocupou a parte interna do Templo e colocou
suas armas sobre as portas sagradas, com a persuasão de que nada lhes
faltaria, porque se faziam oblações contínuas, as quais sua impiedade não
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receava empregar para usos profanos. Sua única pena era não serem em
grande número, para poder empreender algo. João, ao contrário, possuía
muitos homens; mas eles tinham sobre ele a vantagem da elevação do lugar que
o continha de tal modo, que ele não se deixava levar pelo ardor a atacá-los. Mas
não podia conter-se totalmente, embora se retirasse sempre com perdas; o
Templo estava todo conspurcado por assassínios.
376. Por outro lado, Simão, filho de Cioras, que o povo, no desespero,
havia chamado em seu auxílio e não tivera receio em receber como tirano, tendo
ocupado a cidade alta e a maior parte da cidade baixa, atacava João, tanto mais
corajosamente quanto o via empenhado também em sustentar a luta conta
Eleazar. Mas como João tinha as mesmas vantagens sobre Simão, que Eleazar
tinha sobre ele, porque assim como a parte exterior do Templo era dominada
pela superior, ela dominava a cidade e ele não tinha grande dificuldade em
repelir Simão; empregava para se defender de Eleazar longos pedaços de pau e
máquinas que atiravam pedras. E por esse meio não somente matava muitos
partidários de Eleazar, mas também muitas pessoas que vinham oferecer
sacrifícios. Ainda que não houvesse impiedade que a raiva daqueles malvados
não os levasse a cometer, não recusavam a entrada dos santos lugares aos que
vinham para oferecer sacrifícios, mas antes os faziam esbulhar por pessoas
destinadas por eles a esse fim, embora fossem judeus; os estrangeiros, quando
se julgavam em segurança depois de ter achado alguma complacência entre
aqueles homens furiosos, eram mortos pelas pedras que as máquinas de João
atiravam, cujos golpes chegavam até o altar e matavam os sacerdores, com os
que estavam oferecendo os sacrifícios. Viam-se assim pessoas que vinham dos
extremos do mundo, para adorar a Deus naquele lugar sagrado, cair mortas
com suas vítimas e banhar com seu sangue o altar, cultuado não somente pelos
gregos, mas ainda pelas nações mais bárbaras. Via-se esse sangue correr em
rios de corpos feridos tanto dos sacerdotes, como dos outros, dos originários do
país, como dos estrangeiros, de que aqueles lugares santos estavam cheios.
CAPÍTULO 2
O AUTOR DEPLORA A DESGRAÇA DE JERUSALÉM.
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377'. Cidade infeliz, que sofreste de semelhante, depois que os romanos,
entrando pela brecha, reduziram-te a cinzas, para purificar com o fogo, tantas
abo-minações e crimes que atraíram sobre ti os raios da vingança de Deus?
Poderias continuar a ser o lugar adorável, onde ele tinha estabelecido sua
morada e ficar impune, depois de ter pela mais sangrenta e cruel guerra civil,
como nunca se viu, feito de seu Templo, o sepulcro de teus concidadãos? Não
desesperes, porém, em acalmar sua cólera, contanto que teu arrependimento
iguale a enormidade de tuas ofensas. Mas devo conter meus sentimentos, pois
que a lei da história em vez de me permitir deter-me para chorar minhas
desgraças, obriga-me a apresentar a seqüência dos tristes efeitos de nossas
funestas divisões.
CAPÍTULO 3
DE QUE MODO ESSES TRÊS PARTIDOS OPOSTOS AGIAM EM JERUSALÉM, UNS
CONTRA OS OUTROS. INCRÍVEL QUANTIDADE DE TRIGO QUEJOI QUEIMADA E QUE
PODERIA TER IMPEDIDO A CARESTIA, QUE CAUSOU A QUEDA DA CIDADE .
378. Esses três partidos opostos agiam uns contra os outros em
Jerusalém, desta maneira: Eleazar e os seus, que tinham a custódia das
primícias e das oblações santas, estando o mais das vezes embriagados,
atacavam João. João fazia incursões contra Simão e contra o povo que o
ajudava com víveres, contra ele e contra Eleazar. E se acontecia de ser atacado
ao mesmo tempo por Eleazar e por Simão ele dividia suas forças, repelia a
golpes de dardos de cima dos pórticos do Templo, os que vinham do lado da
cidade e voltava suas máquinas contra os que lhe lançavam dardos dos lugares
mais elevados do Templo; quando, porém, Eleazar os deixava em sossego, como
acontecia freqüentemente, por cansaço ou porque se entregavam à bebedeira,
ele fazia muitas outras incursões contra Simão. Quando obrigavam os seus a
fugir, ele incendiava as casas, onde podia entrar embora estivessem cheias de
trigo e de outras provisões, e logo que se retirava, Simão, por sua vez, o
perseguia. Assim eles destruíam o que havia sido preparado para se sustentar
um assédio e que era como o nervo da guerra que lhes iria pesar sobre os
ombros, como se estivessem conspirando em favor dos romanos, aos quais
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tornariam mais fácil apoderar-se daquela importante praça.
379.
 Para maior desgraça ainda tudo o que estava nas imediações do
Templo foi queimado, com exceção de uma pequeníssima parte do trigo que
tinha sido ajuntado, em tão grande quantidade, que teria sido suficiente para
se sustentar o cerco durante vários anos e impedir a carestia que foi por fim,
causa da queda da o cidade. O mesmo incêndio reduziu a cinzas o que estava
entre João e Simão, e o que se poderiam considerar como dois campos opostos
tornou-se em um campo de batalha, sendo nossa pátria forçada a dar a culpa
de tudo ao furor de seus filhos desnaturados, que eram a causa de sua ruína.
CAPÍTULO 4
ESTADO DEPLORÁVEL EM QUE JERUSALÉM SE ENCONTRAVA. A QUE CÚMULO DE HORROR
CHEGAVA A CRUELDADE DESSES FACCIOSOS.
380. No meio de tantos males que afligiam Jerusalém de todos os lados e
que tornavam aquela infeliz cidade como um corpo exposto ao furor das feras
mais cruéis, os velhos e as mulheres suspiravam pelos romanos e desejavam
ser libertados por uma guerra estrangeira, das misérias que aquela guerra
doméstica os fazia sofrer. Jamais desolação foi maior do que a daqueles
infelizes habitantes; qualquer resolução que eles tomavam, não achavam meio
de a executar; nem podiam fugir, porque todas as passagens estavam
guardadas; os chefes desses partidos tratavam como inimigos e matavam a
todos os de que suspeitavam querer se entregar aos romanos e a única coisa
em que estavam de acordo, era dar a morte aos que mais mereciam viver.
Ouviam-se dia e noite os gritos dos que lutavam, uns contra os outros; por
maior impressão que causasse o medo nos espíritos, os lamentos dos feridos
feriam-nos ainda mais; tantas desgraças davam sem cessar novos motivos de
aflição, mas o temor sufocava as palavras e por uma cruel imposição retinha os
suspiros no coração; os servidores haviam perdido todo o respeito por seus
senhores; os mortos eram privados da sepultura, todos se descuidavam de seus
deveres porque não havia mais esperança de salvação; a horrível crueldade
daqueles facciosos chegou a incríveis excessos: eles faziam montes de corpos
dos que haviam matado, espezinhavam-nos e deles se serviam como de um
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campo de batalha onde combatiam, com tanto furor, que a vista de tão
espantoso espetáculo, obra de suas mãos, aumentava ainda o fogo da ira que
lhes incendiava o coração.
CAPITULO 5
JOÃO PROCURA CONSTRUIR TORRES COM A MADEIRA PERTENCENTE AO TEMPLO.
381.
 João não teve vergonha de usar, para se fortificar, o material
preparado para usos santos. O povo e os sacerdotes deliberaram construir
arcobotantes, para sustentar as arcadas do Templo e elevá-lo vinte côvados
mais; para isso o rei Agripa havia feito vir do monte Líbano com muitas
dificuldades e despesas, toras de madeira de comprimento e grossura
extraordinários; mas viera a guerra e a obra fora interrompida. João mandou
serrar essa madeira no comprimento que ele julgou necessário para construir
torres que os pudessem defender contra Eleazar. Colocou-as no circuito das
muralhas contra o salão que estava do lado do ocidente e não podia colocá-las
em outro lugar, porque estavam ocupados por degraus. Ele esperava por meio
dessas obras, fruto de sua impiedade, vencer os inimigos; mas Deus confundiu
seu desígnio e tornou seu trabalho inútil, trazendo os romanos antes que ele as
tivesse terminado.
CAPÍTULO 6
TITO, DEPOIS DE TER REUNIDO SEU EXÉRCITO, MARCHA CONTRA JERUSALÉM .
382.
 Depois que Tito reuniu uma parte de seu exército e ordenou ao
restante que se dirigisse ao mesmo tempo que ele para Jerusalém, foi a
Cesaréia. Tinha além das três legiões que haviam servido sob o imperador, seu
pai, e devastado a Judéia, a décima segunda, que não somente era composta de
ótimos soldados, mas ainda se lembravam dos infelizes resultados sob o
comando de Céstio e esperavam o momento de se vingar de tal afronta. Tito
ordenou à quinta legião que marchasse, passando por Emaús; à décima, que
passasse por Jerico, e se pôs em marcha, com as outras duas, os socorros dos
reis, mais fortes do que haviam sido até então, e com um grande número de
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sírios. Para substituir os homens que Vespasiano tinha tirado daquelas quatro
legiões e feito passar à Itália, sob o comando de Múcio, ele se serviu de uma
parte dos dois mil homens escolhidos no exército de Alexandria, que ele tinha
levado consigo, três mil outros vinham ao longo do Eufrates e Tibério Alexandre
os seguia. Era um homem de grande mérito e tão sábio que ocupava o primeiro
lugar entre seus amigos. Fora governador do Egito e o primeiro que havia
demonstrado afeto pelo Império Romano, quando começava a se estender por
aquelas partes, sem que a incerteza dos acontecimentos da sorte tivesse jamais
podido abalar sua fidelidade. Ele tinha, além disso, tal capacidade para os
assuntos da guerra e sua idade lhe havia granjeado tanta experiência, que tão
excelentes qualidades, unidas juntamente, faziam-no merecedor, mais de que
qualquer outro, de um grande posto de comando.
383. Quando Tito avançou, em terras inimigas, conservou esta ordem na
marcha: Por primeiro vinham as tropas auxiliares; seguiam-nas os operários
para preparar as estradas. Depois vinham os que estavam encarregados de
demarcar os limites do acampamento. Atrás destes, as bagagens dos chefes,
com sua escolta. Logo depois vinha Tito, acompanhado por seus guardas e
outros soldados escolhidos; atrás dele, um corpo de cavalaria, que estava à
frente das máquinas. Os tribunos e os chefes das coortes seguiam também
acompanhados por soldados escolhidos. Logo depois vinha a águia rodeada
pelas insígnias das legiões, precedida por trom-betas. Os corpos de batalha
como marchavam os soldados seis a seis, vinham em seguida. Os servos das
legiões estavam atrás, com a bagagem; os que traziam os víveres e os operários
com tropas especiais para sua guarda fechavam a marcha. Tito, caminhando
nessa ordem segundo o costume dos romanos, chegou, pela Samaria, a Gofna
que era a primeira praça que Vespasiano, seu pai, tinha tomado e onde havia
uma guamição. Dali partiu no dia seguinte pela manhã e foi acampar em
Acantonaulona, perto da aldeia de nome Gaba de Saul, isto é, a colônia de Saul,
distante trinta estádios de Jerusalém.
CAPÍTULO 7
TITO PARTE PARA EXPLORAR JERUSALÉM. FURIOSO ATAQUE QUE O SURPREENDE. SEU
INCRÍVEL VALOR SALVA-O, COMO POR MILAGRE, DE TÃO GRANDE PERIGO.
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384. Ao partir de Acantonaulona, Tito avançou com seiscentos cavaleiros
escolhidos, para explorar Jerusalém e observar as disposições dos judeus;
sabendo que o povo desejava a paz, para se libertar da tirania daqueles
facciosos, e que nada, senão a sua fraqueza impedia sacudir-lhe o jugo, ele
julgava que sua presença poderia talvez fazê-lo resolver-se a se entregar antes
de se vir às armas. Enquanto caminhava pela estrada que leva à cidade,
ninguém apareceu nas trincheiras nem nas torres; mas quando estava próximo
à de Psefinom, os judeus saíram em grande número pela porta que está em
frente do sepulcro de Helena, do lado, chamado da torre das mulheres,
cortaram-lhe a cavalaria e impediram aos últimos unirem-se aos que estavam
na frente. Assim Tito, com alguns dos seus, ficou separado do restante dos
soldados, sem poder avançar, porque até os muros da cidade havia apenas
cercas, fossos, sebes de jardins, e sem poder voltar para junto dos outros que
tinham ficado para trás, porque aquele grande número de inimigos estava entre
eles, e os seus homens, que ignoravam o perigo em que estava, julgavam que
ele se havia retirado, por isso só pensavam em se retirar para segui-lo. Em tão
grave perigo, o grande príncipe, vendo que toda esperança de sua salvação
estava em sua coragem, incitou seu cavalo para o meio dos inimigos, abriu
passagem com a espada e gritou aos seus que o seguissem. Vimos então, que
as vicissitudes da guerra e a conservação dos soberanos pertencem a Deus,
unicamente. Embora Tito não estivesse armado, porque não tinha vindo para
combater, mas apenas para fazer um reconhecimento, nenhum daquele
número infinito de dardos que foram lançados o atingiu; todos passavam além,
como se um poder invisível tivesse o cuidado de desviá-los. No meio daquela
nuvem de dardos e de flechas o grande príncipe derrubava tudo o que aparecia
na sua frente e avançava sempre. Tão extraordinário valor atraiu toda a atenção
dos judeus que bradavam que não o deixassem passar e com muitos gritos
animavam-se a cortar-lhe a retirada; mas como se ele tivesse raios nas mãos,
de qualquer lado que voltasse a cabeça, ele os punha logo em fuga. Os seus,
que vinham com ele naquele perigo, julgando também que o único meio de se
salvar era atravessar pelo meio dos inimigos, não o abandonaram e seguiram-
no sempre de perto. Um deles foi morto, seu cavalo, também; outro foi
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derrubado e morto e seu cavalo capturado. Tito sem se ferir escapou, chegando
ao seu acampamento com o restante dos homens.
Aquela pequena vantagem obtida pelos judeus aumentou-lhes a coragem;
lisonjeou-os com a esperança, para o futuro, a qual, bem depressa, se viu ser
totalmente vã.
CAPÍTULO 8
TITO FAZ SEU EXÉRCITO APROXIMAR-SE AINDA MAIS DE JERUSALÉM.
385. Na noite seguinte a legião que estava em Emaús chegou a Tito ao
despontar do dia, chegando até Scopos, distante de Jerusalém apenas sete
estádios do lado do norte, de onde se pode, de um lugar baixo, contemplar a
beleza da cidade e a magnificência do Templo. Ele ordenou a duas legiões que
construíssem o acampamento; quanto à terceira, porque estava cansada da
marcha que fizera durante a noite, ordenou que acampasse três estádios mais
adiante, a fim de fortificar-se sem temor de ser perturbada pelos inimigos, em
seu trabalho. Essas três legiões haviam apenas executado as ordens, quando a
décima chegou de Jerico, onde Vespasiano, depois de ter tomado aquela praça,
tinha posto uma parte de suas tropas como guarnição. Tito ordenou-lhe que
acampasse a seis estádios de Jerusalém, do lado do oriente e do monte das
Oliveiras, que está em frente da cidade, separada pelo vale do Cedrom.
CAPÍTULO 9
AS DIVERSAS FACÇÕES QUE ESTAVAM EM JERUSALÉM REÚNEM-SE PARA
COMBATER OS ROMANOS E FAZEM UMA TÃO VIOLENTA ARREMETIDA CONTRA
A DÉCIMA LEGIÃO QUE A OBRIGAM A ABANDONAR O ACAMPAMENTO.
 TITO
VEM EM SEU AUXÍLIO E A SALVA DO PERIGO, COM SEU VALOR.
386. Tão grande guerra estrangeira abriu os olhos daqueles que antes só
pensavam em se arruinar e se destruir por uma guerra doméstica. Esses três
diferentes partidos que estraçalhavam as entranhas da capital da Judéia, ven-
do, com espanto, os romanos fortificarem-se de tal modo, reuniram-se. Per-
guntavam-se reciprocamente o que eles pretendiam fazer. Se estavam resolvidos
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a tolerar que os romanos acabassem de erguer três fortes para vencê-los. Se,
vendo diante de seus próprios olhos uma tão grande guerra prestes a se
desencadear, eles se contentariam de ser apenas espectadores; julgariam que
lhes seriam muito vantajoso e muito honroso ficar de braços cruzados encerra-
dos dentro de suas muralhas, como se não tivessem nem armas para se defen-
der, nem mãos para usá-las. A esse respeito, um deles exclamou: "Não
demonstraremos então ter coragem para empregá-la somente contra nós mes-
mos e será de mister que nossa divisão torne os romanos senhores desta pode-
rosa cidade, sem que lhes venha a custar uma gota de sangue?" Outros uni-
ram-se a eles e todos tomaram as armas imediatamente, deram um ataque no
vale contra a décima legião, e soltando grandes gritos atacaram-na, quando ela
estava ocupada ativamente em fortificar seu acampamento com um muro.
Como os romanos não imaginavam que os judeus pudessem ser tão ousados
para realizar semelhante empresa, nem mesmo quando tivessem intenção de
fazê-lo, sua divisão não lhes permitiria executá-la, a maior parte havia deixado
as armas, para somente pensar em adiantar os trabalhos que haviam empreen-
dido. Assim, ficaram fora de si, de surpresa com tão repentina incursão e para
a qual não estavam preparados. Todos abandonaram as obras: uma parte reti-
rou-se e os outros, correndo para tomar as armas, foram feridos pelos judeus,
antes que se pudessem reunir para enfrentá-los. Outros judeus, animados pelo
bom êxito e pela coragem dos seus, uniram-se a eles; embora seu número não
fosse muito grande, sua boa sorte o aumentava em seu espírito, bem como no
dos romanos. Embora estes estivessem acostumados a combater com grande
ordem e fossem muito peritos na arte da guerra, uma tão imprevista arremeti-
da perturbou-os de tal modo, que os fez recuar. Não deixaram, porém, ainda
que atacados e perseguidos, de enfrentá-los, de deter os que podiam e de matar
ou ferir os que se afastavam muito dos outros. Mas o número dos inimigos
crescia sempre; sua perturbação foi tão grande que eles abandonaram o
acampamento e toda a legião corria risco de ser dizimada, se Tito, que fora
avisado, não lhes tivesse trazido pronto auxílio.
Trouxe consigo os soldados de que dispunha no momento, censurou os
fugitivos pela sua covardia, fê-los voltar ao combate, atacou os judeus de
flanco, matou muitos deles, feriu ainda muitos mais, pô-los todos em fuga e os
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obrigou a se retirarem em grande desordem para o vale. Eles perderam muitos
homens até poderem alcançar o outro lado do mesmo e então pararam; o fundo
do vale estava entre os romanos e eles, e assim combateram de longe durante a
metade do dia. Um pouco depois do meio-dia, Tito, para reforçar a legião, lá
deixou as tropas que tinha trazido em seu auxílio com algumas coortes, para se
oporem aos inimigos, e os mandou de novo trabalhar nos muros, como ele
havia determinado para fortificar o acampamento que estava construindo no
alto do monte.
CAPÍTULO 10
OUTRO ATAQUE DOS JUDEUS, TÃO FURIOSO, QUE, SEM O VALOR DE TITO, TERIA
DESBARATADO UMA PARTE DE SUAS TROPAS.
387. Aos judeus pareceu verdadeira fuga aquele recuo dos romanos e a
senti-nela que estava na muralha deu-lhes um sinal, agitando o manto; então,
eles os atacaram em tão grande número e com tal impetuosidade que mais
pareciam animais furiosos, que homens. Os romanos não puderam sustentar
tão grande ataque e, como se tivessem sido esmagados pelos golpes das
máquinas mais temíveis, procuravam desordenadamente alcançar o alto do
monte. Tito resistiu-lhes com um pequeno número de seus soldados, os quais
por maior que fosse o perigo, não quiseram abandonar seu general, mas
rogaram-no que cedesse ao furor daqueles homens desesperados que só
buscavam a morte e não arriscasse uma experiência tão preciosa como a sua,
contra homens cuja vida era tão pouco importante e que se lembrasse de que
era o chefe daquela guerra e que a grandeza de sua fortuna o tornava senhor do
mundo e não lhe era permitido expor-se, como um simples soldado, pois toda a
salvação de seu exército repousava em sua pessoa; não havia vantagem
nenhuma em se obstinar por mais tempo no perigo em que aquela desordem o
colocava. O grande príncipe, sem escutar estas considerações, atacou os
inimigos com tanta violência que matou muitos, deteve-lhes o ímpeto e os
repeliu até o sopé do monte. Tão prodigiosa coragem deixou-os atônitos, mas
não os pôs em fuga, para os fazer voltar à sua cidade. Procuravam somente
evitar encontrá-lo e perseguiam, à direita e à esquerda, os romanos que fugiam.
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Não puderam, entretanto, evitar os ataques de Tito. Eles os feriu de flanco, e os
deteve ainda.
No entanto, os romanos que fortificavam seu acampamento do alto do
monte, vendo os companheiros que estavam mais abaixo fugir, não duvidaram
de que Tito tivesse sido obrigado a se retirar, pois não o teriam abandonado.
Assim, julgando que era impossível sustentar tão grande ataque dos judeus,
foram tomados de tal pânico, que, sem conservar mais nenhuma ordem, toda a
legião debandou e eles fugiram, quer para um lado, quer para outro, até que
alguns viram Tito, lutando no meio dos inimigos e seu receio por ele, fê-los
avisar a toda a legião, em que perigo ele se encontrava. Envergonhados por
terem abandonado seu general, o que era para eles uma censura ainda maior
que a de ter fugido, atacaram os judeus com tanta fúria, que os obrigaram a
retroceder, desbarataram-nos em seguida, e os levaram até a cidade. No
entanto, embora obrigados a fugir, não deixavam de se defender, na retirada;
mas os romanos tinham a vantagem de combater de um lugar mais elevado;
obrigaram-nos, por fim, a se encerrarem no fundo do vale. Tito, por seu lado,
atacava continuamente os que tinha por diante; ordenou à legião, depois do
combate, que retomasse seu trabalho. Para dizermos a verdade, sem nada
acrescentarmos por gracejo, nem diminuirmos pela inveja, posso dizer que
aquela legião, ficou naquele mesmo dia deve-dora de sua salvação à coragem de
tão exímio general.
CAPÍTULO 11
JOÃO APODERA-SE , DE SURPRESA , DA PARTE INTERIOR DO TEMPLO, QUE ERA
OCUPADA POR
 ELEAZAR, E ASSIM, OS TRÊS PARTIDOS QUE ESTAVAM EM
JERUSALÉM REDUZEM-SE A DOIS .
388. Os atos de hostilidade cessaram por momentos na parte exterior de
Jerusalém e por isso recomeçou uma guerra no seu interior. A quatorze de
abril, quando os judeus celebram a festa da Páscoa, em memória da libertação
da escravidão do Egito, Eleazar mandou abrir a porta do Templo para receber
as pessoas do povo que quisessem vir adorar a Deus. João serviu-se dessa
ocasião para executar uma empresa que sua impiedade lhe havia sugerido.
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Ordenou a alguns dos seus, que eram menos conhecidos e dos quais a maior
parte era constituída de profanos e não se importava de se purificar, que
escondessem as espadas sob as vestes e se misturassem com os que iam ao
Templo. Apenas lá entraram, tiraram os mantos e se apresentaram armados;
suscitou-se imediatamente perturbação e tumulto, e, ante tal estupefação o
povo pensou que era um atentado contra ele; mas os do partido de Eleazar
compreenderam que era a eles que se visava. Os que estavam encarregados da
guarda das portas, abandonaram-nas; outros, sem ousar colocar-se na
defensiva, desceram dos lugares que haviam fortificado para se esconder nos
esgotos, e o povo, que se havia retirado para junto do altar e em redor do
Templo, era calcado sob os pés, feridos a pauladas, e muitos foram mortos à
espada. Aqueles assassinos tomavam como pretexto vingar-se dos inimigos que
eram do partido contrário; era suficiente ter ofendido a qualquer um deles, para
não poder evitar a morte. Depois de assim se terem apoderado da parte interior
do Templo, os três partidos ficaram reduzidos somente a dois, e João continuou
mais atrevidamente ainda a fazer guerra a Simão.
CAPÍTULO 12
TITOFAZ APLAINAR O ESPAÇO QUE IA ATÉ OS MUROS DE JERUSALÉM. OS
FACCIOSOS, FINGINDO QUERER ENTREGAR-SE AOS ROMANOS, FAZEM QUE
VÁRIOS SOLDADOS SE EMPENHEM TEMERARIAMENTE EM UM COMBATE.
TITO PERDOA-LHES E ESTABELECE SEUS QUARTÉIS PARA COMPLETAR O CERCO.
389.
 Tito, entretanto, querendo fazer suas tropas avançar para
Jerusalém, as quais estavam em Scopos, determinou quanto julgava necessário
para se opor às incursões dos inimigos; com outros soldados aplainou o espaço
que se estendia até os muros da cidade. Mandou derrubar todas as cercas e
todas as sebes que rodeavam os jardins e as propriedades; cortou todas as
árvores, sem mesmo excetuar as que produziam frutos; encheu os lugares
fundos e vazios, as fossas e os vales; rebentou as rochas, aplainou, enfim, toda
a região que ia de Scopos até o sepulcro de Herodes e o tanque das serpentes,
antigamente chamado Betara.
390.
 Por seu lado os judeus organizaram um plano para atacar os
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romanos. Os mais corajosos dentre eles foram, além das torres, chamadas as
torres das mulheres, dizendo que os partidários da paz os haviam expulsado da
cidade e eles se haviam retirado àquele lugar para se esconder, com medo dos
inimigos. Outros do seu partido, fingindo serem da cidade, gritavam do alto das
defesas, que desejavam a paz com os romanos e a pediam; diziam estar prontos
a lhes abrir as portas e os convidavam a vir. Para melhor conseguir enganá-los
lançavam pedras contra alguns, que fingiam querer impedi-los de sair e depois
de aparentemente ter feito passagem à força, vieram ter com os romanos e
mostraram-se ao voltar, muito temerosos. Os soldados, enganados por esse
ardil, julgavam-se já donos da praça; queriam invadir a cidade e vingar-se dos
inimigos; mas sua proposta era suspeita a Tito, que nela não viu fundamento
algum, porque, tendo no dia precedente, por meio de Josefo, feito sua proposta
aos judeus, para um acordo, não os havia encontrado dispostos a aceitá-la. Por
isso ordenou aos soldados que não abandonassem seus postos. Mas alguns
deles, que estavam encarregados de adiantar o trabalho, tendo já tomado as
armas, correram para as portas da cidade. Os judeus que fingiam ter sido
expulsos, deixaram-nos passar; quando eles chegaram às torres, perto da
porta, atacaram-nos por trás; nesse mesmo tempo os que estavam nas
muralhas e nas defesas os cobriram com uma chuva de pedras e de dardos.
Assim conseguiram matar muitos, ferindo também vários outros, porque não
lhes era fácil se retirar uma vez que eram também atacados por trás, além de
que a vergonha de ter desobedecido a seu general e o temor do castigo os
faziam persistir na falta. Por fim, depois de um grande combate e de terem por
sua vez causado muitas baixas entre os inimigos, mas também terem perdido
muitos homens, conseguiram abrir caminho entre os que lhes cortavam a
retirada. Os judeus não deixaram de os perseguir sob uma chuva de dardos,
até o sepulcro de Helena e sua insolência levou-os a cobrirem-nos de injúrias e
a zombar deles, por se terem deixado enganar, elevando para o alto seus
escudos, a fim de fazê-los brilhar, dançando, pulando e soltando gritos de
alegria.
Os oficiais ameaçaram os soldados e Tito disse encolerizado: "Que é isso?
Os judeus, embora reduzidos à desesperação, não deixam de agir com
prudência, de usar de estratagemas, de nos armar emboscadas e a sorte os
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auxilia, porque eles obedecem aos seus chefes e unem-se contra nós. E os
romanos, que a sorte sentia prazer em ajudar, pela excelente disciplina e
perfeita obediência, não temem, combatendo sem chefes e sem ordem, por sua
única culpa, a vergonha de que deve enchê-los ainda mais de confusão, na
presença mesmo do filho do imperador. Que dirá meu pai quando souber desse
fato, ele, que durante toda a vida, passada na guerra, jamais viu algo
semelhante? E que grande castigo nossas leis poderão impor a tropas inteiras,
que assim sacudiram o jugo da disciplina, elas, que não determinam penas
menores do que a morte, para faltas mais leves? Aqueles que tiveram a ousadia
de desprezer o seu dever, aprenderão bem depressa pelo castigo, que a mesma
vitória é um crime, entre os romanos, quando se ousa combater sem ordem
daqueles que comandam."
Esse excelente príncipe assim falou aos oficiais e não se duvidou de que
ele estava resolvido a agir com extrema dureza e rigor. Todos os soldados que ti-
nham falado julgaram-se perdidos e se preparavam para receber a morte que
não podiam negar de ter merecido com justiça. Então os oficiais das legiões
suplicaram que tivesse compaixão daqueles culpados e concedesse o perdão da
desobediência de um pequeno número ante a obediência de todos os outros e
ao seu desejo de apagar, por seus grandes préstimos, a recordação de sua falta,
de modo que ele não teria tristeza em lhes ter perdoado. Tais rogos, unidos ao
interesse do império que obrigava a usar de clemência, acalmaram Tito, porque
ele sabia que tanto é necessário ser inflexível, quando o castigo se refere a
apenas um indivíduo, como é necessário, outrossim, ser indulgente, quando os
culpados são de grande número. Assim, concedeu a graça aos soldados, com a
condição de serem mais prudentes para o futuro, e só pensou, então, em se
vingar da esperteza dos judeus.
391.
 Depois que o grande príncipe fez aplainar em quatro dias todo o
espaço que havia até os muros da cidade, mandou avançar suas melhores
tropas para perto das defesas, entre o norte e o poente, dispôs a infantaria em
sete batalhões, a cavalaria em três esquadrões, colocou entre eles os que
estavam armados de arcos e de flechas e tirando com tantas forças aos judeus
os meios de atacar, mandou avançar a bagagem das três legiões, os servos e o
restante de seus homens.
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392. Acampou a três estádios da cidade, em frente à torre de Psefinos,
onde o circuito das muralhas daquele lado atrai o vento do norte para o lado do
ocidente. A outra parte do exército estava acampada do lado da torre de
Hípicos, na mesma distância de dois estádios da cidade e tinha cercado o
acampamento com um muro. Quanto à décima legião, ficou no monte das
Oliveiras.
CAPÍTULO 13
DESCRIÇÃO DA CIDADE DE JERUSALÉM.
393. A cidade de Jerusalém estava cercada por um tríplice muro, exceto
do lado dos vales, onde havia somente um, porque ali eles são inacessíveis.
Estava construída sobre dois montes opostos e separados por um vale cheio de
casas. O monte sobre o qual a cidade alta estava situada era muito mais
elevado e mais íngreme que o outro e, por conseguinte, de posição mais forte; o
rei Davi, pai de Salomão, que construiu o Templo, escolheu-o para ali erguer
uma fortaleza, à qual deu seu nome. É o que chamamos hoje o alto mercado.
A cidade baixa está situada sobre o outro monte, que tem o nome de Acra,
cuja inclinação é igual de todos os lados. Havia outrora ali, em frente desse
monte, um outro mais baixo, que dele estava separado por um largo vale; mas
os príncipes hasmoneus mandaram encher esse vale e arrasar o cume do
monte Acra, para unir a cidade ao Templo, a fim de que ficasse mais alto que
tudo, em derredor.
Quanto ao vale chamado Tiropeom, que dissemos separar a cidade alta da
baixa, estendia-se até a fonte de Siloé, cuja água é excelente para se beber e a
produz em abundância.
Há fora da cidade dois outros montes, que os rochedos, juntamente com
os vales profundos que os rodeiam, tornam inteiramente inacessíveis.
O mais antigo dos três muros de que acabo de falar era inexpugnável,
quer pela grande espessura, quer pela altura do monte sobre o qual estava
construído e pela profundidade dos vales que lhe estavam aos pés; Davi,
Salomão e os outros reis nada haviam poupado para pô-lo naquelas condições.
Começava na torre de Hípicos, continuava até a das galerias e de lá se uniria ao
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palácio onde o Senado se reunia e terminava no pórtico do Templo que está do
lado do ocidente. Do outro lado também, do lado do ocidente, começava
naquela mesma torre e passando pelo lugar chamado Betso, continuava até a
porta dos essênios. De lá, voltando-se para o sul, passava por baixo da fonte de
Siloé, de onde se voltava para o oriente, para alcançar o lago de Salomão e
passando pelo lugar chamado Oflam, ia terminar no pórtico do Templo, que
está do lado do oriente.
O segundo muro começava na porta de Cenná que fazia parte do primeiro
muro, ia até a fortaleza Antônia e só ficava do lado do norte.
O terceiro muro começava na torre de Hípicos, estendia-se do lado do
vento norte até a torre Psefina, em frente ao sepulcro de Helena, rainha dos
adiabenianos e mãe do rei Izate; continuava ao longo das cavernas reais, desde
a torre que estava no ângulo, onde, fazendo uma curva ia até em frente ao
sepulcro do pisoeiro; depois de ter alcançado o muro antigo, terminava no vale
do Cedrom. Esse muro era obra do rei Agripa, que o fizera, para cercar aquela
parte da cidade onde outrora não havia edifícios; mas como as casas antigas
não eram suficientes para alojar uma quantidade tão grande de gente, ela se
havia espalhado pouco a pouco para fora e muito se havia construído do lado
setentrional do Templo, que está perto do monte.
Um quarto monte chamado Beseta, que está em frente da fortaleza
Antônia, já começava também a ser habitado; fossos muito profundos, feitos em
redor, que impediam que se pudesse passar a pé, da torre Antônia,
acrescentavam muito à sua força e faziam parecer aquelas torres muito mais
altas.
Haviam dado o nome de Beseta, isto é, cidade nova, a esta parte da cidade
de que Jerusalém fora aumentada e os habitantes desejavam muito que ela se
fortificasse ainda naquele lugar. O rei Agripa, pai do rei Agripa, começou, como
vimos, por rodeá-la de uma muralha muito forte, mas temendo que tão grande
obra causasse suspeitas ao imperador Cláudio e que ele o atribuísse a alguma
intenção de revolta, contentou-se em lhe lançar apenas os alicerces. E se o
tivesse terminado, como havia começado, Jerusalém teria sido inexpugnável; as
pedras desse muro tinham vinte côvados de comprimento, por dois de largura,
o que o tornava tão forte que era impossível derrubá-lo, mover-lhe os alicerces,
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nem mesmo abalá-lo com máquinas. Sua espessura era de dez côvados e sua
altura teria correspondido à largura, se a consideração que acabo de fazer não
se tivesse oposto à magnificência desse príncipe. Os judeus depois ergueram
esse muro até a altura de vinte côvados com ameias, acima de dois côvados e
parapeitos, que tinham três. Assim sua altura era de vinte e cinco côvados e era
fortificado com torres de vinte côvados quadrados, tão solidamente construídas
como o muro e cuja estrutura bem como a beleza das pedras não era inferior à
do Templo. As torres eram mais altas vinte côvados que os muros; lá se subia
por meio de degraus muito largos; dentro estavam aposentos e reservatórios
para receber a água da chuva. Havia noventa torres feitas desse modo,
distantes umas das outras duzentos côvados. O muro do meio tinha só
quatorze torres, o antigo, tinha sessenta e todo o perímetro da cidade era de
trinta e três estádios.
Embora todo esse terceiro muro fosse tão admirável, a torre Psefina,
construída no ângulo do muro que visava de um lado o norte, do outro, o
ocidente, e em frente à qual Tito havia estabelecido seu acampamento,
superava a todos em beleza. Sua forma era ortogonal, sua altura, de setenta
côvados, e quando o sol havia despontado, de lá se podia ver a Arábia, o mar e
até as fronteiras da Judéia.
Em frente dessa torre estava a de Hípicos e muito perto de lá, ainda duas
outras, que o rei Herodes, o Grande, tinha também elevado sobre o muro
antigo, cuja beleza e força eram tão extraordinárias que não havia outra no
mundo, que com ela pudesse se comparar; porque, além da grande
magnificência desse príncipe e do seu afeto por Jerusalém, ele queria por meio
dessa obra maravilhosa eternizar a memória de três pessoas que lhe tinham
sido tão caras: um amigo e um irmão, mortos na guerra, depois de ter praticado
atos heróicos de valor, e uma mulher, que havia amado muito e que ele mesmo
a tinha assassinado pelo seu excesso de paixão por ela. Assim, querendo lhes
dar o nome a essas três soberbas torres, à primeira chamou Hípicos, seu
amigo. Ela tinha quatro faces, de vinte e cinco côvados cada uma, de largura, e
trinta de altura; era maciça, por dentro. A parte superior era feita em forma de
terraço de pedras bem talhadas, todas iguais e bem unidas, com um poço no
meio, de vinte côvados de profundidade, para receber a água que caía do céu.
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Sobre esse terraço havia um edifício de dois andares de vinte e cinco côvados de
altura cada um, dividido em diversos aposentos, com ameias em redor, de dois
côvados de altura, e parapeitos altos, de três côvados. Assim, toda a altura
dessa torre era de oitenta e cinco côvados.
Esse grande príncipe chamou a segunda dessas torres, de Fazaela, do
nome de seu irmão, Fazael. Era quadrada: cada um dos seus lados tinha
quarenta côvados de comprimento e outros tantos de altura e era também
maciça por dentro. Havia em cima uma espécie de vestíbulo de dez côvados de
altura, sustentado por arcobotantes e rodeado de pequenas torres. Do meio
desse vestíbulo elevava-se uma torre, na qual estavam aposentos e banheiros,
tão ricos que em toda parte brilhava magnificência real; o alto da torre era
também fortificado com ameias e parapeitos. Assim sua altura total era de
noventa côvados. Sua forma parecia-se com a do farol de Alexandria, onde uma
luz sempre acesa serve de aviso aos marinheiros, para que não batam nos
rochedos que lhes poderiam causar naufrágio; mas esta era mais espaçosa que
a outra; nesse soberbo aposento Simão tinha estabelecido a sede de seu
governo tirânico.
Herodes deu à terceira torre o nome da rainha Mariana, sua mulher.
Tinha vinte côvados de comprimento, outro tanto de largura e cinqüenta e cinco
de altura. Por mais suntuosos que fossem os aposentos das duas outras, não se
podiam comparar com os desta, porque o soberano quis que, aquelas que
tinham o nome de dois homens, fossem muito mais fortes, e esta terceira, que
tinha o de uma mulher e de uma tão grande princesa, as superasse de muito
em beleza e em riqueza de ornamentos.
As três torres eram muito altas, por si mesmas, mas sua posição as fazia
parecer ainda mais altas, porque estavam construídas sobre o vértice do monte,
que era mais alto trinta côvados que o antigo muro, embora esse muro fosse
construído sobre um lugar muito alto. Se elas eram admiráveis pela sua forma,
não o eram menos pela sua matéria; não eram pedras ordinárias e comuns que
os homens podem mover, mas eram peças de mármore branco de vinte côvados
de comprimento, por dez de largura e cinco de altura, tão bem talhadas e
unidas que não se notavam as ligações, e cada uma delas parecia apenas uma
peça.
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Do lado do norte, um palácio real unia essas torres e superava em
magnificência e em beleza tudo o que se poderia dizer, tanto sua estrutura e
sua suntuosidade pareciam lutar à porfia, para torná-lo mais admirável. Um
muro de trinta côvados de altura rodeava-o com torres igualmente distantes e
de excelente arquitetura. Seus aposentos eram tão soberbos que as salas
destinadas aos banquetes podiam conter cem daqueles leitos, que se põem à
mesa. A variedade dos mármores e das raridades que lá se haviam reunido era
incrível. Não se podia ver sem espanto o comprimento e a grossura das vigas de
madeira que sustentavam o peso de tão maravilhoso edifício. O ouro e a prata
brilhavam por toda a parte, nos ornatos das paredes e na riqueza dos móveis.
Havia um círculo de pórticos sustentados por colunas de rara beleza e nada
poderia ser mais agradável que os espaços descobertos que estavam entre esses
pórticos, porque estavam cheios de diversas plantas, belos jardins, passeios,
salões muito claros, fontes que jorravam água límpida de figuras de bronze; em
derredor dessas fontes, havia viveiros de pombos e outros pássaros. Eu tentaria
inutilmente descrever em toda a sua perfeição a incrível magnificência desses
soberbos edifícios e de todos os detalhes que os tornavam tão deliciosos quão
admiráveis. As palavras seriam insuficientes e eu não poderia, sem ter o
coração ferido de dor, pensar que todos foram reduzidos a cinzas, não pelos
romanos, mas pelas chamas criminosas daquele fogo aceso desde o princípio de
nossa cisão, por celerados e traidores de sua pátria. Um outro incêndio
consumou do mesmo modo tudo o que estava perto da fortaleza Antônia,
passou ao palácio e queimou o teto dessas três admiráveis torres.
CAPÍTULO 14
DESCRIÇÃO DO TEMPLO DE JERUSALÉM. ALGUNS COSTUMES LEGAIS .
394. Vamos agora falar do Templo. Fora construído, como eu disse, sobre
um áspero monte; e apenas o que ele tinha de plano em seu vértice foi
suficiente para a construção do Templo e da muralha que lhe estava em frente.
Mas quando o rei Salomão o construiu, mandou fazer um muro do lado do
oriente para sustentar a terra daquele lado; depois de terem enchido esse
espaço, mandou construir um dos pórticos.
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Então, somente aquela face estava revestida, mas depois o povo
continuou a trazer terra para aumentar ainda esse espaço e o vértice do monte
ficou aumentado de muito. Derrubaram o muro que estava do lado do norte e
cercaram ainda outro espaço, tão grande como o que continha todo o Templo.
Por fim, esse trabalho, contra toda esperança, progrediu tanto que rodearam de
um tríplice muro todo o monte, mas para se levar à perfeição uma obra tão
prodigiosa, passaram-se séculos inteiros e nisso gastaram-se todos os tesouros
sagrados, provenientes da devoção que os povos ali vinham oferecer a Deus, de
todas as partes do mundo. Para se julgar da grandeza de tal empreendimento
basta dizer-se, que além do espaço do alto, elevou-se de trezentos côvados e
nalguns lugares, ainda mais, a parte baixa do Templo; mas a excessiva despesa
desse alicerce não se notava de modo algum, porque aqueles vales depois foram
cheios e se acharam elevados ao nível das ruas estreitas da cidade e as pedras
que ali foram empregadas tinham quarenta côvados de comprimento. Assim, o
que parecia impossível foi, por fim, executado, pelo ardor e perseverança
incríveis, com que o povo lá empregou tão liberalmente seus bens.
Se os alicerces eram maravilhosos, o que eles sustentavam não era menos
digno de admiração. Construiu-se por cima uma dupla galeria, sustentada por
colunas de mármores branco de uma só peça, de vinte e cinco côvados de
altura e cujos ornamentos de madeira de cedro eram tão belos, tão bem
justapostos e polidos, que não havia necessidade, para encantar os olhos, do
auxílio da escultura e da pintura. A largura dessas galerias era de trinta
côvados, seu comprimento de seis estádios e elas terminavam na torre Antônia.
Todo o espaço livre estava coberto de toda espécie de pedras e a estrada
por onde se ia ao segundo Templo, tinha à direita e à esquerda uma balaustra-
da de pedra de três côvados de altura, executada com grande perfeição; ali
viam-se, de espaço a espaço, colunas, sobre as quais estavam gravados em
caracteres gregos e romanos preceitos de continência e de pureza, para mostrar
aos estrangeiros que eles não deviam pretender entrar num lugar tão santo.
Esse segundo Templo também tinha o nome de santo. Para lá se passava, do
primeiro, por quatorze degraus, era de forma quadrangular e rodeado por uma
muralha cujo exterior, que tinha quarenta côvados de altura, estava todo co-
berto de degraus, mas a altura do interior era somente de vinte côvados e como
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esse muro estava construído sobre um lugar elevado, ao qual se subia por
degraus, não se podia vê-lo inteiramente por dentro, porque ficava encoberto
pelo monte.
Depois de se ter subido esses quatorze degraus, havia um espaço de
trezentos côvados, todo unido que ia até o muro. Subiam-se ainda outros cinco
degraus para se chegar às portas do Templo. Havia quatro na direção do norte,
quatro na do sul e duas, na do oriente.
O oratório destinado às mulheres estava separado do restante por um
muro e havia duas portas, uma do lado do sul, e outra do lado do norte, pelas
quais somente se entrava. A entrada do oratório era permitida não só às
mulheres de nossa nação, que habitavam na Judéia, mas também às que
vinham por devoção de outras províncias, para prestar sua homenagem a Deus.
O lado que estava na direção do ocidente era cercado por um muro e não tinha
porta. Entre as portas de que falei e do lado do muro que estava dentro, perto
da tesouraria, havia galerias sustentadas por grandes colunas, que embora não
fossem ricas de orna-tos, não perdiam em beleza, para as que estavam abaixo.
Dessas dez portas de que falei, nove estavam cobertas, mesmo seus
gonzos, de lâminas de ouro e prata, e a décima, que estava fora do Templo, de
um cobre de Corinto, mais precioso que o ouro ou a prata. Essas portas eram
todas de duas folhas e cada uma tinha trinta côvados de altura e quinze de
largura.
Dentro, havia salões à direita e à esquerda, de trinta côvados quadrados e
de quarenta de altura, feitos em forma de torres e cada qual sustentado por
duas colunas, cuja espessura era de doze côvados. Quanto à fachada, à
coríntia, colocada do lado do oriente, pela qual as mulheres entravam e que
estava em frente da fachada do Templo, sobrepujava a todas as outras em
grandeza e em magnificência: tinha cinqüenta côvados de altura, suas portas
tinham quarenta e as lâminas de ouro e de prata de que estava coberta eram
mais espessas que aquelas com que Alexandre, pai de Tibério, tinha feito cobrir
as outras nove portas. Subia-se por quinze degraus, desde o muro que separava
as mulheres dos homens, até a grande fachada do Templo; era preciso subir
vinte, para se chegar às outras portas.
O Templo, lugar santo, consagrado a Deus, estava colocado no meio. Lá se
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chegava por doze degraus e a altura de seu frontispício era de cem côvados,
mas havia somente sessenta, no seu comprimento e por trás, porque na frente e
na entrada estavam dois alargamentos de vinte côvados cada, que pareciam
dois braços que se abriam para estreitá-lo e para receber os que lá entravam.
Seu primeiro pórtico que era de setenta côvados de altura e de vinte e cinco de
largura não tinha portas, porque representava o céu que é visível e aberto para
todos. Toda a parte anterior desse pórtico era dourada e tudo o que se via no
Templo também o era, de sorte que os olhos mal lhe podiam suportar o brilho.
A parte interior do Templo estava dividida em duas: dessas duas, a
primeira, elevava-se até o teto; sua altura era de noventa côvados, o
comprimento, de cinqüenta e a largura de vinte. A porta do interior estava
coberta de lâminas de ouro, como já disse, e os lados do muro que a
acompanhavam eram dourados. Viam-se no alto ramos de videira do tamanho
de um homem, de onde pendiam cachos de uva; tudo isso era de ouro. A outra
parte da divisão do Templo, a mais interior, era mais baixa. Suas portas, que
eram de ouro, tinham cinqüenta côvados de altura e dezesseis de largura. Havia
na frente um tapete babilônio, do mesmo tamanho, onde o azul, a púrpura, o
escarlate e o linho estavam dispostos com tanta arte que causavam grande
admiração; representavam os quatro elementos, quer pela cor, quer pelas
coisas de onde tiram sua origem. O escarlate* representava o fogo; o linho, a
terra, que o produz; o azul, o ar, e a púrpura, o mar, de onde ela procede. Toda
a ordem do céu estava também representada nesse soberbo tapete, com
exceção dos sinais.
_____________________________
* O jacinto e o azul são a mesma coisa.
395. Por ali se entrava na porta inferior do Templo, que tinha sessenta
côvados de comprimento, outro tanto de altura e vinte de largura. Esse
comprimento de sessenta côvados estava dividido em duas partes desiguais; a
primeira tinha quarenta côvados e ali viam-se três coisas tão perfeitas que
ninguém se cansava de contemplá-las: o candelabro, a mesa e o altar do
incenso.
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A outra parte do Templo, mais interior, tinha vinte côvados. Estava
separada da outra também por um véu e nela nada havia. Sua entrada não
somente era proibida a todos, mas nem mesmo era permitido vê-la. Era
chamada de Santíssimo ou o Santo dos Santos. Lá havia, em redor, vários
edifícios de três andares e se podia passar de uns a outros pelos cantos da
grande fachada. Como a parte superior era mais estreita, não tinha
semelhantes edifícios. Não era do mesmo modo, tão magnífica, mas era mais
elevada que a outra, de quarenta côvados; assim toda sua altura era de cem
côvados; seu plano só tinha sessenta.
Nada havia na face exterior do Templo, que não arrebatasse os olhos de
admiração e não enchesse a alma de espanto. Estava todo recoberto de lâminas
de ouro, tão espessas, que quando despontava o dia, ficava-se tão arrebatado
pela sua beleza como pelos dourados raios do sol. Quanto aos outros lados,
onde não havia ouro, as pedras eram tão brancas, que aquela soberba massa
parecia, de longe, aos estrangeiros que ainda não as tinham visto, um monte
coberto de neve.
Todo o telhado do Templo estava semeado e eriçado de pontas de ouro,
para evitar que as aves lá pousassem e o sujassem. Uma parte das pedras de
que era construído tinha quarenta e cinco côvados de comprimento, cinco de
altura e seis de largura.
O altar que estava diante do Templo tinha cinqüenta côvados quadrados e
a altura era de quinze côvados. Era bastante difícil de lá se subir, do lado do
sul, e havia sido construído sem receber um só golpe de martelo.
Uma balaustrada de uma pedra belíssima e de um côvado de altura
rodeava o Templo e o altar, e separava o povo dos sacerdotes.
Os leprosos e os que estavam atacados de gonorréia, não somente eram
excluídos da entrada do Templo, mas também da cidade.
As mulheres não ousavam aproximar-se do Templo durante o tempo do
incômodo que lhes é comum; e mesmo quando disso estivessem isentas, não
lhes era permitido passar mais adiante, ao lugar de que falamos.
Aos homens era proibido e mesmo aos sacerdotes entrar na parte interior
do Templo se não se tivessem purificado.
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CAPÍTULO 15
DIVERSAS OUTRAS OBSERVAÇÕES LEGAIS. O SUMO SACERDOTE E SUAS VESTES.
A FORTALEZA ANTÔNIA.
396.
 Os que eram de família sacerdotal e não podiam exercer o
sacerdócio, porque eram cegos, ficavam com os que estavam puros e não
tinham nenhum defeito corporal. Recebiam a mesma porção que os levitas, que
serviam no altar, mas estavam vestidos como os leigos, porque só aos que
exerciam o serviço divino era permitido usar o hábito sacerdotal.
Os sacerdotes deviam ter vida irrepreensível para entrar no Templo e
aproximar-se do altar. Vestiam-se de linho e eram obrigados a se abster de
vinho, como também a ser mui sóbrios em suas refeições, a fim de exercer
dignamente um ministério tão santo.
397. O sumo sacerdote não subia sempre ao altar, mas somente no dia de
sábado, no primeiro dia de cada mês e nas festas solenes, nas quais todo o
povo tomava parte.
Quando oferecia o sacrifício cingia-se de uma veste de linho, que cobria
uma parte das coxas. Tinha uma outra por baixo e por cima das duas, uma
veste azul, que chegava até os calcanhares, em cuja orla havia campainhas
presas e pequenas romãs de ouro, que representavam os trovões e os
relâmpagos. Seu peitoral estava preso com cinco fitas de diversas cores, isto é,
dourada, púrpura, escarla-te, linho e azul; e os véus do Templo, como já disse,
eram tecidos de cores semelhantes.
O éfode tinha também as mesmas cores; mas havia muito mais ouro e se
parecia com uma couraça. Estava preso por dois broches de ouro, feitos em
forma de serpente, nos quais estavam incrustadas sardônicas de grande valor,
em que tinham gravados os nomes das doze tribos. Havia presas dos dois lados,
doze outras pedras preciosas dispostas de três em três, onde esses mesmos
nomes estavam gravados. Na primeira fila, uma sardônica, um topázio e uma
esmeralda; na segunda, um rubi, um jaspe e uma safira; na terceira, uma
ágata, uma ametista e um lincuro; na quarta, um ônix, um berito e uma
crisólita. Sua tiara era de linho e enriquecida com uma coroa de cor azul, com
uma outra por cima, de ouro, onde as quatro vogais que são as letras sagradas
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estavam esculpidas.
O sumo sacerdote não estava sempre revestido desses hábitos, mas usava
um menos rico; só o fazia uma vez por ano, quando entrava sozinho no Santo
dos Santos; nesse dia celebrava-se um jejum geral. Mas falarei em outro lugar
mais detalhadamente da cidade, do Templo, de nossos costumes e de nossas
leis, de que me faltam ainda várias coisas para dizer.
398. Quanto à fortaleza Antônia, estava situada no ângulo que formavam
as duas galerias do primeiro Templo, que estava voltado para o ocidente e o
norte. O rei Herodes o tinha construído sobre uma rocha de cinqüenta côvados
de altura, inacessível de todos os lados; em nenhuma outra obra ele quis
ostentar tanta magnificência. Tinha feito incrustar toda a rocha de mármore,
desde a base até o alto, quer para embelezá-la, quer para torná-la tão
escorregadia, que por ali não se pudesse nem subir nem descer. Tinha rodeado
a torre com um muro de três côvados de altura somente; todo o espaço daquela
torre, contando-se desde o muro, era de quarenta côvados. Embora fosse tão
forte no exterior, havia no interior tantos aposentos, banheiros e salas capazes
de conter um grande número de pessoas, que poderia passar por um soberbo
palácio; as salas eram tão belas e cômodas, que poderia parecer uma pequena
cidade. Seu perímetro tinha a forma de uma torre e a iguais distâncias havia
quatro outras torres: três delas tinham cinqüenta côvados de altura, mas a que
estava no ângulo e voltada para o oriente e o sul, tinha setenta e de lá se podia
ver todo o Templo. Nos lugares onde elas se uniam às galerias, havia, à direita e
à esquerda, degraus por onde, quando os romanos eram senhores de
Jerusalém, havia soldados para impedir que o povo tentasse alguma sublevação
nos dias de festa. O Templo era como a cidadela de Jerusalém, e a torre
Antônia era como a cidadela do Templo; a guarnição lá colocada devia não
somente conservá-la, mas também defender a cidade e o Templo.
399. O palácio do rei Herodes que estava construído na cidade alta podia
também ser tido como outra cidadela.
400. O monte de Beseta, que estava, como disse, separado da fortaleza
Antônia, era o mais alto de todos; unia, em parte, a cidade nova e era o único
que estava fronteiro ao Templo, do lado do norte.
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CAPÍTULO 16
QUANTOS ERAM OS QUE SEGUIAM O PARTIDO DE SIMÃO E O DE JOÃO.
A DIVISÃO DOS JUDEUS FOI A VERDADEIRA CAUSA DA QUEDA DE
JERUSALÉM E DE SUA RUÍNA.
401.
 Os mais valentes e os mais obstinados dos facciosos seguiam o
partido de Simão; seu número era de dez mil, subordinados à autoridade de
cinqüenta oficiais. Havia, além disso, cinco mil idumeus, comandados por dez
chefes cujos principais eram Sosa, filho de Tiago, e Catlas, filho de Simão.
João tinha ocupado com seis mil homens, comandados por vinte oficiais;
e dois mil e quatrocentos zelotes, que haviam passado ao seu partido, tinham
por chefe a Eleazar, a quem antes obedeciam, e Simão, filho de Jair.
Na guerra que esses dois partidos contrários faziam-se reciprocamente, o
povo era-lhes a presa comum e eles não perdoavam a um só deles, se não fosse
de seu partido. Simão era senhor da cidade alta, do maior muro até o vale do
Cedrom: e desse espaço do muro antigo, que se estende desde a fonte de Siloé
até o lugar onde ele se volta para o oriente, e até o palácio de Monobazo, rei dos
adiabenianos, que moram além do Eufrates. Ocupava também o monte Acra,
onde está a cidade baixa, até o palácio real de Helena, mãe de Monobazo.
João, por seu lado, era senhor do Templo e de alguma parte dos
arredores, como também de Oflam e do vale de Cedrom, e tudo o que se
encontrava entre Simão e ele fora consumido pelo fogo e era como uma grande
praça de armas, que servia de campo de batalha. Ainda que os romanos
estivessem acampados às suas portas e estivessem organizando o assédio, sua
animosidade não cessava. Eles reuniam-se somente durante algumas horas
para se opor aos seus inimigos comuns e recomeçavam imediatamente a luta
voltando suas armas contra si mesmos, como se para ser agradáveis aos
romanos, tivessem conjurado sua própria perda. Podemos dizer com verdade
que uma guerra tão cruel em seu interior não lhes era menos funesta que uma
guerra externa, e que Jerusalém não sofreu mais da parte dos romanos, do que
o furor dessas infelizes divisões, que já lhe havia feito experimentar males ainda
maiores. Assim não tenho receio de afirmar que é principalmente a esses
inimigos de sua pátria e não aos romanos, que devemos atribuir a ruína dessa
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poderosa cidade, e que a única glória que lhes pode caber é ter exterminado
esses malfeitores, cuja impiedade unida a tantos outros crimes que nem
poderíamos imaginar, lhe tinha destruído a união que lhe dava muito mais
força que suas mesmas muralhas. Não podemos pois dizer, com razão, que os
crimes dos judeus são a verdadeira causa de suas desgraças e o que os
romanos lhes fizeram sofrer, foi um justo castigo? Deixo, porém, a cada qual,
que julgue como lhe aprouver.
CAPÍTULO 17
TITO VOLTA PARA EXPLORAR JERUSALÉM E DETERMINA O LUGAR POR ONDE
DEVE ATACÁ-LA.
 NICANOR, UM DE SEUS AMIGOS, QUERENDO EXORTAR OS
JUDEUS A PEDIR A PAZ, É FERIDO POR UMA FLECHADA.
 TITO MANDA
DEVASTAR OS ARRABALDES.
 COMEÇA-SE O TRABALHO.
402. Estava Jerusalém nesse estado. Tito resolveu dar a volta a cidade
com soldados de cavalaria de suas melhores tropas, para escolher por onde
deveria começar o ataque; tinha, porém, dificuldade em se decidir, porque do
lado dos vales, ela era inacessível; do outro, o primeiro muro era tão forte, que
parecia não poder ser derribado pelas máquinas. Por fim, julgou que o lugar
mais fraco era junto do sepulcro do sumo sacerdote João, porque era o mais
baixo de todos; o primeiro muro não era defendido pelo segundo e haviam-se
descuidado de fortificá-lo daquele lado porque a nova cidade não estava ainda
toda povoada. Além de que se podia, por aquele lugar, passar ao terceiro muro
e assim tomar a cidade alta e o Templo, em seguida, pela fortaleza Antônia.
403.
 Considerava ele todas essas coisas e pesava todas as razões;
Nicanor, seu amigo, homem muito ilustre e habilidoso, aproximou-se das
muralhas com Josefo, para procurar persuadir os judeus a pedir a paz, mas foi
ferido por uma flecha no ombro esquerdo. Tito pôde assim fazer uma idéia dos
sentimentos que eles demonstravam contra aqueles mesmos que falavam para
seu bem, e determinou então usar da força. Assim, permitiu aos soldados que
devastassem os arrabaldes e se servissem do material para elevar suas
plataformas. Dividiu depois seu exército em três, distribuiu os trabalhos,
colocou os fundibulários e os atiradores de dardos, no meio, e diante deles, as
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máquinas, a fim de impedir o ataque e as incursões que os inimigos poderiam
fazer, impedindo os trabalhos. Cortaram-se depois com incrível rapidez todas as
árvores que havia nos arrabaldes e usaram daquela madeira com a mesma
solicitude, em erguer as plataformas; todos os homens do exército cooperavam
com seu trabalho. Os judeus, por seu lado, tinham tudo o que lhes poderia
servir para a defesa.
CAPÍTULO 18
GRANDES EFEITOS DAS MÁQUINAS DOS ROMANOS E GRANDES ESFORÇOS DOS JUDEUS
PARA RETARDAR OS TRABALHOS.
404. O povo de Jerusalém, antes exposto à rapina e aos crimes dos
revoltosos, que rasgavam com tanta crueldade as entranhas de sua capital,
vendo-os agora tão ocupados em se defender, que não tinham tempo de voltar
contra ele o seu furor, pôde respirar um pouco e até mesmo esperar que os
romanos vingariam todos os males que eles haviam sofrido.
Os que tinham abraçado o partido de João opunham-se fortemente aos
romanos, enquanto o temor que tinham de Simão o conservava encerrado no
Templo.
Este, que estava mais perto do ataque e do perigo, mandou colocar sobre
as muralhas todas as máquinas que outrora haviam sido tomadas de Céstio,
perto da fortaleza Antônia, mas não tiravam delas grande vantagem, porque
não sabiam usá-las bem e não tinham quem as manejasse. Faziam, porém, o
que pedia, atiravam pedras e dardos do alto contra os romanos, faziam
incursões e por vezes travavam lutas com eles. Os romanos, por seu lado,
cobriam seus trabalhadores com telhas e cestões e não havia legião que não
tivesse à sua frente máquinas maravilhosas para repelir os ataques. As da
décima segunda legião eram as mais temíveis: as pedras que lançavam eram
maiores que as outras, e iam tão longe que não somente derribavam os que
faziam as incursões, mas iam matar mesmo junto dos muros e das defesas da
cidade àqueles que lá estavam para defendê-la. As menores dessas pedras
pesavam pelo menos um talento; seu alcance era de dois estádios e ainda mais,
e sua força era tão grande, que depois de ter derribado os que estavam nas
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primeiras filas, matava ainda outros atrás deles. Mas freqüentemente os judeus
as evitavam, tanto por causa do ruído que faziam como por sua alvura, o que
lhes dava meios de evitar o perigo, porque haviam colocado vigias sobre as
terras, os quais logo que as máquinas começavam a funcionar, eles os
avisavam, gritando-lhes em hebraico: O filho vem e toma tal caminho. A esse
sinal eles se lançavam por terra e as pedras passavam além, sem lhes fazer
mal. Os romanos, tendo-o notado, mandaram pintar as máquinas de uma cor
escura, o que lhes valeu muito, pois uma só pedra matava quase sempre
muitos judeus. Mas nenhum perigo esfriava-lhes o ardor e a perseverança em
atrapalhar os trabalhos dos romanos, e tudo eles faziam tanto de noite como de
dia, para lhes retardar a obra.
CAPÍTULO 19
TITO COLOCA SEUS ARÍETES EM POSIÇÃO DE FUNCIONAR. GRANDE
RESISTÊNCIA DOS JUDEUS.
 DÃO UMA VIGOROSA ARREMETIDA, CHEGANDO
MESMO ATÉ O ACAMPAMENTO DOS ROMANOS, E TERIAM QUEIMADO
SUAS MÁQUINAS, SE
 TITO NÃO O TIVESSE IMPEDIDO,
COM SEU EXTREMO VALOR.
405. Depois que os romanos terminaram os trabalhos, lançaram um
pedaço de chumbo preso a uma corda para medir o espaço que havia desde o
terraço até o muro da cidade. Somente assim poderiam sabê-lo, porque os
dardos que, de cima, os judeus lançavam, impediam-lhes aproximar-se dos
mesmos. Quando viram que os aríetes poderiam chegar até lá, Tito ordenou que
os dispuses-sem em ordem de batalha, mandou avançar as outras máquinas
para impedir os ataques e as armas dos judeus, e mandou bater no muro em
três lugares diferentes. O barulho de tantas máquinas que trabalhavam ao
mesmo tempo não só assustou de tal modo os habitantes que faziam vibrar os
céus com seus gritos, mas lançou o temor também no coração dos revoltosos. O
grande perigo em que se encontravam, fê-los pensar em se reunir para defesa
comum. Diziam, uns aos outros, que parecia que eles conspiravam contra sua
ruína, para favorecer aos romanos e se Deus não permitisse que aquela união
durasse sempre, eles deviam, pelo menos então, fazer todo o possível para
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combater os inimigos. Simão mandou em seguida dizer por meio de um arauto
aos que estavam fechados no Templo, que podiam sair com todas as garantias;
e embora João não confiasse muito nele, todavia não deixou de o fazer.
Assim, aqueles rebeldes terminaram a inimizade e uniram-se num único
exército; depois de se terem distribuído pelas muralhas e pelas defesas,
começaram a atirar grande quantidade de fogo e de dardos contra as máquinas
dos romanos e contra os que manejavam os aríetes. Os mais corajosos saíam
mesmo em grandes grupos, derrubavam os abrigos das máquinas e mostravam
com seu extremo valor, que só lhes faltava ter tanta perícia da guerra quanto
tinham de ousadia e de coragem. Tito, que estava sempre presente para auxiliar
onde fosse preciso, colocou a cavalaria e arqueiros em redor das máquinas para
repelir os que vinham incendiá-las; os que estavam nas torres não deixavam de
atirar dardos para que os aríetes não pudessem trabalhar; mas o muro em que
eles batiam era tão forte, que resistia aos seus golpes. O aríete da quinta legião
abalou somente o canto da torre que se elevava sobre o muro, mas este ficou
sempre firme, quando ela caiu.
Os judeus suspenderam temporariamente as incursões e aguardaram o
momento quando os romanos estavam dispersos pelos campos, ocupados em
seus trabalhos, porque julgavam que o cansaço e o medo tinham feito os judeus
se retirarem. Estes saíram então pela porta falsa, da torre de Hípicos,
incendiaram-lhes os trabalhos e chegaram até seu acampamento. Ante esse
ruído, os que estavam mais próximos, reuniram-se; os que estavam mais longe
vieram prontamente unir-se a eles. A coragem sobrepujou então a disciplina
dos romanos. Os judeus por primeiro puseram em fuga os que encontraram e
afugentaram os que se haviam reunido. O combate maior foi perto das
máquinas. Fizeram de tudo para incendiá-las, mas os romanos também se
esforçavam para impedi-lo. Gritos confusos erguiam-se de ambos os lados e
vários dos que se encontraram nesse choque tão violento morreram na luta. A
força e o desprezo pela morte que os judeus demonstraram nessa ocasião
continuavam a lhes dar vantagem; os soldados recrutados em Alexandria
sustentaram tão generosamente seu ataque que contra toda a expectativa
naquele dia eles passaram por mais valentes que os romanos.
406. Tito então chegou com um grupo da sua melhor cavalaria; atacou
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com tanta força os inimigos, que ele sozinho matou doze, pôs os restantes em
fuga e os perseguiu até as muralhas, preservando assim suas máquinas da
destruição que já lhe parecia inevitável. Mandou crucificar, à vista dos mesmos
judeus, um deles, aprisionado no combate, para ver se, com tal espetáculo,
lançaria o terror em seu espírito. Depois que se retirou, um chefe dos idumeus,
chamado João, querendo falar com um soldado que ele conhecia, foi morto por
uma flecha, atirada por um árabe. Os judeus e mesmo os mais rebeldes
lamentaram-no muito, porque era muito valente e não tinha menos valor que
inteligência.
CAPÍTULO 20
PERTURBAÇÃO NO ACAMPAMENTO DOS ROMANOS PELA QUEDA DE UMA
DAS TORRES QUE
 TITO TINHA MANDADO ERGUER EM SUAS PLATAFORMAS.
ELE APODERA-SE DO PRIMEIRO MURO DA CIDADE.
407. Na noite seguinte aconteceu uma estranha perturbação no acampa-
mento dos romanos. Tito havia feito erguer sobre os terraços três torres de
cinqüenta côvados de altura cada uma, para dali dominar as defesas e as
muralhas dos judeus. Pela meia-noite, uma dessas torres caiu por si mesma e o
ruído da queda encheu todo o acampamento de temor, porque não se duvidava
de que era o efeito de algum grande ataque dos judeus. Naquele tumulto todas
as legiões correram, tomaram as armas, sem saber de que lado enfrentá-los,
porque não viam os inimigos. Perguntaram uns aos outros como aquilo havia
acontecido e ninguém sabia dizê-lo. Ante tal dúvida começaram a desconfiar
uns dos outros; perguntavam-se reciprocamente a senha e pareciam estar
tomados de tal terror e pânico, que mesmo quando os judeus tivessem atacado
seu acampamento não seria ele menor. Mas Tito soube logo de que se tratava e
comunicou-o a todo o exército; com dificuldade conseguiu acalmar tão grande
perturbação.
Os judeus sustentavam sem temer todos os ataques dos romanos, mas
não sabiam como remediar os prejuízos que recebiam daquelas torres, porque
estavam cheias de máquinas, fáceis de se transportar, de arqueiros, de
fundibulários, que se oprimiam continuamente, sob uma chuva de dardos, de
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flechas e de pedras, sem que eles soubessem como se esquivar, porque não
podiam armar cavaletes que igualassem a altura das torres, nem derribá-las,
pois eram muito fortes; nem incendiá-las, porque estavam todas recobertas de
placas de ferro. Foram então obrigados a recuar para mais longe, fora do
alcance das flechas, dos dardos e das pedras. Assim, nada podia mais retardar
o trabalho dos aríetes e aquelas temíveis máquinas trabalhavam sempre e o
muro não pôde resistir aos golpes do maior, ao qual os judeus tinham dado o
nome de Nicom, isto é, Vencedor. Cansados de tantos trabalhos e vigílias,
porque os soldados que faziam guarda à noite estavam longe da cidade, quer
porque não tivessem mais ânimo, quer por um mau conselho, julgaram não
dever mais se obstinar na defesa desse muro, pois lhes restavam ainda outros
dois. Os romanos, então, não encontrando mais resistência, entraram sem
dificuldade pela brecha e abriram as portas ao restante do exército. Desse
modo, no fim de quinze dias, a sete de maio, apoderaram-se desse primeiro
muro, do qual derrubaram a maior parte, como também do quarteirão da
cidade que está do lado do norte e que Céstio tinha devastado.
CAPÍTULO 21
TITO ATACA O SEGUNDO MURO DE JERUSALÉM. E SFORÇOS INCRÍVEIS DOS JUDEUS E
DOS ROMANOS.
408. Tito acampou no lugar que é denominado Campo dos Assírios,
ocupou o espaço do vale de Cedrom, distante do segundo muro apenas ao
alcance de uma flecha; e resolveu atacá-lo. Os judeus dividiram-se para
defendê-lo e resistiram corajosamente. |oão combatia com os seus na fortaleza
Antônia e do alto do pórtico do Templo, que está do lado do norte, perto do
sepulcro do rei Alexandre. Simão, com os do seu partido, defendia a passagem
que está entre o sepulcro do sumo sacerdote João e a porta dos aquedutos que
levavam água para a torre de Hípicos. Faziam freqüentes arremetidas e por
vezes combatiam corpo-a-corpo com os romanos. Mas a vantagem que a
disciplina destes lhes dava sobre eles os obrigava a se retirarem com perdas. O
contrário sucedia nos assaltos, porque, por maior que fossem a coragem dos
romanos e sua prática na guerra, a coragem dos judeus, aumentada pelo
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temor, unida ainda a tantos males que haviam sofrido, os endureceram na luta
e os fazia empregar tanta violência que obrigavam os inimigos a recuar. A
esperança de encontrar salvação na resistência os animava; e o desejo de
terminar o grande assédio com uma vitória imediata, animava os romanos, sem
que o ardor que se demonstrava de parte a parte, se enfraquecesse por tantos e
tão extremas dificuldades. Passavam-se dias inteiros em ataques, em incursões
e em toda espécie de combate; a fadiga das noites era ainda mais difícil a
suportar, do que a do dia, porque eles passavam-na sem dormir, pelo temor
contínuo em que os judeus viviam, de que lhes tomassem o muro de improviso,
num assalto geral e pelo temor que os romanos tinham de que os judeus
atacassem seu acampamento. Assim uns e outros, depois de ter passado toda a
noite em armas, estavam prontos a recomeçar o combate quando raiava o dia.
Jamais emulação foi maior que a que levava os judeus, à porfia, ao perigo, para
agradar aos seus chefes, e particularmente a Simão, pelo qual todos os do seu
partido tinham tanto amor, e tanto respeito que não havia um só, que não
estivesse pronto a se matar se ele o ordenasse. Quanto aos romanos, que
coragem não lhes dava a ocasião em que se encontravam de vencer sempre
guerras quase perpétuas, seus contínuos exercícios, a grandeza de seu império
e principalmente o fato de combaterem sob as vistas de tão grande general?
Aquele admirável príncipe estava presente em toda a parte e não deixava os
grandes serviços sem recompensa. Que covardia não teria sido mais vergonhosa
e mais passível de castigo do que a de que ele fosse testemunha? Que outra
vantagem poderia igualar à glória de se tornar digno dela, por atos
extraordinários de valor e da estima daquele que, sendo já declarado César,
seria um dia senhor do mundo? Haverá então motivo de nos admirarmos de
que tantas considerações juntas, não levassem uma nação, já tão generosa por
si mesma, a praticar ações que pareciam ir além das forças humanas?
CAPITULO 22
BELO FEITO DE UM CAVALEIRO ROMANO CHAMADO LONGINO. TEMERIDADE
DOS JUDEUS E SOLICITUDE COM QUE
 TITO, AO CONTRÁRIO, CUIDAVA DA
VIDA DE SEUS SOLDADOS.
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409. Os judeus formaram, fora de suas muralhas, um grande batalhão, e
os dardos lançados ao mesmo tempo do seu lado e do lado dos romanos
voavam em todas as direções. Um cavaleiro romano, de nome Longino,
atravessou esse batalhão e matou dois dos mais bravos inimigos que a ele
quiseram resistir. Um, ele feriu no rosto e, com o mesmo dardo que lhe retirou
da ferida, atravessou o outro, no flanco, quando ele queria fugir. Depois deste
feito de valor, voltou para junto dos seus sem ferimento algum; a glória que isso
lhe granjeou levou, por uma nobre emulação, outros a fazerem o mesmo.
Por seu lado, os judeus, não se incomodando com o que já sofriam, só
pensavam em atacar os romanos e julgavam-se felizes em morrer, contanto que
tivessem também matado alguém. Tito, ao contrário, tinha tanto maior cuidado
em preservar e conservar seus soldados, quanto em vencer. Ele dizia que a
temeridade devia ser tida mais como desespero do que como valor; mas a
verdadeira coragem consiste em unir-se à prudência, à generosidade e em se
proceder com juízo, nos perigos, de modo que tudo se faça para garantir-se a si
mesmo e para fazer caírem os inimigos.
CAPÍTULO 23
OS ROMANOS DERRUBAM COM SUAS MÁQUINAS UMA TORRE DO SEGUNDO MURO DA
CIDADE .
 ARDIL DE QUE UM JUDEU DE NOME CASTOR SE SERVE PARA ENGANAR T ITO.
410. Tito ordenou que se dirigisse o aríete para o meio da torre que está
do lado do norte e ao mesmo tempo mandou atirar tantas flechas, que os que a
defendiam, abandonaram-na, exceto um judeu de nome Castor, homem muito
astuto, e dez outros com ele. Ficaram durante algum tempo debaixo das capas,
sem se mover; quando perceberam que a torre balançava, Castor estendeu os
braços a Tito e rogou-lhe com voz comovida que os perdoasse. O príncipe, cuja
extrema bondade tornava-o fácil a se comover, acreditou naquelas palavras e
na persuasão de que os judeus estavam arrependidos de se terem envolvido
naquela guerra, ordenou que detivessem o trabalho dos aríetes, proibiu que se
atirasse contra Castor e seus companheiros, e permitiu-lhe dizer o que
desejava: Respondeu ele que queria chegar a um acordo. Tito respondeu-lhe
que fá-lo-ia de boa mente e que se todos os outros eram do seu parecer, ele
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estava pronto a fazer a paz. Cinco dos que estavam com Castor fingiam ter as
mesmas idéias e os outros cinco clamavam que queriam morrer antes que ficar
escravos dos romanos. Durante essa discussão os romanos não atiravam mais
e haviam cessado o trabalho dos aríetes. Castor, então, mandou dizer a Simão o
que se estava passando, a fim de que ele pudesse aproveitar-se disso, enquanto
continuava a enganar Tito e a fingir tentar persuadir seus companheiros a
querer a paz. Eles, por seu lado, para confirmar a dissimulação, clamavam que
não podiam tolerar tais palavras e depois de se terem dado golpes de espadas,
mas somente sobre as armas, atiraram-se ao chão como se tivessem morrido.
Tito e os que estavam com ele viam o que se passava, lá debaixo, e assim
não podiam ter uma idéia da realidade e se admiravam do excesso do furor e da
obstinação dos judeus e deploravam-lhes a desgraça. Castor foi ferido no rosto
por uma flecha, retirou-a, mostrou-a a Tito, queixando-se severamente por lha
terem atirado. O príncipe mostrou desaprovar o ato e disse a Josefo, que estava
perto dele, que lhe fosse tocar a mão como penhor de sua palavra, mas este
pediu-lhe que lho desculpasse, porque estava certo de que tudo aquilo era falso
e fez também que seus amigos, os quais se ofereciam para fazê-lo, não o fossem
também. Um judeu de nome Enéias, daqueles que se haviam entregues aos
romanos, ofereceu-se para ir e Castor disse-lhe que levasse algo com que
receber o dinheiro que lhe queria dar. Estas palavras aumentaram o
entusiasmo de Enéias e para lá ele correu; quando estava perto de Castor, este
atirou-lhe uma pedra; ele evitou-lhe o golpe e um soldado que vinha atrás dele
ficou ferido. Tão grande embuste fez ver a Tito que a compaixão é prejudicial,
na guerra, e que para se agir com segurança é necessária a severidade. Orde-
nou, então, encolerizado, que se recomeçasse o trabalho com os aríetes e mais
fortemente do que antes; Castor e seus companheiros, vendo, então, a torre
prestes a cair, incendiaram-na e lançavam-se pelas chamas sobre as abóbadas
que estavam em baixo. Os romanos julgaram que eles não tinham medo de se
queimar e admiraram-lhes a coragem.
CAPÍTULO 24
TITO CONQUISTA O SEGUNDO MURO E A CIDADE NOVA. OS JUDEUS DE LÁ O EXPULSAM;
QUATRO DIAS DEPOIS ELE A RECONQUISTA.
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411. Tito, vendo, pela queda da torre, uma abertura feita no segundo
muro, cinco dias depois de se ter apoderado do primeiro, de lá expulsou os
judeus e entrou com dois mil homens escolhidos na cidade nova, cujas ruas
eram muito estreitas. Era habitada somente por comerciantes de lã, de
quinquilharias, caldeireiros e vendedores de roupas. Se logo no princípio tivesse
querido derrubar uma boa parte desse muro e usar do poder que lhe dava o
direito da guerra, destruindo também as casas, eu não duvido de que teria
então podido mui facilmente tornar-se senhor de todo o restante. Mas na
persuasão de que a condição dos judeus tê-los-ia com facilidade feito recorrer a
sua clemência, não quis empregar tanta força. Assim, proibiu absolutamente
que se matassem os prisioneiros e se incendiassem as casas; permitiu aos
sediciosos, se não queriam paz, que saíssem com faculdade de poder continuar
a guerra, contanto que não fizessem mal algum ao povo; a este prometeu deixá-
lo no gozo pacífico de seus bens, porque ele queria conservar a cidade para o
império e o Templo para a cidade.
412. O povo já estava disposto a aceitar estas condições, mas aqueles que
só queriam a guerra atribuíam a bondade de Tito à covardia e diziam que ele
não tinha mais esperança de conquistar a cidade alta. Ameaçaram matar os
que falassem em se entregar e até mesmo os que somente ousassem proferir a
palavra paz. Quando os romanos entraram, uma parte desses facciosos enfren-
tou-os nas ruas estreitas; outros, tendo saído fora das muralhas, pelas portas
do alto, atacaram-nos. Os corpos de guarda dos romanos ficaram tão
surpreendidos e perturbados que desceram dos muros, abandonaram as torres
e retiraram-se ao seu acampamento. Ergueram-se então grandes clamores de
todos os lados; entre os romanos, porque os que tinham ficado na cidade
estavam rodeados pelos inimigos e os que se haviam retirado para o
acampamento temiam para eles o perigo em que os viam. Entretanto, o número
dos judeus crescia sempre e como o conhecimento dos lugares dava-lhes
grande vantagem, mataram vários romanos, embora a abertura do muro não
fosse bastante grande para poderem passar vários de cada vez; e com
dificuldade teria escapado um deles somente, se Tito não os tivesse socorrido.
Colocou soldados armados, com dardos, no fim das ruas, para afastar os
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inimigos e foi em pessoa aos lugares onde eles eram mais numerosos. Domício
Sabino, que era um dos mais valentes de todo o exército, seguiu-o
valorosamente e distinguiu-se nessa ocasião; jamais o abandonou. Tito fazia
atirar continuamente daquela maneira e assim conteve os judeus até ter
retirado todos seus soldados. Foi assim que os romanos, depois de terem
conquistado o segundo muro, foram obrigados a abandoná-lo.
Esse feliz êxito aumentou de tal modo a ousadia dos mais valentes dentre
os judeus, que eles imaginaram loucamente que os romanos não ousariam
repetir a tentativa e que não eram tão corajosos para tentar novos ataques, se
eles, judeus, conseguissem o mesmo êxito que neste último. Deus, para
castigar seus pecados, cegava-os em suas considerações. Eles não imaginavam
que os que haviam repelido eram apenas uma pequeníssima parte do exército
romano e que a fome, que crescia sempre, era para eles outro inimigo não
menos temível. Havia já algum tempo que se podia dizer que eles viviam dos
bens do povo e bebiam seu sangue, pois tantos homens de bem sofriam muito,
e vários já tinham morrido à míngua. Mas esse malvados consideravam a
desgraça dos outros como vantagem para si mesmos. Julgavam dignos de viver
somente os inimigos da paz, que só viviam para fazer guerra aos romanos; todo
o restante era para eles uma multidão inútil, que lhes era de peso; e mais
cruéis para com seus próprios cidadãos, do que os bárbaros para com os seus,
alegravam-se em ver morrer aquele pobre povo.
41 3. Os romanos atacaram de novo, contra sua expectativa, aquele
mesmo muro que tinham conquistado e perdido, e o fizeram durante três dias
seguidos, dando diversos assaltos, que os judeus sustiveram com tanto ardor
que eles foram sempre repelidos. Mas no quarto dia, Tito preparou um ataque
tão violento que os judeus não puderam sustentá-lo, e assim pela segunda vez
ele se apoderou desse muro. Mandou então destruir tudo o que estava do lado
do norte e colocou guardas nas torres que estão voltadas para o sul.
CAPÍTULO 25
T ITO, PARA ASSUSTAR OS JUDEUS, MANDA DESFILAR NA SUA PRESENÇA TODO
O EXÉRCITO.
 ORGANIZA DEPOIS DOIS ATAQUES CONTRA O TERCEIRO MURO E
MANDA AO MESMO TEMPO
 JOSEFO, AUTOR DESSA HISTÓRIA, EXORTAR OS
REBELDES A PEDIR-LHE A PAZ .
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414. Tito resolveu então atacar o terceiro muro. Mas como julgava não ter
necessidade para isso de muito tempo quis dar a oportunidade aos rebeldes de
voltarem à obediência, na persuasão de que a destruição do segundo muro faria
muita impressão no seu ânimo; pois a carestia também era tão grande, que eles
não podiam, com todos os seus roubos, subsistir por muito tempo, ao passo
que seu exército estava provido de tudo. Chegou o dia em que ele devia fazer
uma exibição de todas as suas tropas; dispô-las em ordem de batalha, nos
arrabaldes, num lugar onde os judeus as podiam ver e mandou pagar o soldo a
todos os homens. Jamais infantaria foi mais bem armada, nem cavalos, tão
bem ajaezados; via-se brilhar o ouro de todos os lados e também a prata
naquele grande espaço que elas ocupavam. Mas, quanto tal espetáculo era
agradável aos romanos, tanto parecia terrível aos judeus. Eles tinham vindo de
todas as partes, em tão grande número, para ver aquela exibição, que o antigo
muro de todo o lado do Templo, do lado do norte, e as casas daquele quarteirão
estavam cheios. Até mesmo os mais corajosos não puderam considerar sem
grande estupefação tão poderosas forças, tão bem armadas e organizadas;
teriam talvez mudado de sentimento e de idéias se tivessem esperado obter dos
romanos o perdão dos crimes horríveis que eles tinham cometido contra aquele
pobre povo. Mas só tendo diante dos olhos o horror dos suplícios, que eles
mereciam, julgaram preferível morrer com as armas na mão. A isso podemos
acrescentar que Deus assim o permitia, para misturar os inocentes com os
culpados e a ruína de Jerusalém, com a daqueles celerados, que poderíamos
dizer, com verdade, terem sido os seus mais mortais inimigos.
415. Depois, durante quatro dias, Tito mandou distribuir víveres a todas
as regiões e vendo que os judeus não falavam de paz, dividiu seu exército em
dois, para formar dois ataques do lado da fortaleza Antônia, perto do sepulcro
do sumo sacerdote João, e trabalhar num e noutro em levantar dois terraços
em cada um dos quais encarregava-se toda uma legião. Os idumeus e os outros
que eram do partido de Simão perturbavam muito os que trabalhavam perto do
sepulcro e os partidários de João, os que trabalhavam perto da fortaleza
Antônia, porque, além da vantagem que eles tinham de combater de um lugar
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mais elevado, serviam-se utilmente de suas máquinas, de que, pouco a pouco,
tinham aprendido o uso. Tinham umas trezentas delas, a que chamavam de
balestas ou grandes balesteiros e quarenta das que atiravam pedras.
Tito não tinha dúvidas em apoderar-se da praça, mas como desejava
conservá-la, procurava, ao mesmo tempo, em que apertava o cerco, levar os
judeus a se arrependerem de sua revolta, porque ele sabia que as razões são, às
vezes, mais poderosas que as armas. Julgou dever unir os conselhos às ações,
sem se obstinar mais recusando entregar-lhe uma praça que já deveriam consi-
derar como tomada. Ele lançou para esse fim suas vistas sobre Josefo, que jul-
gava o mais capaz de todos, para persuadi-los, porque era de sua nação e falava
a sua língua.
CAPÍTULO 26
PALAVRAS DEJOSEFO AOS JUDEUS CERCADOS EM JERUSALÉM PARA EXORTÁ-LOS A SE
ENTREGAR.
 OS FACCIOSOS NÃO SE DEIXAM CONVENCER; MAS O POVO FICOU TÃO
IMPRESSIONADO QUE VÁRIOS FUGIRAM PARA OS ROMANOS.
 JOÃO E SIMÃO COLOCAM
GUARDAS NAS PORTAS PARA IMPEDIR QUE OUTROS OS PUDESSEM SEGUIR.
416. Depois desta ordem, Josefo escolheu um lugar apropriado, bem alto,
fora do alcance dos dardos, de onde os judeus pudessem ouvi-lo. Exortou-os,
então, a ter compaixão de si mesmos, do povo, do Templo e de sua pátria.
Disse-lhes que era estranho que eles fossem mais obstinados consigo mesmos
do que os estrangeiros; que os romanos, sendo tão religiosos, que respeitam
mesmo entre os inimigos as coisas tidas como santas, com quanto mais forte
razão aqueles que tinham sido instruídos, desde sua infância a respeitá-las,
deviam empregar todas as suas forças em cuidar de sua conservação e não
trabalhar para sua ruína. Que as mais fortes de suas muralhas estavam
destruídas, restando-lhes apenas uma, a mais fraca de todas; era-lhes fácil ver
que não poderiam resistir mais ao poder dos romanos. Que eles deveriam estar
acostumados a lhes estar sujeitos e embora seja glorioso combater para
defender a própria liberdade, é com isso que mais dela se goza, mas depois de
tê-la perdido, e obedecido durante longo tempo, querer sacudir o jugo é mais
trabalhar para perecer miseravelmente, do que se libertar da servidão. Que, se é
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vergonhoso estar sujeito a um poder desprezível, não o é ter como senhores
àqueles que reinam em toda a terra, pois, que país está isento do domínio dos
romanos, senão aquele que um excessivo calor ou um frio insuportável o teria
tornado inútil? Que se via que de todos os lados a fortuna lhe estendia os
braços e Deus, que tem em suas mãos o império do mundo, depois de tê-lo, no
correr dos séculos, dado a diversas nações, tinha então estabelecido a sua sede
na Itália. Que quem não sabe que não apenas os homens, mas os animais
também cedem, como por uma lei invencível da natureza, aos que os
sobrepujam em força e que os homens aos quais se pode disputar a glória das
armas sempre saem vitoriosos? Que assim, ainda que seus antepassados não
lhes fossem inferiores nem em força nem em coragem, não tinham tido
vergonha de se submeter àqueles invencíveis conquistadores que eles viam que
Deus conduzia pela mão ao soberano poder. Que ele não compreendia em que
eles se podiam fundar para continuar a resistir, vendo que os romanos já se
tinham apoderado da maior parte da cidade e que quando mesmo eles
deixassem de atacar e suas muralhas estivessem ainda inteiras eles não
podiam evitar perecer pela fome, flagelo o mais temível de todos, porque suas
forças vão sempre crescendo e que já começara a dizimar o povo e, assim, bem
depressa exterminaria todos os soldados, se eles não encontrassem um meio de
combater contra a fome e fossem os únicos capazes de vencer aqueles males,
que são sem remédio.
Josefo acrescentou que a prudência obriga a mudar de opinião, antes de
se ter chegado aos últimos extremos. Que os romanos esqueceriam todo o
passado, contanto que eles não continuassem em sua obstinação, porque eles
eram moderados na vitória e preferiam o que lhes era útil à vã satisfação de
seguir o movimento de sua cólera. E que assim como eles julgavam que não
lhes era interessante encontrar uma cidade sem habitantes, uma província
deserta, aquele grande príncipe, destinado para a sucessão do império, estava
pronto a lhes conceder a paz; se não a aceitassem, ele não perdoaria a um só,
porque não podiam recusá-la sem se tornar indignos de todo perdão. Que
depois de dois dos seus muros terem sido derrubados, eles não podiam duvidar
de que o terceiro seria bem depressa também reduzido às mesmas condições e
que ainda que sua cidade fosse inexpugnável, eles não poderiam duvidar, como
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acabava de dizer, que a fome não a reduzisse à obediência dos romanos.
Vários daqueles que ouviram de cima das defesas a Josefo assim falar,
zombaram dele; outros, injuriaram-no e alguns até mesmo atiraram-lhe dardos.
Vendo, então, que misérias tão graves não eram capazes de os comover, julgou
dever falar-lhes do que havia acontecido no tempo de seus antepassados e
disse-lhes: "Miseráveis que sois, vos esquecestes talvez de onde vos veio auxílio
em todos os tempos? Será por meio das armas que pretendeis vencer os
romanos, como se devesseis às vossas próprias forças as vitórias que tendes
obtido? E esse Deus Todo-poderoso, que criou o universo não foi sempre o
protetor
 dos
 judeus,
 quando
 eles
 foram
 injustamente
 atacados?
 Não
compreendereis vós mesmos, refletindo, o ultraje que lhe fazeis, violando o
respeito que lhe é devido, fazendo de seu Templo uma fortaleza, de onde sais
empunhando armas como de uma praça de guerra? Esquecestes tantas ações,
tão religiosas, de nossos avós e de quantas guerras a santidade desse lugar foi
preservada? Tenho vergonha de relatar as obras admiráveis de Deus a pessoas
indignas de ouvi-las. No entanto, ouvi-as, a fim de saberdes que é
verdadeiramente a Ele e não aos romanos, que resistis.
"Neco, faraó, rei do Egito, veio com grandes tropas e levou Sara que era
como a mãe e a rainha de nossa nação. Que fez então Abraão, seu marido, o
chefe de nossa raça? Recorreu talvez às armas para se vingar de tal injúria,
como teria podido fazê-lo, pois tinha sob suas ordens trezentos e dezoito
oficiais, cada um dos quais comandava um grande número de homens?
Absolutamente. Considerou essas forças como inúteis, se ele fosse ajudado por
Deus; contentou-se de recorrer a Ele, elevando suas mãos para aquele lugar
sagrado, que vós maculastes com tantos crimes e a força invencível do Todo-
Poderoso foi o único socorro que ele buscou nessa guerra. Que efeito produziu
tão grande fé? Aquele rei, tão temido, não lhe restituiu a esposa dois dias
depois, tão pura como lhe havia sido entregue? Ele adorou esse lugar sagrado,
onde não tivestes receio de derramar o sangue de vossos irmãos e os sonhos
terríveis que ele teve fizeram-no fugir para seu país, depois de ter dado muito
ouro e prata ao feliz povo, do qual sois descendente porque o via tão favorecido
por Deus.
"Que direi da passagem de nossos antepassados pelo Egito? Não viveram
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eles quatrocentos anos sob uma dominação estrangeira? E, embora fossem em
número muito maior, para se libertar pelas armas, não preferiram abandonar-
se ao governo e à providência de Deus? Quem não conhece os milagres que Ele
fez para libertá-los? Com quantas espécies de animais Ele não devastou esse
país? Com quantas enfermidades não o afligiu? Como corrompeu os frutos da
terra e as águas do Nilo? Como, acrescentando flagelos a flagelos, Ele feriu com
outras dez pragas aquele miserável reino? E como, declarando-se Ele mesmo o
defensor de nossos pais, que Ele destinava para seus sacerdotes, os fez sair de
lá e os guiou, sem que, no meio de tantos perigos, um só perdesse a vida?
"Quando os filisteus tomaram-nos a arca da aliança e ousaram com suas
mãos impuras tocá-la, que não sofreu a Filístia? O simulacro de Dagom, não
caiu aos seus pés? E aqueles que se vangloriavam de no-lo ter arrebatado,
sentindo suas vísceras estraçalhadas por dores horríveis, não foram obrigados
a no-la restituir, ao som de címbalos e de trombetas para procurar, pela
expiação de seu crime, aplacar a cólera de Deus, que se declarava tão
altamente o protetor de nossos antepassados, porque em vez de recorrer às
armas eles punham somente nEle sua confiança?
"Quando Senaqueribe, rei da Assíria, seguido da força de toda a Ásia, veio
sitiar a capital da Judéia, sucumbiu ela sob um poder tão prodigioso e nossos
avós recorreram às armas para se defender? As únicas a que se entregaram
foram às orações e aos votos; e o anjo do Senhor exterminou quase
inteiramente, numa só noite, aquele temível exército. Os assírios viram no dia
seguinte, ao despontar do sol, cento e oitenta e cinco mil dos seus estendidos
mortos por terra; e embora os judeus não pensassem em perseguir os que
restavam, seu terror foi tal, que eles fugiram com tanto medo, como se já se
sentissem atravessados pela ponta de suas espadas.
"Não sabeis também que nossa nação, tendo sido durante setenta anos
escrava em Babilônia, ela reconquistou sua liberdade, quando o Senhor
inspirou a Ciro que lha desse e que depois que esse grande príncipe os fez
partir para seu país, eles recomeçaram a oferecer sacrifícios a Deus, como a seu
verdadeiro libertador?
"Mas, para não me delongar demasiado a este propósito, que grandes
feitos jamais realizaram nossos predecessores, quer pelas armas, quer sem
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elas, com uma assistência particular de Deus, cumprindo suas ordens? Eles
venciam sem combater, quando lhe aprazia dar-lhes a vitória; e eram sempre
vencidos quando combatiam sem consultá-lo e sem obedecer-lhe. Será preciso
uma prova melhor do que esta? Quando Nabucodonosor, rei da Babilônia,
sitiou Jerusalém e Zedequias, nosso rei, teimou em se defender, contra a
advertência do profeta Jeremias, ele foi preso, levado escravo e viu destruir
diante de seus olhos a cidade e o Templo, embora esse príncipe e seu povo
fossem muito mais moderados que vossos chefes e vós? Esse mesmo profeta,
declarando que Deus, para castigá-los de seus crimes, permitiria que eles
fossem feitos escravos, se não se entregassem nem abrissem suas portas aos
inimigos, Zedequias e seu povo não tentaram contra sua vida? E vós, sem se
falar no que se passa dentro de vossas muralhas, porque não há palavras
capazes de descrever os horríveis excessos de tantos crimes, vós me injuriais,
vós atirais dardos para me matar, porque vos falo de vossos pecados e não
podeis tolerar que eu censure o que não tivestes vergonha de fazer.
"Quando o rei Antíoco Epifânio veio a sitiar essa praça, não sucedeu
também uma outra coisa que confirma o que acabo de referir? Nossos
antepassados, em vez de confiar no auxílio de Deus, quiseram ir contra Ele;
travou-se o combate e eles perderam. A mortandade foi geral, a cidade foi
tomada, saqueada, destruída; o Santuário, manchado e profanado, o serviço de
Deus abandonado durante três anos e meio.
"Não seria supérfluo acrescentar outros exemplos a tantos já citados?
Quem nos levou à guerra contra os romanos, senão nossas divisões e nossos
crimes? Não foi essa a causa principal de nossa escravidão, quando da
contestação entre Aristóbulo e Hircano, animando-lhes o furor, um contra o
outro, deu motivo a Pompeu de atacar Jerusalém e fez que Deus submetesse os
judeus aos romanos porque o mau uso que eles faziam da liberdade os
tornavam indignos de gozar da mesma? Assim, embora nada eles tivessem feito
contra a religião e contra nossas leis, em comparação com os tantos crimes que
cometestes, e eles tivessem muito mais recursos que vós, para sustentar a
guerra, não puderam manter o assédio que durou três meses.
"Não sabemos qual o fim de Antígono, filho de Aristóbulo, e de que modo
Deus permitiu, durante seu reinado, que o povo caísse em outra servidão por
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causa de seus pecados? Herodes, filho de Antípatro, ajudado por Sósio, general
de um exército romano, não sitiou também Jerusalém? Deus para castigar a
im-piedade daqueles que a defendiam não permitiu que ela fosse tomada e
saqueada.
"Não é evidente então que jamais o caminho das armas nos não foi
favorável em semelhantes ocasiões, mas que os assédios que sustentamos nos
foram sempre funestos? Não tenho pois eu razão em acreditar que aqueles que
ocupavam um lugar tão sagrado, como o Templo, devem, sem confiar em forças
humanas, abandonar-se inteiramente ao governo de Deus, quando sua
consciência não lhes censura ter desobedecido às suas leis? Mas haverá uma
das ações que mais Ele tem em abomi-nação, que não a tenhais cometido? E de
quanto sobrepujais em impiedade àqueles que vimos tão repentinamente
feridos pelos raios da sua justiça? Os pecados ocultos, como os latrocínios, as
traições, os adultérios, vos parecem muito comuns. Praticais a porfia, a rapina,
os assassínios e inventastes mesmos novos crimes. Fazeis do Templo vosso
refúgio, e esse lugar sagrado, tão respeitado pelos romanos, que lá adoravam a
Deus, embora o culto que nós lhe prestamos não esteja de acordo com sua
religião, foi conspurcado pelos sacrilégios daqueles cujo nascimento obriga à
observância de suas leis e que são o seu mesmo povo. Podeis esperar, depois de
tudo isso, ser ajudado por aqueles a quem ofendeis com tantos crimes? São
justos? Estais em estado de suplicantes? Vossas mãos são puras como eram as
do nosso rei, quando implorava o auxílio do céu, contra os assírios e Deus fez
morrer numa só noite todo seu exército? Ou podeis dizer que os romanos,
agindo como faziam os assírios, tendes motivo de esperar que Deus os castigará
do mesmo modo? Mas não sabeis que seu rei, depois de ter recebido dinheiro
nosso para compensar o saque da cidade, não temeu violar o juramento e
incendiar o Templo? Os romanos, ao contrário, só vos pedem o pagamento do
tributo que vossos antepassados solenemente se comprometeram e lhe
pagavam. Dando-lhes essa satisfação, eles não saquearão vossa cidade nem
tocarão nas coisas santas; continuareis livres com vossas famílias, gozareis
pacificamente de todos os vossos bens e não sereis perturbados na observância
de vossas santas leis. Não é pois loucura imaginar que Deus tratará os que o
irritam continuamente com suas ofensas da mesma maneira como Ele trata os
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que agem com tanta moderação e justiça? Nada é capaz de adiar por um
momento sequer a sua vingança, quando Ele está resolvido a executá-la.
Exterminou Ele os assírios na primeira noite, quando sitiaram aquela cidade.
Se sua vontade era libertar-vos e castigar os romanos, Ele lhes teria já feito
sentir os efeitos de sua cólera, como os fez sentir a esse temível povo e como os
fez experimentar à nossa nação, quando Pompeu entrou pela brecha em
Jerusalém, quando Sósio, depois dele, também a tomou, quando Vespasiano
devastou a Galiléia e, enfim, quando Tito veio organizar esse grande assédio.
Mas nem Pompeu, nem Sósio encontraram obstáculo algum, do lado de Deus,
que os tenha impedido de executar seu empreendimento; a guerra que
Vespasiano nos fez o elevou ao império; e parece que a mesma natureza quis
fazer um esforço, em favor de Tito, pois a fonte de Siloé e as outras que estão
fora da cidade, que eram tão minguadas antes de sua vinda, a ponto de para se
ter água, ser preciso gastar dinheiro, agora a fornecem em tal abundância que
basta não somente para o exército romano, mas até mesmo para se regarem os
jardins. E a mesma coisa aconteceu quando esse rei de Babilônia, de que falei,
sitiou a cidade, tomou-a e a incendiou, bem como o Templo, embora eu não me
possa persuadir de que a impiedade de nossos antepassados, que lhes
trouxeram semelhante mal, fossem comparáveis às vossas. Não tenho motivo de
crer que Deus, vendo esses santos lugares, consagrados ao seu serviço,
conspurcados por tanta abominação, vos abandonou, para se colocar do lado
dos que vós combateis? Quando um homem de bem vê que tudo está
corrompido em sua família, ele a deixa e muda em ódio o afeto que lhe tinha.
Vós quereríeis que Deus, ao qual nada está oculto e que, para conhecer os
pensamentos mais secretos dos homens, não tem necessidade de que eles lho
digam, ficassem convosco, embora sejais culpados dos maiores de todos os
crimes, e eles sejam, tão notórios que todos os conhecem, e pareça que
altercais, para ver quem é, dentre vós, o mais malvado e embora vos glorifiqueis
com o vício, como os outros o fazem com a virtude? Entretanto, pois que Deus é
tão bom, que se deixa comover pelo arrependimento e pela penitência, resta-vos
um meio de salvação. Deixai as armas; tendo vosso coração traspassado de dor,
por verdes vossa pátria reduzida a tão grave contingência, abri os olhos para
considerar a beleza dessa cidade, a magnificência desse Templo, a riqueza dos
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presentes oferecidos a Deus por tantas e tão diversas nações e concebei horror
por expô-los ao saque. Considerai que sua ruína não poderia ser atribuída,
senão a vós somente, pois que somente a vossa teimosia será o facho que irá
acender o fogo destruidor que há de reduzir a cinzas as coisas, deste mundo,
mais dignas de serem conservadas. Se vosso coração, mais duro que o
mármore, é insensível ao que deveria tão sensivelmente tocá-lo, tende pelo
menos compaixão de vossas famílias e cada qual ponha diante dos olhos sua
esposa, seus filhos, seus parentes, prestes a perecer pelo ferro ou pela fome.
Dir-se-á talvez que, o que me faz assim falar é o desejo de salvar da ruína
comum, minha mãe, minha esposa e meus filhos, cuja descendência é tão
ilustre, para merecer que os consideremos. Mas para assim mostrar que é
somente o vosso interesse que me faz assim falar, vos entrego suas vidas, e vos
entrego a minha e considerar-me-ei feliz de morrer, se minha morte vos puder
tirar dessa deplorável cegueira, que vos fazendo correr para vossa própria
ruína, vos levou até as bordas do precipício".
Assim terminou Josefo suas palavras, derramando muitas lágrimas. Mas
não conseguiu comover os rebeldes, nem persuadi-los de que encontrariam sua
salvação na conversão. O povo, ao contrário, ficou muito comovido e pensou em
se salvar, fugindo. Muitos venderam o que tinham de mais precioso, por alguma
pequena quantidade de peças de ouro, de medo que os rebeldes os apanhassem
e fugiram para junto dos romanos. Tito permitiu-lhes refugiar-se em qualquer
lugar do país que eles escolhessem. Essa liberdade que lhes deu aumentava
ainda mais nos outros o desejo de se livrar, pela fuga, dos males que
suportavam. Mas João e Simão puseram guardas nas portas com ordem de não
deixar sair os judeus, bem como entrar os romanos; e ante a menor suspeita
eram mortos os que se pensava estar dispostos a fugir.
CAPÍTULO 27
HORRÍVEL CARESTIA AFLIGE JERUSALÉM ; CRUELDADE INCRÍVEL DOS
REVOLTOSOS .
417. Era igualmente perigoso para os ricos ficar ou fugir, porque era
suficiente possuir bens para ser assassinado. Entretanto, a carestia, crescendo
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sempre, fazia crescer também o furor dos revoltosos; e à medida que se
avançava, mais esses dois males juntos produziam terríveis efeitos. Como não
havia mais trigo, esses inimigos da pátria, que tinham acendido o fogo da
guerra, entravam à força nas casas para procurá-lo. E, se o encontravam,
acusavam-nos de o ter ocultado, maltratavam-nos, fazendo-os sofrer, para
obrigá-los a lhes revelar o esconderijo e era suficiente proceder bem, para logo
ser tido como culpado desse pretenso crime. Aqueles que estavam reduzidos ao
extremo, eles deixavam-nos morrer de fome, poupando a si mesmos o trabalho
de matá-los. Vários ricos venderam secretamente todos os seus bens por uma
medida de trigo; e os mais desprendidos, por apenas uma medida de cevada.
Encerravam-se depois nos lugares mais ocultos de suas casas, onde alguns
comiam esse grão, sem ser moído, outros reduziam-no a farinha segundo a
necessidade ou temor lho permitia. Não se viam mais mesas postas; cada qual
tirava de debaixo do carvão o que comer, sem se dar ao trabalho de o deixar
cozer. Jamais se poderia ver miséria tão deplorável. Somente aqueles que
tinham o poder nas mãos não a experimentavam. Todos os demais lamentavam
inutilmente sua desgraça e como a fome não se disfarça, as mulheres
arrancavam o pão da mão de seus maridos, as crianças, das mãos de seus pais,
e o que supera toda a credulidade, as mães, das mãos de seus filhos. Mas os
que assim faziam não podiam, nem se escondendo, evitar que se lhes viesse a
arrebatar o que já tinham tirado dos outros. Quando a porta de uma casa se
fechava, a suspeita de que aqueles que lá estavam tinham alguma coisa para
comer, os fazia arrombá-las, para entrar e para lhes tirar o pedaço da boca.
Espancavam os velhos que não os queriam entregar, agarravam pela garganta
as mulheres que escondiam o que tinham nas mãos e sem ter nem mesmo
compaixão das crianças, que ainda mamavam, atiravam-nas ao chão depois de
terem sido arrancadas do peito das suas mães. Os que corriam para tirar o pão
dos outros, iravam-se com os que corriam mais do que eles, como se os
tivessem injuriado gravemente e não havia tormentos que não se inventassem
para encontrar um meio de viver. Penduravam os homens pelas partes mais
sensíveis, fincavam-lhes na carne pedaços de pau pontiagudos e os faziam
sofrer outros indizíveis tormentos, para fazê-los declarar onde tinham
escondido um pão ou um punhado de farinha. Esses carrascos achavam que,
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em tal conjuntura, podia-se, sem crueldade, praticar tão horríveis ações e eles
ajuntaram, por esse meio, o necessário para viver seis dias. Tiravam dos pobres
as ervas que de noite eles iam colher fora da cidade, com perigo de vida; nem
escutavam os rogos que lhes faziam, em nome de Deus, para lhes deixar uma
pequena porção e julgavam fazer-lhes grande favor, não os matando depois de
os ter roubado.
Assim essa pobre gente era tratada pelos soldados. Quanto às pessoas da
nobreza eram levadas aos tiranos, que autorizavam todos os crimes; e com
falsas acusações eles faziam morrer a muitos como tendo tomado parte
nalguma conspiração, para entregar a cidade aos romanos; a maior parte, com
o pretexto de que queriam fugir para junto deles. Simão mandava a João os que
ele tinha despojado de seus bens e João mandava a Simão os que ele tinha
tratado do mesmo modo. Dessa forma eles se divertiam com o sangue do povo e
dividiam entre si os despo-jos desses infelizes. A paixão de dominar os
separava, mas a conformidade de suas ações os unia; e entre ambos passava
por mau aquele que não fizesse participante, ao outro, de seus roubos, como se
fosse grave injustiça não lhe dar o que aquela detestável sociedade de crimes
fazia merecer mais do que o outro.
Seria tentar coisa impossível querer relatar detalhadamente toda a
crueldade desses ímpios. Contento-me em dizer que não creio, que desde a
criação do mundo se tenha visto outra cidade sofrer tanto, nem outros homens
cuja malícia fosse tão fecunda em toda sorte de maldade. Eles amaldiçoavam
mesmo aos do seu país, para tornar mais suportável aos estrangeiros a sua
raiva e seu furor para com eles e como a maldade corrompe de tal modo o ar,
quando chega ao auge, tanto que não se pode mais ocultar, mas se manifesta
por si mesma, a verdade obrigou esses celerados a confessar que eles eram
escravos, gente ajuntada, abortos, escória de nossa nação. Eles podem-se
vangloriar da glória que lhes cabe, de ter destruído Jerusalém, de ter obrigado
os romanos a conseguir tão funesta vitória e de merecerem ser considerados
como incendiários do Templo, pois que muito mais tarde foram dominados. Eles
viram as chamas devorar a cidade alta, sem demonstrar o menor sentimento de
dor, nem derramar uma única lágrima, embora muitos romanos fossem
tomados desses mesmos sentimentos de humanidade. Mas devemos falar agora
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mais particularmente dessas coisas, na continuação da nossa história.
CAPÍTULO 28
MUITOS DOS QUE FUGIAM DE JERUSALÉM, TENDO SIDO ATACADOS PELOS
ROMANOS E APRISIONADOS DEPOIS DE SE TEREM DEFENDIDO, ERAM
CRUCIFICADOS À VISTA DOS OUTROS JUDEUS.
 MAS OS REBELDES, EM VEZ DE
SE COMOVEREM, TORNAVAM-SE AINDA MAIS INSOLENTES.
418. Tito, entretanto, fazia as plataformas avançarem sempre mais,
embora os que nelas trabalhavam fossem mui perturbados pelos judeus que
defendiam as muralhas. Ele mandou então uma parte de sua cavalaria colocar-
se de emboscada nos vales a fim de apanhar os que saíam para buscar
alimentos, dentre os quais havia também soldados não satisfeitos com o que
roubavam na cidade; mas a maior parte era do baixo povo, que o temor de
deixar suas esposas e seus filhos expostos à raiva daqueles celerados impedia
de fugir e a fome obrigava a sair. A necessidade e o temor do suplício os
obrigavam a se defender quando eram descobertos e atacados; e como não
podiam esperar misericórdia, depois de se terem defendido, não a pediam
também, e eram assim crucificados a vista dos que estavam na cidade. Tito
achava que havia naquilo muita crueldade, pois não se passava um dia sem
que não se apanhassem pelo menos uns quinhentos e, às vezes, mais; ele não
via porém possibilidade de fazer voltar, àqueles que haviam sido aprisionados;
achava muita dificuldade em prendê-los, por causa de seu número e ele
esperava que a vista de um espetáculo tão terrível poderia impressionar os
judeus da cidade, pelo temor de serem tratados do mesmo modo, pois o ódio e a
raiva de que os soldados romanos estavam possuídos, faziam sofrer àqueles
míseros, antes de morrer, tudo o que se pode esperar da insolência de soldados.
Não eram suficientes as cruzes, e havia já falta de lugar, para tantos
instrumentos de suplício. Eles levavam para as muralhas, amarrados com
cordas, os amigos daqueles que haviam fugido e aqueles dentre o povo que mais
mostravam desejar a paz, e diziam que eles estavam nas mãos dos romanos,
não como prisioneiros, mas como suplicantes. Esse estratagema deteve por um
tempo a vários que tinham intenção de fugir, mas logo que vieram a sabê-lo,
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um grande número deles se foi, sem que o temor do suplício, que eles não
duvidavam lhes estava preparado, os pudesse reter, e a morte que recebiam das
mãos dos inimigos parecia-lhes suave em comparação com o que a fome e a
miséria os faziam sofrer. Tito mandou cortar as mãos a vários e os mandou
nesse estado a João e a Simão para lhes mostrar, com esse tratamento
excessivamente severo, que eles não eram desertores e mostrar-lhes que eles
deviam pelo menos então deixar de querer obrigá-lo a destruir a cidade e
pensar antes naquela contingência extrema em salvar a vida, sua pátria e
aquele Templo, ao qual nenhum outro se podia comparar. Mas ao mesmo
tempo ele apressava os trabalhos para reduzir pela força àqueles que não podia
convencer pela razão.
Os malvados, porém, do alto das muralhas faziam mil imprecações contra
Vespasiano e contra Tito; diziam que desprezavam a morte, porque lhes era glo-
rioso preferi-la a uma vergonhosa escravidão e que conservariam até o último
suspiro o desejo de mostrar aos romanos que eles não punham limites aos
males que gostariam de lhes poder causar. No que se referia à sua pátria, pois
Tito mesmo lhes dizia que estavam perdidos, eles não tinham razão de se
entristecer. Quanto ao Templo, Deus tinha um outro infinitamente maior e mais
admirável, porque o mundo inteiro era seu Templo, o que não impedia que ele
não pudesse conservar aquele no qual habitava e que, tendo-o por defensor,
zombavam daquelas ameaças, que não podiam, se Ele não o permitisse, serem
seguidas de seus efeitos. Era assim que aqueles malvados respondiam com
insolência às razões que os deveriam persuadir.
CAPÍTULO 29
ANTÍOCO, FILHO DO REI DE COMAGENA, QUE COMANDAVA ENTRE OUTRAS
TROPAS, NO EXÉRCITO ROMANO, UMA COMPANHIA DE MOÇOS QUE ERAM
CHAMADOS DE MACEDÔNIOS , VAI TEMERARIAMENTE AO ASSALTO E É
REPELIDO COM GRANDES PERDAS.
419. Entre outras tropas que Antíoco Epifanio tinha levado com o exército
romano, havia uma companhia de moços, todos no vigor da idade, que eram
chamados de macedônios, não que o fossem de nascimento nem que lhes
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fossem comparáveis, mas porque estavam armados como eles e eram instruídos
nos mesmos exercícios da guerra. De todos os reis sujeitos ao Império Romano,
nenhum outro se poderia dizer tão feliz como o de Comagena, antes da
mudança da sorte, mas aquele príncipe mostrou na sua velhice, que ninguém
pode sê-lo antes da morte. Enquanto a sorte lhe era favorável, seu filho que
havia recebido da natureza uma grande inclinação para a guerra, e tão extraor-
dinariamente forte que o tornava ousado e valente, disse que ele se admirava de
ver que os romanos adiavam tanto o assalto. Tito sorriu e respondeu que o
campo estava aberto para todos. Foi o suficiente para Antíoco. Ele partiu ime-
diatamente ao ataque com seus macedônios e soube por sua força e habilidade
evitar os dardos atirados pelos judeus e atirá-los também. Mas os moços que
ele comandava, depois de se terem obstinado bastante no combate, por vergo-
nha de recusar, depois de tantas promessas de não fazê-lo, não puderam sus-
tentar o ataque dos judeus. A maior parte então ficou ferida e eles se retiraram
e mostraram que para vencer é necessário ter, além da coragem dos
macedônios, a sorte de Alexandre.
CAPÍTULO 30
JOÃO DESTRÓI COM UMA MINA AS PLATAFORMAS FEITAS PELOS ROMANOS
QUE ESTAVAM DO SEU LADO, E
 SIMÃO, COM OS SEUS, INCENDEIA OS
ARÍETES , QUE BATIAM NOS MUROS QUE ELE DEFENDIA E ATACA OS
ROMANOS ATÉ NO SEU ACAMPAMENTO.
 TITO VEM EM SEU AUXÍLIO.
PÕE OS JUDEUS EM FUGA .
420. Embora os romanos tivessem começado a doze de maio as quatro
plataformas sem interrupção, puderam terminá-las em vinte e sete do mesmo
mês, tendo então empregado nessa obra, dezessete dias, porque elas eram
muito grandes. A que estava do lado da fortaleza Antônia, para o meio da
piscina de Stroutium, fora construída pela quinta legião. A décima segunda
legião construiu uma outra distante vinte côvados dali. A décima legião, que era
a mais apreciada de todas, construiu a que estava ao norte, onde existe a
piscina de Amigdalom. A décima quinta legião havia construído a que está perto
do sepul-cro do sumo sacerdote João, distante da outra trinta côvados. As
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obras estavam terminadas e as máquinas, colocadas em cima das mesmas;
João, porém, fez minar até a plataforma que estava em frente à fortaleza
Antônia, sustentou a terra com estacas e trouxe uma grande quantidade de
madeira, embebida em resina de piche e betume e pôs-lhe fogo. Tendo os
suportes sido rapidamente consumidos, a plataforma ruiu por terra, com
grande estrondo. Tal destruição quase abafou o fogo; viu-se a princípio sair da
terra uma grande nuvem de fumaça misturada com poeira, mas depois que o
fogo reduziu a cinzas a matéria que lhe embargava a passagem, as chamas
começaram a aparecer. Tão grande acidente sucedido aos romanos, que já
julgavam prestes o momento de tomar a praça, encheu-os de pasmo e esfriou-
lhes a esperança. Julgaram mesmo inútil continuar a trabalhar para extinguir o
fogo, porque não poderiam impedir a destruição da plataforma.
421. Dois dias depois Simão com os seus atacou as outras plataformas
sobre as quais os romanos tinham colocado seus aríetes e começavam a bater
no muro. Um certo Tefté, de Garsi, na Galiléia, Megazaro, que tinha sido pajem
da rainha Mariana, e um tal Adibeniano, filho de Nabateu, cognominado o
Coxo, correram com fachos na mão para as máquinas e jamais em toda aquela
guerra houve três homens mais decididos e mais temíveis. Lançaram-se pelo
meio dos inimigos, como se nada tivessem que temer, quer dos dardos, quer
das espadas, e só se retiraram depois de ter incendiado aquelas máquinas.
Quando as chamas começaram a se erguer, os romanos correram do
acampamento para vir em auxílio dos seus. Mas os judeus os repeliram a
dardos e desprezando o perigo travaram luta com aqueles que avançavam para
apagar o fogo. Os romanos procuravam retirar os aríetes, cujos abrigos haviam
sido queimados, e os judeus, para impedi-lo, permaneciam no meio das chamas
sem se afastar, embora o ferro, com que aqueles aríetes estavam armados, se
tivesse queimado todo. O incêndio passou dali para os terraços, sem que os
romanos pudessem impedi-lo. Vendo-se assim rodeados pelo fogo de todos os
lados e perdendo a esperança de conservar os seus trabalhos, retiraram-se para
o acampamento. Essa retirada aumentou a ousadia dos judeus e seu número
crescia sempre, porque outros vinham da cidade juntar-se a eles e então não
duvidaram
 de
 que
 venceriam
 os
 romanos
 e
 foram
 com
 imprudente
impetuosidade atacar o seu corpo de guardas. É ordem inviolável entre os
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romanos, que há sempre quem se ajude reciprocamente, para que, sob pena de
morte, ninguém abandone o companheiro, seja qual for o motivo. Mas numa
ocasião tão importante os que esta ordem obrigava a não deixá-los, preferindo
uma morte horrível ao castigo que lhes poderiam fazer sofrer, saíram para deter
o ímpeto dos judeus, e vários dos que fugiam comovidos pelo perigo em que os
viam e também de vergonha, voltaram as costas e repeliram com suas
máquinas aquela grande multidão que saía em desordem da cidade. Aqueles
homens desesperados não atacavam somente os romanos que encontravam,
mas lançavam-se como animais ferozes à ponta de suas lanças e os
derrubavam com o corpo. Assim, sua ousadia procedia mais de brutalidade do
que de verdadeiro valor e os romanos recuavam, por um sábio estratagema,
para lhes deixar passar a fúria.
422. Entretanto, Tito, que tinha ido à fortaleza Antônia, para escolher
lugares apropriados, a fim de levantar outras plataformas, voltou ao
acampamento e repreendeu severamente os soldados, porque depois de se
terem apoderado dos principais muros dos inimigos e de tê-los encerrado no
último, como numa prisão, deixavam-se surpreender por eles mesmo em seu
próprio acampamento. Atacou, depois, os judeus pelos flancos, com algumas
das
 suas
 melhores
 tropas
 e
 eles
 retrocederam,
 mas
 defenderam-se
corajosamente. O combate acendeu-se com enorme entusiasmo de lado a lado,
ergueu-se então uma grande nuvem de poeira e ressoaram tão grandes gritos,
que os olhos ofuscados e os ouvidos aturdidos não podiam distinguir os amigos,
dos inimigos. Os judeus permaneciam sempre firmes e mais por desespero do
que por confiança em suas forças, e os romanos estavam tão animados pela
vergonha de não poder conservar a glória de suas armas e pelo perigo em que
viam seu general, que não duvido de que eles não teriam dizimado a todos os
judeus, se eles não tivessem evitado seu furor, retirando-se para a cidade.
Assim os romanos não encontraram mais inimigos pela frente; mas não se
podiam consolar de ter, pela destruição de suas obras, perdido numa hora, o
que lhes havia custado tanto tempo e tantas dificuldades; vários, mesmo, vendo
suas máquinas despedaçadas, perdiam a esperança de tomar aquela praça.
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CAPÍTULO 31
TITO CERCA TODA JERUSALÉM COM UM MURO QUE TINHA TREZE FORTES E TODA ESSA
GRANDE OBRA FOI FEITA EM TRÊS DIAS.
423. Estavam as coisas nesse estado, quando Tito reuniu os seus
conselheiros. Houve várias opiniões e idéias. Os mais ousados propuseram dar
um assalto geral com todo o exército, que até então havia combatido separada-
mente, porque, atacando todos de uma vez, os judeus não poderiam resistir a
tão grandes forças e ficariam esmagados sob dardos e flechas. Os mais pru-
dentes propuseram, ao contrário, para se agir com segurança, erguer novas
plataformas; outros disseram que seria inútil encetar os mesmos trabalhos,
porque sem atacar, seria impossível vencer homens que a fome mais temível
que as armas, reduzia a tal desespero, que eles nada mais desejavam do que a
morte. Tito depois de ter escutado suas razões não julgou que era coisa digna
de tão grande exército, como o seu, ficar sem ação. Ele achava, além disso,
inútil combater contra homens que se destruíam a si mesmos e via por outro
lado que era quase impossível erguer outras plataformas, por falta de material.
Achavam muitas dificuldades em impedir os ataques dos judeus, porque a volta
da cidade era muito grande e de mui difícil acesso, em vários lugares, que por
mais
 forte
 que
 fosse
 seu
 exército
 não
 era
 bastante
 para
 rodeá-la
completamente. E quando mesmo pudesse fazê-lo e fechasse assim as estradas
principais, os judeus não deixariam de atacá-los, por outros caminhos mais
escondidos, que só eles conheciam ou que a necessidade os faria encontrar. Se
eles fizessem entrar alimento na cidade, secretamente, o cerco se prolongaria
indefinidamente, o atraso em tomar a praça diminuiria de muito a glória dos
romanos e assim, para conservar a fama do império, apertando o cerco e ao
mesmo tempo cuidando da segurança dos soldados, ele era de opinião que se
construísse um muro em todo o perímetro da cidade e desse modo os judeus,
estando encerrados dentro das muralhas e não podendo esperar mais salvação,
seriam obrigados a se entregar, ou reduzidos pela fome a tal estado, que
poderiam ser atacados sem dificuldades, ao passo que, do contrário, eles
estariam sempre prontos a resistir. Mas acrescentou que não deixaria de dar
ordem para que se recomeçassem os trabalhos, do qual aqueles que ainda
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restavam, embora mais fracos, eram capazes de reter os ataques do inimigo. Se
a dificuldade de tão grande empreendimento, como a construção daquele muro,
causava espanto a alguns, eles deviam considerar que as coisas fáceis não são
dignas dos romanos e que os grandes feitos exigem grandes trabalhos e que só
pertence a Deus fazer sem dificuldade o que parece impossível aos homens.
O grande príncipe assim falou e todos se mostraram de acordo com ele.
Ordenou então que dividissem os trabalhos por todas as tropas, viu-se em
seguida em todo o exército uma grande emulação, que parecia ter algo de
sobrenatural, porque depois que as incumbências foram distribuídas entre
todas as legiões, não somente os que as comandavam, mas todos os que a
compunham, trabalhavam sem descanso com incrível ardor; os simples
soldados, para serem louvados por seus sargentos, os sargentos por seus
oficiais, os oficiais por seus tribunos e os tribunos por aqueles que os
comandavam. Tito era continuamente o juiz de tão nobre emulação, pois não se
passava um dia sem que ele não visitasse diversas vezes todas as obras.
O muro começava no acampamento dos assírios, onde ele tinha
estabelecido o seu acampamento; continuava até a nova cidade baixa e depois
de ter atravessado o vale de Cedrom chegava até o monte das Oliveiras, que
rodeava do lado do sul, até a rocha do pombal, como também a colina que
estava acima do vale de Siloé, de onde, voltando-se para o oriente, descia por
aquele vale, onde está a fonte de que tem o nome. De lá alcançava o sepulcro do
sumo sacerdote Anano, rodeava o monte onde Pompeu outrora havia acampa-
do, voltava-se em seguida para o norte, chegava até a aldeia de Erebitom,
cercava o sepulcro de Herodes, do lado do oriente, e de lá voltava ao lugar onde
havia começado. Todo esse circuito media trinta e nove estádios e havia treze
fortes, cuja torre era de dez estádios; mas o que parece incrível, e que é digno
dos romanos, é que essa grande obra que teria levado aparentemente três
meses para sua execução, foi começada e terminada em apenas três dias. A
cidade estava pois assim rodeada e cercada; colocaram-se então tropas nas
torres, as quais passavam a noite toda em armas. Tito, por primeiro, fazia a
primeira ronda, Tibério Alexandre, a segunda, e os que comandavam as legiões,
a terceira. Os soldados dormiam uns depois dos outros.
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CAPÍTULO 32
ESPANTOSA MISÉRIA EM QUE SE ACHAVA JERUSALÉM E INVENCÍVEL
TEIMOSIA DOS REBELDES .
 TITO FAZ ERGUER QUATRO NOVAS
PLATAFORMAS.
424. Os judeus, vendo-se então inteiramente cercados na cidade, deses-
peravam-se de uma vez de sua salvação. A fome que sempre aumentava,
devorava famílias inteiras. As casas estavam cheias de cadáveres de mulheres e
de crianças, e as ruas, de corpos de anciãos. Os moços, inchados e camba-
leando pelas ruas, mais pareciam espectros do que seres vivos e o menor
obstáculo os fazia cair. Assim, não tinham forças para enterrar os mortos e
quando mesmo as tivessem, não teriam podido fazê-lo, quer por seu número
muito elevado, quer porque eles mesmos não sabiam quanto tempo ainda lhes
restaria de vida. Se alguém se esforçava por prestar esse dever de piedade,
morria também quase sempre de fazê-lo; outros arrastavam-se como podiam
até o lugar de sua sepultura, para ali esperar o momento da morte, que estava
próxima. No meio de tão espantosa miséria não se ouviam choros nem
lamentos, não se escutavam gemidos, porque aquela fome horrível com que a
alma estava inteiramente ocupada afogava todos os outros sentimentos. Os que
ainda viviam, contemplavam os mortos com olhos enxutos, e seus lábios
inchados e lívidos lhes faziam ver a morte esculpida no rosto. O silêncio era tão
grande em toda a cidade, como se ela tivesse sido sepultada numa noite
profunda ou que lá não vivesse mais um ser humano. Em tal contingência
aqueles celerados, que de tudo eram a causa principal, mais cruéis que a
mesma fome e que os animais ferozes, entravam naquelas casas que eram mais
sepulcros que lares, e despojavam os mortos, tiravam-lhes até as vestes, e
acrescentando ainda a zombaria a tão espantosa desumanidade feriam com
golpes os que ainda respiravam para experimentar se suas espadas ainda ti-
nham gume. Mas ao mesmo tempo, por uma crueldade contrária, recusavam-se
a matar, com desprezo, àqueles que lhos pediam, ou ainda emprestar-lhes a
espada para que eles mesmos se matassem, a fim de se libertar dos males que
a fome os fazia sofrer. Os moribundos, ao entregar a alma, voltavam os olhos
para o Templo, tinham o coração partido de dor por deixar ainda com vida
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aqueles celerados, que o profanavam de maneira tão horrível. Aqueles monstros
de impiedade, no começo, enterravam os mortos à custa do poder público, para
se livrar do mau cheiro. Mas não podendo mais fazê-lo, jogavam-nos por cima
do muro, ao fundo dos vales. O horror que Tito sentiu por vê-los, quando deu a
volta a toda a praça e o estranho fedor do apodrecimento dos cadáveres, fê-lo
soltar um profundo suspiro; ele elevou suas mãos para o céu e tomou a Deus
por testemunha de que não era culpado de tudo aquilo. Este é o estado mais
que deplorável de tão infeliz e miserável cidade.
Como os romanos não temiam mais os ataques dos judeus, que o desâni-
mo, bem como a fome, mantinha dentro de seus muros, viviam tranqüilos e
nada faltava ao seu exército, porque traziam da Síria e das províncias vizinhas
trigo e todas as outras provisões de que podiam ter necessidade. Eles os expu-
nham à vista dos judeus e tão grande abundância de alimentos incitava-lhes
ainda mais a fome, aumentando neles o pavor de sua miséria. Nada, porém, era
capaz de mover os rebeldes. Tito para salvar, pelo menos, tomando a cidade o
mais depressa possível, o restante desse pobre povo, de que ele sentia
compaixão, mandou erguer novas plataformas, embora tivessem de fazê-lo com
grandes dificuldades, pela falta de materiais, porque haviam empregado toda a
madeira naquelas que haviam sido destruídas pelo fogo, e os soldados deviam ir
buscar novos troncos de árvores a noventa estádios da cidade. Começaram
perto da fortaleza Antônia a erguer quatro plataformas, maiores que as prece-
dentes, e Tito estava continuamente a cavalo, para apressar aquele estafante
trabalho, que devia tirar todas as últimas esperanças dos rebeldes; mas eles
eram incapazes de se arrepender. Parece que tinham o corpo e a alma comple-
tamente isolados sem se comunicarem entre si, tão pouco ou nada se comoviam
com o que muito os deveria impressionar e seus corpos eram insensíveis à dor.
Eles estraçalhavam como cães os cadáveres daquele pobre povo, e enchiam as
prisões com os que ainda respiravam.
CAPÍTULO 33
SIMÃO , ANTE UMA ACUSAÇÃO FALSA, MANDA MATAR O SUMO SACERDOTE
MATIAS, O QUAL FORA CAUSA DE QUE ELE FOSSE RECEBIDO EM FERUSALÉM.
HORRÍVEL CRUELDADE QUE ELE ACRESCENTA A TÃO GRANDE DESUMANIDADE.
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MANDA AINDA MATAR A DEZESSETE OUTRAS PESSOAS DA NOBREZA E PÕE
NA PRISÃO A MÃE DE
 JOSEFO, AUTOR DESSA HISTÓRIA.
425. Simão, depois de ter torturado desapiedadamente o sumo sacerdote
Matias, ao qual devia o favor de ter sido recebido na cidade, mandou matá-lo.
Matias era filho de Boeto e era o sacerdote que mais afeição tinha ao povo e que
por ele era o mais amado. Assim, vendo com que crueldade João o tratava, ele o
havia persuadido a receber Simão, para ajudá-lo contra ele, sem nada estipular
a Simão em particular, porque julgava nada ter que temer de um homem que
lhe devia tão grande favor. Mas quando esse ingrato se viu senhor da cidade,
em vez de distingui-lo dos demais que lhe eram inimigos, atribuiu à
simplicidade o conselho que tinha dado de se lhe abrirem as portas e fê-lo
acusar de estar de acordo e de mãos dadas com os romanos, condenando-o
assim à morte, bem como a três de seus filhos, sem nem ao menos permitir-
lhes que se justificassem e se defendessem. O único favor que esse venerável
ancião pediu ao tirano, como recompensa pelo favor que lhe tinha prestado, foi
de fazê-lo morrer por primeiro. Mas esse bárbaro mais feroz que o próprio tigre,
recusou-lho. Assim, depois de terem interrogado seus filhos, na sua presença,
misturaram seu sangue com o deles, à vista dos romanos: Anano, filho de
Bamade, um dos mais cruéis satélites de Simão, não se contentou em ser o
executor dessa detestável ordem; ele dizia por gracejo que iam ver se os
romanos aos quais Matias queria entregar a cidade, seriam capazes de o salvar.
Nada mais restava para encher a medida de tão horrível desumanidade do que
recusar a sepultura a esses quatro corpos; e Simão não deixou de proibir que o
fizessem.
426. O furor desse monstro de crueldade não se deteve ainda aí: mandou
matar o sacerdote Ananias, filho de Masbal, que era de nobre descendência;
Aristeu, secretário do conselho, natural de Emaús e homem de mérito, e quinze
outros dos principais dentre o povo. Mandou também pôr na prisão a mãe* de
Josefo e proibir a som de trombeta que lhe falassem nem fossem visitá-la, sob a
pena de ser culpado de traição; os que desobedeciam a essa ordem eram imedi-
atamente condenados à morte, sem qualquer forma de justiça.
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_________________________________
* O texto grego diz que era o pai, mas a continuação da história mostra
que foi a mãe.
CAPÍTULO 34
JUDAS, QUE TINHA O COMANDO DE UMA DAS TORRES DA CIDADE, QUER ENTREGÁ-LA AOS
ROMANOS.
 SIMÃO VEM A SABÊ-LO E O MANDA MATAR .
427. judas, filho de Judas, um dos oficiais de Simão, que tinha o
comando de uma das torres da cidade, impressionado e comovido ante tanta
miséria e dor, ante tanta crueldade e mais ainda, sem dúvida, pelo desejo de
prover à sua segurança, reuniu dez de seus soldados, que estavam sob seu
comando e nos quais depositava inteira confiança e disse-lhes; "Até quando
suportaremos essa opressão? Até quando seremos esmagados por tantos
males? Que esperança de salvação nos pode restar enquanto obedecermos ao
pior de todos os homens? A fome nos destrói; os romanos já estão quase dentro
da cidade, Simão não somente é infiel para com seus benfeitores, mas nada há
que não tenhamos que temer de sua crueldade e os romanos ao contrário
mantêm inviola-velmente sua palavra. Quem nos poderia então impedir de lhes
entregarmos esta torre para salvar a cidade e salvar-nos também, e que castigo
deve sofrer Simão que não tenha muito justamente merecido?"
Estas palavras persuadira os dez soldados e Judas, para impedir que os
outros manifestassem a sua deliberação, deu-lhes diversas incumbências e
pelas três horas, chamou os romanos, do alto da torre, e disse-lhes da sua
intenção. Uns não se incomodaram; outros não lhe prestaram fé e outros pouco
se incomodavam porque não duvidavam de que dentro em pouco, sem perigo
algum, eles seriam senhores da cidade. Nesse ínterim, Tito chegou com alguns
dos seus. Mas Simão fora avisado do que se estava passando, dirigiu-se à torre,
mandou matar Judas e seus companheiros, à vista dos romanos, e atirar seus
corpos por cima das muralhas.
CAPÍTULO 35
JOSEFO EXORTA O POVO A PERMANECER FIEL AOS ROMANOS E É FERIDO POR
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UMA PEDRA.
 DIVERSOS EFEITOS QUE PRODUZ EM FERUSALÉM A PERSUASÃO
DE QUE ELE TINHA MORRIDO E O QUE ACONTECEU, EM SEGUIDA, QUANDO
SE SOUBE QUE ESSA NOTÍCIA ERA FALSA.
428. Como Josefo não deixava de exortar os judeus a evitar a própria
ruína, entregando uma praça que já não lhes era possível defender, um dia,
quando para esse fim dava volta em torno da cidade, foi ferido na cabeça por
uma pedrada, que o fez cair e perder os sentidos. Os judeus acorreram
imediatamente para aprisioná-lo e tê-lo-iam levado, se Tito não o tivesse
socorrido prontamente. Enquanto combatiam, os romanos levaram josefo que
ainda não havia recuperado os sentidos e na certeza de que ele tinha morrido,
os rebeldes soltaram gritos de alegria. A notícia espalhou-se imediatamente por
toda a cidade e causou grande consternação aos habitantes, porque toda a
esperança de salvação estava em tê-lo como intercessor, se pudessem encontrar
um meio de sair dali. Sua mãe soube da notícia na prisão, e facilmente lhe deu
crédito; disse aos guardas, que eram de Jotapate, que não esperava tornar a ver
seu filho e não pondo limites ao seu sofrer, quando estava sozinha com as
outras mulheres, exclamava, banhada em lágrimas: "É essa a vantagem que
tiro de minha fecundidade? Que não me seja possível sepultar àquele, do qual
devia receber a honra de sepultura?" Mas essa falsa notícia não a afligiu por
muito tempo e bem depressa interrompeu o regozijo dos rebeldes; depois que
josefo foi medicado e retomou os sentidos, voltou para a cidade e disse àqueles
malvados que sofreriam bem depressa o castigo por terem-no ferido; continuou
a exortar o povo a conservar-se fiel aos romanos. Uns e outros ficaram
igualmente surpreendidos por vê-lo ainda vivo, mas com esta diferença: que os
rebeldes ficaram tão atônitos quanto o povo se sentiu alegre e retomou coragem
pela confiança que nele depositava.
CAPÍTULO 36
ESPANTOSA CRUELDADE DOS SÍRIOS E DOS ÁRABES DO EXÉRCITO DE T ITO E MESMO DE
ALGUNS ROMANOS QUE ABRIRAM O VENTRE DOS QUE FUGIAM DE
 JERUSALÉM PARA
PROCURAR OURO.
 HORROR QUE TITO SENTIU COM ISSO.
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429. Uma parte dos que fugiam de Jerusalém, para se salvar, lançavam-
se por cima das muralhas; outros tomavam pedras, com o pretexto de querer se
servir delas contra os romanos e em seguida passavam para o seu lado. Mas
depois de terem evitado um grande mal, caíam num outro ainda maior, porque
o alimento que tomavam dava-lhes uma morte mais rápida do que a que a fome
lhes causava. Estando inchados e hidropicos, comiam com tanta avidez, para
encher o estômago vazio, que faziam a natureza desfalecer, e rebentavam,
quase no mesmo instante. Os mais sensatos, ante esses exemplos, evitavam tal
inconveniente, comendo por vez, para acostumar de novo o estômago, às suas
forças ordinárias. Mas então encontravam-se num estado ainda mais deplorável
que antes. Vimos como muitos que, querendo se salvar, engoliram ouro, de que
havia na cidade uma grande quantidade e o que valia antes vinte e cinco áticos,
então valia somente doze. Aconteceu que um desses fugitivos foi surpreendido
no quarteirão dos sírios, quando procurava naquilo de que a natureza o
obrigava a se desfazer, o ouro que tinha engolido; a notícia correu
imediatamente por todo o acampamento de que os fugitivos tinham o corpo
cheio de ouro. Vários então dos sírios e dos árabes começaram a abrir o ventre
dos prisioneiros para procurar nas suas entranhas o metal com que queriam
satisfazer à sua abominável ambição, o que penso ser a mais horrível de todas
as crueldades, que jamais os judeus tiveram de sofrer, por maiores e mais
estranhas que tenham sido as outras; numa só noite, dois mil terminaram sua
vida desse modo.
430.
 Tito sentiu com isso tal horror que mandou sua cavalaria rodear
imediatamente todos os culpados para matá-los, numa chuva de dardos, e o
teria feito se não viesse a saber que seu número sobrepujava de muito o dos
mortos. Ele reuniu então todos os chefes dessas tropas auxiliares e mesmo das
do império, porque alguns soldados romanos tinham tomado parte naquele
crime e disse-lhes, encolerizado: "Será possível que haja entre vossos soldados,
homens mais cruéis que os mais ferozes dos animais, que não tiveram receio de
cometer tão detestável crime, na esperança de um lucro incerto e não tenha
vergonha de se enriquecer de maneira tão execrável? Como os árabes e os sírios
tiveram coragem de praticar tão horríveis desumanidades, numa guerra que
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não lhes interessava, nem a eles se refere, e de dar motivo a se atribuir aos
romanos o que sua ambição, sua crueldade e seu ódio pelos judeus os levaram
a fazer?"
Depois de ter assim falado, declarou que aquele que tão ousada e
malignamente fizesse algo de semelhante, seria imediatamente executado.
Ordenou a todos os oficiais das legiões que fizessem uma indagação bem exata
dos que eram ainda suspeitos. Mas nenhum temor de castigo é capaz de
reprimir a ambição e a avareza. O amor das riquezas é tão natural aos homens
que essa paixão cresce sempre, e Deus, que tinha condenado esse povo
miserável a perecer, permitia que tudo o que poderia contribuir para sua
salvação, não tivesse eficácia nem efeito. Como o castigo ordenado por Tito
impedia que se cometesse o crime publicamente, eles o faziam às escondidas.
Aqueles bárbaros, depois de terem usado de todas as precauções, não sendo
vistos pelos romanos, continuavam a abrir o ventre dos fugitivos que lhes caíam
nas mãos, para procurar ouro em suas entranhas e satisfazer com esse lucro
abominável seu ardente desejo de enriquecer. O mais das vezes, porém, nada
encontravam. Assim a maior parte dessa pobre gente era constituída de
infelizes vítimas de uma enganadora esperança, e aquela horrível crueldade
impediu a muitos judeus, sair da cidade para se entregar aos romanos.
CAPÍTULO 37
SACRILÉGIOS COMETIDOS POR JOÃO NO TEMPLO.
431. Depois que João reduziu o Templo a esse estado, que nele nada mais
lhe restava para saquear, tendo-o despojado completamente, passou das
pilhagens
 ordinárias
 aos
 sacrilégios.
 Atreveu-se,
 por
 uma
 impiedade
inominável, que sobrepuja mesmo a toda credulidade, a tomar diversos dons
oferecidos a Deus no Templo, e o que era destinado para o divino serviço, como
taças, cálices, pratos, mesas, até mesmo vasos de ouro que Augusto e a
imperatriz sua esposa tinham oferecido. Os imperadores romanos sempre
tiveram veneração por esse Templo e demonstraram, por meio de presentes, o
prazer que sentiam em enriquecê-lo. Assim, viu-se um judeu arrancar daquele
lugar sagrado, por uma execrável impiedade, aqueles objetos ve-neráveis que
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estrangeiros lhe haviam dado e tinha ele ainda a desfaçatez de dizer aos que
tinham entrado na sociedade de seus crimes, que podiam sem temor usar das
coisas consagradas a Deus, pois era por Deus que eles combatiam. Ousou
mesmo tomar, sem receio, e dividir com eles, o vinho e o óleo que os sacerdotes
conservavam na parte interior do Templo, para empregá-los nos sacrifícios.
Deve-se pois perdoar à minha dor, o que ouso dizer: que se os romanos
tivessem diferido em castiaar Delas armas tão grandes criminosos, creio que a
terra se teria aberto para tragar aquela miserável cidade; ou ela teria perecido
por um outro dilúvio, ou teria sido destruída pelo fogo do céu como Gomorra,
pois as abominações que ali se cometiam e que por fim causaram a ruína de
todo o povo sobrepujavam as que obrigaram Deus a lançar seus raios
vingadores sobre aquela outra detestável cidade.
Jamais poderia fazê-lo, se tivesse querido relatar em particular todos os
males que sobrevieram durante esse cerco, mas poder-se-á julgar, a esse
respeito, pelo pouco que vou dizer: Maneu, filho de Lázaro, depois de ter fugido
para junto de Tito, disse-lhe que desde o dia catorze de abril até primeiro de
julho, haviam passado cento e quinze mil oitocentos e oitenta corpos de mortos,
pela porta onde ele estava de guarda e, entretanto, apenas havia contado
aqueles, dos quais era obrigado a saber o número, por causa de uma
distribuição pública de que estava encarregado. Quanto aos outros, os parentes
tinham o cuidado de enterrá-los, isto é, de levá-los para fora da cidade, pois era
apenas isso a sepultura que se lhes dava. Outros fugitivos, que eram pessoas
da nobreza, afirmaram que o número dos pobres que tinham sido levados desse
modo para fora da cidade, não era inferior a seiscentos mil. O dos outros, era
incrível. E como por fim não se podiam transportar tantos corpos, era-se
obrigado a lançá-los em grandes casas, das quais se fechavam as portas. Um
pacote de trigo valia um talento, e depois da construção do muro que rodeava
toda a cidade, os pobres, não podendo mais sair para procurar ervas, tinham
sido reduzidos a tal extremo, que iam mesmo nos esgotos, procurar velho
estéreo de boi para comer e outras imundícies cuja vista somente causa horror.
Os romanos não puderam ouvir falar de tantas misérias sem se sentir movidos
à compaixão. Mas os revoltosos tudo viam sem se arrepender, de lhes terem
eles sido a causa, porque Deus os cegava de tal modo, que eles não viam o
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precipício em que iam cair com toda aquela desgraçada cidade.
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Livro Sexto
CAPÍTULO 1
HORRÍVEL MISÉRIA A QUE JERUSALÉM SE ENCONTRA REDUZIDA E INCRÍVEL
DESOLAÇÃO DE TODOS OS PAÍSES DOS ARREDORES.
 OS ROMANOS TERMINAM
EM VINTE E UM DIAS SUAS NOVAS PLATAFORMAS.
432. Os males que afligiam Jerusalém aumentavam cada vez mais; o furor
dos revoltosos aumentava também, pois a fome era tal que os roubos não
impediam que eles também começassem a se sentir envolvidos na mesma
miséria geral, que já tinha destruído grande parte do povo e que reduzia ao
último extremo os que ainda viviam. Os cadáveres que enchiam a cidade e a
contaminavam com seu mau cheiro, o que não se podia contemplar sem horror,
retardavam mesmo os ataques, pois a quantidade não era menor que a dos que
poderiam ter tombado numa grande batalha, dentro dos muros. Havia mortos
por toda a parte; pelas estradas, pelas ruas, não se podia passar sem que
pisasse nalgum cadáver. Mas o endurecimento de seu coração era tal que esse
espetáculo tão horrendo não os impressionava, não lhes causava a compaixão,
e não os fazia considerar que aumentariam bem depressa o número dos que
eles calcavam aos pés com tanta desumanidade. Depois de ter numa guerra
interna manchado suas mãos no sangue de seus próprios concidadãos,
pensavam agora somente em lutar contra os romanos, numa guerra externa e
parecia que eles censuravam a Deus que adiava o castigo, pois não havia mais
esperança de vencer; era o desespero que lhes inspirava tanta coragem e
ousadia.
433. Entretanto, os romanos em vinte e um dias terminaram as novas
plataformas, não obstante a dificuldade em encontrar a madeira necessária
para tal obra. Eles devastaram toda a região a oitenta estádios nos arredores de
Jerusalém; e jamais terra ficou tão desfigurada. Onde outrora havia bosques e
árvores frondosas, jardins deliciosos, não havia agora uma única árvore, e não
somente os judeus, mas os estrangeiros, que antes admiravam aquela formosa
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parte da Judéia, agora não seriam capazes de reconhecer, nem ver os
maravilhosos arrabaldes daquela grande cidade, convertidos em terrenos
abandonados e silvestres, sem que tão deplorável mudança os fizesse derramar
lágrimas. Foi assim que a guerra de tal modo destruiu uma região tão
favorecida por Deus, que já não lhe restava o menor vestígio de sua beleza
antiga e podia-se perguntar em Jerusalém, onde então estava Jerusalém.
CAPÍTULO 2
JOÃO FAZ UMA INCURSÃO PARA INCENDIAR AS NOVAS PLATAFORMAS, MAS É REPELIDO
COM PERDAS.
 A TORRE, SOB A QUAL ELE TINHA FEITO UMA MINA , TENDO SIDO BATIDA
PELOS ARÍETES DOS ROMANOS, CAI DURANTE A NOITE.
434. As novas plataformas deram, por várias razões, muitos motivos de
temor aos judeus. Eles estariam perdidos se não se apressassem em queimá-las
e os romanos desesperavam-se por não poderem erguer outras, se aquelas
fossem destruídas, quer porque não havia mais madeira para construí-las, quer
porque eles já estavam tão cansados do trabalho dessas últimas e também por
outras fadigas que haviam suportado, que começavam a perder a coragem.
Viam seus esforços malogrados, suas máquinas inutilizadas, seu trabalho
contra os muros quase inútil, por causa da espessura deles e a desvantagem
que haviam tido em vários combates, e por isso julgavam impossível vencer
homens, aos quais nem a sua própria divisão, nem a guerra, nem a fome, não
somente não eram capazes de assustar, e, que por uma intrepidez inconcebível,
se elevavam acima de tantos males e se tornavam cada vez mais ousados. Que
seria então, diziam eles, se tivessem a sorte favorável, pois, sendo-lhes tão
adversa, em vez de lhes abater a coragem, só servia para fortalecê-los mais na
sua obstinação? Como estas razões lhes tornavam os judeus tão temíveis, eles
redobraram a guarda nos trabalhos.
435.
 João, entretanto, que tinha de defender a fortaleza Antônia, para
prevenir o perigo em que se encontraria, se os romanos abrissem uma brecha,
não perdia tempo, mas fortificava-se e tentava todas as coisas antes que os
aríetes fossem postos em ação. No primeiro dia de julho, ele organizou um
ataque, com archotes na mão, para incendiar os trabalhos dos romanos, mas
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foi obrigado a regressar sem ter podido se aproximar deles, porque os ataques
que moviam não eram bem preparados. Em vez de fazê-lo todos, ao mesmo
tempo, e com aquela coragem e decisão naturais dos judeus, eles saíam em
pequenos grupos e receosos. Assim, não atacaram os romanos com o mesmo
vigor de costume, mas, ao contrário, encontraram-nos mais bem preparados do
que antes, para recebê-los, pois estavam tão apertados uns contra os outros,
tão bem cobertos por suas armas e tinham defendido tão bem suas obras, que
não havia a menor abertura por onde atear o fogo, além de que estavam
resolvidos a morrer antes que fugir, porque não tinham mais esperanças de
poder erguer novas plataformas, se aquelas fossem incendiadas e consideravam
uma vergonha intolerável, que sua coragem fosse superada pela ousadia dos
judeus, seu valor, pela temeridade deles, a experiência pelo número deles e os
romanos, pelos judeus. Assim, eles detiveram a golpes de dardos os mais
atrevidos, que estavam mais perto; a morte e os ferimentos dos que tombavam
lhes arrefeceram um tanto o entusiasmo; o número e a disciplina dos romanos
espantaram os que os seguiam, muitos dos quais já estavam feridos, e todos se
retiraram imediatamente, acusando-se uns aos outros de covardia.
436. Então os romanos fizeram seus aríetes avançar, para derrubar a
torre Antônia e os judeus, para impedir que se aproximassem, empregaram o
ferro, o fogo e tudo o que julgaram poder servir, porque ainda que confiassem
nas muralhas, não temendo o efeito daquelas máquinas, entretanto, não
queriam se descuidar de nada, para conservá-los afastados. Aquela resistência
fazia os romanos crer que os judeus desconfiavam da firmeza de suas muralhas
e que seus alicerces estavam abalados e, então, duplicaram os esforços, sem
que a grande quantidade de dardos atirados pelos judeus lhes pudesse
esmorecer o ardor. Mas quando viram, que embora seus aríetes batessem sem
cessar, não podiam abrir uma brecha, resolveram recorrer ao solapamento e,
cobrindo-se com seus escudos, em forma de tartaruga, contra os dardos e
pedras que lhes eram atirados, trabalharam com tanta persistência, com
ferramentas e com as mãos, que arrancaram quatro pedras dos alicerces da
torre. A noite obrigou a uns e outros a um pouco de descanso e, entretanto,
aquela parte do muro, sob o qual João tinha feito a mina por meio da qual
havia destruído as primeiras plataformas dos romanos, estava enfraquecida
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pelos golpes que os aríetes já lhe tinham dado, e caiu de repente.
CAPÍTULO 3
OS ROMANOS CONSTATAM QUE OS JUDEUS TINHAM FEITO OUTRO MURO POR TRÁS
DAQUELE QUE TINHA CAÍDO.
437. Tão grave acidente e tão imprevisto causou dois efeitos contrários ao
que se tinha motivo de esperar. Os judeus, que deveriam ficar bastante
assustados pela queda daquele muro, não se admiraram absolutamente e a
alegria dos romanos cessou em seguida, quando viram outro, que João tinha
mandado construir. Esperavam contudo poder derribá-lo mais facilmente que o
primeiro, quer porque a queda do outro tornava o acesso mais fácil, quer
porque tendo sido construído recentemente não podia resistir muito. Ninguém,
porém, ousava vir ao assalto, porque os que lá subissem por primeiro não
podiam esperar conseguir o seu objetivo.
CAPÍTULO 4
PALAVRAS DE TITO AOS SOLDADOS PARA EXORTÁ-LOS A DAR O ASSALTO, PELA
DESTRUIÇÃO QUE A QUEDA DO MURO DA TORRE
 ANTÔNIA HAVIA CAUSADO.
438. Como Tito sabia o que as palavras e a esperança podem no ânimo
dos soldados para aumentar-lhes a coragem e as exortações unidas às
promessas são por vezes capazes de não somente fazê-los esquecer o perigo,
mas também desprezar a morte — reuniu os mais valorosos do exército e falou-
lhes deste modo: "Meus companheiros, ser-nos-ia igualmente vergonhoso que
eu tivesse necessidade de vos exortar a uma ação cujo perigo não fosse muito
grande. Mas é uma coisa digna de
 mim e
 de vós, propor-vos um
empreendimento não menos arriscado que glorioso. Assim, não deve a
dificuldade que nele encontramos impedir-vos de tentá-lo, mas, ao contrário, é
o que vos deve animar ainda mais, pois que o verdadeiro valor consiste em
vencer os maiores obstáculos e a não temer expor-se à morte, para conquistar
uma reputação imortal, quando mesmo não considerásseis as recompensas que
esperam de mim os que se distinguirem num feito tão importante. Essa
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invencível constância que os judeus demonstram no meio de tantos males, que
assustariam as almas dos covardes, não vos devem também animar? Que
vergonha, que soldados que em tempos de paz continuamente se ocupam em
exercícios de guerra e que nesta estão habituados a vencer sempre, viessem a
perder em coragem aos judeus, mesmo quando estamos a ponto de terminar
tão grande empresa e que parece visivelmente que Deus nos ajuda? Quem não
vê que nossos bons resultados são efeitos de nosso valor, favorecido pelo seu
auxílio e que, ao contrário, os que esses revoltosos tiveram em alguns
combates, só devem ser atribuídos ao seu desespero? Que pode melhor
demonstrar que Deus está conosco e contempla esse povo com cólera, do que
os males ordinários que devem sustentar, unidos ainda a um grande assédio, à
fome que os destrói, às suas facções que os dividem, e às suas muralhas que
caem por si mesmas, sem que sejam necessárias máquinas para nos abrir
passagem? Que infâmia para vós, mostrar menos coragem que aqueles sobre os
quais tendes tantas vantagens? Que ingratidão vossa para com Deus, se
desprezásseis o seu auxílio? Oh! Os judeus, que não devem ter vergonha de ser
vencidos, pois estão acostumados à servidão, não temem, para dela se libertar,
desprezar a morte e atacar-nos com tanta ousadia, não pela esperança de nos
poder vencer, mas por generosidade. Nós, que sujeitamos à nossa dominação
quase todas as terras e todos os mares e a quem não é menos vergonhoso não
vencer, do que aos outros ser vencidos, esperamos com um tão poderoso
exército, que a fome e a miséria acabem por destruir esses rebeldes, sem
ousarmos empreender uma ação gloriosa, embora nada haja que não possamos
empreender sem grave perigo? Só temos que tomar a fortaleza Antônia, para
ficarmos
 senhores
 do
 restante,
 pois
 que
 se
 depois
 de
 tê-la
 tomado
encontrarmos ainda resistência, o que não creio, seria ela tão pequena que não
mereceria ser considerada como tal, porque a vantagem que teríamos em
combater daquele lugar elevado, que domina a todos os demais, mal daria aos
inimigos a possibilidade de respirar, quando lhe tivéssemos assim o pé sobre a
garganta. Não vos falarei dos louvores que merecem aqueles que terminam seus
dias com as armas na mão, nos maiores perigos da guerra e que uma glória
imortal torna sempre vivos, mesmo depois da morte, na memória dos homens.
Mas vos direi somente que eu desejo que uma enfermidade, durante a paz, leve
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os fracos e covardes, cujas almas e corpos descem juntos para o túmulo. Quem
não sabe que os que morrem combatendo com invencível coragem apenas são
libertados da prisão de seus corpos vão tomar assento no céu entre as estrelas,
de onde suas almas heróicas são para seus descendentes como espíritos bem-
aventurados, que os animam à virtude, pelo desejo de possuir um dia a mesma
glória? Ao contrário, as almas dos que morrem de doença numa cama, por
maiores tormentos que sofram num outro mundo para serem purificadas de
seus pecados, são sepultadas com seus nomes nas trevas perpétuas?
Se a morte é inevitável a todos os homens, se é sem dúvida mais doce
recebê-la por um golpe de espada que por uma enfermidade, que covardia pode
igualar, a de recusar à utilidade da pátria e ao aumento da sua grandeza, uma
vida que não podemos evitar de perder? Vede que vos falei até aqui, como se,
dando esse assalto, corrêssemos a uma morte inevitável. Mas não há perigos
que uma grande resolução não possa vencer. A queda desse primeiro muro já
nos abre caminho para a vitória; o segundo não será difícil de se derrubar,
contanto que ataqueis todos juntamente com o mesmo ardor, exortando-vos e
animando-vos reciprocamente. Vossa coragem deixará atônitos os inimigos e
talvez tenhamos êxito sem graves perdas, numa ação tão gloriosa, porque ainda
que os judeus se esforcem por repelir os primeiros que derem o assalto, ainda
não teremos obtido sobre eles a menor vantagem, que seu vigor diminuirá, aos
poucos, até que não nos poderão mais oferecer resistência. Comprometo-me a
recompensar de tal modo o mérito daquele que subir por primeiro à brecha,
quer ele esteja vivo, quer morto, depois de ter praticado tão belo feito; ele será
digno de inveja, pois que se sobreviver, comandará os que antes lhe eram iguais
e se essa brecha for o seu túmulo, não haverá honras que eu não preste à sua
memória".
CAPÍTULO 5
INCRÍVEL FEITO DE VALOR DE UM SÍRIO DE NOME SABINO, QUE SUBIU SOZINHO AO ALTO
DA BRECHA E FOI MORTO.
439. Embora as palavras de tão generoso chefe devessem inspirar uma
coragem extraordinária, a magnitude do perigo tinha causado tal impressão nos
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espíritos, que ninguém se apresentou para o assalto, exceto um sírio, de nome
Sabino, cujo aspecto era tão esquisito, que dificilmente seria tido como soldado.
Era negro, magro, baixo, de compleição extremamente débil, mas aquele corpo
pequeno era animado por uma grande alma, tanto que ele pode ser tido por um
herói. Apresentou-se a Tito e disse-lhe: "Ofereço-me com alegria, grande prínci-
pe, para subir por primeiro à brecha, para dar o assalto e executar vossas
ordens; desejo que vossa boa sorte secunde minha afeição. Se isso não
acontecer e eu morrer antes de ter podido alcançar o alto da brecha, não
deixarei de ter obtido o meu intento, pois me proponho a mim mesmo apenas a
glória e a felicidade de empregar minha vida ao vosso serviço". Depois de ter
assim falado, tomou o escudo na mão esquerda, cobriu com ele a cabeça e
segurando a espada com a direita, subiu, pelas seis horas, ao alto; seguido por
onze outros, que quiseram imitá-lo; adiantou-se mais que eles com uma
coragem sobre-humana, embora os inimigos lhe atirassem sem cessar uma
nuvem de dardos e de flechas e rolassem também grandes pedras, que
derribaram alguns dos que o seguiam. Assim, sem que nada fosse capaz de
detê-lo, ele chegou ao alto do muro; tanta coragem assustou de tal modo os
judeus que, pensando que ele era seguido por muitos outros, abandonaram a
brecha. Como temos motivo de acusar nessa ocasião a sorte! Como a inveja
parece sentir prazer em prejudicar os feitos heróicos! Sabino, depois de ter tão
gloriosamente executado a sua empresa, foi atingido por uma pedra que o
derrubou. O barulho da queda fez os inimigos voltarem a si e eles viram que ele
estava sozinho, caído por terra. Atiraram-lhe então uma grande quantidade de
dardos; nada, porém, era capaz de abater tão grande coragem e ele se defendia
de tal modo, de joelhos, sempre coberto pelo escudo e sem abandonar a espada,
que feriu ainda vários dos que dele se aproximaram; a quantidade, porém, de
golpes que havia recebido, por fim, diminuíram-lhe as energias, ele não pôde
mais segurar a espada e foi morto.
Assim o êxito correspondeu à dificuldade da empresa, embora sua
coragem bem merecesse outro desfecho. Dos onze que o haviam seguido, três
foram mortos a pedradas, quando já estavam bem perto do alto do muro, os
outros oito voltaram bastante feridos para o acampamento. Isto se deu a três de
julho.
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CAPÍTULO 6
OS ROMANOS APODERAM-SE DA FORTALEZA ANTÔNIA E TAMBÉM TER-SE-IAM PODIDO
APODERAR DO
 TEMPLO, SE NÃO FOSSE A INCRÍVEL RESISTÊNCIA
OPOSTA PELOS JUDEUS NUM COMBATE VIGOROSO, DURANTE HORAS .
440. Dois dias depois, alguns soldados de guarda nas plataformas
reuniram-se com as insígnias da quinta legião, dois cavaleiros tomaram uma
trombeta e pelas nove horas da noite subiram pelas ruínas do muro sem fazer
barulho, até a fortaleza Antônia. Encontraram os soldados do corpo da guarda
mais avançada adormecidos e os mataram. Apoderando-se assim do muro,
tocaram a trombeta. A esse barulho, os dos outros corpos de guarda,
imaginando que os romanos eram em mui grande número, ficaram tomados de
tal terror, que fugiram. Logo que Tito veio a sabê-lo, reuniu todas as tropas que
tinha junto de si, pôs-se à frente delas e acompanhado por seus guardas subiu
pelas mesmas ruínas aonde o levava um acontecimento de tal conseqüência.
Alguns judeus alarmados por um ataque tão repentino, fugiram para o Templo,
outros, para uma mina que João tinha feito para derrubar as plataformas. Mas
o partido deste e o de Simão reuniram-se em seguida porque se viam perdidos,
se os romanos viessem a se apoderar do Templo e tudo fizeram com esforço
extraordinário para repeli-los. Travou-se então um vigoroso combate às portas
desse lugar sagrado, do qual alguns consideravam a posse como sua completa
vitória e os outros, a perda, como sua ruína completa. Os dardos e as flechas
eram inúteis tanto estavam perto uns dos outros; combatia-se apenas com as
espadas, porque o espaço estreito não lhes permitia conservar as fileiras e eles
estavam misturados, sem se poder reconhecer, nem se distinguir pela língua,
no meio de tanto barulho que se elevava de ambas as partes e enchia o ar; a
coragem aumentava ou diminuía dos dois lados, segundo a própria vantagem
ou desvantagem! Combatia-se pisando nos cadáveres e nas armas e não havia
também lugar para onde se fugir nem para perseguir; avançava-se e se recuava
segundo o que o inimigo obrigava a ceder ou era obrigado por sua vez a se
afastar. Era um fluxo e refluxo contínuo, na contingência em que se
encontravam os que estavam na linha de frente, de matar ou de ser mortos,
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porque, os que os seguiam, os apertavam tanto que não havia entre eles
intervalo algum. O combate continuou com o mesmo ardor, desde as nove
horas da noite até às sete do dia seguinte, isto é, durante dez horas. Por fim o
furor e o desespero dos judeus que viam que sua salvação dependia do êxito
desse combate, venceram o valor e a experiência dos romanos. Estes julgaram
dever contentar-se em se ter apoderado da fortaleza Antônia, embora apenas
uma pequena parte do seu exército tivesse entrado nesta luta.
CAPÍTULO 7
VALOR QUASE INCRÍVEL DE UM OFICIAL ROMANO CHAMADO JULIANO.
441. Um oficial romano de nome Juliano, da Bitínia, de família nobre, o
homem mais valente, mais reto e mais forte que eu conheci nessa guerra, vendo
os romanos retirarem-se e ainda muito acossados pelos judeus, afastou-se da
torre Antônia e de Tito, e lançou-se ao meio dos inimigos, com tanta coragem,
que sozinho os fez recuar até o ângulo do Templo, pois imaginaram que tal
força e ousadia não podiam ser próprios de uma criatura mortal. Assim, todos
fugiram diante dele e ele não somente os desbaratava, mas matava a todos os
que podia alcançar; causou assim não menos admiração a Tito do que espanto
aos judeus. Mas como é possível evitar a própria desgraça, aconteceu-lhe o que
não podia prever: quando corria de todos os lados no pavimento, como um raio,
os pregos que guarneciam seu sapato, como é costume entre os soldados,
fizeram-no cair; com o barulho da queda os inimigos voltaram-lhe o rosto. Os
romanos que estavam na fortaleza Antônia soltaram um grito pressentindo o
que lhe iria acontecer; os judeus rodearam-no de todos os lados para matá-lo,
com espadas e dardos. Ele tentou várias vezes levantar-se, mas os golpes
seguidos que lhe davam não Iho permitiram. Embora caído por terra não deixou
de ferir a vários com a espada e muito tempo ainda se passou, antes que
pudessem matá-lo, porque ele estava muito bem armado e cobria a cabeça com
o escudo. Por fim o sangue que corria das feridas que recebera em outras
partes do corpo, fizeram-no perder as forças e ninguém teve coragem de ir
socorrê-lo; assim, ele foi morto.
442. Não se pode imaginar a dor de Tito por ver morrer ante seus olhos e
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na presença de uma parte de seu exército um homem de tanto valor e coragem,
sem poder socorrê-lo, por mais que o quisesse fazer, por causa dos obstáculos
que encontrava no momento. A glória que um feito tão ilustre granjeou a juliano
fez que não somente Tito honrasse sua memória, mas também os romanos, e
até mesmo os judeus o admiravam. Levaram seu corpo e tendo ainda uma vez
repelido os romanos, fizeram-nos se encerrar na torre Antônia. Dentre os seus
distinguiram-se bastante naquele dia, Alexas e Gipteo, do partido de João,
Malaquias, Judas, filho de Mertom, Jacó, filho de Sosa, chefe dos idumeus e
Simão, e Judas, filho de Jair, do partido de Simão.
CAPÍTULO 8
TITO MANDA DESTRUIR OS ALICERCES DA FORTALEZA ANTÔNIA EJOSEFO FALA AINDA,
POR SUA ORDEM, AFOÃO E AOS SEUS PROCURANDO INCITÁ-LOS A PEDIR A PAZ, MAS
INUTILMENTE.
 OUTROS DEIXAM-SE PERSUADIR POR SUAS PALAVRAS.
443.
 Tito mandou destruir os alicerces da fortaleza Antônia, para dar
uma entrada fácil a todo seu exército e tendo sabido, a dezessete de julho, que
o povo estava muito aflito por não ter podido celebrar a festa que tem o nome de
Endelechisma, isto é, quebramento das mesas, ordenou a Josefo que dissesse
uma segunda vez a João que se a louca paixão de resistir ainda subsistia, ele
podia sair com o número de soldados que quisesse, para um combate, sem se
obstinar mais em querer a ruína da cidade e do Templo; que ele devia estar
cansado de profanar um lugar tão santo, de ofender a Deus com tantos
sacrilégios e que lhe permitia escolher os de sua nação que ele quisesse, para
recomeçar a oferecer-lhe os sacrifícios, que tinham sido interrompidos.
Josefo, depois dessa ordem, julgou não dever falar somente a João, e para
ser ouvido por muitos, subiu a um lugar elevado de onde lhes comunicou o que
Tito lhe havia ordenado, e tudo fez para levá-los a ter compaixão de sua pátria,
de afastar tão grande desgraça, como ver incendiar-se o Templo, cujo fogo já
estava perto, e de pensar em dar a Deus a adoração que lhe era devida.
O povo, embora bastante impressionado com essas palavras, não ousou
abrir a boca para manifestar seu pesar, mas João respondeu com injúrias e
maldições. Depois acrescentou que jamais lhe aconteceria de temer a ruína de
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uma cidade, que era de Deus. Josefo então retomou a palavra e disse com voz
ainda mais forte: "O extremo cuidado que tendes de conservar a Deus essa
cidade, na sua pureza e de impedir a profanação das coisas santas, vos dá sem
dúvida um grande motivo de confiar em seu auxílio, a vós que não tendes medo
de cometer os mais horríveis atos de impiedade e de empregar para usos
profanos as vítimas reservadas para lhe serem oferecidas em sacrifícios. Se
alguém vos quisesse privar do alimento de que tendes necessidade, cada dia,
vós o consideraríeis um malvado e vosso inimigo mortal; depois que impedistes
que se prestasse a Deus o culto e a homenagem perpétua que lhe é devida,
ousais ainda persuadir-vos de que Ele vos há de ajudar, nesta guerra e atribuir
o horror que deve ter os vossos crimes, sobre os romanos que mantêm ainda
hoje a observância de nossas leis e que vos querem obrigar a restabelecer os
sacrifícios que interrompestes. Quem poderia sem ter o coração partido de dor
ver tão estranho e incrível transtorno? Estrangeiros, e estrangeiros que nos
fazem guerra, vos querem impedir de continuar a cometer atos de impiedade e
vós, ainda que judeus de nascimento, instruídos desde a infância em nossas
santas leis, não tendes vergonha de vos declarardes seu inimigo capital? Esse
último extremo, a que vossa pátria se encontra reduzida, não é capaz de vos
levar ao arrependimento, embora o exemplo de um de nossos reis possa ser
suficiente para a ele vos levar. Bem sabeis que, quando os babilônios entraram
na Judéia com tão grandes forças, Jeconias, que então reinava, saiu
voluntariamente de Jerusalém e lhe deu como reféns sua mãe e vários dos seus
parentes, a fim de impedir a ruína da cidade, a profanação das coisas santas e
o incêndio do Templo. Toda nossa nação reconheceu dever a ele, que tal não
acontecesse e por isso renova-se todos os anos a recordação desse fato, para
que ele passe de século a século, a fim de perpetuar o reconhecimento por tão
grande benefício! Embora estejais à beira do precipício, ainda vos podeis salvar,
pois asseguro que os romanos vos perdoarão, contanto que não vos obstineis
mais em vos tornardes indignos de todo perdão. E para que não possais
duvidar de minha palavra, considerai que é um judeu que a dá, por que motivo
ele a dá e da parte de quem a dá? Deus me livre de ser tão infeliz e tão covarde
de esquecer a minha origem e o amor que sou obrigado a ter pelas leis de meu
país. Mas, em vez de ficardes impressionados com tantas considerações,
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começais um novo furor e continuais a me injuriar. Mas confesso que o mereço,
pois estou agindo contra a ordem de Deus, exortando-vos a pensar na salvação
àqueles que sua justiça condenou. Todos sabem o que os profetas predisseram,
que essa miserável cidade será destruída, quando virmos os que têm a graça de
terem nascido judeus, manchar as mãos com assassínios de seus próprios
irmãos? Esse tempo, talvez, ainda não chegou? Toda a cidade e também o
Templo ainda conservam os corpos daqueles que tão cruelmente massacrastes.
Podemos então duvidar de que Deus mesmo não se una aos romanos para fazer
expiar pelo fogo tanta abominação e tantos crimes?" Josefo não pôde continuar
a falar, porque as lágrimas e os soluços embargaram-lhe a voz. Os romanos
tiveram compaixão de seu sofrimento e admiraram seu amor pela pátria. Mas
suas palavras somente conseguiram irritar ainda mais a João e aos seus e
aumentar o desejo que eles tinham de poder apanhá-lo.
CAPÍTULO 9
VÁRIAS PESSOAS DA NOBREZA, COMOVIDAS PELAS PALAVRAS DE JOSEFO, FOGEM DE
JERUSALÉM E VÃO REFUGIAR-SE EM TITO QUE OS RECEBE MUI FAVORAVELMENTE.
444. Tão poderosas razões não ficaram, porém, sem efeito. Persuadiram a
várias pessoas da nobreza, mas o temor dos corpos de guarda dos revoltosos
impediu que uma parte deles pudesse fugir, embora não pudessem duvidar de
sua ruína e a da cidade. Os outros encontraram um meio de fugir para junto
dos romanos, dentre os quais estavam Josefo e Jesus, dois dos principais
sacerdotes, três filhos de Ismael, que teve a cabeça cortada em Cirene, e o
quarto filho de Matias, que tinha fugido quando Simão, filho de Gioras, tinha
mandado matar seu pai e seus três irmãos. Vários outros da nobreza também
fugiram com eles. Tito recebeu-os com extrema bondade e, pensando que eles
teriam dificuldade em se acostumar a viver com estrangeiros de uma maneira
diferente da de seus pais, mandou-os a Gofna, com promessa de lhes dar terras
quando a guerra tivesse terminado. Eles partiram com alegria. Quando não
foram mais vistos em Jerusalém, os revoltosos fizeram correr a notícia de que
os romanos os tinham matado e esse ardil impediu durante certo tempo que
outros também fugissem, como eles.
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CAPÍTULO 10
TITO NÃO PODENDO SE DECIDIR A INCENDIAR O TEMPLO, DE QUE JOÃO E
OS DO SEU PARTIDO SE SERVIAM COMO DE UMA FORTALEZA E LÁ COMETIAM MIL
SACRILÉGIOS, FALA-LHES PARA EXORTÁ-LOS A NÃO OBRIGÁ - LO A ISSO, MAS
INUTILMENTE.
445. Tito veio a saber disso que acabo de relatar e mandou regressar de
Gofna aqueles judeus que para lá havia mandado e os fez dar volta à cidade
com Josefo, para que o povo pudesse vê-los. Assim, sabendo que tinham sido
enganados, muitos outros conseguiram fugir para ele, e todos juntos pediram
aos revoltosos com suspiros e lágrimas que salvassem sua pátria, recebendo os
romanos na cidade ou pelo menos que saíssem do Templo, para impedir que
eles o incendiassem, o que eles fariam obrigados pela força. Mas aqueles
celerados, mais furiosos que nunca, só lhes responderam com injúrias e
puseram nas portas sagradas do Templo todas as máquinas de que se serviam
para atirar dardos e pedras. Assim tomar-se-ia aquele lugar santo por uma
fortaleza que não por um Templo e a praça que estava diante dele podia passar
por um cemitério, tantos eram os mortos que ali jaziam. Eles não somente
entravam com armas naquele lugar sagrado, que lhes deveria ser inacessível,
mas entravam mesmo quando tinham as mãos manchadas de sangue de seus
concidadãos e chegaram a tal excesso de furor e de impiedade que os romanos
não sentiam menos horror em vê-los cometer tais sacrilégios, contra o que sua
religião os obrigava a respeitar ainda mais, tanto que eles deveriam sentir o
coração partido de dor, se os romanos tivessem agido do mesmo modo, pois não
havia um só no exército de Tito que não contemplasse o Templo com respeito,
que não adorasse o Deus ao qual ele era consagrado e que não desejasse que
aqueles malvados que o profanavam de tão horrível maneira, se arrependessem
antes que a ruína, de que estava ameaçado, fosse irremediável. Tito ficou
possuído de tão viva dor que, dirigindo ele mesmo sua palavra a João e aos
seus companheiros, disse-lhes: "ímpios que sois, não foram os vossos
antepassados que rodearam esse lugar sagrado de balaustradas, a fim de
impedir que dele nos aproximássemos? Não foram eles que mandaram gravar
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em colunas, em caracteres gregos e romanos, proibições de passar além desse
limite? Não vos permiti eu que fizésseis morrer aqueles que tinham a ousadia
de violar essas ordens, mesmo que fossem romanos? Que raiva vos leva pois a
profanar esse Templo, não somente com o sangue dos estrangeiros, mas dos de
vossa mesma nação e a vos vangloriardes de calcar aos pés os corpos daqueles
que massacrais? Tomo aos deuses como testemunhas, aos deuses aos quais
adoro e aquele que ou-trora conTemplou este Templo com vistas favoráveis,
digo outrora, pois não creio que haja atualmente uma só divindade que dele
não afaste os olhos. Tomo como testemunha todo meu exército, todos os judeus
que se refugiaram junto de mim e tomo-vos a vós mesmos como testemunhas,
de que não tenho parte alguma nessa profanação, e que se quereis sair desse
lugar sagrado, nenhum romano se há de aproximar do santuário nem cometerá
a menor insolência, mesmo contra vossa vontade, eu conservarei esse célebre
Templo".
CAPÍTULO 11
TITO DÁ ORDEM PARA ATACAR O CORPO DE GUARDA DOS JUDEUS QUE DEFENDIAM O
TEMPLO.
446. Tito assim falou, fazendo-se servir de Josefo para ser entendido em
hebraico, mas os revoltosos, em vez de se comoverem ante sua bondade, imagi-
naram que era por temor que lhes havia falado daquele modo e tornaram-se
ainda mais insolentes. Assim, o grande general, vendo que aqueles miseráveis
não tinham compaixão de si mesmos, nem desejo de salvar o Templo, resolveu
atacá-los; e como aquele lugar não podia conter todo seu exército, tomou de
cada companhia de cem homens, trinta dos mais valentes entregou mil homens
ao comando de cada tribuno, que ele escolheu e constituiu Cerealis, como chefe
de todos; pelas nove horas da noite ordenou que atacassem o corpo de guarda.
Ele mesmo quis estar presente à ação, mas seus amigos e os principais oficiais
do exército, vendo o perigo, disseram-lhe que seria muito melhor ficar na
fortaleza Antônia para dar ordens e ser juiz do valor dos que ele empregava
naquela empresa, porque não haveria esforços que a honra de combater na sua
presença não os fizesse fazer, para demonstrar sua coragem. Ele aceitou essas
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razões e disse às suas tropas que a única coisa que o detinha era querer ser
testemunha de seus feitos de valor, a fim de que, tendo em suas mãos o poder
de recompensar como o de castigar, nenhum dos que se distinguissem naquela
ocasião ficasse sem recompensa, nem os que tivessem medo e vergonha
ficassem sem castigo. Depois de ter assim falado, ordenou-lhes que dessem o
ataque e subiu a uma guarita da torre Antônia, para dali ver o que ia acontecer.
CAPÍTULO 12
ATAQUE AO CORPO DE GUARDA DO TEMPLO; COMBATE VIOLENTO QUE DUROU OITO
HORAS SEM QUE SE PUDESSE DIZER DE QUE LADO PENDIA A VITÓRIA .
447. Os romanos não encontraram os inimigos adormecidos, como
imaginavam; os do primeiro corpo de guarda vieram imediatamente combater
contra eles, soltando gritos, e os outros despertaram ante esse ruído e
acorreram em grande número. Os romanos resistiram corajosamente ao
primeiro ímpeto dos inimigos; os que vinham depois atacavam indiferentemente
a amigos e inimigos, porque a escuridão da noite, o rumor confuso de tantas
vozes, a animosidade, o furor, o temor tinham confundido todas as coisas, mas
tão estranha confusão era menos prejudicial aos romanos que aos judeus,
porque eles combatiam em grupos, apertados uns contra os outros, cobertos
com seus escudos e se serviam, para se reconhecer, da senha que lhes fora
dada; ao passo que os judeus não observavam ordem alguma, nem atacando,
nem se retirando, e tomando muitas vezes por inimigos os seus mesmos
companheiros, que depois de ter combatido se iam reunir a eles; mataram-nos
assim mais que os mesmos romanos. Quando raiou o dia, começaram a se
reconhecer e então combatiam com ordem, servindo-se também dos dardos e
das flechas; ambos os lados continuaram firmes, sem que um combate tão
irregular como o que se travara durante a noite, em nada lhes tivesse diminuído
o ardor. Os romanos, que sabiam que Tito os contemplava e lhes observava as
ações, consideravam aquele dia como o começo da felicidade de todo o restante
de sua vida, se merecessem sua estima por seu valor e esforçavam-se sem
descanso para sobressair. Os judeus estavam animados pela gravidade do
perigo em que se encontravam, pelo temor de ver destruir o Templo e pela
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presença de João que exortava a uns e feria a outros, ameaçando-os se não
combatessem com valor. Aquele grande combate, quase sempre corpo-a-corpo,
mudava de aspecto a cada momento, porque não havia espaço suficiente para
se poder travar um combate em regra nem uma longa perseguição. A torre
Antônia era como um teatro de onde Tito e os que estavam com ele viam tudo o
que se passava, aumentando com seus clamores a coragem e o ardor dos
romanos quando eles obtinham vantagem, e os exortando à firmeza quando
eram repelidos pelos judeus. Por fim, às cinco horas do dia, terminou o
combate começado às nove da noite, sem que se pudesse dizer quem havia
obtido a vitória. Muitos romanos conquistaram fama de valentes e os judeus
que mais se distinguiram foram os do partido de Simão, Judas, filho de
Mertom, Simão, filho de Josias. Dos idumeus, Jacó, filho de Sosa, e Simão, filho
de Catlas; e do partido de João, Gipteu e Alexas; e dos zelotes, Simão, filho de
Jair.
CAPÍTULO 13
TITO MANDA DESTRUIR COMPLETAMENTE A FORTALEZA ANTÔNIA E APROXIMAR, EM
SEGUIDA, AS LEGIÕES QUE ESTAVAM OCUPADAS EM ERGUER PLATAFORMAS.
448. Tito mandou destruir em sete dias toda a fortaleza Antônia até os
alicerces e tendo assim aberto um grande espaço até o Templo, mandou
aproximarem-se as legiões para atacarem sua primeira defesa. Começaram elas
logo a trabalhar em quatro plataformas: a primeira ao lado do ângulo do
Templo interior, entre o norte e o oeste; a segunda do lado do salão que estava
entre a duas portas do lado do vento norte; a terceira do lado do pórtico do
Templo exterior, que está de frente para o ocidente; e a quarta, do lado do
pórtico do lado do norte. Mas essas obras progrediam com muitas dificuldades
e incrível trabalho, porque os romanos eram obrigados a ir buscar materiais a
cem estádios de Jerusalém e, não se precavendo bastante pela confiança que
tinham nas próprias forças, os judeus, que o desespero tornava mais ousados
que nunca, perturbavam-nos, armando-lhes emboscadas.
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CAPÍTULO 14
TITO, NUM EXEMPLO DE SEVERIDADE, IMPEDE A VÁRIOS CAVALEIROS DE SEU EXÉRCITO
PERDEREM SEUS CAVALOS.
449. Alguns cavaleiros que haviam ido buscar forragem para os animais,
tendo soltado os cavalos para que pastassem, foram surpreendidos pelos
judeus que os atacaram de repente e os cercaram. Como aquilo acontecia
freqüentemente, Tito julgou, e era verdade, que isso se deveria antes atribuir à
negligência dos seus, do que ao valor dos inimigos. Assim, a fim de torná-los
mais precavidos para o futuro, num exemplo de severidade, e lhes conservar os
cavalos, condenou à morte um dos cavaleiros que tinha perdido o seu. Os
outros, então, não os abandonaram mais.
CAPÍTULO 15
OS JUDEUS ATACAM OS ROMANOS EM SEU PRÓPRIO ACAMPAMENTO E SÃO
REPELIDOS SOMENTE DEPOIS DE UM COMBATE SANGRENTO.
 FEITO QUASE
INCRÍVEL DE UM CAVALEIRO ROMANO DE NOME
 PEDÂNIO.
450.
 Erguidas as plataformas, os revoltosos, impelidos pela fome, pois
nada mais podiam roubar, resolveram atacar os guardas romanos, que estavam
no monte das Oliveiras, com a esperança de surpreendê-los, tanto mais
facilmente quanto era, na verdade, o tempo de eles tomarem um pouco de
descanso. Os romanos, quando os viram dirigir-se para o seu lado, reuniram
todas as suas forças para repeli-los. O combate foi muito sangrento e de ambas
as partes houve atos de grande coragem. Os romanos, além de seu valor,
tinham a vantagem de lhes ser superiores na arte da guerra e a impetuosidade
com que os judeus atacavam era tão extraordinária que mais parecia furor do
que entusiasmo. A vergonha animava a uns, a necessidade a outros; os
romanos consideravam uma mancha à sua reputação deixar os judeus
voltarem sem sofrer o castigo de sua ousadia, por lhes terem atacado em seu
próprio acampamento, e os judeus, não viam salvação para eles, atacando-os,
ali mesmo.
451.
 Um cavaleiro, chamado Pedânio, fez uma ação quase incrível.
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Depois que os judeus tinham sido postos em debandada e expulsos do vale, ele
pôs o cavalo a toda brida e com uma força e uma habilidade que pareciam
sobre-humanas, levou na passagem um jovem judeu, muito robusto e bem
armado, que fugia, tomou-o por um pé e o levou a Tito como um presente que
lhe oferecia. O general admirou esse feito e mandou executar o prisioneiro,
porque era do número daqueles que tinham tomado parte naquele grande
ataque. Dedicou-se em seguida em apressar a construção das plataformas, a
fim de se apoderar do Templo.
CAPÍTULO 16
OS PRÓPRIOS JUDEUS INCENDEIAM A GALERIA DO TEMPLO QUE IA UNIR-SE À FORTALEZA
ANTÔNIA.
452.
 Os judeus, enfraquecidos pelas perdas que haviam sofrido em
tantos combates, vendo que a guerra se acendia cada vez mais e que o perigo de
que o Templo estava ameaçado crescia sempre, resolveram destruir-lhe uma
parte, para salvar o restante; do mesmo modo que se cortam os membros de
um corpo atacado de gangrena, para impedir que ela passe adiante.
Começaram por incendiar aquela parte da galeria que unia à fortaleza Antônia,
do lado do vento norte e do ocidente, e derrubaram depois quase vinte côvados
e foram assim os primeiros que empreenderam a destruição daquela soberba
construção.
453. Dois dias depois, vinte e quatro de julho, os romanos incendiaram a
mesma galeria. Depois de terem arruinado uns catorze côvados, os judeus
derrubaram o restante e continuaram assim trabalhando na destruição de tudo
o que podia ter comunicação com a fortaleza Antônia embora tivessem podido,
se quisessem, impedir aquele incêndio. Eles consideravam sem se inquietar o
curso que o fogo tomava para dele servir-se em seu proveito, e as escaramuças
se faziam todas em redor do Templo.
CAPÍTULO 17
COMBATE SINGULAR ENTRE UM JUDEU CHAMADO JÔNATAS E UM CAVALEIRO ROMANO DE
NOME
 PUDENTE.
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454.
 Nesse mesmo tempo um judeu chamado Jônatas, de pequena
estatura, de má catadura e que era de baixa origem e de condição humilde, foi
até o sepulcro do sumo sacerdote João e desafiou insolentemente os romanos a
que mandassem o homem mais valente do exército para combater contra ele.
Ninguém respondeu a tal desafio, porque alguns o desprezavam, outros o
temiam e outros julgavam que era imprudência travar combate com um homem
que só desejava a morte, porque nenhum furor igualava ao daqueles homens
desesperados, que não temem nem a Deus nem aos homens e isso é mais
temeridade que valor, brutalidade que generosidade, arriscar-se contra aqueles
que não têm honra alguma para reivindicar e que não se pode sem grande
vergonha ser por ele vencido. Isso durou algum tempo, mas o judeu não
deixava de censurar os romanos, injuriando-os, chamando-os de covardes, com
termos ainda mais ofensivos; então um cavaleiro romano de nome Pudente, que
era muito orgulhoso, não pôde tolerar mais. Como há motivo de se julgar,
vendo-o tão pequeno, desprezou-o e marchou inconsideradamente contra ele. A
sorte não lhe foi menos contrária do que sua imprudência. Ele caiu e Jônatas
matou-o facilmente. Não se contentou de obter sem perigo tal vantagem, pisou-
lhe o corpo; tinha na mão a espada molhada ainda em seu sangue e na
esquerda, seu escudo, que ele fazia ressoar com o tinir de suas armas,
insultando ainda a infelicidade do morto e continuando a tratar injuriosamente
os romanos. Então um oficial chamado Prisco, não podendo tolerar tanta
insolência, atirou-lhe uma flecha, que o atravessou de lado a lado. Ergueu-se
imediatamente um grande clamor do lado dos romanos e do lado dos judeus,
mas causado por sentimentos diferentes; a dor de tão grande ferida fez Jônatas
cair e morrer sobre o corpo de seu inimigo, justo castigo, por se ter vangloriado
com uma vantagem que não era devida ao seu valor, mas ao acaso.
CAPÍTULO 18
MUITOS ROMANOS , TENDO- SE EMPENHADO INCONSIDERADAMENTE NUM
ATAQUE DE UM DOS PÓRTICOS DO
 TEMPLO, QUE OS JUDEUS TINHAM
ENCHIDO PROPOSITALMENTE DE GRANDE QUANTIDADE DE MADEIRA, DE
ENXOFRE E DE BETUME, MORREM QUEIMADOS; INCRÍVEL DOR DE
 TITO, POR
NÃO PODER SOCORRÊ -LOS.
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455. Nada se podia acrescentar à resistência, que os que defendiam o
Templo ofereciam aos romanos, os quais atacavam-nos do alto de suas platafor-
mas. A vinte e sete do mesmo mês de julho, eles resolveram unir a astúcia à
força. Encheram de madeira, de enxofre e de betume o espaço do pórtico do
lado do ocidente, que está entre as vigas e o teto, e quando foram atacados,
fingiram fugir. Os mais temerários entre os romanos perseguiram-nos e toma-
ram escadas para subir ao pórtico; os mais sensatos, porém, não os imitaram,
porque não viam motivo que pudesse obrigar os judeus a fugir. Quando o
pórtico estava cheio dos que queriam subir a ele, os judeus puseram fogo na-
quele material que já havia sido preparado para aquele fim e então ergueu-se
uma enorme chama, que encheu de terror os romanos, os quais contemplavam
de perto o perigo e o desespero dos que estavam rodeados de todos os lados, por
um tão repentino incêndio. Uns atiravam-se para baixo, do lado da cidade,
outros precipitavam-se do lado de seus inimigos, outros do lado dos de seu
partido e caíam bastante feridos por terra, outros eram queimados antes de
poder saltar para baixo, outros evitavam o furor do mesmo fogo, matando-se.
Como o incêndio se estendia cada vez mais longe, aconteceu que os que pen-
savam salvar-se na fuga, viram-se também envolvidos pelas chamas.
Por maior que fosse a cólera de Tito, porque aqueles que assim pereciam
haviam sido infelizes por terem se empenhado num combate para o qual não
tinham recebido ordem, sua compaixão por eles era enorme, mas eles morriam
contentes por ver sua grande pena, por serem lamentados por aquele, por cujo
amor e glória tinham com alegria arriscado a vida. Eles viam-no adiantar-se, na
frente dos demais, soltar grandes gritos, rogar aos companheiros que os
socorressem e essas demonstrações de afeto de tão grande general era para eles
a mais honrosa das sepulturas. Alguns tendo alcançado a parte mais espaçosa
da galeria salvaram-se do fogo, mas foram cercados e mortos pelos judeus,
depois de longa resistência, sem que um só deles tivesse podido escapar.
CAPÍTULO 19
ALGUNS PORMENORES DO QUE SE PASSOU NO ATAQUE DE QUE FALAMOS NO CAPÍTULO
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ANTERIOR.
 OS ROMANOS INCENDEIAM OUTRO PÓRTICO DO TEMPLO.
456. Embora os que pereceram nessa ocasião demonstrassem grande
coragem, um jovem romano, de nome Longo, distinguiu-se mais que os outros.
Os judeus, admirando seu valor e vendo que não o podiam matar, exortaram-no
a descer sob sua palavra, que lhe davam, de poder salvar a vida. Por outro lado,
seu irmão, de nome Cornélio, rogava-lhe que não humilhasse a sua reputação e
a glória do nome romano. Ele ouviu-o e depois de ter elevado a espada tão alto
quanto possível para ser vista dos dois lados, a enterrou no peito. Um outro, de
nome Artório, salvou-se por sua perspicácia, pois tendo chamado um de seus
companheiros, chamado Lúcio, prometeu-lhe fazê-lo seu herdeiro, se o recebes-
se em seus braços, quando ele se atirasse de lá de cima. Ele aceitou o
oferecimento, correu para lá e salvou a vida de Artório, mas oprimido por tão
grande peso, caiu e morreu, no mesmo instante. A perda de tantos homens
valorosos afligiu os romanos, mas ensinou-lhes ao mesmo tempo a ser mais
precavidos, para não caírem noutras emboscadas a que se expunham
temerariamente pela ignorância dos lugares e das artimanhas dos judeus.
Entretanto, o pórtico foi queimado até a torre que João tinha feito construir
sobre as colunas que levavam a esse pórtico e os judeus derrubaram o restante,
depois que aqueles que lá haviam subido foram queimados.
457.
 No dia seguinte, os romanos incendiaram também o pórtico que
estava do lado do vento norte e o queimaram até o ângulo que está do lado do
oriente e estava construído no alto do vale de Cedrom, cuja profundidade era tal
que não se podia contemplá-la sem horror.
CAPÍTULO 20
MALES HORRÍVEIS QUE A CARESTIA SEMPRE CRESCENTE CAUSA A JERUSALÉM.
458.
 Enquanto tudo isso se passava em redor do Templo, a fome e a
carestia faziam tal devastação na cidade que o número dos que ela destruía era
impossível de se conhecer. Quem poderia descrever a horrível miséria que ela
causava? Ante a menor suspeita de que ainda havia alguma coisa para se
comer numa casa, declarava-se guerra. Os melhores amigos tornavam-se
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inimigos quando se procurava conservar a vida e se atracavam uns com os
outros para obter o mínimo bocado. Não se acreditava nem mesmo nos
moribundos, quando diziam que nada mais lhe restava, mas por uma
desumanidade mais que bárbara, eles eram revistados, para verificar se não
tinham escondido nas vestes algum pedaço de pão. Quando aqueles homens,
aos quais restava apenas a aparência de um ser humano, viam-se enganados,
sem esperança de encontrar algo com o que matar a fome, então mais se
assemelhavam a cães enraivecidos; a menor coisa que lhes vinha às mãos os
fazia bailar como homens embriagados. Não se contentavam de procurar uma
só vez em todos os recantos da casa, mas faziam-no diversas vezes e a fome
enraivecida os fazia apanhar para saciá-la aquilo que os animais imundos
calcariam aos pés. Comiam até mesmo a sola dos sapatos, o couro dos escudos;
um punhado de feno podre, era vendido por quatro moedas áticas. Para falar só
de coisas inanimadas, a fim de mostrar até que ponto chegou aquela espantosa
carestia, pois tenho uma prova única e sem precedentes; nem mesmo entre os
gregos, nem entre as outras nações mais bárbaras, viu-se coisa tão horrível;
dir-se-ia mesmo incrível, e eu não teria podido resolver-me a referi-la se não
tivesse várias testemunhas e se nos males que minha pátria sofreu fosse isso
apenas uma leve consolação, suprimir-lhe a memória.
CAPÍTULO 21
ESPANTOSA HISTÓRIA DE UMA MÃE QUE MATOU E COMEU EM JERUSALÉM SEU PRÓPRIO
FILHO.
 HORROR QUE COM ISSO TITO VEIO A SENTIR.
459. Uma mulher chamada Maria, filha de Eleazar, muito rica, tinha
vindo com algumas outras, à aldeia de Batechor, isto é, casa de hissope,
refugiar-se em Jerusalém, e lá se viu cercada. Aqueles tiranos, cuja crueldade
martirizava os habitantes, não se contentaram em lhe arrebatar tudo o que
tinha levado de mais precioso, tomaram-lhe ainda por diversas vezes o que ela
havia escondido para seu alimento. A dor de se ver tratada daquela maneira
lançou-a em tal desespero, que, depois de ter feito mil imprecações contra eles,
usou de palavras ofensivas, procurando irritá-los, a fim de que a matassem,
mas nem um só daqueles tigres, por vingança de tantas injúrias ou por
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compaixão, lhe quis usar dessa graça. Ela se viu reduzida assim, às últimas,
não podia esperar socorro de ninguém; e a fome que a devorava, e ainda mais, o
fogo que a cólera tinha acendido no seu coração, inspiraram-lhe uma resolução
que causa horror à própria natureza. Ela arrancou o filho do próprio seio e
disse-lhe: "Criança infeliz, da qual nunca se poderá chorar bastante a desgraça
de ter nascido durante esta guerra, durante a carestia e no meio de diversas
facções, que conspiram sem trégua, para a ruína de nossa pátria, para que te
haveria eu de conservar a vida? Para ser talvez escrava dos romanos, quando
mesmo eles nos quisessem ajudar? A fome nos teria feito morrer antes mesmo
de cairmos em suas mãos. E esses tiranos, que nos pisam a garganta, não são
eles ainda mais temíveis e cruéis que os romanos e a fome? Não é então
preferível que tu morras, para servir-me de alimento, para enraivecer esses
revoltosos e deixar atônita a posteridade, com uma ação tão trágica, que não
seria a única a faltar para encher a medida dos males que tornam hoje os
judeus o povo mais infeliz da terra?" Depois de ter assim falado ela matou o
filho, cozeu-o, comeu uma parte e escondeu a outra. Aqueles ímpios, que só
viviam de rapina, entraram em seguida naquela casa; tendo sentido o cheiro
daquela iguaria inominável, ameaçaram matá-la, se ela não lhes mostrasse o
que tinha preparado para comer. Ela respondeu que ainda lhe restava um
pedaço da iguaria e mostrou-lhes restantes do corpo do próprio filho. Ainda que
tivessem um coração de bronze, tal espetáculo causou-lhes tanto horror, que
eles pareciam fora de si. Ela, porém, na exaltação que lhe causava o furor,
disse-lhes, com o rosto con-vulsionado: "Sim, é meu próprio filho que vedes, e
fui eu mesma que o matei. Podeis comê-lo, também, pois eu já comi. Sois talvez
menos corajosos que uma mulher e tendes mais compaixão que uma mãe? Se
vossa piedade não vos permite aceitar essa vítima, que vos ofereço, eu mesma
acabarei de comê-lo". Aqueles homens que até então não haviam sabido o que
era a compaixão, retiraram-se trêmulos, e por maior que fosse a sua avidez em
procurar alimento, deixaram o restante daquela detestável iguaria à infeliz mãe.
A notícia de fato tão funesto espalhou-se incontinenti por toda a cidade. O
horror que todos sentiram foi o mesmo, como se cada qual tivesse cometido
aquele horrível crime; os mais torturados pela fome só desejavam morrer,
quanto antes, e julgavam felizes os que já haviam morrido, antes de ter tido
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ciência deste fato ou ouvido narrar coisa tão execrável.
Os romanos também logo souberam de tudo, isto é, da criança sacrificada
por sua própria mãe, para que ela pudesse continuar a viver. Uns não podiam
crer no que se dizia; outros sentiam imensa compaixão, mas a maior parte viu
acender-se ainda mais o ódio que já sentiam contra os judeus. Tito, para se
justificar diante de Deus a esse respeito, protestou em voz alta que ele tinha
oferecido aos judeus uma anistia geral de todo o passado e visto que eles
tinham preferido a revolta à obediência, a guerra à paz, a carestia à abundância
e tinham sido os primeiros a incendiar com suas próprias mãos o Templo, que
ele tinha se esforçado por conservar, mereciam ser obrigados a se alimentar de
tão execrável iguaria. No entanto, ele sepultaria aquele horrível crime sob as
ruínas da sua capital, a fim de que o sol, fazendo a volta ao mundo, não fosse
obrigado a esconder seus raios, pelo horror, de iluminar uma cidade onde as
mães se nutriam de carne dos próprios filhos, onde os pais não eram menos
culpados que elas, pois tão estranhas misérias não os podiam decidir a
abandonar
 as armas.
 Estas as palavras do
 grande
 príncipe,
 porque,
considerando até que excesso ia a raiva daqueles revoltosos, ele não achava,
que depois de ter sofrido tantos males, dos quais apenas o temor deveria trazê-
los ao cumprimento do dever, nada poderia jamais fazê-los mudar.
CAPÍTULO 22
OS ROMANOS, NÃO PODENDO ABRIR UMA BRECHA NO TEMPLO, EMBORA
SEUS ARÍETES O TIVESSEM BATIDO DURANTE SEIS DIAS, ESCALAM-NO E SÃO
REPELIDOS COM PERDAS DE VÁRIOS HOMENS E ALGUMAS BANDEIRAS.
T ITO MANDA INCENDIAR OS PÓRTICOS.
460. Quando as duas legiões terminaram as plataformas, Tito, a oito de
agosto, mandou recolocar os aríetes na direção dos salões do Templo exterior,
que
 estavam
 do
 lado
 do
 ocidente.
 O
 maior
 dos
 aríetes
 bateu
 nele
continuamente, durante seis dias, sem obter nenhum resultado, porque aquele
soberbo edifício estava fora das possibilidades de suas máquinas. Os soldados
procuravam ao mesmo tempo solapar os alicerces do lado do norte e depois de
ter trabalhado com incrível dificuldade e quebrado diversos utensílios e
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ferramentas de que se serviam, conseguiram somente arrancar algumas pedras,
de fora, sem conseguir abalar as de dentro, que sustentavam as portas. Assim,
tendo perdido a esperança de algum bom resultado nessa empresa, resolveram
recorrer à escalada. Os judeus, que não a tinham previsto, não puderam
impedir que eles encontrassem escadas; jamais resistência foi maior que a que
eles ofereceram; derrubavam os que já estavam no alto dos degraus, antes que
se pudessem cobrir com seus escudos e afastavam mesmo as escadas, cheias
de soldados; isso veio a custar a vida a vários romanos. O ataque foi obstinado,
de parte a parte, mas a luta maior, foi pelas bandeiras, porque os romanos
consideravam-lhes a perda, como uma vergonha insuportável e nada havia que
os judeus não fizessem para conservá-las, depois de as terem conquistado. Por
fim, conseguiram apoderar-se de várias, mataram os que as levavam e
obrigaram os outros a se retirarem. Por mais infeliz que tivesse sido esse
resultado para os romanos, não poderíamos jamais privá-los da glória de que
nenhum deles morreu sem ter dado provas de um valor digno do nome romano.
Mém daqueles judeus, que ainda se distinguiram nessa ocasião, como já o
haviam feito nas precedentes, Eleazar, filho do irmão de Simão, um dos tiranos,
conquistou grandes honras; Tito, vendo que o seu desejo de conservar um
Templo para estrangeiros custava a vida a um número tão grande dos seus,
mandou incendiar-lhe os pórticos.
CAPÍTULO 23
DOIS GUARDAS DE SIMÃO ENTREGAM-SE A TITO. OS ROMANOS PÕEM FOGO NAS PORTAS
DO
 TEMPLO E AS CHAMAS CHEGAM ATÉ ÀS GALERIAS.
461.
 Anano, nativo de Emaús, um dos mais cruéis dos guardas de
Simão, e Arquelau, filho de Magadate, vieram entregar-se a Tito, com a
esperança de que depois desta primeira vantagem obtida pelos judeus, ele lhes
poderia perdoar. O príncipe, tão inimigo dos malvados, sabia dos crimes que
eles tinham cometido e somente a necessidade é que os obrigava a se entregar,
por isso não achava que homens, que abandonavam sua pátria, depois de lá ter
acendido o fogo da guerra, fossem dignos de perdão, bem quisera condená-los à
morte; mas, por maior que fosse o seu ódio por eles, cedeu à promessa que lhe
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faziam de guardar sempre e religiosamente a sua palavra. Então, deixou-os ir,
sem todavia tratá-los tão favoravelmente como aos outros.
462. Os romanos tinham então incendiado as portas do Templo e aquele
incêndio não somente destruíra a madeira e fundira as lâminas de prata, de
que estavam recobertas, mas tinha ido além e chegara até às galerias. Os
judeus ficaram tão atônitos por se verem no meio das chamas, que perderam a
coragem e o ânimo. Nem um só deles avançou para repelir os romanos ou para
apagar o fogo, como se o Templo já tivesse sido reduzido a cinzas; sua estupidez
era tal, que em vez de se entristecer e de procurar impedir que o fogo devorasse
todo o restante, contentaram-se em amaldiçoar os romanos. O incêndio
continuou violentamente durante o restante do dia e a noite seguinte; por maior
que fosse, porém, só pouco a pouco podia destruir as galerias.
CAPÍTULO 24
TITO REÚNE UM CONSELHO PARA TRATAR DA DESTRUIÇÃO OU DA
CONSERVAÇÃO DO
 TEMPLO E VÁRIOS FORAM DE OPINIÃO QUE ELE FOSSE
INCENDIADO;
 TITO, PORÉM, SE OPÕE.
463. No dia seguinte, Tito ordenou que se apagasse o fogo e se aplainasse
um caminho ao longo dos pórticos a fim de que o exército pudesse avançar
mais facilmente. Reuniu em seguida os principais chefes, isto é, Tibério
Alexandre, seu lugar-tenente geral, Sexto Cerealis, que comandava a quinta
legião, Largio Lépido, que comandava a décima, Tito Frígio, que comandava a
décima quinta, Eternio Fronto que comandava as duas legiões vindas de
Alexandria e Marco Antônio Júlio, governador da judéia, além de alguns outros,
para deliberarem sobre a resolução que deviam tomar com relação ao Templo.
Uns, foram de opinião de se usar do poder que lhes dava o direito da guerra,
porque enquanto ele subsistisse, os judeus que ali se reuniram de todas as
partes da terra, sempre se haveriam de revoltar. Outros disseram, que se os
judeus o abandonassem, sem querer mais defendê-lo, julgavam que então
poderia ser conservado. No entanto, se continuassem a fazer guerra, seria
preciso incendiá-lo, porque não deveria mais ser considerado como um Templo,
mas como uma fortaleza e seria aos judeus somente que se deveria atribuir a
ruína do mesmo, porque lhe tinham sido a causa. Depois de terem assim
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opinado, Tito disse que ainda que os judeus se servissem do Templo como de
uma praça de guerra, para continuar na sua revolta, não era justo vingar-se em
coisas inanimadas, pelas faltas cometidas pelos homens, reduzindo a cinzas
uma obra cuja conservação seria tão grande ornamento para o império.
Ninguém mais então pôde duvidar de seus sentimentos; Alexandre, Cerealis e
Fronto foram da mesma opinião; dissolveu-se o conselho e o príncipe ordenou
que se desse descanso às tropas, para pô-las em condições de dar um assalto
mais forte ainda, quando fosse necessário. Ordenou em seguida a algumas
coortes que apagassem o fogo e fizessem uma estrada, pelo meio das ruínas. Os
judeus, cansados e esgotados por tantas fadigas, nada mais empreenderam
naquele dia.
CAPÍTULO 25
OS JUDEUS DÃO UM ATAQUE TÃO VIOLENTO SOBRE UM CORPO DE GUARDA
DOS ROMANOS, QUE ESTES NÃO TERIAM PODIDO SUSTENTAR-LHES O ÍMPETO,
SEM O AUXÍLIO QUE RECEBERAM DE
 TITO.
464. No dia seguinte, os judeus retomaram coragem e novas forças, pelo
descanso. À segunda hora do dia, organizaram um ataque, saindo pela porta do
Templo, do lado oriente, para atacar o corpo de guarda dos inimigos, que esta-
vam mais avançados. Os romanos receberam-nos com energia e opuseram-lhes
como um muro, aquela forma de tartaruga, que faziam com seus escudos, uni-
dos uns aos outros, quando se cobriam com eles. Não teriam podido,
entretanto, resistir por muito tempo àquele grande número de inimigos,
animados por tanta violência, se Tito, que assistia a esse combate da torre
Antônia, não tivesse vindo em seu auxílio com um corpo de sua melhor
cavalaria. Ele atacou os judeus tão repentinamente que matou os primeiros e
quase todos os outros fugiram. Voltaram, porém, logo em seguida ao combate e
fizeram os romanos recuar, por sua vez, mas estes novamente os repeliram e de
novo foram ainda rechaçados. Isso continuou, desse modo, por um certo tempo,
nesse vai-e-vem, com vantagens e desvantagens de ambos os lados, até que
pelas cinco horas do dia, os judeus foram por fim obrigados a se encerrar no
Templo.
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CAPÍTULO 26
OS REVOLTOSOS DÃO UM OUTRO ATAQUE. OS ROMANOS REPELEM-NOS ATÉ O
TEMPLO, AO QUAL UM SOLDADO PÕE FOGO. TITO FAZ TODO O POSSÍVEL PARA
EXTINGUI-LO, MAS INUTILMENTE.
 HORRÍVEL CARNIFICINA. TITO ENTRA NO
SANTUÁRIO E ADMIRA-LHE A MAGNIFICÊNCIA.
465. Quando Tito se retirou para a torre Antônia, resolveu atacar no dia
seguinte pela manhã, dez de agosto, o Templo, com todo seu exército; e assim
estava-se na véspera desse dia fatal, em que Deus tinha, há tanto tempo,
condenado aquele lugar santo a ser incendiado e destruído depois de uma longa
série de anos, como ele tinha outrora, no mesmo dia, sido destruído por
Nabucodonosor, rei de Babilônia. Mas não foram estrangeiros, foram os
mesmos judeus a causa única de tão funesto incêndio.
Entretanto, os revoltosos não descansaram; deram outro ataque contra os
romanos e travaram uma luta com os que apagavam o fogo por ordem de Tito.
Os romanos puseram-nos em fuga e os perseguiram até o Templo.
466. Um soldado, então, sem para isso ter recebido ordem alguma, e sem
temer cometer um horrível sacrilégio, mas, como levado por inspiração divina,
fez-se levantar por um companheiro e atirou pela janela de ouro um pedaço de
madeira aceso no lugar pelo qual se ia aos edifícios, ao redor do Templo do lado
do norte. O fogo ateou-se imediatamente; em tão grande desgraça, os judeus
lançavam gritos espantosos. Corriam procurando apagá-lo e nada mais os obri-
gava a poupar suas vidas, quando viam desaparecer diante de seus olhos
aquele Templo que os levava a poupá-las pelo desejo de conservá-lo.
467. Imediatamente avisaram a Tito, que à volta do combate, descansava
um pouco em sua tenda. Ele partiu no mesmo instante, para mandar apagar o
fogo. Todos os chefes seguiram-no e as legiões depois dele, com grande
confusão e tumulto, clamores tais, que se pode imaginar, quando em tal
contingência um grande exército marcha, sem ordem e sem disciplina. Tito
gritava com todas as forças, fazia sinais com a mão para obrigar os seus a
apagar o fogo, mas tão grande barulho impedia que ele fosse ouvido; o ardor e a
cólera de que os soldados estavam cheios, naquela guerra, não lhes permitia
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notar os sinais que lhe fazia. Assim, aquelas legiões que entravam em massa,
não podiam em sua impetuosidade ser contidas nem por suas ordens, nem por
suas ameaças; o furor as conduzia; elas apertavam-se de tal modo que muitos
caíam e eram pisados, outros, caindo sobre as ruínas do pórtico e das galerias,
ainda acesas e fumegantes, não eram, embora vencedores, menos infelizes que
os vencidos. Quando todos aqueles soldados chegaram ao Templo fingiram não
entender as ordens que o imperador lhes dava. Os que estavam atrás
exortavam os mais adiantados a pôr fogo e não restava então aos revoltosos
nem uma esperança de poderem impedi-lo.
468.
 De qualquer lado que se lançassem os olhos, só se viam fuga e
mortandade. Matou-se um grande número de pessoas do baixo povo, gente
desarmada e incapaz de se defender. Em volta do altar havia montes de
cadáveres, que eram atirados, depois de assassinados, àquele lugar santo, o
qual não era destinado a sacrificar tais vítimas; rios de sangue corriam por
todos os degraus.
469. Tito, vendo que lhe era impossível deter o furor dos soldados e o fogo
começava a incendiar tudo em toda parte, entrou com os seus principais chefes
no Santuário e achou, depois de tê-lo observado, que sua magnificência e rique-
za sobrepujavam ainda de muito o que a fama havia espalhado entre as nações
estrangeiras e que tudo o que os judeus diziam a esse respeito, ainda que pare-
cesse incrível, nada acrescentava à verdade.
Quando viu que o fogo não tinha ainda chegado ali, mas consumia então
somente o que estava nas vizinhanças do Templo, julgou, como era verdade,
que ainda poderia ser conservado; rogou, ele mesmo, aos soldados que
apagassem o fogo e mandou um oficial de nome Liberal, um de seus guardas,
que desse mesmo pauladas, nos que se recusassem a obedecer. Mas nem o
temor do castigo nem o respeito pelo general puderam impedir-lhes o efeito do
furor, da cólera e do ódio pelos judeus; alguns mesmos eram impelidos pela
esperança de encontrar aqueles lugares santos cheios de riquezas, porque viam
que as portas estavam recobertas de lâminas de ouro e quando Tito avançava
para impedir o incêndio, um dos soldados que havia entrado, já tinha posto
fogo na porta. Dentro acendeu-se então uma grande labareda que obrigou Tito e
os que o acompanhavam a se retirar sem que nenhum dos que estavam fora
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procurasse apagá-la. Assim, esse santo e soberbo Templo foi incendiado, não
obstante todos os esforços de Tito para impedi-lo.
CAPÍTULO 27
O TEMPLO FOI INCENDIADO NO MESMO MÊS E NO MESMO DIA EM QUE NABUCODONOSOR,
REI DA
 B ABILÔNIA , O TINHA OUTRORA FEITO INCENDIAR.
470. Embora não se possa saber, sem pesar, da destruição do edifício
mais esplêndido que jamais existiu em todo o mundo, quer pela sua estrutura,
sua magnificência e suas riquezas, quer pela sua santidade, que era como o
cúmulo de sua glória, há, entretanto, motivo de nos consolarmos, se
considerarmos a necessidade inevitável do fim, que depois de um certo número
de anos sobre-vém à vida de todos os animais; assim, não há nada sob o sol
cuja duração seja perpétua.* Não poderíamos, porém, não nos admirarmos
bastante, de que a destruição desse incomparavel Templo, tenha acontecido no
mesmo mês e no mesmo dia em que os babilônios outrora o haviam também
incendiado. Esse segundo incêndio aconteceu no segundo ano do reinado de
Vespasiano, mil cento e trinta anos, sete meses e quinze dias depois que o rei
Salomão o havia construído pela primeira vez; seiscentos e trinta e nove anos,
quarenta e cinco dias depois que Ageu o tinha feito restaurar, no segundo ano
do reinado de Ciro.
____________________________
* Foi Zorobabel quem o mandou reconstruir, no tempo do profeta Ageu.
Veja em Antigüidades Judaicas, Parte I, no 442.
CAPÍTULO 28
CONTINUA A HORRÍVEL MATANÇA NO TEMPLO. T UMULTO ESPANTOSO.
DESCRIÇÃO DE UM HORRÍVEL ESPETÁCULO. OS REVOLTOSOS FAZEM TAL ESFORÇO
NUM ATAQUE, QUE REPELEM OS ROMANOS E RETIRAM-SE PARA A CIDADE.
471. Quando o fogo devorava o Templo, os soldados furiosos saqueavam e
matavam todos os que encontravam. Não perdoavam nem à idade, nem à
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condição. Os velhos e as crianças, os sacerdotes e os leigos, eram todos passa-
dos a fio de espada; todos eram envolvidos nessa matança geral e os que recor-
riam aos rogos não eram tratados com mais clemência do que os que tinham a
coragem de se defender até o fim; o gemido dos moribundos misturava-se com o
barulho do crepitar das chamas, que avançavam sempre e o incêndio de tão
grande edifício, situado num lugar elevado, fazia, aos que o contemplavam de
longe, pensar que toda a cidade estava sendo devorada pelas chamas.
Nada se poderia ouvir de mais horrível, do que o ruído que ecoava pelo ar,
em todas as direções. Não se pode imaginar o que faziam as legiões romanas,
tomadas de furor; os gritos dos revoltosos, que se viam envolvidos de todos os
lados pelas armas e pelo fogo misturavam-se com as queixas e lamentações do
pobre povo, que estava no Templo e que levado pelo desespero, ao fugir, atirava-
se nos braços dos inimigos; vozes confusas elevava até o céu a multidão que
estava no alto do monte fronteiro ao Templo, contemplando o horrível
espetáculo. Aqueles mesmos que a fome tinha reduzido aos extremos, aos quais
a morte estava prestes a fechar os olhos para sempre, percebendo o incêndio do
Templo, reuniam todas as suas forças para deplorar tão grave desgraça; os ecos
dos montes vizinhos e da região que está além do Jordão multiplicavam ainda
esse barulho horrível. Por mais espantoso que fosse, porém, os males que
causava eram-no ainda mais. O fogo, que devorava o Templo, era tão grande e
violento que parecia que o mesmo monte sobre o qual estava situado ardia todo
inteiro. O sangue corria em tal quantidade que parecia querer competir com o
fogo, quem se estenderia mais. O número dos mortos era muito maior que o
daqueles que os sacrificavam à sua cólera e vingança; toda a terra estava
coberta de cadáveres; os soldados pisavam-nos, para poder continuar a
perseguir os que ainda tentavam fugir. Por fim os revoltosos organizaram tão
violento ataque que repeliram os romanos, chegaram ao Templo exterior e de lá
retiraram-se para a cidade.
CAPÍTULO 29
ALGUNS SACERDOTES RETIRAM-SE PARA O ALTO DO MURO DO TEMPLO.
OS ROMANOS INCENDEIAM OS EDIFÍCIOS DOS ARREDORES E A TESOURARIA
QUE CONTINHA UMA QUANTIDADE ENORME DE RIQUEZAS.
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472. Alguns dos sacerdotes serviram-se contra os romanos, em vez de
dardos, dos ganchos que estavam no Templo, e em vez de pedras, do chumbo
que eles arrancavam de seus móveis; mas vendo que aquilo de nada lhes servia
e que o fogo progredia sempre, retiraram-se para cima do muro, cuja espessura
era de oito côvados e lá ficaram por algum tempo. Meiro, filho de Belga e José,
filho de Daleus, dois dos principais dentre eles, em vez de se contentarem em
correr o mesmo risco que os outros, lançaram-se ao fogo para morrer com a
destruição do Templo.
473. Os romanos, julgando que uma vez queimado, seria inútil poupar o
restante, incendiaram, também todos os edifícios dos arredores; e assim eles
foram destruídos com tudo o que restava dos pórticos e das portas, exceto as
duas que estavam do lado do oriente e do sul, que eles destruíram depois, até
os alicerces. Incendiaram também a tesouraria que estava cheia de uma
quantidade enorme de riquezas, quer em dinheiro quer em soberbas peças de
vestuário e outras coisas preciosas, porque os mais ricos dos judeus para lá
haviam levado o que tinham de melhor.
474. Fora do Templo só restava uma galeria, onde seis mil pessoas do
povo, homens, mulheres e crianças se tinham reunido para se salvar; mas os
soldados, levados pela cólera, incendiaram-na também, sem esperar a ordem de
Tito, uns morreram queimados, outros atirando-se para baixo, para não sofrer
morte semelhante, se suicidaram, de sorte que nem um só se salvou.
CAPÍTULO 30
UM IMPOSTOR, FAZENDO-SE DE PROFETA, É CAUSA DA MORTE DESSAS SEIS MIL
PESSOAS DO POVO, QUE PERECERAM NO
 TEMPLO.
475.
 Um falso profeta foi a causa da morte desses miseráveis, que
haviam vindo da cidade para o Templo, porque havia dito que eles teriam
naquele dia um sinal manifesto do auxílio de Deus. Os revoltosos serviam-se
dessa espécie de pessoas para enganar o povo, a fim de conter com
semelhantes promessas os que queriam fugir para junto dos romanos, não
obstante as dificuldades e o perigo que corriam, tentando passar pelos guardas.
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Não devemos nos admirar da credulidade do povo, pois não há impressão que a
esperança de ser livrar de um grande mal bastante premente não seja capaz de
exercer sobre o espírito dos que o sofrem. Mas aquele povo infeliz é tanto mais
digno de lástima, quanto prestando fé facilmente aos impostores que abusavam
do nome de Deus para enganá-lo, fechava os olhos e tapava os ouvidos para
não ver, nem ouvir os sinais certos e os verdadeiros avisos pelos quais Deus lhe
tinha predito a própria ruína.
CAPÍTULO 31
SINAIS E PREDIÇÕES DA DESGRAÇA QUE SOBREVEIO AOS JUDEUS, AOS QUAIS ELES NÃO
DERAM CRÉDITO.
476. Relatarei aqui alguns desses sinais e dessas predições.
Um cometa, que tinha a forma de uma espada, apareceu sobre Jerusalém,
durante um ano inteiro.
Antes de começar a guerra, o povo reunira-se, a oito de abril, para a festa
da Páscoa, e pelas nove horas da noite viu-se durante uma hora e meia em
redor do altar e do Templo, uma luz tão forte que se teria pensado que era dia.
Os ignorantes tiveram-na como um bom augúrio, mas os instruídos e sensatos,
conhecedores das coisas santas, consideraram-na como um presságio do que
depois sucedeu.
Durante essa mesma festa uma vaca que era levada para ser sacrificada
deu à luz um cordeiro no meio do Templo.
Pelas seis horas da tarde a porta do Templo que está do lado do oriente,
que é de bronze e tão pesada que vinte homens mal a podem empurrar, abriu-
se sozinha, embora estivesse fechada com enormes fechaduras, barras de ferro
e ferrolhos, que penetravam bem fundo no chão, feito de uma só pedra. Os
guardas do Templo avisaram imediatamente o magistrado do que acontecera e
lhe foi bem difícil tornar a fechá-la. Os ignorantes interpretaram-no ainda como
um bom sinal, dizendo que Deus abria em seu favor suas mãos liberais, para
cobri-los de toda sorte de bens. Porém, os mais sensatos julgaram o contrário,
isto é, que o Templo destruir-se-ia por si mesmo e que a abertura de sua porta
era presságio, o mais favorável, que os romanos pudessem desejar.
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Um pouco depois da festa, a vinte e sete de maio aconteceu uma coisa que
eu temeria relatar, de medo que a tomassem por uma fábula, se pessoas que
também a viram, ainda não estivessem vivas e se as desgraças que se lhe
seguiram não tivessem confirmado a sua veracidade. Antes do nascer do sol
viram-sé no ar, em toda aquela região, carros cheios de homens armados,
atravessar as nuvens e espalharem-se pelas cidades, como para cercá-las.
No dia da festa de Pentecostes, os sacerdotes estando à noite, no Templo
interior, para o divino serviço, ouviram um ruído e logo em seguida uma voz
que repetiu várias vezes: Saiamos daqui!
Quatro anos antes do começo da guerra, quando Jerusalém gozava ainda
de profunda paz e de fartura, Jesus, filho de Anano, que era então um simples
camponês, tendo vindo à festa dos Tabemáculos, que se celebra todos os anos
no Templo, em honra de Deus, exclamou: "Voz do lado do oriente, voz do lado
do ocidente, voz do lado dos quatro ventos, voz contra Jerusalém e contra o
Templo, voz contra os recém-casados e as recém-casadas, voz contra todo o
povo". Dia e noite ele corria por toda a cidade, repetindo a mesma coisa.
Algumas pessoas de condição, não podendo compreender essas palavras de tão
mau pressá-gio, mandaram prendê-lo e vergastá-lo; mas ele não disse uma só
palavra para se defender, nem para se queixar de tão severo castigo e repetia
sempre as mesmas coisas. Os magistrados, então, pensando, como era verdade,
que naquilo havia algo de divino, levaram-no a Albino, governador da Judéia.
Ele mandou açoitá-lo até verter sangue e nem assim conseguiram arrancar-lhe
um único rogo, nem uma só lágrima, mas a cada golpe que se lhe dava, ele
repetia com voz queixosa e dolorida: "desgraça sobre Jerusalém". Quando
Albino lhe perguntou quem ele era, de onde era, o que o fazia falar daquela
maneira, ele nada respondeu. Assim despediu-o como um louco e não o viram
falar com ninguém, até que a guerra começou. Ele repetia somente e sem
cessar, as mesmas palavras: "Desgraça, desgraça sobre Jerusalém", sem
injuriar nem ofender aos que o maltratavam, nem agradecer aos que lhe davam
de comer. Todas as suas palavras reduziam-se a tão triste presságio e as
proferia com uma voz mais forte nos dias de festa. Dessa forma continuou
durante sete anos e cinco meses, sem interrupção alguma, sem que sua voz se
enfraquecesse ou se tornasse rouca. Quando Jerusalém foi cercada viu-se o
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efeito de suas predições. Fazendo então a volta às muralhas da cidade, ele se
pôs ainda a clamar: "Desgraça, desgraça sobre a cidade, desgraça sobre o povo,
desgraça sobre o Templo". Tendo acrescentado "desgraça sobre mim", uma
pedra atirada por uma máquina, derrubou-o por terra e ele expirou proferindo
ainda as mesmas palavras.
Se quisermos considerar tudo o que acabo de dizer, veremos que os
homens perecem somente por própria culpa, pois não há meios de que Deus
não se sirva para procurar-lhes a salvação e manifestar-lhes por diversos sinais
o que eles devem fazer. Assim, os judeus, depois da tomada da fortaleza
Antônia, reduziram o Templo a um quadrado embora não pudessem ignorar o
que está escrito nos livros sagrados, que a cidade e o Templo seriam destruídos
quando aquilo viesse a acontecer. Mas o que os levou principalmente a encetar
aquela infeliz guerra, foi a ambigüidade de outra passagem da mesma
Escritura, que dizia que se veria naquele tempo, um homem de seu país,
governar toda a terra. Eles o interpretavam em seu favor e vários até mesmo
dos mais hábeis enganaram-se. Pois aquele oráculo dizia que Vespasiano,
então, fora criado imperador, quando estava na Judéia. Mas eles explicavam
todas essas predições, segundo sua fantasia e só conheceram seus erros,
quando ficaram completamente convencidos da sua inteira ruína e destruição.
CAPÍTULO 32
O EXÉRCITO DE TITO DECLARA-O IMPERADOR. *
___________________________
* Imperador era então um título de honra que se dava aos generais de
exército, que haviam obtido alguma grande vitória sobre os inimigos.
477.
 Depois que os revoltosos se retiraram para a cidade, os romanos
colocaram suas bandeiras em frente à porta do Templo, do lado do oriente,
quando ainda aquele lugar sagrado e todos os edifícios dos arredores ardiam e
depois de terem oferecido sacrifícios a Deus, declararam Tito imperador, com
grandes aclamações de alegria. Os despojos que conquistaram foram tão fartos
que o ouro se vendia então na Síria, pela metade do seu valor.
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CAPÍTULO 33
OS SACERDOTES QUE SE HAVIAM RETIRADO PARA CIMA DO MURO DO
TEMPLO SÃO OBRIGADOS, PELA FOME, A SE ENTREGAR DEPOIS DE CINCO
DIAS;
 TITO MANDA-OS AO SUPLÍCIO.
478. Um menino, que estava sobre o muro do Templo, com os sacerdotes,
que lá se haviam refugiado, atormentado por uma grande sede, rogou aos
guardas romanos que lhe dessem de beber. Por compaixão, fizeram o que ele
pedia, em vista da sua idade e de seu sofrimento. Ele desceu e depois de ter
bebido quanto quis, encheu sua garrafa de água e fugiu tão depressa para
voltar para junto dos seus, que nenhum soldado daquele corpo de guarda pôde
alcançá-lo. Assim, eles contentaram-se em reprovar sua perfídia; mas o menino
respondeu que eles o acusavam injustamente, pois não lhes havia prometido
ficar com eles, mas fora procurá-los apenas para ter um pouco de água, o que
havia feito e não tinha, por conseguinte, faltado à palavra. Aquela resposta,
superior à sua idade, fez admirarem-lhe a inteligência, aqueles mesmos, aos
quais havia enganado.
479. Os sacerdotes ficaram cinco dias sobre o muro; a fome obrigou-os a
descer. Levaram-nos a Tito, pedindo-lhe que os perdoasse, mas ele respondeu
que o tempo de sua clemência havia passado, pois o que o levaria a conceder-
lhes aquela graça já não existia e que era justo que os sacerdotes perecessem
com o Templo. Assim mandou que fossem todos executados.
CAPÍTULO 34
SIMÃO E JOÃO, REDUZIDOS AOS EXTREMOS, PEDEM PARA FALAR COM TITO. COMO ESSE
PRÍNCIPE LHES FALA .
480. Simão e João, os dois chefes dos revoltosos, que tinham exercido
sobre os de sua própria nação, tão horrível tirania, vendo-se sem esperanças de
poder fugir, porque estavam rodeados de todos os lados pelas tropas romanas,
pediram para falar com Tito e ele concedeu-lhes o que pediam, quer porque
sendo naturalmente afável, queria impedir a destruição da cidade, quer porque
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seus amigos o haviam aconselhado, na esperança de que aqueles malvados
seriam mais sensatos para o futuro. Tito ficou de pé, fora do Templo, do lado do
ocidente, no lugar onde estavam as portas para a galeria e uma ponte que unia
a cidade alta com o Templo. A ponte estava entre Tito e os revoltosos, e havia de
um lado e de outro um grande número de soldados. Via-se no rosto dos judeus,
que estavam perto de Simão e de João, a agitação de espírito em que os punha
a dúvida de obter o perdão que pediam; os romanos tinham os olhos abertos
para ver de que modo Tito os receberia. O príncipe ordenou aos seus que
deixassem a cólera, proibiu-lhes atirar e, como sinal de sua vitória, começou a
falar aos sediciosos, por meio de um intérprete. "Não estais cansados", disse-
lhes, "de tantos males suportados por vossa pátria, vós, que sem considerar
nossas forças e vossa fraqueza, causais, por um furor cego e uma loucura sem
igual, a ruína de vosso povo, de vossa cidade, de vosso Templo, e que estais
prestes a perecer com eles? Depois que Pompeu tomou Jerusalém, não
deixastes de vos revoltar e chegastes por fim a declarar guerra aos mesmos
romanos. Em que vos fundastes para conceber tão ousado empreendimento?
Em vosso número? Mas uma pequena parte das tropas romanas seria capaz de
vos vencer. Num auxílio estrangeiro? Que nação não nos está sujeita e ousaria
tomar o vosso partido contra nós? Por que sois tão robustos? Os alemães nos
obedecem. Nas vossas muralhas? Os ingleses, embora cercados pelo oceano,
que é a mais poderosa de todas as defesas, puderam talvez conter o ímpeto de
nossas armas? Na vossa coragem, no procedimento e na perícia de vossos
chefes? Ignorais que nós vencemos dos cartagineses? Como não pode ter sido
nenhuma destas razões, que vos serviu de base, para vos empenhardes numa
empresa tão temerária; só se poderia atribuir vossa ousadia à enorme bondade
dos romanos. Nós vos demos terras para as cultivardes e nelas habitardes,
demo-vos reis de vossa mesma nação, não vos pusemos empecilhos na prática
de vossas leis, vos permitimos viver com toda liberdade não somente entre vós
mesmos, mas também com os outros povos; e o que é ainda muito mais
importante, não vos proibimos de recolher contribuições, para empregá-las no
serviço de Deus e de lhe oferecer sacrifícios em vosso Templo. Embora
cumulados de tantos benefícios vos insurgis contra nós, como se nós vos
tivéssemos deixado enriquecer, para vos darmos os meios de nos fazer guerra; e
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mais malvados que as mais peçonhentas de todas as serpentes, espalhais vosso
veneno sobre aqueles, aos quais deveis tantos e tantos favores. Vosso desprezo
pela moleza de Nero vos fez esquecer a tranqüilidade de que gozáveis, para
conceberdes esperanças criminosas e formar desígnios extravagantes. No
entanto, quando meu pai veio à Judéia, ele não queria castigar-vos por vossa
revolta contra Céstio, mas somente trazer-vos ao arrependimento, pelas boas
maneiras. Se sua intenção tivesse sido destruir vossa nação, ele teria começado
por tomar e destruir esta cidade, ao passo que ele se contentou em fazer sentir
o poder de suas armas à Galiléia e às províncias vizinhas, a fim de vos dar a
oportunidade de vos arrependerdes. Mas sua bondade passou por fraqueza, em
vossa imaginação e só fez aumentar vossa ousadia. Depois da morte de Nero
vos tomastes ainda mais insolentes e atrevidos, na esperança do vos
aproveitardes das perturbações que avassalavam o império. Apenas havíamos
partido, eu e meu pai, para irmos ao Egito, tomastes a ocasião de nossa
ausência para vos preparardes para a guerra; e, por mais provas que vos
tivéssemos dado de nossa benevolência e de nossa humanidade, no governo
dessas províncias, não tivestes vergonha de nos querer desobedecer, quando
meu pai foi declarado imperador, e eu, César. Fostes ainda mais além: após um
consentimento geral, nós ficamos pacificamente de posse do império e nessa
calma feliz, todos os outros povos nos mandaram embaixadores para
demonstrar a sua alegria. Vós persististes em vos declarardes nossos inimigos,
mandastes, até o Eufrates, emissários para pedir auxílio à vossa revolta,
construístes novas fortificações e formastes novos partidos; vossos tiranos
chegaram mesmo a uma guerra civil, para ver quem ficaria chefe, e por fim,
nada esquecestes, do que os mais celerados de todos os homens poderiam
empreender e executar. Quando para abafar uma revolta unida a tanta
ingratidão e a tantos crimes, meu pai mandou-me sitiar esta cidade, com
ordens, que ele não podia, sem pesar, ver-se obrigado a me dar, eu vi, com
alegria, que o povo desejava a paz; e antes de iniciar a guerra vos exortei a
deixar as armas. Não podendo conseguir que o fizésseis, por muito tempo vos
poupei. Prometi segurança a todos os que viessem ter comigo e guardei-lhes
inviolavelmente minha palavra; perdoei a vários prisioneiros e castiguei
somente os que os incitavam à guerra; só em último caso me servi de minhas
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máquinas. Moderei o ardor de meus soldados, para salvar a vida a muitos dos
vossos; em todas as minhas vitórias logo, em seguida, sempre vos exortei à paz,
agindo assim, embora vencedor, como se fosse eu o vencido. Quando me
aproximei do Templo, em vez de me servir do meu poder para destruí-lo,
segundo o direito da guerra, vos exortei a conservá-lo e o permiti que saíssem
com todas as garantias, para combatermos em outro lugar, se tínheis tanto
amor à guerra. Desprezastes todas estas graças, que vos fiz; vós mesmos
incendiastes o Templo e quereis agora parlamentar comigo, como se ainda
estivesse em vosso poder conservar o que vossa impiedade não teve receio de
destruir, e como se a ruína desse Templo não vos tornasse indignos de todo
perdão. Ousais mesmo em tal extremo e fingindo vir como suplicantes, vos
apresentardes diante de mim, com vossas armas. Em que, então, miseráveis
que sois, vos baseais para serdes tão ousados? A guerra, a fome e vossas
horríveis crueldades fizeram perecer todo vosso povo. O Templo não existe
mais, a cidade está em meu poder, vossa vida, nas minhas mãos, e imaginareis
depois de tudo isso, que depende de vós terminá-la com uma morte honrosa?
Não me demoro mais em confundir a vossa loucura. Deixai as armas, entregai-
vos à minha discrição; eu vos concedo a vida e reservo-me o restante, para fazer
como eu quiser, agindo como um bom senhor, que castiga com pesar e por
dever os crimes mais irremissíveis".
CAPÍTULO 35
TITO, IRRITADO COM A RESPOSTA DOS REBELDES, ENTREGA A CIDADE AO SAQUE, E
PERMITE AOS SOLDADOS INCENDIÁ-LA .
 ELES O FAZEM.
481.
 Os revoltosos responderam que não se podiam entregar a Tito,
embora ele lhes desse sua palavra, porque eles haviam jurado jamais fazê-lo.
Mas pediam-lhe a permissão para regressar com suas mulheres e filhos, para
irem ao deserto e abandonar-lhe a cidade. Tito não pôde ouvir sem cólera,
homens, que já se podiam considerar prisioneiros, terem a desfaçatez de falar,
propondo-lhe condições como se fossem os vencedores. Mandou dizer-lhes por
um arauto, que, quando mesmo se quisessem entregar ao seu arbítrio, não os
receberia mais, que não perdoaria a um só e que tinham de se defender quando
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quisessem se salvar, se possível, pois os trataria com todo o rigor.
482. Abandonou em seguida a cidade ao saque; os soldados invadiram-
na e ele lhes permitiu que a incendiassem. Usaram daquela liberdade somente
naquele dia; no dia seguinte incendiaram o edifício da prisão, o palácio de Acra,
o prédio onde se administrava a justiça, o lugar chamado Ofla. O incêndio
chegou até o palácio da rainha Helena, construído no meio do monte Acra e
consumia com as casas os corpos dos mortos de que as ruas da cidade estavam
cheias.
CAPÍTULO 36
OS FILHOS E OS IRMÃOS DO REI IZATE, E COM ELES VÁRIAS PESSOAS DE CONDIÇÃO,
ENTREGAM-SE A
 TITO.
483. Naquele mesmo dia os filhos e os irmãos do rei Izate, e com eles
várias pessoas de condição, pediram a Tito permitir que eles se rendessem; sua
bondade, opondo-se à cólera, fez que ele não recusasse. Mandou colocá-los em
segurança e levou em seguida os filhos e os parentes desse príncipe prisioneiros
a Roma, para conservá-los como reféns.
CAPÍTULO 37
OS REVOLTOSOS RETIRAM-SE PARA O PALÁCIO, EXPULSANDO DE LÁ OS
ROMANOS, SAQUEIAM-NO E MATAM OITO MIL E QUATROCENTOS HOMENS
DO POVO QUE SE HAVIAM REFUGIADO NO MESMO.
484. Os revoltosos retiraram-se para o palácio, para onde muitos haviam
levado seus bens, porque era um lugar seguro. Expulsaram dali os romanos,
mataram a oito mil e quatrocentos homens do baixo povo que lá se haviam
escondido, levaram tudo o que lá havia, aprisionaram dois soldados romanos,
um da cavalaria e outro da infantaria. Mataram a este último, arrastaram seu
corpo por toda a cidade, como se, com esse ato, estivessem se vingando de
todos os romanos. Quanto ao outro, como ele dissera que tinha um aviso
importante a lhes dar, levaram-no a Simão. O tirano, vendo que ele nada tinha
a lhe comunicar, entregou-o a um de seus oficiais de nome Ardelo, para que o
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castigasse. Este, mandou amarrar-lhe as mãos às costas, vedou-lhe os olhos,
levou-o à vista dos romanos, para que lhe cortassem a cabeça; quando já se
havia puxado da espada para fazê-lo, ele escapou e conseguiu salvar-se. Tito
não quis mandar matá-lo, mas, como ele, por ter se deixado apanhar vivo, tinha
feito uma ação indigna de um romano, mandou desarmá-lo e expulsá-lo, o que
é para um homem de brio um castigo pior que a própria morte.
CAPÍTULO 38
OS ROMANOS EXPULSAM OS REVOLTOSOS DA CIDADE BAIXA E A INCENDEIAM.
JOSEFOFAZ AINDA TUDO O QUE PODE PARA TRAZÊ-LOS AO DEVER, MAS
INUTILMENTE; ELES CONTINUAM COM ATOS DE HORRÍVEL CRUELDADE.
485. No dia seguinte, os romanos expulsaram os revoltosos da cidade
baixa e a incendiaram toda até a fonte de Siloé. Sentiam prazer em ver aquele
fogo, mas nada tinham para saquear, porque os revoltosos haviam levado tudo
e transportado para a cidade alta. Estavam tão longe de se arrepender de tantos
males que haviam causado, que não eram menos insolentes, na situação
extrema a que se encontravam reduzidos. Olhavam para a morte com alegria,
porque todo o povo já havia morrido, o Templo estava reduzido a cinzas e a
cidade destruída pelo fogo; nada restava de que seus inimigos pudessem
desfrutar, depois da vitória.
486. Estavam as coisas neste pé; entretanto, Josefo fez tudo para que os
revoltosos se arrependessem e pudessem salvar as tristes relíquias daquela
infeliz cidade. Esforçou-se ainda para despertar horror nos sediciosos, pela sua
impiedade e por seus crimes; exortou-os a pensar em sua salvação, mas eles
zombavam de tudo o que ele lhes dizia. Não queriam ouvir falar de se entregar
aos romanos, porque se haviam empenhado com juramento a jamais fazê-lo, e
não estavam mais em condições de combater contra eles, porque estavam
cercados por suas tropas e estavam tão acostumados aos assassínios, que só
pensavam em crimes. Espalharam-se por toda a cidade, esconderam-se nas
ruínas, para ali esperar os que queriam fugir. Assim mataram a muitos, que
não lhes foi difícil deter, porque eles estavam tão fracos que quase já não mais
se podiam manter de pé. Não havia gênero de morte que não parecesse mais
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doce a essa pobre gente do que o que a fome os fazia sofrer. Assim, embora eles
não esperassem misericórdia dos romanos, não deixavam de tentar fugir para
eles e não temiam expor-se ao furor daqueles tigres, tão sedentos de seu
sangue. Não havia um único lugar em toda a cidade que não estivesse cheio de
cadáveres e não mostrasse até que extremo a fome e a raiva daqueles revoltosos
tinham levado à miséria incrível aquele pobre povo.
CAPÍTULO 39
ESPERANÇA QUE RESTAVA AOS REVOLTOSOS E CRUELDADE QUE ELES CONTINUAM A
PRATICAR.
487.
 A única esperança que restava àqueles malvados que tinham
exercido tão cruel tirania, era esconder-se nos esgotos, até que os romanos se
tivessem retirado, depois da destruição completa da cidade, e saírem então sem
nada mais temer. Com essa deliberação, que era um mero sonho, pois eles não
se poderiam furtar à justiça de Deus e à vigilância dos romanos, eles punham
fogo de todos os lados, ainda com muito mais ardor que os próprios romanos, e
massacravam e despojavam a todos os que, para evitar morrer queimados,
fugiam para aqueles lugares subterrâneos. A fome, entretanto, era tão grande
que eles devoravam tudo o que podia servir de alimento, embora manchado de
sangue e eu não duvido de que se o cerco tivesse durado mais, sua
desumanidade os teria levado a comer mesmo a carne daqueles que eles
massacravam, pois que já se matavam uns aos outros, por questões na partilha
dos furtos e rapinas.
CAPÍTULO 40
TITO ORDENA CONSTRUÍREM-SE CAVALETES PARA ATACAR A CIDADE ALTA. OS IDUMEUS
MANDAM EMISSÁRIOS A ELE.
 SIMÃO OS DESCOBRE E MANDA
MATAR UMA PARTE DELES E O RESTANTE ESCAPA.
 OS ROMANOS VENDEM
UM GRANDE NÚMERO DE PESSOAS .
 TITO PERMITE A QUARENTA MIL QUE SE
RETIREM PARA ONDE QUISEREM.
488. Tito, vendo que não se podia tomar a cidade alta sem o auxílio de
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cavaletes, por causa de sua posição, que a tornava inacessível de todos os
lados, dividiu o trabalho entre seus solados, a vinte de agosto. Não era uma
empresa fácil porque, como dissemos, esgotara-se nos trabalhos precedentes,
toda a madeira que havia, a cem estádios da cidade. As quatro legiões foram
empregadas do lado da cidade que está voltada para o ocidente, em frente do
palácio real, e as tropas auxiliares, na galeria que estava perto da ponte e do
forte que Simão tinha mandado construir, quando fazia a guerra a João.
489.
 No entanto, os chefes dos idumeus reuniram-se secretamente e
depois de terem deliberado, decidiram entregar-se. Mandaram em seguida cinco
dos seus a Tito, para pedir-lhe que os recebesse. Embora esse príncipe achasse
que eles recorriam muito tarde à sua clemência, entretanto, persuadindo-se de
que Simão e João não resistiriam mais quando se vissem abandonados pelos
mesmos que faziam o mais forte de suas tropas, despediu esses emissários com
promessa de perdoá-los. Com essa garantia eles se prepararam para sair. Mas
Simão veio a saber do seu intento e mandou matar naquele mesmo instante os
cinco emissários, pôs na prisão os outros, dos quais Jacó, filho de Sosa, era o
principal. Embora ele julgasse que o restante, não tendo mais quem os
comandasse, seria incapaz de empreender algo, ele não deixou de fazê-los vigiar
cuidadosamente. Não pôde todavia impedir que fugissem; e embora mandasse
matar a vários, muitos outros conseguiram salvar-se. Os romanos receberam-
nos humanamente, porque a extrema bondade de Tito não lhe permitia fazer
executar rigorosamente as ordens que tinha dado, e os soldados, cansados de
matar, só pensavam em se enriquecer. Vendiam gente do baixo povo, que
sobrevivia ainda, depois de tantos males, mas obtinham pouco lucro, porque,
ainda que eles fossem em grande número, tantos homens e mulheres como
crianças eram vendidos por muito pouco e encontravam poucos compradores.
Tito tinha mandado publicar que todos viessem com suas famílias, mas ele não
deixava de recebê-los, mesmo quando vinham sozinhos e ordenou que
pusessem de lado os que eram julgados dignos de morte. Assim uma grande
multidão foi vendida e ele permitiu a mais de quarenta mil que se retirassem
para onde quisessem.
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CAPÍTULO 41
UM SACERDOTE E O GUARDA DO TESOURO DÃO A TITO VÁRIAS COISAS DE GRANDE VALOR
QUE ESTAVAM NO
 TEMPLO.
490. Um sacerdote de nome Jesus, filho de Tebute, a quem Tito tinha
prometido salvar a vida, com a condição que lhe entregasse uma parte dos
tesouros do Templo, saiu e deu, do alto do muro do Templo, dois candelabros,
mesas, taças e alguns vasos de ouro maciço, muito pesados, como também
véus, vestes sa-cerdotais, pedras preciosas e vários vasos próprios para os
sacrifícios.
491. Prenderam também, por esse tempo, Finéias, guarda do tesouro, e
ele mostrou um lugar onde havia, em grande quantidade, vestes e cintos dos
sacerdotes, púrpura e escarlate destinados aos véus do Templo, canela e cássia
e outras matérias odoríferas, com que se faziam os perfumes que eram
queimados nos turíbulos. Ele deu também várias outras coisas de grande valor,
quer presentes oferecidos a Deus, como ornamentos do Templo. Seu proceder
fez que ainda que ele tivesse sido aprisionado, fosse depois tratado como se
tivesse entregado voluntariamente.
CAPÍTULO 42
DEPOIS QUE OS ROMANOS ERGUERAM AQUELES CAVALETES, DERRUBARAM COM OS
ARÍETES UM PEDAÇO DO MURO E FIZERAM BRECHA EM ALGUMAS
TORRES;
 SIMÃO EJOÃO E OS OUTROS REVOLTOSOS SÃO TOMADOS DE TAL
TERROR QUE ABANDONAM, PARA FUGIR, AS TORRES DE
 HÍPICOS, DE FAZAEL
E DE
 MARIANA, QUE SÓ SERIAM TOMADAS PELA FOME, E ENTÃO OS
ROMANOS, TORNANDO-SE SENHORES DE TUDO, FAZEM UMA HORRÍVEL
MATANÇA E INCENDEIAM A CIDADE.
492.
 Dez dias depois que os cavaletes haviam sido iniciados, foram
acabados, a sete de setembro e os romanos colocaram suas máquinas sobre
eles.
Então, os revoltosos perderam toda esperança de poder por mais tempo
defender a cidade. Vários abandonaram os muros para se refugiar no monte
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Acra ou nos esgotos, porém os mais corajosos atacaram os que faziam os
aríetes avançar. Os romanos não somente lhes eram superiores em número e
em força, mas sua prosperidade animava-lhes a coragem, ao passo que os
judeus estavam abatidos, sob o peso de tantos males. Os aríetes derribaram um
bom pedaço de muro e fizeram brecha em algumas torres; os que as defendiam,
fugiram; Simão e Judas foram tomados de tal horror, que imaginando o mal
muito maior que na verdade era, só pensaram em fugir, antes mesmo que os
romanos tivessem chegado até aquele muro. O horrível orgulho daqueles ímpios
converteu-se de repente em tal espanto que por mais malvados que eles fossem,
não se poderia deixar de sentir compaixão de tão estranha mudança. Queriam,
para se salvar, atacar os que defendiam o muro feito pelos romanos em redor
da cidade, mas vendo-se abandonados por aqueles mesmos que antes lhes
eram os mais fiéis, cada qual fugiu, como pôde; e como o medo perturba o juízo
e faz que se vejam coisas que não existem, uns vinham dizer-lhes que todo o
muro do lado do ocidente tinha sido derribado, outros, que os romanos já
haviam entrado, outros, que eles se tinham apoderado das torres. Tantos
boatos falsos aumentaram de tal modo o seu terror, que, atirando-se de rosto
por terra, eles recriminavam sua loucura e, como se tivessem sido feridos por
um raio, ficavam imóveis, sem saber que deliberação tomar.
493. Viu-se então claramente um efeito do poder de Deus e a boa sorte
dos romanos; pois a perturbação em que se encontravam aqueles tiranos, fez
que se privassem por si mesmos da maior vantagem que lhes restava,
abandonando as torres, onde nada tinham a temer, senão a fome. Assim, os
romanos que tanto tinham se esforçado para derribar os muros mais fracos
foram tão felizes, que se tornaram senhores, sem dificuldade, das três
admiráveis torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana, de que falamos há pouco
e cuja resistência era tão extraordinária, que teriam atacado inutilmente, com
todas as suas máquinas. Depois que Simão e João as abandonaram, ou melhor,
que Deus os expulsou de lá, eles fugiram para o vale de Siloé, onde depois de
ter retomado ânimo e se terem recuperado um tanto de seu terror, atacaram o
novo muro, não, porém, com tanta força para dele se apoderar, porque o
cansaço, o medo e tantos males que suportaram, tinham diminuído muito suas
energias. Assim foram rechaçados e retiraram-se uns para um lado, uns para
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outro.
Os romanos vendo-se então senhores dessas torres, hastearam suas
bandeiras, bem no alto delas, com grandes gritos de alegria, porque os últimos
esforços que haviam feito naquela guerra, os faziam desfrutar com mais prazer
a felicidade de a ter gloriosamente terminado. Mas tendo assim conquistado
sem resistência este último muro, eles não podiam imaginar que não restasse
ainda outro para vencer, e custavam crer no que viam com seus próprios olhos.
494. Os soldados, espalhados por toda a cidade, matavam sem distinção
os que encontravam e incendiavam todas as casas com as pessoas que lá
estavam escondidas. Os que nelas entravam, para saqueá-las, encontravam-
nas cheias de cadáveres de toda a família, que a fome havia feito perecer; o
horror de tal espetáculo os fazia sair de mãos vazias. Mas embora sentissem
alguma compaixão pelos mortos, não eram mais humanos com os vivos, pois
matavam a todos os que encontravam; o número dos corpos amontoados uns
sobre os outros era tão grande que entupia as ruas e o sangue em que nadavam
apagava o fogo em vários lugares. A matança terminava à noite, o incêndio,
porém, aumentava.
495. Foi a oito de setembro que Jerusalém, depois de ter sofrido tantos
males, por fim, desapareceu sob o violento incêndio. Durante o assédio, mil
sofrimentos a atormentaram, fazendo que sua felicidade e seu esplendor, que
desde a fundação haviam sido enormes, se eclipsassem, depois de a terem
tornado digna de inveja. Mas em tal conjuntura, depois de tantos males, essa
infeliz cidade não é digna de lástima, a não ser por ter agasalhado em seu seio
aquela multidão de víboras, que a devoraram e foram a causa de sua ruína.
CAPÍTULO 43
TITO ENTRA EM JERUSALÉM E ADMIRA, ENTRE OUTRAS COISAS, AS
FORTIFICAÇÕES, MAS PARTICULARMENTE AS TORRES DE
 HÍPICOS, DE FAZAEL E
DE
 MARIANA , QUE ELE CONSERVA, MANDANDO DESTRUIR TUDO O MAIS.
496. Tito entrou na cidade e admirou, entre outras coisas, as fortificações,
contemplando com assombro a potência e a força das torres, bem como sua
beleza. Os tiranos, por fim, foram bastante imprudentes em abandoná-las.
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Depois de ter observado atentamente sua altura, largura, a grandeza
extraordinária das pedras e a arte com que tinham sido unidas, umas às
outras, exclamou: "Bem parecia que Deus combatia por nós; ele expulsou os
judeus destas torres, pois não há forças humanas, nem máquinas capazes de
expugná-las". Disse várias coisas aos amigos a esse respeito e pôs em liberdade
todos os que os tiranos lá tinham deixado presos. Mandou depois destruir tudo
o mais e conservou somente essas soberbas torres, para servirem de
monumento à posteridade, recordando a felicidade, sem a qual, ter-lhe-ia sido
impossível apoderarem-se das mesmas.
CAPÍTULO 44
O QUE OS ROMANOS FIZERAM DOS PRISIONEIROS.
497. Como os romanos estavam cansados de matar e havia ainda uma
grande multidão de gente, Tito ordenou que os poupassem e não os passassem
a fio de espada a não ser os que ameaçassem defender-se. Mas os soldados não
deixaram de matar, contra sua ordem, os velhos e os mais fracos. Conservaram
somente os que eram fortes e vigorosos, capazes de servir e os encerraram no
Templo destinado às mulheres. Tito confiou-os a um de seus libertos de nome
Fronto, no qual ele depositava grande confiança, com o poder de agir conforme
melhor lhe parecesse. Fronto mandou matar os ladrões e os revoltosos que se
acusavam mutuamente e reservou para o triunfo os mais jovens e os mais
formosos. Mandou com cadeias para o Egito os que tinham mais de dezessete
anos, para trabalhar nas obras públicas e Tito distribuiu um grande número
deles pelas províncias para servirem de espetáculo de gladiadores e combater
contra as feras. Os que tinham menos de dezessete anos foram vendidos.
Dessa forma, enquanto estes míseros eram encaminhados como escravos,
onze mil outros morreram, uns, porque seus guardas que os odiavam não lhes
deram de comer, outros, porque não o queriam fazer, desgostosos como esta-
vam da vida, preferiam mesmo morrer e também porque dificilmente se encon-
trava trigo para alimentar tanta gente.
CAPÍTULO 45
NÚMERO DE JUDEUS PRISIONEIROS DURANTE ESSA GUERRA E DOS QUE MORRERAM
DURANTE O CERCO DE
 JERUSALÉM.
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498. Foram feitos prisioneiros durante esta guerra noventa e sete mil
homens e o assédio de Jerusalém custou a vida a um milhão e cem mil
homens, dos quais a maior parte, embora judeus de nascimento, não eram
nascidos na judéia, mas lá se encontravam de todas as províncias para festejar
a Páscoa e haviam ficado presos na cidade por causa da guerra. Como não
havia lugar para acomodá-los a todos, sobreveio a peste e logo em seguida a
carestia. Pode-se julgar que era difícil que aquela cidade, sendo tão grande,
estivesse de tal modo povoada, que não havia lugar para tanta gente,
principalmente esses judeus vindos de fora, mas não há melhor prova para
isso, do que o recenseamento feito no tempo de Céstio. Pois esse governador,
querendo dar a conhecer a Nero, que tinha tanto desprezo pelos judeus, a força
de Jerusalém, rogou aos sacerdotes que contassem o povo. Eles escolheram
para isso o tempo da festa da Páscoa no qual desde as nove horas até às onze,
sem cessar, imolaram-se vítimas, cuja carne era consumida pelas famílias, que
não tinham menos de dez pessoas, algumas até vinte. Concluiu-se que haviam
sido imolados duzentos e cinqüenta e cinco mil e seiscentos animais, de onde,
contando-se apenas dez pessoas para cada animal, teríamos dois milhões,
quinhentos e cinqüenta e seis mil pessoas, purificadas e santificadas. Não eram
admitidos a oferecer sacrifícios nem os leprosos, nem os que sofriam de
gonorréia, nem as mulheres que estavam no tempo do incômodo que lhes é
ordinário, nem os estrangeiros que, não sendo judeus de raça, não deixavam de
sê-lo, por devoção a essa solenidade. Assim, aquela grande multidão que se
tinha dirigido a Jerusalém, de tantos e tão diversos lugares, antes do cerco, lá
se encontrou encerrada como numa prisão, quando a guerra começou.
CAPÍTULO 46
O QUE ACONTECEU COM SIMÃO E J OÃO, OS DOIS CHEFES DOS REVOLTOSOS.
499. Parece, pelo que acabo de dizer, que nenhum acidente humano, nem
flagelo algum mandado por Deus, jamais causaram a ruína de um tão grande
número de pessoas, como o dos que pereceram pela peste, pela fome, pelas
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armas e pelo fogo, durante esse cerco, ou que foram levados como escravos
pelos romanos. Os soldados rebuscaram até nos esgotos e nos sepulcros, onde
mataram a todos os que ainda estavam vivos e desses encontraram mais de
dois mil que se haviam matado uns aos outros ou a si mesmos, ou que tinham
sido mortos pela fome. O mau cheiro que saía desses lugares infectados era tão
grande, que vários, não podendo suportá-lo, abandonavam-no. Mas outros
sabendo que lá estavam escondidas muitas riquezas, não tiveram receio de
pisar aqueles cadáveres para procurá-las, e satisfazer assim à sua insaciável
ambição. De lá retiraram-se várias pessoas que João e Simão tinham feito
prender acorrentadas; a crueldade desses tiranos era maior do que mesmo no
extremo a que se encontravam reduzidos. Mas Deus os castigou como eles
mereciam. João, que se havia escondido num esgoto, com seus irmãos, foi
atormentado de tal fome que, não podendo suportá-la, implorou a misericórdia
dos romanos, que ele tinha tantas vezes insolentemente desprezado. Simão,
depois de ter combatido contra a má sorte, entregou-se a eles como diremos em
seguida. Foi reservado para o triunfo e João condenado à prisão perpétua. Os
romanos queimaram o que restava da cidade e derribaram-lhe as muralhas.
CAPÍTULO 47
QUANTAS VEZES E EM QUE TEMPO A CIDADE DE JERUSALÉM FOI TOMADA.
500. Assim terminou Jerusalém, no dia oito de setembro, no segundo ano
do reinado de Vespasiano. Ela tinha sido antes tomada cinco vezes, por
Azoqueu, rei do Egito, Antioco Epifânio, rei da Síria, Pompeu, Herodes, com
Sósio, e Nabucodonosor, que a destruiu, mil quatrocentos e sessenta e oito
anos e seis meses depois da sua fundação. Os outros a haviam conservado,
depois de tomada; mas os romanos destruíram-na, então, pela segunda vez.
Seu fundador foi um príncipe* dos cananeus, cognominado o Justo, pela
sua piedade. Por primeiro consagrou a cidade a Deus, construindo-lhe um
Templo e mudou-lhe o nome de Solima para o de Jerusalém.
______________________________
* O príncipe chamava-se Melquisedeque.
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Depois que Davi, rei dos judeus, expulsou os cananeus, lá instalou os da
sua nação e quatrocentos e setenta e sete anos e seis meses depois, ela foi
destruída pelos babilônios.
Mil cento e setenta e nove anos passaram-se, desde o tempo em que Davi
reinou até quando Tito a tomou e destruiu, dois mil cento e setenta e sete anos
depois da sua fundação.
Assim vemos que nem a sua antigüidade, nem as suas riquezas, nem a
fama difundida por todas as partes da terra, nem a glória que a santidade da
religião lhe havia conquistado puderam impedir-lhe a ruína e a destruição.
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Livro Sétimo
CAPÍTULO 1
TITO MANDA DESTRUIR JERUSALÉM ATÉ OS ALICERCES, COM EXCEÇÃO DE
UM TRECHO DO MURO NO LUGAR ONDE ELE QUERIA CONSTRUIR UMA
FORTALEZA, E AS TORRES DE
 HÍPICOS, DE FAZAEL E DE MARIANA.
501. Depois que o exército romano, que jamais se cansaria de matar e de
saquear, nada mais achou em que saciar o seu furor, Tito ordenou que a
destruíssem, até os alicerces, com exceção de um pedaço do muro, que está do
lado do ocidente, onde ele tinha determinado construir uma fortaleza e as torres
de Hípicos, de Fazael e de Mariana, porque, sobrepujando a todas as outras em
altura e em magnificência, ele as queria conservar para mostrar à posteridade,
quão grandes foram o valor e a ciência dos romanos na guerra, para se
apoderarem daquela poderosa cidade, que se tinha elevado a tal nível de glória.
Essa ordem foi tão exatamente cumprida que não ficou sinal algum, que
mostrasse haver ali existido um centro tão populoso. Tal o fim de Jerusalém,
cuja triste sorte só se pode atribuir à raiva daqueles revoltosos que atearam o
fogo na guerra.
CAPITULO 2
T ITO MANIFESTA AO SEU EXÉRCITO SUA SATISFAÇÃO PELA MANEIRA COMO HAVIA
SERVIDO NAQUELA GUERRA.
502. Depois que Tito resolveu deixar como guarnição na cidade destruída
a décima legião, com um corpo de cavalaria e quatro de infantaria e
providenciou todas as coisas, quis fazer ao exército o elogio que merecia por se
ter portado com tanta generosidade naquela guerra e recompensar os que se
haviam distinguido. Mandou para esse fim erguer no meio do acampamento
uma grande tribuna, sobre a qual subiu, com seus principais chefes e de onde
todo o exército podia ouvi-lo. Disse que não podia manifestar suficientemente
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toda a sua satisfação pelo afeto, pela obediência e pelo valor que eles haviam
demonstrado em tantos perigos, naquela guerra, para levar os limites do
império ainda mais além e mostrar a toda a terra que nem a multidão dos
inimigos, nem as vantagens com que a natureza fortifica certas províncias, nem
a grandeza das cidades, nem a coragem dos que as defendem, embora
favorecidos em alguns embates pela fortuna, não poderiam jamais resistir à
força e ao valor do exército romano. Que nada se poderia acrescentar à glória
que eles haviam conquistado por terem terminado uma guerra, começada há
tanto tempo, bem como a honra que lhe era devida, pois todos aprovaram não
somente, mas também manifestaram a sua satisfação pela escolha que haviam
feito de seu pai e dele para elevá-los ao império, e que ainda que ele tivesse
tantos motivos de se vangloriar de todos eles, queria recompensar com honras e
favores particulares os que se haviam distinguido, para mostrar que tanto ele
sentia ter de castigar as faltas, quanto tinha prazer em reconhecer o mérito dos
que haviam sido seus companheiros naquela memorável empresa.
CAPÍTULO 3
TITO LOUVA PUBLICAMENTE OS QUE MAIS SE HAVIAM DISTINGUIDO,
DÁ-LHES COM SUAS PRÓPRIAS MÃOS A RECOMPENSA,
OFERECE SACRIFÍCIOS E DÁ BANQUETES AO EXÉRCITO.
503. Assim falou o grande general e depois ordenou aos oficiais que decla-
rassem os nomes dos que se haviam distinguido por feitos ilustres e que se
haviam sobressaído aos demais. Chamou-os em seguida pelo nome, elogiou-os,
de tal modo, que demonstrava estar ele não menos comovido pela glória deles
do que pela sua própria; colocou-lhes coroas de ouro sobre a cabeça, deu-lhes
cadeias de ouro, dardos, cujas pontas eram de ouro, medalhas de prata,
distribuiu-lhes também ouro e moedas, ricas vestes e outras coisas preciosas,
que faziam parte dos despojos, de modo que nem um só deixou de sentir os
efeitos da sua liberalidade e da sua magnificência. Depois que todos foram
assim recompensados segundo o próprio mérito, ele desceu da tribuna. Todo o
exército fazia votos pela sua prosperidade; ele foi depois oferecer sacrifícios em
ação de graças pela vitória. Mandou imolar um grande número de bois, cuja
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carne foi distribuída aos soldados; deu banquetes, que duraram três dias, aos
principais oficiais e mandou em seguida as tropas aos lugares que lhes eram
destinados.
CAPITULO 4
TITO AO PARTIR DE JERUSALÉM VAI A CESARÉIA, QUE ESTÁ À BEIRA-MAR, ALI DEIXA OS
PRISIONEIROS E SEUS DESPOJOS.
504. Vimos como Tito deixou a décima legião como guarnição em
Jerusalém, em vez de mandá-la para o Eufrates, onde estava antes. Quanto à
décima segunda, que antes estava em Rafana, lembrando-se de que tinha sido
derrotada pelos judeus no tempo de Céstio, fê-la sair da Síria, para mandá-la a
Melita, que está ao longo do Eufrates, nos limites da Armênia e da Capadócia, e
conservou somente a quinta e a décima quinta, que julgou suficientes, até que
ele tivesse chegado ao Egito. Depois de ter dado estas ordens partiu com o
exército e dirigiu-se a Cesaréia, que está à beira-mar, porque o inverno não lhe
permitia embarcar para ir à Itália; ali deixou os prisioneiros e todos os seus
despojos, em quantidade bastante grande.
CAPÍTULO 5
C OMO O IMPERADOR V ESPASIANO SEGUIU DE ALEXANDRIA PARA A ITÁLIA DURANTE O
CERCO DE
 JERUSALÉM.
505.
 Durante o cerco de Jerusalém, Vespasiano embarcou num navio
mercante e foi de Alexandria a Rodes, onde se transferiu a uma galera, sendo
recebido com aclamações de alegria e votos pela sua prosperidade em todas as
cidades por onde passou, durante a viagem; da Jônia foi à Grécia, da Grécia à
ilha de Corfu, de lá à Eslavônia, de onde continuou o caminho por terra.
CAPÍTULO 6
TITO VAI DE CESARÉIA QUE ESTÁ À BEIRA-MAR À CESARÉIA DE FILIPE E ALI DÁ AO POVO
ESPETÁCULOS QUE CUSTAM A VIDA A VÁRIOS DOS JUDEUS ESCRAVIZADOS.
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506. Tito partiu de Cesaréia que está à beira-mar para Cesaréia de Filipe
e lá ficou muito tempo. Deu durante sua permanência muita alegria ao povo,
com vários espetáculos de todas as espécies, os quais, porém, custaram a vida
a vários dos judeus, que tinham sido capturados, pois fê-los combater, alguns,
contra animais ferozes, outros, entre si mesmos, em grandes grupos, como
numa verdadeira guerra. Foi nesse mesmo tempo que Simão, filho de Gioras,
um dos dois principais chefes dos revoltosos e dos mais cruéis tiranos que
jamais existiram, foi preso, do modo como passo a descrever.
CAPÍTULO 7
COMO SIMÃO, FILHO DE GIORAS, CHEFE DE UMA DAS DUAS FACÇÕES QUE
ESTAVAM EM
 JERUSALÉM, FOI PRESO E CONSERVADO PARA O
CORTEJO TRIUNFAL.
507. Quando Simão, perseguido na cidade alta de Jerusalém, viu que os
romanos se entregavam ao saque, ele reuniu os mais fiéis dos seus amigos, com
pedreiros munidos de martelos e de outros instrumentos necessários ao que ele
intentava, bem como viveres para vários dias e entrou num esgoto, de que
poucas pessoas tinham conhecimento. Enquanto não acharam obstáculo,
caminharam. Quando encontravam alguma coisa que os detinha serviam-se
dos instrumentos que possuíam para abrir caminho, e Simão esperava assim
encontrar uma abertura pela qual se pudesse salvar. Mas foi iludido nas suas
esperanças. Pouco haviam feito nessa empresa quando os viveres lhes vieram a
faltar, embora eles os poupassem bastante, e assim foram obrigados a voltar
atrás. Simão, para enganar os romanos e evitar ser reconhecido por eles,
vestiu-se de branco, colocou por cima um manto de púrpura, preso com um
broche, e foi ao lugar onde estava o Templo. A princípio os romanos ficaram
admirados; depois perguntaram quem ele era, mas, em vez de dizê-lo, pediu
que o levassem ao comandante. Terêncio Rufo veio no mesmo instante e tendo
sabido de sua mesma boca, quem ele era, fez prendê-lo com correntes, vigiá-lo
com cuidado e mandou avisar Tito.
Foi assim que Deus permitiu que esse tirano, que tinha praticado tantos
atos de crueldade inaudita, tão horríveis, e feito morrer tanta gente, acusando-
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os falsamente de se terem querido entregar aos romanos, caísse nas mãos dos
inimigos, sem que nenhum outro, que ele mesmo, contribuísse para sua ruína.
Os maus não se podem furtar à vingança daquele Juiz, ao qual nada está
oculto e quando se julgam em segurança, porque Ele não os castiga logo, então
é que a justiça exerce sobre eles castigos mais terríveis, como é uma prova o
exemplo desse grande criminoso. Ele foi causa de que se procurassem e se
encontrassem nos esgotos vários dos revoltosos que lá se haviam escondido
com ele. Levaram-no acorrentado a Tito, que então estava em Cesaréia, perto do
mar e ele o conservou para a entrada triunfal.
CAPÍTULO 8
TITO FESTEJA EM CESARÉIA E EM BERITA O DIA DO NASCIMENTO DE SEU
IRMÃO E DO IMPERADOR SEU PAI.
 OS DIVERSOS ESPETÁCULOS QUE ELE DÁ
AO POVO FAZEM MORRER UM GRANDE NÚMERO DE JUDEUS, QUE ELE
TINHA COMO ESCRAVOS.
508. O grande príncipe comemorou nesse mesmo lugar, em Cesaréia, o
dia natalício de Domiciano, seu irmão, com grandes demonstrações de regozijo
e à custa da vida de mais de dois mil e quinhentos judeus, que tinham sido
julgados dignos de morte. Uma parte foi queimada, o restante, obrigado a
combater ou contra animais ferozes, ou uns contra os outros, como
gladiadores. Por mais que parecesse desumano fazer esse povo perecer, dessas
diversas maneiras, os romanos estavam persuadidos de que seus crimes
mereciam um castigo ainda muito maior.
509. Tito foi de Cesaréia a Berita, cidade da Fenícia e colônia dos
romanos. Lá ficou muito tempo e quis celebrar com magnificência ainda maior
o dia natalício do imperador, seu pai. Nos tantos divertimentos e espetáculos
que ele deu ao povo, pereceram também judeus da mesma maneira de como
acabo de falar.
CAPÍTULO 9
GRANDE PERSEGUIÇÃO FEITA AOS JUDEUS EM ANTIOQUIA PELA HORRÍVEL MALDADE DE
UM DELES, DE NOME
 ANTÍOCO .
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510. Os judeus que moravam em Antioquia muito tiveram que sofrer, por
esse mesmo tempo. Toda a cidade se sublevou contra eles, quer pelos muitos
crimes de que eram acusados, quer pelos de que o tinham sido pouco tempo
antes. Julgo-me obrigado a relatá-lo em poucas palavras, para melhor fazer
compreender o que a continuação desta história obrigar-me-á a referir.
Como a nação dos judeus, espalhada por toda a terra, está perto da Síria,
nessa província havia um grande número deles, particularmente em Antioquia,
quer pela grandeza da cidade, quer porque os sucessores do rei Antíoco
Epifânio, que saqueou Jerusalém e o Templo, lhes haviam dado inteira
liberdade de lá permanecerem com o mesmo direito de burguesia dos gregos, e
lhes tinham restituído, para enriquecer sua sinagoga, todos os presentes de
vasos de cobre oferecidos a Deus. Eles desfrutaram pacificamente de tais
privilégios sob o reinado desse soberano e de seus sucessores, multiplicaram-se
muito, adornaram esplendidamente o Templo com os ricos presentes que lhes
foram oferecidos, atraíram para sua religião um grande número de idolatras,
que a eles se uniam de algum modo. Quando a guerra começou e Vespasiano
veio por mar à Síria, eles ali eram muito odiados e então um deles de nome
Antíoco, filho do mais ilustre e do mais poderoso dos que residiam em
Antioquia, acusou seu próprio pai e a vários outros, na presença de todo o
povo, reunido no teatro de que eles tinham intenção de incendiar a cidade
durante a noite e nomeado alguns judeus de fora, que ele afirmou serem
cúmplices daquela conspiração. O povo sublevou-se de tal modo, que os matou
queimados ali mesmo no teatro, e queria imediatamente exterminar todos os
outros judeus, na persuasão de que se tratava da salvação de sua cidade e não
podiam perder tempo. Antíoco tudo fez para incitá-los ainda mais e para que
não se pudesse duvidar de que tinha deveras mudado de religião, e tinha horror
pelos costumes judaicos. Não se contentou de sacrificar à maneira dos pagãos e
quis que se obrigassem também os outros a fazer o mesmo, e que se
considerasse como traidores os que se negassem a fazê-lo. O povo aceitou essa
proposta, mas poucos judeus fizeram-no e os que se atreveram a contradizê-lo
foram mortos. Antíoco não se contentou de ter cometido uma tão horrível
impiedade, mas ajudado por alguns soldados que o governador da província dos
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romanos lhe dera, tudo fez para impedir que os de sua nação festejassem o
sábado e os obrigou a trabalharem nesse como nos outros dias; as violências de
que usou foram tais que se viu em pouco tempo não somente em Antioquia,
mas em outras cidades, cessar a observância desse santo dia.
Essa perseguição feita aos judeus em Antioquia foi seguida de uma outra,
de que me acho também obrigado a falar. O Mercado quadrado, o tesouro dos
documentos, o arquivo onde se conservavam os atos públicos e os palácios fo-
ram incendiados; as chamas cresceram tanto que foi quase impossível impedir
que a cidade fosse quase completamente reduzida a cinzas. Antioco acusou os
judeus de terem sido os autores do mal e não lhe foi difícil fazê-lo acreditar,
porque os habitantes, quando mesmo não os odiassem há muito tempo, o que
havia acontecido pouco antes, teria sido suficiente para persuadi-los. Sua
paixão cegava-os, de tal modo que eles quase imaginavam ter visto os judeus
atear o fogo. Correram então furiosamente para massacrá-los, mas Colega, que
na qualidade de lugar-tenente do governador tinha autoridade na ausência de
Cesênio Peto, que Vespasiano havia constituído governador e que ainda não
tinha chegado, teve grande dificuldade em contê-los e em obter deles que
avisassem a Tito do que se havia passado. Mandou depois uma informação
muito exata e constatou-se que os judeus não tinham absolutamente tomado
parte nenhuma no crime, mas que havia ele sido cometido por homens, cheios
de dívidas, a fim de se livrarem da perseguição que se poderia fazer contra eles;
uma vez que todos os papéis tivessem sido queimados, seus credores não
teriam documentos, nem títulos, que lhes dessem direito de persegui-los.
Entretanto, os judeus esperavam com temor os efeitos de tão falsa e importante
acusação.
CAPÍTULO 10
VESPASIANO CHEGA A ROMA. ALEGRIA EXTRAORDINÁRIA DO SENADO, DO POVO E DOS
SOLDADOS.
 COMO ELES A MANIFESTAM.
511. Tito estava muito apreensivo a respeito do resultado da viagem do
imperador, seu pai, quando soube, com enorme satisfação, por cartas dele
mesmo, que todas as cidades da Itália e Roma, particularmente, o haviam rece-
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bido com grandes demonstrações de júbilo e alegria; na verdade, ele não tinha
motivos para se admirar, porque o afeto que lhe dedicavam era tão grande e tão
geral, que todos estavam impacientes por vê-lo. O Senado, que ainda se
lembrava dos males sucedidos na mudança de imperadores, julgava-se bem
feliz de ter por soberano um grande general cujos cabelos brancos e cuja glória,
por tantos triunfos, tornavam venerável a todo o mundo e que possuía tanta
virtude que não se podia duvidar de que haveria de empregar todos os seus
esforços, para a felicidade de seus súditos. O povo considerava-o como um
libertador, que não somente impediria a opressão, mas restituir-lhe-ia sua
antiga tranqüilidade e abundância. Os soldados, mais que todos os outros,
ardiam de desejo de vê-lo sobre o trono, porque, sendo testemunhas das bata-
lhas que ele tinha gloriosamente vencido e da ignorância e covardia dos outros
imperadores, que lhes haviam custado tão caro, julgavam-se felizes, por não
temer mais sob seu governo, a vergonha que eles lhes tinham feito sofrer e
achavam que ele somente seria capaz, ao mesmo tempo, de governá-los e de
fazê-los conquistar muitas honras.
Com esse afeto tão geral, que as admiráveis qualidades do soberano lhe
haviam granjeado, as pessoas mais ilustres, não podendo suportar a demora de
vê-lo, foram, bem longe, ao seu encontro, seguidas por um grande número de
pessoas levadas pelo mesmo desejo, que jamais compareceram à sua presença,
nem mesmo quando ele já vivia em Roma. Quando se soube que ele se aproxi-
mava e com que bondade recebia todos os que haviam ficado, encheram as
ruas, à sua passagem, com suas mulheres e filhos, atraídos pela afabilidade
que lhe transparecia no semblante, no transporte de sua alegria, chamavam-no
de benfeitor, libertador, o único digno do trono do império. Caminhava-se sobre
flores; impregnadas de tantos perfumes, as ruas pareciam um Templo e a
multidão era tão compacta que aquele feliz imperador, que todos consideravam
como o pai da pátria, com dificuldade pôde chegar ao palácio. Ofereceu então
sacrifícios aos deuses domésticos, para lhes dar graças de sua feliz ascensão ao
poder, e em todas as famílias na cidade houve banquetes, em que se
misturavam os amigos, os vizinhos, e geralmente todas as classes de pessoas
que no seu regozijo pediam ardentemente a Deus que conservasse para o
império, por longos anos, um tão excelente príncipe, que fizesse reinar seus
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filhos, depois dele, com a mesma felicidade e conservasse o cetro nas mãos de
toda sua posteridade. Tal a entrada de Vespasiano em Roma, e não se pode
imaginar a prosperidade que se lhe seguiu.
CAPÍTULO 11
UMA PARTE DA ALEMANHA REVOLTA- SE E PETÍLIO CEREALIS E DOMICIANO, FILHO DO
IMPERADOR
 VESPASIANO, OBRIGAM-NA A VOLTAR À SUBMISSÃO.
512. Algum tempo antes, quando este excelente imperador ainda estava
em Alexandria e Tito sitiava Jerusalém, uma parte da Alemanha revoltou-se,
juntamente com aquela parte das Gálias, que lhe está muito perto, na espe-
rança de sacudir o jugo dos romanos. Diversas razões levaram os alemães a
isso: seu natural, que não segue de boa vontade os melhores conselhos, sua
facilidade em enfrentar os perigos, à menor probabilidade de êxito, seu ódio
pelos romanos, que eles consideravam a única nação que os poderia dominar, e
uma conjuntura, tão favorável, como a das guerras civis causadas pelas
freqüentes mudanças de imperador. Clássico e Civil, os dois mais poderosos
dos alemães, e que há muito tempo pensavam em se revoltar, foram os pri-
meiros a fazer a proposta. Acharam os ânimos bem dispostos; uma parte da-
quela nação prometeu tomar as armas e todo o restante, talvez os seguiria. Mas
aconteceu, como por uma providência de Deus, que Petílio Cerealis, antes
governador da Alemanha, soube dessa novidade, quando estava a caminho,
para tomar posse do governo da Inglaterra, que Vespasiano lhe havia confiado e
o tinha declarado cônsul; marchou imediatamente contra os rebeldes, atacou-
os, derrotou-os, matou a muitos e obrigou os demais a voltarem à submissão.
51 3. Todavia, mesmo que ele não os tivesse castigado, não deixariam eles
de sê-lo, pois logo que se soube em Roma dessa sublevação, Domiciano César,
filho de Vespasiano, o qual muito jovem, era todavia profundo conhecedor das
coisas de guerra, embora sua idade não o manifestasse, levado por aquela
coragem que lhe era hereditária, quis tomar o comando do exército para
reprimir a revolta. A notícia de sua marcha espantou tanto àqueles sediciosos
que se submeteram, prontificando-se a cumprir todas as condições que ele
impusesse e se consideraram felizes de continuar sujeitos, como antes, sem
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serem obrigados a isso, pela força. Assim o jovem príncipe, depois de ter posto
em ordem todas as províncias vizinhas das Gálias, de modo que não surgissem
outras revoltas, voltou a Roma, com a glória de se ter mostrado digno filho de
tal pai.
CAPÍTULO 12
REPENTINA INVASÃO DE CITAS NA MÉSIA, IMEDIATAMENTE REPRIMIDA
POR ORDEM DE
 VESPASIANO.
514. Naquele mesmo tempo, quando os alemães se haviam revoltado, os
citas mostraram até que ponto chegava a sua ousadia. Passaram em grande
número o Danúbio, entraram na Mésia e com uma repentina invasão dizi-
maram algumas guarnições romanas, mataram num combate o lugar-te-nente
geral, Fonteio Agripa, homem que gozava de dignidade consular, e que tinha ido
corajosamente contra eles; percorreram e devastaram toda aquela província.
Logo que Vespasiano o soube, para lá mandou Rúbrio Gallo, para castigá-los.
Ele matou a muitos e os derrotou em vários combates. Os que puderam fugir
retiraram-se cheios de temor para seu país, e aquele general, depois de ter tão
depressa posto fim àquela guerra, reforçou de tal modo as guarnições, que não
havia mais motivo de temor de semelhantes incursões para o futuro.
CAPÍTULO 13
SOBRE O RIO CHAMADO SABÁTICO.
515. Tito, ao partir de Berita, onde tinha, como dissemos, permanecido
algum tempo, organizou magníficos espetáculos em todas as cidades da Síria
por onde passou, e os judeus, que ele levava como escravos, eram, como outras
tantas, provas vivas da ruína daquele miserável povo.
Encontrou ele em seu caminho um rio, que bem merece dele dizermos
alguma coisa. Ele passa entre as cidades de Arcé e de Rafanéia, do reino de
Agripa, e tem algo de maravilhoso. Depois de ter deslizado por seis dias com
grande abundância de água e curso rápido, de repente seca e recomeça no dia
seguinte a correr, durante outros seis dias, como antes e a secar no sétimo dia,
sem jamais alterar esta ordem, o que lhe mereceu o nome de Sabático, porque
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pareceu que ele comemorava o sétimo dia, como os judeus o fazem com o
sábado.
CAPÍTULO 14
TITO RECUSA AOS DE ANTIOQUIA EXPULSAR OS JUDEUS DE SUA CIDADE, E DE APAGAR
SEUS PRIVILÉGIOS DAS LÂMINAS DE COBRE, ONDE ESTAVAM GRAVADOS.
516. Os habitantes de Antioquia sentiram tanta alegria por saber que Tito
viria à sua cidade, que quando souberam que ele se aproximava, quase todos se
dirigiram a trinta estádios, ao seu encontro, com suas esposas e filhos.
Colocaram-se em fila, dos dois lados, abrindo alas e assim acompanharam-no
até a cidade; elevando as mãos para o céu faziam ecoar gritos de aclamações,
misturados com incessantes preces e rogos, para que ele expulsasse os judeus
da cidade. Ele, porém, escutava tudo sem responder. Pode-se avaliar o temor
dos infelizes judeus, na incerteza do que ele determinaria, num assunto em que
se tratava da sua completa ruína. Mas ele não se deteve em Antioquia.
Continuou para o Eufrates, até a cidade de Zeugma. Embaixadores de
Vologeso, rei dos partos, vieram encontrá-lo e apresentaram-lhe em seu nome,
uma coroa de ouro, como sinal da sua participação na glória de ter vencido os
judeus. Ele a recebeu e deu um soberano banquete aos embaixadores. Voltando
a Antioquia, o Senado e os magistrados rogaram-lhe insistentemente que se
dirigisse ao teatro onde todo o povo estava reunido. Ele fê-lo, com demons-
trações de bondade, e lá renovaram-lhe o pedido que lhe haviam feito de
expulsar os judeus. O sábio príncipe respondeu de uma maneira muito
espiritual que não sabia para que lugar relegá-los, pois aquele, para onde os
poderia mandar, havia sido destruído e já não podia recebê-los. Ante a recusa,
os habitantes pediram-lhe então que pelo menos apagasse os privilégios
daquela nação das lâminas de cobre onde estavam gravados. Mas não lhes
concedeu ele nem este segundo pedido e partiu para o Egito, deixando as coisas
em Antioquia, com relação aos judeus, no mesmo estado em que antes
estavam.
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CAPÍTULO 15
TITO TORNA A PASSAR POR JERUSALÉM E, UMA VEZ AINDA, DEPLORA-LHE A RUÍNA E A
DESTRUIÇÃO.
517. O grande príncipe, bom e ao mesmo tempo valente, voltou a passar
por Jerusalém, que era então um espantoso deserto e, em vez de se alegrar,
como um outro o teria feito, por tê-la depois de tantos esforços reduzido ao
domínio de suas armas, não pôde, comparando aquelas ruínas com o seu
antigo esplendor e magnificência, não se sentir movido à compaixão, por ver
uma tão grande e soberba cidade, reduzida a estado tão deplorável. Fez
imprecações contra os autores da revolta que o haviam obrigado a chegar
àqueles extremos, contra seu natural, tão contrário de buscar a glória com a
infelicidade dos vencidos, ainda que culpados.
As riquezas daquela cidade eram tantas, que ainda muitas coisas
preciosas havia no meio das ruínas. Muitas delas os romanos descobriram, os
prisioneiros indicavam outras mais, de ouro, de prata, bem como outras coisas
preciosas enterradas pelos seus donos, na incerteza em que viviam dos eventos
da guerra.
Tito continuou seu caminho para o Egito e somente atravessou aquela
deplorável solidão. Quando chegou a Alexandria, para ali embarcar, despediu
as duas legiões que o haviam acompanhado pelas províncias, para o lugar de
onde tinham vindo, isto é, a quinta para a Mésia, a décima para a Hungria, e
ordenou que levassem Simão a Roma, bem como João, os dois chefes dos
revoltosos, com setecentos outros dos maiorais e dos mais vistosos dos
prisioneiros, para servirem no ingresso triunfal.
CAPÍTULO 16
TITO CHEGA A ROMA E É RECEBIDO COM O MESMO JÚBILO QUE O IMPERADOR
VESPASIANO, SEU PAI. JUNTOS FESTEJAM O TRIUNFO. COMEÇO DOS FESTEJOS.
518.
 Com vento favorável Tito chegou a Roma bem depressa e foi
recebido do mesmo modo que Vespasiano, seu pai, mas com um acréscimo de
honra, que aquele admirável pai quis mesmo dar ao filho, indo em pessoa ao
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seu encontro. Sua amizade bem como a de Domiciano causava grande alegria
ao povo, porque parecia, em tudo, haver algo de sobrenatural.
519. Alguns dias depois Vespasiano e Tito determinaram que seria um só
o triunfo para ambos, embora o Senado tivesse determinado um para cada um,
em particular. O dia de pompa tão soberba chegou e não houve uma só pessoa
naquela infinita multidão de povo, que enchia toda Roma, que não quisesse
presenciá-la. A massa popular era tão grande que não havia mais lugar para a
passagem dos imperadores. Todos os soldados, com os comandantes à frente,
marchavam em ordem; dirigiram-se antes do despontar do dia para diante das
portas, não do palácio alto, mas do de ísis, onde os soberanos haviam passado
a noite. O dia apenas começava a despontar, quando eles saíram coroados de
louros, vestidos de púrpura para se dirigir a Roma Otávia, onde o Senado incor-
porado, os maiores senhores do império e os cavaleiros romanos, os esperavam.
Havia perto de um grande pórtico um trono elevado, onde estavam assentos de
marfim; depois que os dois imperadores se sentaram, coroados da maneira
como dissemos, vestidos somente de mantos de seda e sem armas, todos os
soldados os aclamaram pelos seus grandes feitos, como testemunhas que
haviam sido, atribuindo tudo o que fora realizado à sua virtude. Vespasiano,
vendo que eles não cessavam de aclamá-lo, por modéstia, impôs-lhes silêncio.
Levantou-se e cobrindo a cabeça com uma parte do pano de seu manto fez as
orações e os votos de praxe. Tito fez o mesmo depois dele. Vespasiano em
seguida falou a todos em geral, em poucas palavras e mandou os soldados para
os banquetes que lhes estavam preparados segundo o costume. De lá seguiu,
acompanhado por Tito, para a porta triunfal. Assim ela é chamada, porque
somente por ela passa o cortejo dos triunfos. Os triunfadores, depois de ali ter
tomado a refeição, revestem-se dos trajes de triunfo, oferecem sacrifícios aos
deuses, cujas estátuas estão colocadas sobre essa porta e por ali passam, para
os lugares destinados aos espetáculos públicos, a fim de que o povo possa mais
facilmente ver a magnificência dessas pompas soberbas.
CAPÍTULO 17
CONTINUA O SOBERBO ESPETÁCULO TRIUNFAL DE TITO E VESPASIANO.
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520. É impossível descrever a magnificência desse festejo triunfal. Ela
sobrepuja mesmo tudo o que se pode imaginar, quer pela excelência das obras,
quer pela quantidade de riquezas e semelhança das coisas que ali estavam tão
admiravelmen-te representadas. O que todas as nações mais felizes tinham
podido em tantos séculos reunir de mais precioso, de mais maravilhoso e de
mais raro, parecia ter-se juntado naquele dia, para manifestar até que ponto ia
a grandeza do império. O ouro, a prata e o marfim brilhavam em tal
abundância, num número incrível de obras excêntricas e preciosas, que não
pareciam se apresentar por partes, isoladamente, como numa pompa solene,
mas ali estar dispostos em massa. Viam-se todas as espécies de vestuários de
púrpura,
 admiravelmente
 recamados
 à
 maneira
 dos
 babilônios,
 uma
quantidade enorme de pedrarias, umas encastoadas em coroas de ouro, outras,
em objetos preciosos; a beleza era surpreendepte, de tal sorte que jamais se
teria pensado poder ainda contemplar algo de semelhante. Havia estátuas dos
deuses, das diversas nações, de tamanho surpreendente, executadas por
mestres excelentes em que a arte não perdia para a matéria, por mais preciosa
que fosse.
Havia ainda várias espécies de animais raros e estimados, pela sua
qualidade; os que levavam ou traziam essas coisas, que tinham sido destinadas
para servir a pompa festiva, estavam revestidos de mantos recamados de ouro e
de outros hábitos tão ricos que nada poderia ser mais suntuoso. Os próprios
escravos estavam tão bem vestidos e de maneiras tão diferentes, que aquela
variedade impedia que se notasse a tristeza da escravidão esculpida em seus
rostos. Nada, porém, causava tanta admiração aos espectadores do que as
diversas representações, como grandes armações de três ou quatro andares.
Todas elas estavam adornadas com enfeites de ouro e de marfim e a todo
momento se imaginava ver sucumbir sob tal peso o grande número de homens
que as levavam. Eram imagens de cenas de guerra, as mais notáveis
representadas ao natural, que pareciam mesmo reais. Viam-se províncias muito
férteis, devastadas, tropas inteiras feitas em pedaços, outras, postas em fuga,
várias, feitas prisioneiras, muralhas fortíssimas, derrubadas pelas máquinas,
castelos tomados e destruídos, grandes cidades, mui povoadas, tomadas de
assalto, um exército inteiro entrando pela brecha, passando todos a fio de
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espada, sem poupar mesmo os que como única defesa usavam de rogos e
súplicas, queimando Templos, sepultando em suas ruínas todas as casas e
aqueles que antes lhes eram senhores; por fim, a ferro e fogo praticando toda
sorte de crueldades, tão horríveis, que em vez de águas favoráveis, que tornam
a terra fecunda e matam a sede aos homens e aos animais, eram regatos de
sangue que apagavam uma parte do incêndio, tornando desertas as cidades e
fazendo delas um montão de cinzas. Os judeus tinham experimentado todos
esses males que a guerra mais cruel, que se pode imaginar, é capaz de
produzir.
Sobre cada uma dessas cidades estava representado aquele que as havia
defendido e de que maneira havia sido aprisionado. Vinham em seguida vários
navios; entre a grande quantidade de despojos, os mais notáveis eram os que
tinham sido feitos no Templo de Jerusalém; a mesa de ouro, que pesava vários
talentos, o candelabro de ouro, feito com tanta arte, para torná-lo próprio ao
uso, ao qual era destinado. Do seu pé elevava-se uma espécie de coluna, de
onde saía como o tronco de uma árvore, de sete ramos, na ponta de cada um
dos quais, estava um braço em forma de lâmpada; o número sete significava o
sétimo dia, o sábado, tão santificado pelos judeus, que o observam tão
religiosamente. Sua lei, que é a coisa pela qual eles têm a maior veneração,
encerrava essa magnífica exposição de tantos e tão ricos despojos, que os
romanos lhes haviam conquistado. Várias estátuas da vitória, todas de ouro e
de marfim, vinham em seguida. Por fim, vinha Vespasiano, seguido de Tito, e
Domiciano os acompanhava tão soberbamente vestido e montado sobre um
lindo cavalo, que ninguém se cansava de contemplá-lo.
CAPÍTULO 18
SIMÃO, QUE FORA O PRINCIPAL CHEFE DOS SEDICIOSOS EM FERUSALÉM,
DEPOIS DE TER DESFILADO NO CORTEJO TRIUNFAL, ENTRE OS ESCRAVOS, É
EXECUTADO PUBLICAMENTE.
 FIM DA CERIMÔNIA DO CORTEJO TRIUNFAL.
521.
 O espetáculo desse cortejo triunfal, tão magnífico, terminou no
templo de Júpiter Capitolino. Aí ele se deteve segundo o antigo costume, até
que tivesse anunciado a morte do chefe dos inimigos. O chefe era então Simão,
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filho de Gioras, que depois de ter tomado parte no desfile triunfal, entre os
outros escravos, foi arrastado com uma corda ao pescoço, batido com varas e
executado junto do grande mercado, que é o lugar destinado ao suplício dos
criminosos. Depois que anunciaram sua morte e que todos manifestaram sua
alegria aplaudindo, ofereceram-se sacrifícios acompanhados de orações e votos.
Tudo terminado solenemente, os imperadores retiraram-se para o palácio, onde
deram um grande banquete. Outros se deram também ao mesmo tempo em
toda a cidade onde se festejava, aquele dia, para dar graças a Deus pela vitória
obtida sobre os inimigos e também porque se considerava como o fim das
guerras civis e o começo de uma grande ventura para o porvir.
CAPÍTULO 19
VESPASIANO CONSTRÓI O TEMPLO DA PAZ E TUDO FAZ PARA TORNÁ-LO
MUITO SUNTUOSO, COLOCANDO LÁ A MESA, O CANDELABRO DE OURO E
OUTROS RICOS DESPOJOS DO
 TEMPLO DE FERUSALÉM. QUANTO À LEI DOS
JUDEUS E AOS VÉUS DO SANTUÁRIO ELE OS CONSERVOU NO PALÁCIO.
522. Depois deste ingresso triunfal de Vespasiano, vendo ele o estado do
império, bem consolidado, como ele desejava, resolveu construir o templo da
Paz e o fez mais depressa do que se teria pensado, porque, encontrando-se de
posse de grandes riquezas, nada poupou para a sua construção. Terminado o
majestoso edifício, adornou-o com excelentes e numerosas pinturas e outras
obras admiráveis, reunidas de todos os lugares do mundo, de modo que,
aqueles que tinham paixão por coisas semelhantes, não precisavam mais sair
de Roma para satisfazer à curiosidade. Lá colocou também a mesa, o
candelabro de ouro e outros ricos despojos do Templo de Jerusalém, como um
troféu que lhe era tão glorioso. Quanto à lei dos judeus e aos véus do santuário,
que eram de púrpura, guardou-os cuidadosamente no seu palácio.
CAPÍTULO 20
LUCÍLIO BASSO, QUE COMANDAVA AS TROPAS ROMANAS NAJUDÉIA , TOMA, POR ACORDO,
O CASTELO DE
 HERODIOM E RESOLVE ATACAR O DE MACBEROM.
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523.
 Depois que Lucílio Basso, enviado para comandar as tropas
romanas na Judéia, na qualidade de lugar-tenente-geral as recebeu de Cerealis
Vetiliano, tomou, por meio de um acordo, o castelo de Herodiom e estando
ainda bem escudado pela décima legião, resolveu atacar o de Macherom, pois
julgava necessário destruí-lo, porque era muito forte e tinha uma posição muito
vantajosa, o que poderia dar motivo aos judeus de se revoltarem, na esperança
de achar sua segurança na dificuldade que ele teria de atacá-los.
CAPÍTULO 21
POSIÇÃO DO CASTELO DE MACBEROM E COMO A NATUREZA E A ARTE TINHAM
TRABALHADO, SEM DESCANSO, PARA TORNÁ-LO FORTE .
524. O castelo de Macherom estava construído sobre um alto monte,
cheio de rochas que o tornavam quase inexpugnável; a natureza, para
aumentar-lhe ainda a força, rodeara-o de todos os lados por vales de
profundidade incrível e mui difíceis de se passar. O que está do lado do
ocidente, tem sessenta estádios de comprimento e termina no lago Asfaltite, e a
altura do castelo parece enorme, daquele lado. Os vales que o rodeiam, do lado
do norte e do sul não são menores que os outros nem mais fáceis de se
vencerem; o que está do lado do oriente, cuja profundidade é de cem côvados,
termina no monte que está fronteiro ao castelo.
Alexandre, rei dos judeus, considerando as vantagens daquela posição, foi
o primeiro que lá construiu um castelo. Gabínio destruiu-o na guerra que fez a
Aristóbulo; Herodes, o Grande, não somente julgou conveniente restaurá-lo,
para dele se servir contra os árabes, das fronteiras dos quais estava perto, mas
construiu ali também uma cidade, que ele cercou de fortes muros e de torres e
de onde se ia ao castelo. O castelo situado no cume do monte, estava também
rodeado por uma muralha muito forte, com torres, nos cantos, de sessenta
côvados de altura. O príncipe mandou construir no meio, um palácio tão
admirável pela beleza, como pela grandeza e mandou cavarem-se muitas
cisternas, a fim de que não houvesse falta de água e fez o que pôde, para tornar
a artevencedora da natureza, fortificando ainda mais um lugar que ela tivera já
grande prazer em defender. Lá colocou depois tantas armas, máquinas e
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munição de guerra e de boca, que, os que a defendessem, não teriam motivo de
temer um grande cerco.
CAPÍTULO 22
SOBRE UMA PLANTA DE ARRUDA DE TAMANHO DESCOMUNAL QUE ESTAVA NO CASTELO
DE
 MACHEROM.
525.
 Havia naquele palácio uma planta de arruda de tamanho tão
descomunal, que não há figueira que lhe seja nem mais alta, nem mais larga.
Dizem que já estava lá no tempo de Herodes e que poderia ainda durar por
muito tempo, se os judeus não a tivessem destruído, quando tomaram aquela
praça.
CAPÍTULO 23
QUALIDADES E VIRTUDES ESTRANHAS DE UMA PLANTA ZOÓFITA, QUE VIVE NUM DOS
VALES QUE RODEIAM
 MACHEROM.
526.
 No vale que rodeia Macherom, do lado do norte, encontra-se, no
lugar chamado Bara, uma planta que tem o mesmo nome e que se parece com
uma chama e lança, à tarde, raios resplandecentes e retira-se, quando a gente
a quer apanhar. O único meio de detê-la é atirar-lhe urina de mulher, ou aquele
sangue supérfluo, que elas, de tempos em tempos, eliminam. Não se pode tocá-
las, sem perigo de morrer, a menos que se tenha na mão a raiz da mesma
planta; encontrou-se um outro meio de colhê-la sem perigo. Cava-se em redor,
de modo que ela fique presa pela raiz à qual amarra-se um cão; este querendo
seguir aquele que o amarrou, arranca a planta e morre imediatamente, como se
resgatasse com sua vida a do seu dono. Depois disso, pode-se sem perigo
manuseá-la; ela tem uma virtude, que faz não se temer expor a qualquer perigo,
para apanhá-la, isto é, os demônios ou as almas dos maus, que entram no
corpo dos homens vivos, e que os matariam se não se lhes impedisse,
abandonam-nos imediatamente, quando deles se aproxima essa planta.
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CAPÍTULO 24
SOBRE ALGUMAS FONTES CUJAS QUALIDADES SÃO MUITO DIFERENTES.
527.
 Vêem-se nesse mesmo lugar fontes de água quente, cujas
qualidades são muito diferentes; umas, são amargas, outras, extremamente
doces. Há também fontes de água fria nos lugares mais baixos, cujo sabor é
diferente; vemos, com admiração, sobre uma caverna, pouco profunda, uma
pedra, de onde saem como de dois seios, muito próximos um do outro, duas
fontes, uma de água muito fria e outra muito quente, que, depois misturando-
se, podem servir para um banho muito agradável e útil para diversas espécies
de enfermidades e particularmente para fortalecer os nervos. Há também minas
de enxofre e de alume.
CAPÍTULO 25
B ASSO SITIA MACHEROM. ESTRANHO FATO PELO QUAL AQUELA PRAÇA, QUE ERA TÃO
FORTE, LHE É ENTREGUE.
528. Depois que Basso observou bem Macherom, mandou encher o vale
que está do lado do oriente, e trabalhou com grande diligência para levar
plataformas, bastante altas, a fim de poder atacar o castelo. Os judeus, que lá
estavam cercados, obrigaram aos que consideravam como uma vil populaça a
se retirar para a cidade, a fim de resistir aos primeiros ataques dos romanos e
permaneceram para a defesa do castelo, porque, além de ser bastante forte e
mais fácil de se defender, eles não duvidavam em obter facilmente o perdão dos
romanos, en-tregando-lho, se lhe não pudessem resistir, depois de ter feito todo
o possível para obrigá-los a levantar o cerco. Não se passava um dia sem que
dessem vários assaltos e não matassem vários dos inimigos, que eles
procuravam continuamente surpreender; os romanos, ao invés, mantinham-se
sempre alertas. Mas não era desse modo que o cerco devia terminar. Um
acidente obrigou os judeus a lhes entregar a praça. Havia entre eles um certo
Eleazar, moço, forte e muito valente. Ele se distinguia em todos os combates,
atrasava os trabalhos dos romanos, animava a coragem dos inimigos com seu
exemplo e, quando eles eram obrigados a ceder, facilitava-lhes a retirada,
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ficando sempre por último para escorar o ataque dos inimigos. Um dia, depois
da luta, em vez de regressar com os outros para a praça, ele se deteve, para
falar com os que estavam nas muralhas, como desprezando os romanos, que
ele dizia pouco corajosos e incapazes de um novo combate. Um soldado do
exército romano, de nome Rufo, que era egípcio, atacou-o tão repentinamente
que o dominou; levou-o então armado como estava e o trouxe para o
acampamento com grande espanto dos judeus, como se pode bem imaginar.
Basso fê-lo estender completamente despido e chicotear, à vista dos seus
companheiros. Eles vieram todos, ante esse espetáculo e seu pesar foi tão
grande que o ar ecoava com seus gemidos e lamentação; mal se podia imaginar
ser aquilo causado pela infelicidade de um único homem. Basso, para apro-
veitar a ocasião e aumentar ainda mais a compaixão que tinham de Eleazar e
obrigá-los a entregar-lhe a praça, para poupar-lhe a vida, mandou erguer uma
cruz, como para crucificá-lo naquele mesmo instante. Apenas a viram erguida,
o pesar dos judeus cresceu tanto e de tal modo, que se puseram a gritar, que
tamanha dor lhes era insuportável. Eleazar, por seu lado, rogava-lhes que não o
deixassem morrer tão miseravelmente e que pensassem na própria salvação,
sem pretender resistir às forças e à boa sorte dos romanos, depois que tantos
outros tinham sido obrigados a ceder. Este pedido, mais o dos parentes que
intercediam por ele, tocou tão vivamente aos que defendiam o castelo, que,
contra seus primeiros sentimentos, resolveram, para salvar Eleazar, entregar a
praça, com a condição de se retirarem para onde quisessem; mandaram
imediatamente a proposta a Basso, que facilmente a aceitou. Os que estavam
na cidade, tendo sabido desse tratado feito sem sua participação, resolveram
fugir durante a noite. Mas os outros, quer pela inveja, quer por temor de que
Basso fosse contra eles, avisaram-no. Assim, só os que haviam saído por
primeiros e que eram os mais decididos, salvaram-se. O restante, uns mil e
setecentos, foram mortos, suas mulheres e filhos, escravizados. Aos do castelo,
Basso, para manter a palavra que lhe havia falado, entregou-lhes Eleazar.
CAPÍTULO 26
BASSO MATA TRÊS MIL JUDEUS QUE HAVIAM ESCAPADO DE MACHEROM E SE TINHAM
ESCONDIDO NUMA FLORESTA.
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529. Basso soube que vários judeus que haviam escapado de Macherom
se tinham refugiado numa floresta, chamada Jardes; marchou então contra
eles, rodeou a floresta com seus soldados, para que nenhum pudesse escapar, e
mandou à infantaria que cortasse as árvores da floresta. Assim os judeus foram
obrigados a tentar abrir uma passagem pela força. Atacaram todos ao mesmo
tempo, com muita violência e soltando grandes gritos, foram recebidos pelos
romanos com sua coragem comum. De um lado a ousadia, do outro uma
firmeza inquebrantável, sustentaram por muito tempo o combate. Por fim, os
romanos venceram, perdendo apenas doze homens e alguns feridos, ao passo
que os três mil judeus que lá estavam, morreram todos. Tinham como chefe a
Judas, filho de Jaires, de quem falamos há pouco; ele comandava alguns
soldados em Jerusalém, durante o cerco e tinha escapado pelos esgotos.
CAPÍTULO 27
O IMPERADOR VENDE AS TERRAS DAJUDÉIA E OBRIGA TODOS OS JUDEUS A PAGAREM,
CADA QUAL, POR ANO, DUAS DRACMAS AO
 CAPITÓLIO.
530.
 Nesse mesmo tempo o imperador ordenou a Basso e a Libério
Máximo, seu intendente, que vendessem todas as terras da Judéia, porque as
queria reservar como seu domínio, sem mais ali construir cidades, e deixasse
somente oitocentos homens como guarnição em Emaús, que dista de Jerusalém
apenas trinta estádios.
531. O mesmo soberano ordenou também que os judeus, em qualquer
lugar onde morassem, deveriam pagar, cada qual, todos os anos, duas dracmas
ao Capitólio, como antes pagavam ao Templo de Jerusalém. Tal a condição em
que esse infeliz povo se encontrava.
CAPÍTULO 28
CESÊNIO PETO, GOVERNADOR DA SÍRIA, ACUSA ANTÍOCO, REI DE
COMAGENA, DE TER ABANDONADO O PARTIDO DOS ROMANOS E PERSEGUE
MUITO INJUSTAMENTE ESSE PRÍNCIPE.
 MAS VESPASIANO TRATA-O, E
TAMBÉM AOS SEUS FILHOS, COM MUITA BONDADE.
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532. No quarto ano do reinado de Vespasiano, Antíoco, rei de Comagena,
sofreu, com toda sua família, o revés de que vou falar. Cesênio Peto, governador
da Síria, quer por ódio a este soberano, quer porque fosse verdade, escreveu ao
imperador, dizendo que Antíoco e Epifânio, seu filho, tinham abandonado o
partido dos romanos, para abraçar o dos partos, e se não se impedisse, eles
ateariam uma guerra que perturbaria todo o império. A proximidade desses
dois reis tornava sua união mais temível e Samosata, a maior cidade de
Comagena, estava situada sobre o Eufrates, e dava ao rei dos partos a
comodidade de passar e tornar a passar facilmente o rio; Vespasiano achou que
não devia desprezar um aviso tão importante, ao qual prestava fé. Assim,
mandou Peto fazer o que julgasse conveniente; este, não perdeu tempo para
usar do poder. Entrou em Comagena com a décima legião, algumas coortes e as
tropas auxiliares de Aristóbulo, rei da Cálcida e de Soheme, rei de Emeso. Foi-
lhe fácil vencer Antíoco, porque não tendo idéia de que havia sido acusado, não
tinha outrossim a menor suspeita e como sinal de sua fidelidade, saiu da
capital com sua esposa e filhos e foi acampar a cento e vinte estádios, numa
planície. Peto tornou-se sem dificuldade senhor de Samosata, para lá mandou
uma guarnição e perseguiu Antíoco. Tão grande, tão injusta violência não foi
capaz de levar esse príncipe a tomar as armas contra os romanos; mas Epifânio
e Calínico, seus filhos, que eram jovens e muito valentes, julgaram que lhes
seria vergonhoso perder assim o reino sem tomar a espada. Reuniram o que
puderam de seus soldados, travaram um grande combate e demonstraram
tanta coragem que perderam poucos homens. Esse bom resultado, embora
favorável a Antíoco, não o fez, porém, resolver-se a ficar; ele fugiu para a Cilícia
com sua esposa e suas filhas; sua ausência fez seus soldados perderem toda a
esperança de poder conservar o reino que ele mesmo havia abandonado e,
assim, passaram para o lado dos romanos. Os dois irmãos, nessa extrema
contingência, atravessaram o Eufrates acompanhados somente por oito
cavaleiros, para se refugiarem junto de Vologeso, rei dos partos; este príncipe,
em vez de desprezá-los, em sua infeliz sorte, recebeu-os com não menor honra
do que se eles ainda estivessem gozando de toda prosperidade. Quando Antíoco
chegou a Tarso, na Cilícia, Peto mandou um oficial detê-lo, com ordem de levá-
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lo acorrentado a Roma. Vespasiano não tolerou que se tratasse a um rei tão in-
dignamente. Julgou melhor relembrar sua antiga amizade, do que se deixar
levar pelo ressentimento, ante a ofensa que estava persuadido ter recebido dele
e que tinha dado motivo àquela guerra. Mandou então que lhe tirassem as
cadeias, sem obrigá-lo a continuar a viagem e que ele ficasse na Lacedemônia,
onde estipulou uma grande quantia, para suas despesas, a fim de que ele lá
pudesse viver como rei. Tão gentil tratamento não somente tirou Epifânio e
seus parentes da extrema apreensão em que estavam, pelo pai, mas fê-los
mesmo esperar reconquistar as boas graças do imperador, o que eles desejavam
ansiosamente, porque não se podiam julgar felizes estando mal com os
romanos. Vologeso escreveu em seu favor a Vespasiano, que lhes permitiu, com
muita bondade, vir a Roma. Seu pai também para lá foi, logo depois; e
enquanto lá permaneceram sempre foram tratados com grande honra.
CAPÍTULO 29
INCURSÃO DOS ALANOS NA MÉDIA E ATÉ NA ARMÊNIA.
533. Falamos em outro lugar dos alanos, que moram perto do rio Tanais e
dos mares meotidos e são originários da Cítia. Resolveram eles naquele mesmo
tempo saquear a Média e, para isso, combinaram com o rei da Hircânia, porque
ele era senhor da única passagem, por onde lá se podia entrar.* Diz-se que essa
passagem foi feita por Alexandre, o Grande, e que é fechada com portas de
ferro. Assim, tendo chegado à Média e não encontrando resistência, porque não
desconfiavam de nada, saquearam todo o país, tomaram grande quantidade de
gado e o rei Pacoro, que então reinava, ficou tão atemorizado, que fugiu para os
montes e foi obrigado a dar cem talentos, para retirar sua esposa e suas
concubinas das mãos daqueles bárbaros. Passaram assim sem encontrar
obstáculo algum destruindo tudo até a Armênia, onde Tiridate então reinava. O
príncipe veio-lhes ao encontro. Travou-se um grande combate e pouco faltou
que ele não lhes caísse nas mãos; pois um deles lançou-lhe uma corda ao
pescoço e o teria levado, se ele não a tivesse cortado logo com sua espada.
Esses bárbaros tornaram-se ainda mais cruéis com esse combate, devastaram
todo o país e levaram para sua casa grandes despojos e muitos prisioneiros.
______________________________
* Essa passagem é chamada de Portas Cáspias.
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CAPÍTULO 30
SILVA, QUE, DEPOIS DA MORTE DE BASSO, GOVERNAVA AJUDÉIA, DECIDE-SE
A ATACAR
 MASSADA, ONDE ELEAZAR, CHEFE DOS SICÁRIOS, SE HAVIA
REFUGIADO.
 HORRÍVEIS ATOS DE CRUELDADE E DE IMPIEDADE COMETIDOS
PELOS DESSA SEITA , PORFOÃO, POR
 SIMÃO E PELOS IDUMEUS.
534. Basso morreu na Judéia e foi substituído por Flávio Silva e como
Massada era a única praça que lhe restava tomar, ele reuniu todas as tropas
para atacá-la. Eleazar, chefe dos sicários ou assassinos, comandava-os, nessa
praça; ele era da família de Judas, que tinha outrora persuadido a vários ju-
deus, a não se submeterem ao recenseamento, que Cirênio queria fazer. Estes
revoltosos não podiam tolerar que se obedecesse aos romanos e tratavam os
que o faziam, como inimigos, saqueavam-lhes os bens, levavam seu gado,
queimavam-lhes as casas e diziam que não se devia fazer diferença entre eles e
os estrangeiros, pois eles tinham por sua covardia traído a pátria, preferindo a
escravidão à liberdade para cuja conservação tudo devemos fazer. Mas os
efeitos fizeram ver que isso era apenas um pretexto para disfarçar-lhes a cru-
eldade e a ambição porque, quando os que eles acusavam de covardes e
pérfidos se uniram a eles, para fazer guerra aos romanos, eles os trataram
ainda mais cruelmente do que o haviam feito antes e principalmente àqueles
que lhes censuravam a malícia. Jamais tempo algum foi mais fecundo em
crimes do que esse, entre os judeus. Cada qual procurava sobrepujar seu com-
panheiro, em toda espécie de crueldade e de maldade, bem como de impiedade.
Em geral e em particular, só havia corrupção. Os ricos tiranizavam o povo; o
povo procurava prejudicar os ricos. Uns queriam dominar, outros queriam
saquear, e estes sicários foram os primeiros que, sem poupar aos de sua nação,
se distinguiram por violências e assassínios. De sua boca só saíam palavras
ofensivas, seu coração só desejava traições e sua inteligência só encontrava
prazer em excogitar instrumentos de maldade.
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Por mais detestáveis e violentos que eles fossem, porém, podiam passar
por moderados, em comparação com João. Este não se contentava de tratar
como inimigos e de mandar matar os que propunham coisas úteis para o bem
comum, mas não havia males que ele não causasse à sua pátria. Seria para nos
admirarmos, de que um homem que calcava aos pés o respeito devido às leis de
nossos antepassados, que havia renunciado à pureza de que os judeus faziam
profissão, que não tinha dificuldade em comer carnes proibidas e cujo furor
chegava a cometer mil atos de impiedade contra Deus, tivesse renunciado a
todos os sentimentos de humanidade?
Que crimes não cometeu também Simão, filho de Gioras? De que
espantosa maneira não tratou ele aos mesmos que o haviam recebido em
Jerusalém? Eram livres e tornaram-se escravos, submetendo-se à sua tirania?
O parentesco, a amizade e todos os outros laços que unem mais fortemente os
homens, puderam talvez impedir-lhe manchar continuamente suas mãos no
sangue? Em vez de se acalmar e tornar-se mais benigno, não o tornaram e aos
do seu partido, ainda mais cruéis? Não maltratar e não ofender pessoas
indiferentes, era para eles uma maldade covarde e tímida; nada, ao contrário,
lhes parecia tão belo, como calcar aos pés todos os deveres da natureza e da
sociedade civil, para fazer sentir os efeitos do seu furor, àqueles que eram mais
obrigados a amar.
Os idumeus, por seu lado, foram-lhes talvez inferiores em toda sorte de
crimes? Esses malvados, depois de terem massacrado os sacerdotes, não se
contentaram de abolir todos os sinais de piedade, que podiam ainda restar;
destruíram também tudo o que tinha alguma aparência de justiça humana e de
política
 e
 puseram
 a
 injustiça
 sobre
 o
 trono.
 Mostraram
 que
 eram
verdadeiramente zelotes, não pelo amor das coisas justas e santas, as quais os
haviam feito tomar esse nome, que eles se atribuíam tão falsamente e com que
entusiasmavam os ignorantes, mas por um zelo verdadeiro e pela ardente
paixão que tinham de sobrepujar, em toda espécie de crimes, os maiores
criminosos, que jamais existiram sobre a face da terra.
Se eles mostraram, até que excesso pode chegar a impiedade, Deus
mostrou quanto sua justiça deve ser temível aos maus, pois, de todos os
tormentos e suplícios que os homens são capazes de experimentar, não houve
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um sequer que eles não sofressem durante a vida e que não sofrerão, sem
dúvida, depois da morte. Eu sei que alguns dirão que esse castigo, por maior
que seja, não corresponde à magnitude das ofensas e que se poderia desejar
ainda mais, pois não há castigos que os possam igualar. Quanto aos que foram
tão infelizes, de ficar expostos ao furor dessas feras, não é este o lugar de eu me
estender em deplorar sua desdita; devo retomar minha narração, que fui, quase
obrigado, a interromper.
CAPÍTULO 31
SILVA ORGANIZA O CERCO DE MASSADA. DESCRIÇÃO DA POSIÇÃO, DA FORÇA E DA
BELEZA DESSA PRAÇA.
535. Silva avançou com o exército romano para sitiar Massada, defendida
por Eleazar, chefe dos sicários; começou ele por colocar guamições em todos os
lugares dos arredores, que julgou necessárias para se apoderar do país,
mandou em seguida cercar a praça, com um muro, colocando um corpo de
guardas, para que ninguém pudesse escapar, armou seu acampamento no
lugar onde os rochedos do castelo estão próximos do monte vizinho. Não
encontrou poucas dificuldades nesse assédio; porque para manter seu exército,
não somente era necessário mandar buscar víveres muito longe, o que era um
grande trabalho para os judeus, que nisso ele empregava, mas iam mesmo a
outras partes, buscar água, porque ali não havia, nem fontes, nem regatos. A
essas dificuldades juntava-se a da resistência da praça. Estava construída
sobre uma grande rocha, cujo vértice, muito elevado, é de longa extensão.
Rodeada também de todos os lados por vales profundos, cujo fim não se
alcança com a vista, porque outras rochas o ocultam. É inacessível mesmo aos
animais, exceto por dois caminhos, pelos quais lá se sobe, embora com
dificuldade: um do lado do oriente, que corresponde ao lago Asfaltite; o outro do
lado do ocidente, um pouco menos difícil. Deu-se a um destes caminhos o nome
de cobra, porque ele descreve curvas e mais curvas que as rochas que lá se
encontram o obrigam a fazer; há desvios, de um lado e de outro, para se poder
progredir, pouco a pouco; por ali caminha-se com grande dificuldade, porque se
deve ter todo o cuidado, no mudar os pés, a fim de não se escorregar; a morte é
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inevitável se se vier a cair entre essas rochas, tão altas e tão escarpadas, que os
mais ousados não as poderiam contemplar, sem temor. Depois de se ter
chegado por esse caminho, cuja extensão é de trinta estádios, ao cume do
monte, vemos, que este em vez de terminar em ponta torna-se uma planície. O
sumo sacerdote Jônatas foi o primeiro que escolheu esse lugar para construir
um castelo ao qual ele chamou de Massada, e Herodes, o Grande, não poupou
despesas para fortificá-lo, o mais possível. Rodeou-o por um muro construído
com pedras brancas, de doze côvados de altura e de oito de largura. O
perímetro do muro era de sete estádios e ele o fortificou com trinta e sete torres
de cinqüenta côvados de altura cada uma, as quais se comunicavam com
aposentos, bastante espaçosos, construídos em redor desse muro, nas
adjacências; e, como a terra dessa pequena planície era muito fértil, ele quis
que fosse cultivada para prover à subsistência dos que ali buscassem sua
segurança, se não pudessem obter víveres de outros lugares. O príncipe tinha
ainda mandado construir no recinto desse castelo, do lado do norte, um
soberbo palácio ao qual se subia pelo caminho do lado do ocidente. As mura-
lhas eram muito altas e muito fortes e nos quatro cantos havia quatro torres de
sessenta côvados de altura. Os aposentos do palácio, suas galerias e seus
banheiros, eram admiráveis; colunas de um só bloco de pedra sustentavam-nas
e o conjunto era tão fortemente unido, que nada podia ser mais firme. O
pavimento era de mármore de diversas cores. Herodes tinha feito cavar muitas
cisternas na rocha, para conservar a água da chuva, porque as fontes não
forneciam o suficiente para todos. Um fosso, que não se podia ver de fora,
levava desse palácio, para o alto do castelo, que lhe era como a cidadela;
aqueles que tivessem algum plano de conquistar essa praça mal lhe podiam ver
as estradas de acesso bastante difícil; quanto ao que estava do lado do oriente,
era tal como nós a descrevemos; tinham construído a mil côvados longe do
castelo, no lugar mais estreito do caminho, uma torre que lhe fechava a
passagem e que não era fácil de se tomar. Toda a estrada tinha mesmo sido
feita de tal sorte que era muito difícil passar-se por aí, embora não se
encontrassem obstáculos. Assim, natureza e arte, pareciam ter trabalhado sem
descanso, para fortificar essa praça.
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CAPÍTULO 32
ENORME QUANTIDADE DE MUNIÇÃO DE GUERRA E DE BOCA QUE HAVIA EM MASSADA E
POR QUE
 HERODES, O GRANDE, A HAVIA LEVADO PARA LÁ.
536. Se a posição e as fortificações dessa praça tornavam-na tão forte, a
maneira quase incrível com que estava defendida, acrescentava ainda muito à
dificuldade em expugná-la. Havia trigo para vários anos, vinho e óleo em
abundância, toda espécie de legumes, grande quantidade de tâmaras. Quando
Eleazar tomou esse castelo, lá encontrou tudo isso, tão perfeito como quando lá
havia sido colocado, embora se tivessem passado quase cem anos. Quando os
romanos a tomaram, encontraram os restantes, no mesmo estado; deve-se sem
dúvida atribuir a causa disso ao lugar, muito elevado, ao ar, muito puro, que
torna difícil a corrupção de qualquer alimento. Lá havia também armas de
todas as espécies, para uns dez mil homens, uma mui grande quantidade de
ferro, de cobre e de chumbo, que ainda não tinha sido usado. Tantas coisas
úteis mostravam que ali havia sido colocado, com algum fim especial. Julga-se
que o príncipe se queria garantir um refúgio seguro, no caso de algum destes
dois perigos, que tinha motivo de temer: uma revolta dos judeus, para recolocar
no trono algum membro da família dos hasmoneus, e o outro ainda muito
maior e mais temível, isto é, que a rainha Cleópatra obtivesse, por fim, de
Antônio, que o mandasse matar para dar-lhe seu reino. Pois ela o importunava
sem cessar a esse respeito e estava tão apaixonada que há mesmo motivo de se
admirar de que ele lha tenha recusado. Por isso os temores de Herodes tinham
posto essa praça em tal condição que embora fosse a única que ainda restava,
os romanos não podiam, sem tomá-la, terminar a guerra contra os judeus.
CAPÍTULO 33
SILVA ATACA MASSADA E COMEÇA A BATER NOS MUROS. OS JUDEUS
CONSTRÓEM UM SEGUNDO, COM VIGAS E TERRA ENTRE OS DOIS.
 OS ROMANOS
INCENDEIAM-NO E PREPARAM-SE PARA DAR O ASSALTO NO DIA SEGUINTE.
537. Depois que Silva construiu este muro, que cercava totalmente os
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judeus em Massada, começou o ataque à praça. Achou somente um lugar que
se podia encher de terra. Além da torre, que fechava o caminho do lado do
ocidente, pelo qual se ia ao palácio e ao castelo, havia uma rocha maior do que
essa, sobre a qual estava construído o castelo, chamada Leuce, isto é, branco;
porém, mais baixa trezentos côvados. Depois que Silva dela se apoderou, fez
levar terra por cima, por meio dos seus soldados e eles nisso trabalharam com
tanto entusiasmo, que ergueram uma massa de cem côvados de altura, mas
porque esta plataforma não parecia bastante firme e sólida para sustentar as
máquinas, Silva mandou construir em cima, com grandes pedras, uma espécie
de cavalete, que tinha cinqüenta côvados de altura e outros tantos de largura.
Além das máquinas ordinárias, havia também outras que Vespasiano e Tito
tinham inventado, e ergueu-se ainda sobre esse cavalete uma torre de sessenta
côvados toda coberta de ferro, de onde os romanos lançavam sobre os judeus,
tantos dardos e pedras, com suas máquinas, que eles não tinham mais cora-
gem de aparecer nas muralhas. Mandou depois o comandante construir um
grande aríete com o qual batia sem cessar no muro, mas com dificuldade
conseguiu abrir uma pequena brecha; os judeus construíram com incrível
presteza um outro muro, que não temia os esforços das máquinas, porque não
sendo de uma matéria resistente, amortecia-lhes os golpes, cedendo-lhes à
violência. Esse muro era construído com essa matéria. Puseram duas fileiras de
grossos caibros encaixados uns nos outros; o espaço que havia entre eles tinha
tanto de largura quanto o muro; encheram esse espaço de terra e para que não
se movesse sustentaram-no com outros pedaços de madeira. Assim, parecia
que aquele muro era um grande edifício; os golpes das máquinas não somente
se amorteciam, mas amassavam e tornavam ainda mais firme e sólido o bloco
de terra, que era argilosa. Silva, depois de ter considerado bastante esse
trabalho, achou que somente por meio do fogo poderia destruí-lo e mandou que
os soldados lhe atirassem uma grande quantidade de madeira em chamas.
Como aquele muro era quase todo também de madeira e havia bastante espaço
entre ambos, o fogo ateou-se em seguida; chegou às planícies e surgiu aos
poucos uma grande labareda. O vento do norte que soprava então a impeliu
contra os romanos, com tanta violência que eles perderam a esperança de
poder salvar suas máquinas. Mas, como se Deus se tivesse declarado em seu
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favor, o vento mudou de direção de repente e começou a soprar outro, do lado
do sul, que, fazendo as chamas voltarem para o lado do muro, de tal modo
aumentou o incêndio que ele ficou destruído de alto a baixo. Os romanos
favorecidos com esse auxílio de Deus, voltaram com grande alegria ao seu
acampamento, dando gritos de alegria, com a intenção de dar o assalto no dia
seguinte ao alvorecer, redobrando a vigilância durante a noite, para impedir que
os judeus escapassem.
CAPÍTULO 34
ELEAZAR, VENDO QUE MASSADA NÃO PODIA DEIXAR DE SER TOMADA DE
ASSALTO PELOS ROMANOS , EXORTA A TODOS OS QUE DEFENDIAM O CASTELO
COM ELE, A INCENDIÁ-LO E A SE MATAREM, PARA EVITAR A ESCRAVIDÃO.
538. Mas Eleazar estava muito longe de querer fugir e de permitir a quem
quer que fosse tal idéia. A única coisa que lhe veio à mente, quando viu o
segundo muro reduzido a cinzas e que não restava mais nenhuma esperança de
salvação, foi livrarem-se todos, com suas mulheres e filhos, dos ultrajes e dos
males que poderiam esperar dos romanos, depois que eles se tivessem
apoderado da fortaleza. Assim, julgando nada poder fazer de mais corajoso, em
tal extremo, reuniu à noite os mais valentes de seus companheiros e para
exortá-los àquela ação, assim lhes falou: "Generosos judeus, que resolvestes
depois de tanto tempo não suportar nem a dominação dos romanos, nem a de
qualquer outra nação, mas obedecer somente a Deus, que é o único que tem o
direito de governar todos os homens, eis chegado o tempo de manifestardes por
meio de obras, que verdadeiramente tendes esses sentimentos no coração. Até
agora nós nos livramos da escravidão. Não nos desonremos agora, submetendo-
nos à mais cruel, que poderíamos imaginar, se cairmos vivos nas mãos dos
romanos, depois de termos sido os primeiros a sacudir-lhes o jugo e os últimos
que tiveram a coragem de lhes opor resistência. Não nos tornemos indignos da
graça que Deus nos faz de poder morrer voluntária e gloriosamente e ainda
livres, o que é uma felicidade que não tiveram aqueles que se iludiram com a
esperança de não poderem ser vencidos. Nossos inimigos só desejam
aprisionar-nos vivos e por maior que seja a nossa resistência, não poderíamos
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amanhã evitar sermos atacados com violência; mas eles não nos podem impedir
que nos antecipemos por uma morte generosa e terminemos nossos dias todos
juntos, com as pessoas que nos são mais caras. Depois que empreendemos esta
guerra, para defender nossa liberdade, não devemos julgar, pelos males que nos
causaram nossas dissensões e ainda mais pelos que os romanos nos fizeram
sofrer, com os felizes êxitos de suas armas, que Deus que tinha outrora amado
tanto nossa nação tenha então decretado sua ruína, pois que, se Ele nos tivesse
então sido favorável ou menos irritado contra nós, Ele jamais teria derramado o
sangue de um número tão grande de pessoas e aquela santa cidade — onde Ele
era adorado por peregrinos que vinham de todas as partes do mundo — teria
sido destruída e reduzida a cinzas. Nós somos os únicos de todos os judeus que
imaginamos poder conservar nossa liberdade e quisemos disso persuadir aos
outros, como se não tivéssemos parte nas ofensas que atraíram a cólera de
Deus e fôssemos nós os únicos inocentes. Mas vedes de que modo, para
confundir
 nossa
 loucura,
 Ele
 nos
 oprime
 com
 males
 ainda
 mais
extraordinários, que nossas esperanças ridículas e extravagantes. Pois, de que
nos serviram a força desta praça, que a arte e a natureza pareciam ter tomado
inexpugnável e a quantidade de armas e de todas as outras coisas necessárias
para se sustentar um grande assédio? Podemos duvidar de que Deus não
queira que pereçamos depois de termos visto o fogo que o vento levava contra
nossos inimigos, voltar-se de repente contra nós, para queimar o muro em que
estava toda nossa defesa? Esses sinais da cólera de Deus não podem ser
atribuídos senão aos crimes horríveis que nós cometemos com tanto furor, con-
tra os da nossa própria nação e como não poderemos deixar de ser castigados,
não é melhor satisfazermos à justiça por uma morte voluntária, do que esperar-
mos que os romanos lhe sejam os executores, depois de nos terem vencido?
Esse castigo que exercemos sobre nós mesmos será muito menor que o que nós
merecemos porque morreremos com a consolação de termos livrado nossas
esposas, da perda da honra, nossos filhos, de sua liberdade e, apesar de nossa
má sorte, dado a nós mesmos uma sepultura honrosa, morrendo sob as ruínas
de nossa pátria, antes que nos expormos a sofrer uma vergonhosa escravidão.
Mas, a fim de que os romanos tenham o desprazer de achar apenas como
despojos os nossos cadáveres, sou de opinião que queimemos o castelo, com
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tudo o que ele tem de preciosidades e dinheiro, conservando apenas os víveres,
para lhes mostrarmos que não foi por necessidade, mas por generosidade que
nós nos conservamos inquebrantáveis na resolução de preferir a morte à
escravidão".
Estas palavras de Eleazar não foram recebidas do mesmo modo pelos que
as escutaram: uns, ficaram tão impressionados, que ardiam de desejo de
terminar seus dias com uma morte que lhes parecia tão gloriosa. Mas outros,
levados pela compaixão que sentiam de suas esposas e filhos, e deles mesmos,
entreo-Ihavam-se e mostravam bem com suas lágrimas que não eram da
mesma opinião. Eleazar, temendo que sua fraqueza viesse a diminuir a coragem
dos que mostravam com tanta coragem aprovar suas idéias, retomou a palavra,
com mais veemência ainda, para comovê-los, na consideração da imortalidade
da alma; começou fixando com firmeza aqueles que choravam e disse:
"Enganei-me, então, quando vos tomei por homens de
 coragem, que
combatendo pela liberdade preferíeis morrer gloriosamente a viver com infâmia,
pois que quando deveríeis, sem que ninguém a isso vos incitasse, vós mesmos
tomar a iniciativa de vos livrardes de tantos males que vos são inevitáveis se
vivêsseis mais, o temor que vos causa a morte mostra-me que nenhuma
covardia é comparável à vossa. As Sagradas Escrituras, que são os mesmos
oráculos de Deus, as lições que temos recebido, desde nossos primeiros anos,
de nossos pais, seus exemplos, não nos ensinam que não é na vida, mas na
morte, que consiste nossa felicidade, pois que ela põe nossas almas em
liberdade e dá-lhes o meio de voltar àquela pátria celeste onde tiveram sua
origem?
"Somente lá elas nada mais têm a temer, mas enquanto estiverem presas
no cárcere deste corpo, podemos dizer que os males que Ele lhes comunica,
torna-as mais mortas, que não vivas, pois não há proporção entre duas coisas,
das quais uma é toda divina e outra, mortal. É verdade que enquanto a alma
está no corpo, ela o faz mover-se invisivelmente e operar, por meio de ações que
estão acima da sua natureza, que a faz sempre inclinar-se para a terra; mas
apenas livre do peso, ela regressa ao seu ponto de origem, onde goza de uma
feliz liberdade e de uma força sempre incorruptível em si mesma, produz no
mesmo grandes mudanças. Assim, dá-lhes pleno vigor, que o anima; ele
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enlanguesce e morre logo que ela o abandona, sem que ela deixe de ser imortal.
O sono é uma prova que basta para mostrar que a felicidade da alma está nela
mesma, pois não estando, então, preocupada com o corpo, ela goza de um
descanso mui agradável e tem mesmo conhecimento de várias coisas futuras,
pela sua comunicação com Deus. Por que então amando o sono como o
amamos, nós tememos a morte? E como, fazendo o caso que fazemos de uma
vida tão breve, poderíamos sem loucura invejar a felicidade de possuir uma que
é eterna? Devemos conhecer tão bem essas verdades que os outros aprendem
de nós a desprezar a morte. Se fosse necessário procurarmos exemplos entre as
nações estrangeiras, não vemos que entre os indianos os que fazem uma
profissão particular de sabedoria e que vivem mui virtuosamente levam a vida
com pesar, porque a consideram um fardo que a natureza os obriga a carregar e
de que têm pressa em se desfazer, pela separação do corpo, de suas almas?
Assim, embora gozem de plena saúde, o desejo de possuir uma imortalidade
bem-aventurada fá-los despedir-se das pessoas mais caras, para passar desta
vida a uma outra, sem que alguém lhes procure impedir. Todos, ao contrário,
julgam-nos felizes e estão tão persuadidos de que a morte não quebrará o liame
que os une, que eles lhes rogam dar suas notícias aos amigos que já passaram
ao outro mundo. Então esses homens generosos, para purificar suas almas e
separá-las do corpo, lançam-se no fogo, que eles mesmos fizeram preparar e
sua morte é seguida de louvores de todos aqueles que as presenciam. Seus
mais caros amigos os acompanham mais de boa mente nessa ação, que os
outros homens acompanham os seus, quando eles vão partir para uma viagem
demorada, e em vez de chorar, eles invejam-lhes a felicidade de ir gozar da
imortalidade e só derramam lágrimas para lamentar a si mesmos. Que
vergonha então para nós sermos inferiores em sabedoria aos indianos e
calcarmos aos pés, por nossa fraqueza, as leis de nossos antepassados, que
toda a terra venera. Mas, quando mesmo tivéssemos sido educados na crença
de que a vida é um grande bem e que a morte é um grande mal, o estado em
que
 nos
 encontramos
 reduzidos
 não
 nos
 obrigaria
 a
 no-la
 darmos
generosamente, pois que a vontade de Deus e a necessidade a isso nos
obrigam? Quem pode duvidar de que há muito tempo, Deus, para nos castigar,
por termos feito um uso tão mau da vida, não resolveu dela nos privar e que
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assim, não é, nem às nossas forças, nem a clemência dos romanos que
devemos não termos morrido nessa guerra? Uma causa superior ao poder
desses conquistadores lhes deu sobre nós as vantagens que os fazem parecer
vitoriosos. Quando os judeus que moravam em Cesaréia e que não somente não
haviam tido o pensamento de se revoltar, foram mortos, com suas esposas e
filhos, sem se defender quando se ocupavam unicamente em celebrar o sábado,
foram talvez os romanos que os massacraram, tão cruelmente, eles, que nos
trataram como inimigos somente depois que tomamos as armas? Se dissermos
que os habitantes de Cesaréia foram obrigados a degolar os judeus, pelo antigo
ódio que lhes votavam, que diremos dos de Citópolis, que poupando aos
romanos, não temem fazer-nos guerra, para agradar aos gregos e assassinando
os nossos, com todas as suas famílias, assim nos recompensaram o auxílio que
lhes havíamos dado e nos fizeram sofrer o que nós mesmos havíamos impedido
que eles sofressem? Eu seria demasiado longo se quisesse referir todos os
exemplo semelhantes. Não sabeis que não há uma só cidade da Síria que nos
não tenha tratado do mesmo modo e que não nos odeie ainda mais do que os
romanos? Os de Damasco, sem poder alegar pretexto algum, não mataram
dezoito mil dos nossos, com suas mulheres e filhos e não se nos garante que
mais de sessenta mil foram de diferentes maneiras torturados no Egito? A isto,
se se responder que foi, porque eles não puderam num país estrangeiro
encontrar auxílio algum, contra seus perseguidores, que diremos dos nossos
que fizeram guerra aos romanos, no nosso próprio país? Que nos faltava para
esperarmos vencê-los? Não tínhamos armas, cidades mui fortificadas, castelos e
fortalezas, que pareciam inexpugnáveis, uma resolução decidida de não temer
perigo algum, para conservarmos nossa liberdade e enfim, tudo o que nos podia
pôr em condições de resistir? Mas, durante quanto tempo isso nos valeu?
Aquelas praças, nas quais depositávamos nossa principal confiança, não foram
todas elas tomadas e em vez de servir de refúgio seguro para aqueles que tanto
tinham trabalhado em construí-las e fortificá-las, não parece que o foram
apenas para tornar a vitória dos romanos ainda mais brilhante? Não devemos
então julgar felizes os que morreram com armas na mão combatendo
generosamente pela liberdade de sua pátria e não podemos, ao contrário,
lastimar bastante o grande número daqueles que são escravos dos romanos?
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Quanto à morte, deveria parecer-lhes suave, para evitar, dando-a a si mesmos,
os horríveis males que eles sofrem? Uns morrem sob os golpes, outros, depois
de terem experimentado toda espécie de tormentos, terminam a vida no fogo,
outros, semidevorados pelas feras, são reservados para servir outra vez de
alimento a esses cruéis animais e os mais infelizes, de todos, são os que vivem
ainda, sem poder encontrar a morte que tão ardentemente desejam a cada
instante. Que foi feito daquela poderosa cidade, a soberba capital da nossa
nação, que tantos muros, tantas torres, tantas fortalezas pareciam tornar
inexpugnável, que mal podia conter todas as munições de guerra e de boca
necessárias para se sustentar um grande assédio, e que era defendida por uma
multidão incrível de homens, onde se pensava que Deus mesmo se dignava
habitar? Não foi ela destruída até os alicerces e não lhe restam somente ruínas,
sobre as quais os vencedores ergueram seus acampamentos? Que resta
também daquele grande povo? Apenas alguns míseros anciãos que regam com
suas lágrimas as cinzas do santo Templo, que era antigamente nossa principal
felicidade e nossa maior glória, e algumas mulheres, que os vencedores
reservam para fazê-las sofrer ultrajes mil vezes piores do que a mesma morte?
Quem poderia imaginando tão horríveis misérias querer ainda ver a luz do sol,
quando mesmo lhe fosse garantido poder viver sem nada mais ter a temer? Ou
melhor, quem pode ser tão inimigo de sua pátria e tão fraco em não considerar
como um grande mal e uma grande desgraça estar ainda vivo, e não invejar a
felicidade daqueles que morreram antes de ter visto essa santa cidade destruída
completamente e nosso sagrado Templo inteiramente destruído pelo fogo
sacrílego? Se a esperança de podermos, resistindo corajosamente, vingarmo-nos
de algum modo de nossos inimigos, nos sustentou até agora, neste instante, em
que essa esperança desvaneceu-se, que esperamos para correr ao encontro da
morte, todos, quando ainda está em nosso poder dá-la também às nossas
mulheres e filhos, pois seria a maior graça que nós lhes poderíamos fazer;
nascemos para morrer, é uma lei indispensável da natureza à qual os homens
mais robustos e felizes estão também sujeitos. Mas a natureza não nos obriga a
suportar os ultrajes e a servidão e a ver por vossa covardia, arrebatar às vossas
esposas a honra, e aos vossos filhos, a liberdade, quando está em nosso poder
tudo assegurar-lhes pela morte. Depois de ter tão generosamente tomado as
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armas contra os romanos e desprezado as ofertas que eles nos fizeram, de nos
salvarmos, se quiséssemos nos submeter a eles, que tratamento devemos
esperar de seu ressentimento, se viermos a cair vivos em suas mãos? A força e
o vigor dos nossos mais robustos só serviriam para nos tornar mais capazes
ainda de sofrer por mais tempo os maiores tormentos; os que são mais idosos,
não seria menos de se lamentar porque teriam mais dificuldade em suportá-los;
nós veríamos levarem-se nossas esposas a uma infeliz escravidão e ouviríamos
nossos filhos, com cadeias aos pés, implorando em vão o nosso auxílio. Mas
enquanto temos ainda agora pleno e livre uso de nossos braços e de nossas
espadas, que nos impede, livrarmo-nos da escravidão? Morramos com as pesso-
as que nos são mais caras, antes que vivermos escravos. Elas no-lo pedem
nossas leis no-lo ordenam, Deus no-lo impõe, e os romanos nada temem mais
do que isso. Apressemo-nos então em fazê-los perder a esperança de triunfar
sobre nós e o espanto de apenas poder desencadear a sua raiva sobre cadáveres
force-os a admirar a nossa generosidade."
CAPÍTULO 35
TODOS OS QUE DEFENDIAM MASSADA, PERSUADIDOS PELAS PALAVRAS DE
ELEAZAR, MATAM-SE COMO ELE, COM SUAS MULHERES E FILHOS, E O QUE
FICOU POR ÚLTIMO, ANTES DE SE MATAR , PÔS FOGO NA FORTALEZA.
539. Eleazar queria continuar a falar, mas suas palavras causaram tal
impressão nos espíritos, que todos o interromperam para lhe dizer que queriam
começar logo a executar a sua proposta. Estavam tão furiosos que só pensavam
em se antecipar uns aos outros. A morte de suas esposas, de seus filhos e a sua
própria parecia-lhes coisa não somente a mais generosa do mundo, porém a
mais desejável e seu único temor era que algum deles viesse a sobreviver. Tão
violento entusiasmo não esmoreceu, mas continuou com o mesmo ardor até o
fim, porque estavam persuadidos de que era a maior demonstração de afeto que
podiam dar às pessoas que mais eles amavam. Abraçaram as esposas e filhos,
disseram-lhes, banhados de lágrimas, o último adeus, beijaram-nos pela última
vez e como se tivessem então tomado mãos estranhas, executaram aquela
funesta resolução, fazendo-lhes ver a necessidade que os obrigava a arrancar
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assim o coração do próprio peito, tirando-lhes a vida, para livrá-los dos ultrajes
que os mesmos inimigos os teriam feito sofrer. Não houve um só que se sentisse
fraco, num momento tão trágico; todos mataram as esposas e filhos, certos de
que o estado a que estavam reduzidos, a isso os obrigava; consideravam ainda
essa horrível matança como o menor dos males que deveriam temer. Mas
apenas o haviam terminado, a dor de se terem visto obrigados a fazê-lo foi
enorme. Julgaram não poder, sem faltar ao respeito a pessoas tão queridas,
sobreviver-lhes, por um momento sequer; por isso reuniram tudo o que
possuíam de bens e o queimaram; tiraram depois a sorte, e escolheram dez
entre eles, que tiveram a incumbência de os matar, juntaram-se então, aos
cadáveres de suas esposas e filhos e abraçan-do-os foram mortos, uns pelos
outros, primeiro por aqueles que tiveram a espantosa missão de eliminá-los.
Assim morreram, sem demonstrar o menor horror; tiraram ainda uma vez a
sorte, para ver quem mataria os outros nove, que se portaram com a mesma
firmeza dos precedentes. O que ficou por último, depois de ter observado e
examinado os mortos, se ainda alguém tinha necessidade de seu auxílio, para
se libertar do que lhe restava de vida, constatou que todos tinham morrido,
incendiou o palácio e aproximando-se dos corpos de seus parentes terminou
com um golpe de espada que deu em si mesmo esta sangrenta tragédia. Assim
pereceram, certos de que nenhum deles cairia sob o poder dos romanos. Mas
uma velha e uma prima de Eleazar, que era muito sábia e muito hábil, havia se
escondido com cinco crianças nos aquedutos; o número dos mortos entre
homens, mulheres e crianças foi de novecentos e sessenta. Esse fato aconteceu
a quinze de abril.
No dia seguinte, ao despontar do dia, os romanos fizeram pontes com
escadas para dar o assalto; ninguém apareceu. Ouvia-se unicamente o crepitar
do fogo, devorando o castelo; eles não podiam imaginar a causa do silêncio.
Fizeram trabalhar o aríete e soltaram grandes gritos para ver se alguém
responderia. Aquelas duas mulheres saíram dos aquedutos e lhes contaram o
que se havia passado. Custou-lhes muito acreditar, tanto esse ato, tão heróico,
lhes parecia inacreditável; trabalharam depois para apagar o fogo e chegaram
até o palácio. Vendo então aquela grande quantidade de cadáveres, em vez de
se rejubilarem, considerando-os como inimigos, não se cansavam de admirar,
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como por um tão grande desprezo da morte, tantas pessoas tinham tomado e
executado tão estranha resolução.
CAPÍTULO 36
OS JUDEUS QUE MORAVAM EM ALEXANDRIA, VENDO QUE OS SICÁRIOS CADA VEZ MAIS
CONSOLIDAVAM A SUA POSIÇÃO NA REVOLTA, ENTREGAM
AOS ROMANOS OS QUE SE HAVIAM REFUGIADO NAQUELE PAÍS, PARA
EVITAR QUE ELES FOSSEM CAUSA DE SUA RUÍNA. INCRÍVEL CONSTÂNCIA COM
QUE OS DESSA SEITA SOFREM OS MAIORES TORMENTOS.
 FECHA-SE POR
ORDEM DE
 VESPASIANO O TEMPLO CONSTRUÍDO POR ONIAS NO EGITO, E
NÃO SE PERMITE MAIS AOS JUDEUS LÁ IR ADORAR A
 DEUS.
540. Depois da queda de Massada, Silva deixou uma guarnição e retirou-
se para Cesaréia porque não havia mais inimigos em todo o país. Mas os judeus
que moravam na Judéia não foram os únicos oprimidos por sua ruína; os que
estavam espalhados pelas províncias afastadas ressentiram-se também de
todos os seus efeitos, e vários dos que se haviam estabelecido nos arredores da
cidade de Alexandria, no Egito, foram massacrados; creio dever dizer qual a
causa disso.
Os do partido dos sicários que escaparam para aquela parte do país, não
se contentaram de lá ficar em segurança, mas conservando sempre o mesmo
espírito de revolta, para se manterem em liberdade, diziam que os romanos não
eram mais valentes do que eles e que só reconheciam a Deus por Senhor. Os
mais ilustres dos judeus não eram da sua opinião e eles, então, mataram a
vários destes e esforçaram-se por persuadir os outros a se revoltarem. Os mais
importantes da nossa nação, fiéis aos romanos, vendo sua obstinação, e que
não poderiam sem grave perigo atacá-los abertamente, reuniram os outros
judeus, disseram-lhes até onde ia a loucura e o furor daqueles sediciosos, que
eram a causa de todos os seus males e que se eles se contentassem de obrigá-
los a fugir, não ficariam nem por isso em segurança, porque os romanos não
teriam sabido de seus perversos intentos e vingar-se-iam sobre eles, fazendo
morrer os inocentes com os culpados. E assim o único meio de prover à sua
salvação era entregá-los aos romanos, para que os castigassem conforme
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mereciam.
A grandeza do perigo persuadiu toda a assembléia a aceitar este conselho;
atiraram-se sobre os sicários e prenderam uns seiscentos. Os demais fugiram
para Tebas e para os lugares do Egito, onde foram também presos e trazidos
para Alexandria. Não poderíamos ver, sem espanto, sua incrível firmeza, à qual
não sei se deva chamar de loucura ou de fortaleza de alma, ou mesmo de furor;
pois, no meio dos tormentos mais horríveis que se pode imaginar, não foi
possível convencer a um só deles a dar ao imperador o nome de senhor. Todos
permaneceram inflexíveis na sua determinação de recusá-lo; suas almas
pareciam insensíveis à dor que os corpos sofriam e eles pareciam sentir prazer
em ver o ferro fazê-los em pedaços e o fogo, consumi-los. Mas nesse horrível
espetáculo nada era mais extraordinário do que a obstinação incrível das
crianças, em recusar-se a dar ao imperador o nome de senhor, tanto a
impressão que as máximas de tão fanática seita tinham feito em seu espírito, as
elevava acima da fraqueza de sua idade.
541. Lupo, que então era governador de Alexandria, avisou imediatamente
o imperador, dessa perturbação entre os judeus; o soberano considerando como
o povo era inclinado à revolta e o motivo que tinha de temer, que eles se
reunissem sempre mais e que outros a eles se juntassem, ordenou a esse
governador que destruísse o templo que eles tinham na cidade de Oniom, que
começara a ser construído e que assim fora denominado pelo motivo que passo
a expor: Onias, filho de Simão, um dos sumo sacerdotes, fugira de Jerusalém,
quando Antíoco, rei da Síria, fazia guerra aos judeus e retirou-se para
Alexandria.
 Ptolomeu,
 que
 então
 reinava
 no
 Egito,
 recebeu-o
 mui
favoravelmente, pelo ódio que tinha de Antíoco, e com promessa de Onias de
atrair os de sua nação ao seu partido, se ele lhes concedesse um favor, o
príncipe prometeu-lho, se fosse algo que ele pudesse cumprir. Onias então
pediu-lhe que lhe permitisse construir um templo no seu reino, onde os judeus
pudessem servir a Deus, segundo os preceitos de sua religião e garantiu-lhe,
que aquela graça os teria presos ao seu serviço, aumentaria ainda o ódio que
eles tinham de Antíoco, porque ele tinha destruído o templo de Jerusalém e
faria várias deles passar para o Egito, a fim de gozar da liberdade de viver
segundo suas leis. Ptolomeu aprovou essa proposta e deu-lhe um terreno na
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região de Heliópolis, a cento e oitenta estádios de Mênfis. Onias mandou
construir um templo e um castelo, que não era semelhante ao de Jerusalém,
mas tinha uma torre parecida, cuja altura era de sessenta côvados e tinha sido
construída com pedras enormes. Lá mandou fazer também um altar à imitação
do
 de
 Jerusalém,
 colocou
 ornamentos
 semelhantes,
 exceto
 o
 grande
candelabro, no lugar do qual havia uma lâmpada de ouro que brilhava como
uma luz, inferior à estrela da manhã e estava pendurada a uma corrente. As
portas desse templo eram de pedra e a torre de tijolos. Obteve também da
liberalidade do soberano uma grande quantidade de terras e uma renda em
dinheiro, a fim de que os sacerdotes pudessem prover às despesas necessárias
ao culto de Deus. Onias não resolveu tentar esse empreendimento, pelo afeto
aos mais ilustres dos judeus, que moravam em Jerusalém, contra os quais, ao
contrário, a lembrança de sua fuga o animava; mas seu fim era levar o povo a
abandoná-los para vir para junto dele e havia mais de seiscentos anos que o
profeta Isaías tinha predito que aquele templo construído no Egito, por um
judeu, seria destruído.
Logo depois da ordem recebida do imperador o governador foi ao templo,
tirou-lhe uma parte dos ornamentos e mandou fechá-lo. Depois de sua morte
Paulino, seu sucessor no governo, obrigou os sacerdotes com graves ameaças a
entregar-lhe todos os ornamentos que existiam, tomou-os, mandou fechar o
Templo, e proibiu a quem quer que fosse lá ir adorar a Deus; aboliu assim até
os menores sinais do culto divino. Fazia então trezentos e quarenta e três anos
que aquele Templo tinha sido construído.
CAPÍTULO 37
SÃO APANHADOS AINDA OUTROS SICARIOS QUE SE HAVIAM REFUGIADO NOS ARREDORES
DE
 C IRENE; A MAIOR PARTE DELES SE MATA.
542. A ousadia dos sicarios espalhou-se como um mal contagioso pelas
aldeias dos arredores de Cirene e um tecelão de nome Jônatas, que era um dos
piores homens do mundo, persuadiu a várias pessoas simples que o tomasse
por chefe. Levou-os em seguida a um deserto com a promessa de lhes fazer ver
sinais prodigiosos e coisas estranhas. Os mais instruídos dos judeus, que
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moravam em Cirene, avisaram a Catulo, governador da Líbia Pentapolitana, e
ele mandou logo a cavalaria e a infantaria. Não tiveram dificuldade em prendê-
los, porque não estavam armados. A maior parte deles suicidou-se e os outros
foram levados vivos a Catulo.
CAPÍTULO 38
HORRÍVEL MALDADE DE CATULO, GOVERNADOR DA LÍBIA PENTAPOLITANA,
QUE PARA SE ENRIQUECER COM OS BENS DOS JUDEUS, ACUSA-OS
FALSAMENTE, E ENTRE OS OUTROS, TAMBÉM AFOSEFO, AUTOR DESTA
HISTÓRIA, DE TEREM LEVADO
 JÔNATAS, CHEFE DOS SICARIOS QUE TINHAM
SIDO PRESOS , AFAZER O QUE ELE TINHA FEITO.
 VESPASIANO DEPOIS DE SE TER
INFORMADO BEM NO ASSUNTO, MANDA QUEIMAR
 JÔNATAS VIVO.
TENDO SIDO DEMASIADO CLEMENTE COM CATULO, VÊ ESSE HOMEM
MORRER DE UMA MANEIRA ESPANTOSA.
543. jônatas, chefe dessa pobre gente, que se tinha deixado enganar por
ele, escapou; mas procuraram-no com tanto cuidado que ele foi aprisionado e
levado a Catulo. Para retardar o seu suplício ele propôs-lhe um meio fácil para
se enriquecer, servindo-se dele para acusar os mais ilustres dos judeus de
Cirene de tê-lo levado a fazer o que ele havia feito. Esse ambicioso governador
prestanteu facilmente ouvidos a tão grande calúnia e a fim de parecer de algum
modo ter terminado a guerra aos judeus, para cúmulo de maldade, incitou
aqueles celerados sicários a renovar as acusações para perderem àqueles
inocentes. Ordenou-lhes particularmente que acusassem a um judeu de nome
Alexandre, que todos sabiam que ele odiava há muito tempo e fê-lo morrer com
Berenice, sua esposa, que ele envolveu na mesma acusação. Mandou em
seguida matar também três mil outros judeus cujo único crime era serem ricos,
pensando que nada tinha a temer, porque contentava-se de lhes tomar o
dinheiro, confiscando suas terras para o império; para lhes tirar os meios de
acusá-lo, a todos os que moravam em outras províncias, bem como provar seus
crimes, ele se serviu do mesmo Jônatas e de alguns outros do seu partido,
prisioneiros com ele, para denunciar, como culpados, os homens de bem
daquela nação, que moravam em Alexandria e em Roma, no número dos quais
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estava Josefo, autor desta história. Depois de ter combinado tão grande
maldade, não tendo dúvidas de conseguir o seu detestável desígnio, ele foi a
Roma, levou Jônatas acorrentado e aqueles outros caluniadores. Mas foi
enganado em suas esperanças, pois Vespasiano desconfiou e quis conhecer a
verdade; e vindo a sabê-la declarou inocentes, por solicitação de Tito, Josefo e
os outros que tinham sido falsamente acusados, e para castigar Jônatas, como
ele merecia, mandou queimá-lo vivo, depois de tê-lo feito açoitar com varas.
Quanto a Catulo, a clemência desses dois príncipes salvou-o. Mas logo
depois ele foi atacado de uma doença incurável e tão horrível, que por mais
extraordinárias e insuportáveis que fossem as dores, que ele sentia por todo o
corpo, as que lhe feriam a alma ainda as sobrepujavam de muito. Ele era
agitado sem cessar por um terror espantoso; dizia que via diante dos olhos os
espectros espantosos daqueles que tinha tão cruelmente feito morrer e não
podendo ficar quieto lançava-se do leito, como o teria feito da roda do suplício
ou do meio de um braseiro ardente. Seus males quase inacreditáveis
aumentaram, cada vez mais e por fim, com as entranhas devoradas pelo fogo,
que o consumia, ele acabou sua vida criminosa, por uma morte que provava
como Deus queria mostrar com um exemplo tão notável, a ferocidade dos
castigos que os maus devem esperar de sua justiça. Terminarei aqui a história
da guerra dos judeus contra os romanos, que eu havia determinado a dar ao
público, para prazer das pessoas que desejassem conhecê-la. Deixo, porém, o
juízo, aos que a lerem e contento-me de afirmar que nada acrescentei à
verdade, a qual é o único objetivo, que me propus, em tudo o que escrevi.
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III Parte
Apêndice
Resposta de
Flávio Josefo a Ápio
Prefácio
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Resposta de Josefo ao que Ápio escrevera contra a sua História dos
judeus, no que se refere à antigüidade de sua descendência.
Eu penso, virtuoso Epafrodita, ter claramente demonstrado, pela história
que escrevi em grego, sobre o que se passou durante cinco mil anos, que
parece, pelas nossas Santas Escrituras, que nossa nação judaica é muito
antiga e não teve sua origem de nenhum outro povo. Mas, vendo que muitos
prestam fé às calúnias de alguns, que negam essa antigüidade e baseiam-se,
para contestá-la, no fato de que os mais célebres historiadores gregos não falam
absolutamente disso, julguei dever manifestar-lhe a malícia e desfazer o engano
daqueles que se deixaram convencer por sua impostura fazendo ver, o mais
breve possível, às pessoas que amam a verdade da antigüidade de nossa
descendência. Usarei, para valorizar o que direi, dos mais célebres e antigos
historiadores gregos. Quanto aos que tão maliciosamente me caluniaram, eu os
confundirei por si mesmos; acrescentarei as razões que impediram vários
outros historiadores gregos de falar de nós e farei ver claramente que aqueles
que isso escreveram, ou ignoravam ou fingiram ignorar a verdade das coisas
que referiram.
Livro Primeiro
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CAPÍTULO 1
AS HISTÓRIAS GREGAS SÃO AS QUE MENOS DEVEMOS ACREDITAR NO QUE SE
REFERE AO CONHECIMENTO DA ANTIGÜIDADE; OS GREGOS MUITO TARDE
INICIARAM-SE NAS LETRAS E NAS CIÊNCIAS.
Eu não poderia não me admirar de que ainda haja gente que pensa, que
se deve consultar os gregos, com relação à certeza das coisas mais antigas e
que não se deve prestar fé aos outros. É justamente o contrário; não há, para
bem julgarmos, como considerar as coisas em si mesmas sem nos determos em
opiniões que não têm fundamento algum.
Tudo o que vejo entre os gregos é novo; quer eu considere a fundação de
suas cidades, quer a invenção de suas cidades, quer a invenção das artes, de
que eles se vangloriam, quer o estabelecimento de suas leis, quer sua aplicação
à composição da história, com bastante cuidado. Sem falar de nós, eles são
mesmo obrigados a confessar que os egípcios, os caldeus e os fenícios a eles se
afei-çoaram desde todos os tempos sem que nada se tenha passado entre eles,
de que não tenham tido prazer em conservar a memória, mesmo com inscrições
públicas feitas pelos sábios e pelos mais hábeis entre eles. A isso poderemos
acrescentar que tantas e tão diversas mudanças entre os gregos fizeram perder-
se a lembrança do passado; quanto às coisas que eles descobriram, embora se
vangloriem de serem os mais hábeis de todos os homens, eles devem saber que,
com dificuldade, ainda adquiriram o verdadeiro conhecimento das letras. Eles
se gabam de as ter obtido dos fenícios e de Carmo; mas eles não saberiam
mostrar nem nos Templos, nem nos arquivos públicos, alguma inscrição feita
naquele tempo; e duvida-se mesmo de que, quando vários séculos depois, eles
sitiaram Tróia, tinham o uso da escrita; a opinião mais comum, porém, é que
ainda não o tinham. Não poderíamos contestar que o poema mais antigo não
seja o de Homero, que não pode ter sido feito senão depois dessa guerra tão
célebre. Muitos julgam mesmo que ele não tinha sido escrito e que não se tinha
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conservado a não ser na memória dos que o haviam aprendido de cor, para
cantá-lo; depois escreveram-no, o que faz que se encontrem várias coisas
contraditórias. Quanto a Cadmo Müller, Argeu, Acusilas e outros gregos que
resolveram escrever a história, eles precederam de muito pouco à guerra
empreendida por sua nação contra os persas. Com respeito a Ferecida, o sírio,
Pitágoras e Talete, que são os primeiros dentre eles, os quais trataram das
coisas celestes e divinas, todos confessaram ter sido discípulos dos egípcios e
dos caldeus e eu duvido de que se tenha algo escrito a esse respeito, antes
desse pouco que eles deixaram.
Houve, então, jamais, vaidade mais mal fundada do que a dos gregos,
quando se vangloriam de serem os únicos que têm conhecimento da
antigüidade e que só dão a conhecer coisas mui verdadeiras? Ao invés, é
evidente, por seus escritos, que nada contém de certo; mas, cada qual refere
seus sentimentos, segundo deles está persuadido; assim, a maior parte de seus
livros combate e sustenta, nos mesmos motivos, coisas contrárias. Eu seria
demasiado longo se quisesse referir em quantos lugares Helânico é diferente de
Acusilas, no que diz respeito às genealogias; e Hesíodo, contrário a Acusilas; em
quantos outros Éforo acusa Helânico de não ter dito a verdade. Timeu trata
Éforo do mesmo modo; outros não poupam igualmente a Timeu e todos em
geral dizem a mesma coisa de Heródoto. Timeu também não está de acordo com
Antíoco, Filisto e Callias na história da Sicília, e os que escreveram a de Atenas
e de Argos não são menos diferentes uns dos outros. Que direi da diversidade
que encontramos entre os que escreveram sobre as cidades, a guerra contra os
persas e outras coisas, nas quais pessoas muito estimadas são totalmente
contrárias? Não se acusa também a Tucídides de não ter sido verídico em tudo,
embora nenhum outro tenha escrito a história do seu tempo com tanta
exatidão?
Os que quiserem indagar a razão dessa diferença que constatamos entre
os historiadores gregos talvez encontrem diversas causas disso. Eu as atribuo
principalmente a duas: mais importantes, segundo o meu parecer, é que os
gregos não se tendo antecipadamente proposto o fim de escrever a história,
quando, tendo depois resolvido falar dela e das coisas passadas, encontraram
plena liberdade de referi-las, como mais lhes agradava, porque, não tendo nada
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escrito a esse respeito, não se poderia acusá-los de as terem falseado. Pois, não
somente os outros povos da Grécia tinham-se descuidado em escrever a
história, mas não se encontra mesmo antigüidade entre os atenienses, embora
eles se gloriem de não ter sua origem de outrem, nem de outra nação e de
cultivar as ciências. Estão mesmo de acordo em que tudo o que eles
escreveram, nada é antigo, menos as leis, que lhes foram dadas por Dracom,
com relação ao castigo dos crimes, um pouco antes que Pisístrato tivesse
usurpado o governo. Eu poderia citar também os arcádios, que se gloriam de
sua antigüidade. Não sabemos, porém, que eles foram instruídos nas letras, só
depois daqueles de que acabo de falar?
Assim, nada havendo de escrito entre os gregos, para instruir sobre a
verdade àqueles que desejariam sabê-la e acusar de mentira os que quisessem
desvirtuá-la, nos não devemos admirar das contradições que encontramos entre
esses diversos escritores, pios que seu objetivo não era indagar da verdade,
embora eles jamais deixem de testemunhar o contrário, mas somente
conquistar a reputação de bem escrever. Uns, em vez de referir coisas
verdadeiras, encheram seus escritores de contos feitos para divertir; outros, só
pensaram em louvar as cidades e os príncipes; outros, só quiseram repreender
e censurar os que haviam escrito antes deles, para firmar sua reputação sobre
a ruína da deles, coisas todas contrárias à história da qual nada demonstra
tanta verdade, como referir as coisas de uma mesma maneira, ao passo que
esses historiadores pretendiam parecer tanto mais verídicos quanto eles eram
menos conformes aos outros. Queremos então ceder aos gregos, no que se
refere à linguagem e à presunção de parecerem eloqüentes, mas não no que se
refere à verdade da história antiga e ao que se passou em cada país.
CAPÍTULO 2
OS EGÍPCIOS E OS BABILÔNIOS EM TODOS OS TEMPOS SEMPRE FORAM
MUITO CUIDADOSOS EM ESCREVER A HISTÓRIA.
 NENHUM OUTRO POVO
JAMAIS O FEZ COM TANTA EXATIDÃO E VERDADE COMO OS JUDEUS.
Como ninguém duvida de que os egípcios e os babilônios não tenham, em
todos os tempos, tido grande cuidado em escrever as suas crônicas, os
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primeiros dos quais davam esse encargo aos sacerdotes, que o cumpriam com
muita competência e dignamente; os caldeus faziam o mesmo, entre os
babilônios; os fenícios misturando-se com os gregos ensinaram-lhes as letras,
deram-lhes regras para seu proceder e ensinaram-lhes também a registrar seus
atos em arquivos públicos; disso, porém, nada direi aqui; contentar-me-ei em
mostrar brevemente que nossos antepassados tiveram o mesmo cuidado, e
talvez, ainda maior: encarregaram os sumos sacerdotes e os profetas de fazê-lo
e isso continuou com a mesma exatidão até os nossos tempos e continuará
sempre, como eu espero, porque não se escolhem somente, para esse fim,
homens de grande virtude e piedade, mas, a fim de que a descendência dessas
pessoas consagradas ao serviço de Deus permaneça sempre pura, ela não se
mistura com as outras. Assim, aqueles que exercem o sacerdócio não se podem
casar, senão com mulheres de sua mesma tribo, e sem considerar outros bens
nem vantagens materiais e temporais, é preciso ter uma prova, constante, de
diversas testemunhas, de que elas são descendentes de uma dessas antigas
famílias da tribo de Levi; essa ordem é observada não somente na Judéia, mas
também em todos os lugares onde a nossa nação está espalhada, como no
Egito, em Babilônia e em todos os outros lugares. Eles mandam a Jerusalém o
nome do pai daquela que eles querem desposar, com um relato de sua
genealogia, garantida por testemunhas. Se sobrevier alguma guerra, como já
aconteceu várias vezes no tempo de Antíoco Epifânio, de Pompeu, o Grande, de
Qualio Varo, e particularmente em nosso tempo, os sacerdotes fazem nos
antigos registros novos registros de todas as mulheres da família sacerdotal,
que ainda restam e não se desposam as que já foram escravas, de receio de que
já tenham tido alguma relação com estrangeiros. Pode haver algo de mais exato
para isentar as raças de toda mistura, pois que nossos sacerdotes podem por
argumentos tão autênticos provar a sua descendência de pais e filhos, há dois
mil anos? Se alguém deixar de observar essa ordem, será afastado do altar e
não lhe será permitido jamais exercer alguma das funções sacerdotais. Não
pode haver, de resto, nada de mais certo do que os escritores autorizados entre
nós, pios que eles não poderiam estar sujeitos a controvérsia alguma, porque só
se aprova o que os profetas escreveram há vários séculos, segundo a verdade
pura, por inspiração e por movimento do Espírito de Deus. Não temos, pois,
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receio de ver entre nós um grande número de livros que se contradizem. Temos
somente vinte e dois que compreendem tudo o que se passou, e que se referem
a nós, desde o começo do mundo até agora, e aos quais somos obrigados a
prestar fé. Cinco são de Moisés, que refere tudo o que aconteceu até sua morte,
durante perto de três mil anos e a seqüência dos descendentes de Adão. Os
profetas que sucederam a esse admirável legislador escreveram, em treze outros
livros, tudo o que se passou depois de sua morte até o reinado de Artaxerxes,
filho de Xerxes, rei dos persas, e os quatro outros livros contêm hinos e
cânticos feitos em louvor de Deus e preceitos para os costumes. Escreveu-se
também tudo o que se passou desde Artaxerxes até os nossos dias, mas como
não se teve, como antes, uma seqüência de profetas não se lhes dá o mesmo
crédito, que aos outros livros, de que acabo de falar e pelos quais temos tal
respeito, que ninguém jamais foi tão atrevido para tentar tirar ou acrescentar,
ou mesmo modificar-lhes a mínima coisa. Nós os consideramos como divinos,
chamamo-los assim; fazemos profissão de observá-los inviolavelmente e morrer
com alegria, se for necessário, para prová-lo. Foi isso que fez morrer um tão
grande número de escravos de nossa nação em espetáculos dados ao povo,
tantos tormentos e tantas mortes diferentes, sem que jamais se pudesse
arrancar de sua boca uma única palavra contra o respeito devido às nossas leis
e às tradições de nossos antepassados. Qual dos gregos jamais fez algo de
semelhante? Eles, que não sofreriam a mínima coisa para sustentar todos os
seus livros, porque sabem que são apenas palavras nascidas do capricho dos
que as escreveram; como poderiam julgar de outro modo de seus antigos
autores, quando eles vêem que os novos escreveram ousadamente sobre coisas
que não viram ou apenas souberam-nas daqueles que as viram?
CAPÍTULO 3
OS QUE ESCREVERAM SOBRE A GUERRA DOS JUDEUS CONTRA OS ROMANOS
NÃO TINHAM NENHUM CONHECIMENTO DELA, POR SI MESMOS, E NADA SE
PODE ACRESCENTAR AO QUEJOSEFO ESCREVEU SOBRE ESSE MESMO ASSUNTO ,
NEM AO SEU CUIDADO DE NADA REFERIR CONTRA A VERDADE .
Quanto a esta última guerra, que nos foi tão funesta, não é estranho que
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alguns, tendo-a escrito ante à relação de certas coisas, que lhes foram
reveladas, sem ter jamais visto os lugares onde ela se travou, nem mesmo deles
se aproximaram, tiveram, entretanto, a ousadia de querer passar por
historiadores? Não se pode dizer o mesmo de mim. Tudo o que escrevi é
segundo a verdade; eu estive presente a tudo; eu combati com o exército sob
meu comando, na Galiléia, durante todo o tempo em que ela estava em
condições de resistir e quando foi tomada pelos romanos, Vespasiano e Tito
conservaram-me prisioneiro, fizeram-me ver todas as coisas, embora no começo
eu ainda estivesse preso, como escravo, e quando me tiraram as cadeias fui
mandado com Tito para sitiar Jerusalém. Nada se fez durante esse tempo que
eu não viesse a conhecer; eu via e considerava com extremo cuidado tudo o que
se passava no exército romano; escrevi muito exatamente e indagava até
mesmo dos menores particulares, sobre o que se fazia em Jerusalém, daqueles
que se vinham entregar como prisioneiros. Assim, tendo o material para minha
história, trabalhei em escrevê-la, com o auxílio de alguns meus amigos, com
relação ao que se referia à língua grega e tenho tanta certeza de só ter relatado
a verdade, que não tenho receio de tomar como testemunhas do que eu escrevi
ao mesmo Vespasiano e a Tito, que tinham o supremo comando dessa guerra.
Eles foram os primeiros aos quais mostrei meu trabalho; mostrei-o depois a
vários outros romanos, que haviam combatido sob suas ordens e depois que o
publiquei, vários de nossa nação que conheciam a língua grega viram-no
também, particularmente Júlio Arquelau, Herodes, tão recomendável por sua
virtude,
 e
 mesmo
 o
 rei
 Agripa,
 esse
 excelente
 príncipe.
 Todos
 eles
testemunharam o cuidado que eu tive de relatar fielmente a verdade; o que eles
não teriam o cuidado de fazer, se eu a ela tivesse faltado por negligência ou por
ignorância ou por bajulação. Alguns, entretanto, tiveram a malícia de me
censurar, por observações tão ridículas como se fossem crianças de escola. Eles
devem saber que para se escrever fielmente uma história é necessário saber,
com certeza, por si mesmo, as coisas que se relatam, ou tê-las sabido daqueles
que delas tiveram um perfeito conhecimento. Foi o que fiz em minha obra, pois
hauri dos livros santos o que eu disse sobre a antigüidade, como sendo de
família sacerdotal e educado nessa santa ciência. Quanto a esta última guerra,
tomei parte em grande número dos fatos que refiro; a muitas presenciarei com
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meus próprios olhos e nada disse a esse respeito, de que não tivesse plena
certeza. Poder-se-iam, então, considerar como impostores aqueles que me
acusam de não ser verídico, e que ainda que eles se gloriem de ter visto os
comentários de Vespasiano e de Tito, não tiveram conhecimento algum do que
se passou do lado dos judeus, que sustentaram essa guerra?
Sinto-me obrigado a fazer esta digressão para mostrar quais os
conhecimentos que devem ter os que tomam a deliberação de escrever uma
história, e penso ter feito ver claramente que os de nossa nação são mais
capazes que os bárbaros e que os gregos, de escrever coisas cuja memória está
tão longe de nosso século.
CAPÍTULO 4
RESPOSTA AO QUE, PARA AFIRMAR QUE A NAÇÃO DOS JUDEUS NÃO É ANTIGA, SE DISSE ,
QUE OS HISTORIADORES GREGOS NÃO FALAM DELA.
Quero agora refutar aqueles que procuram fazer crer que nossa disciplina
e a forma de nosso governo não são antigas. Eles não citam outra razão, que
esta, isto é, que os autores gregos disso não falam. Citarei em seguida provas
da antigüidade de nossa nação, tiradas dos escritos dos outros povos e
mostrarei a malícia daqueles que nos tratam desse modo.
Como o país que habitamos está afastado do mar, nós não nos damos ao
comércio e não temos comunicação com as outras nações. Contentamo-nos em
cultivar nossas terras que são muito férteis e trabalhamos principalmente em
educar bem nossos filhos, porque nada nos parece tão necessário como instruí-
los no conhecimento de nossas santas leis e numa verdadeira piedade que lhes
inspira o desejo de as observar. Estas razões, unidas ao que já disse, e a essa
maneira de viver que nos é própria, fazem ver que nos séculos passados não
tivemos comunicação alguma com os gregos, como os egípcios e os fenícios, que
habitam em províncias marítimas e negociam com eles, pelo desejo de se
enriquecerem; nossos pais não fizeram, como outras nações, incursões sobre os
vizinhos, nem lhes fizeram guerra, pelo desejo de aumentar suas propriedades,
embora fossem em grande número e muito valentes. Não se deve, portanto,
achar estranho que os egípcios, os fenícios e os outros povos que navegam nos
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mares tenham sido conhecidos pelos gregos e de que os medos e os persas
também o tenham sido, em seguida, pois eles reinavam na Ásia, e os persas
levaram a guerra até a Europa. Os trácios, do mesmo modo, foram conhecidos
deles, porque lhes estão muito próximos. Os citas, ou tártaros, foram-no por
meio dos que navegavam no mar do Ponto; geralmente, todos os que moram ao
longo dos mares orientais e ocidentais foram-no, daqueles que quiseram escre-
ver alguma coisa, do que a eles se refere. Quanto aos povos que habitam as
terras afastadas do mar, permaneceram-lhes desconhecidos, durante um longo
tempo e a mesma coisa aconteceu na Europa, como parece, porque ainda que
os romanos se tivessem há muito elevado a tão grande poderio e tivessem venci-
do tantas guerras, Heródoto, Tucídides e os outros historiadores que
escreveram nesse mesmo tempo não fazem menção deles, porque os gregos
deles tiveram conhecimento somente muito tarde. Sua ignorância sobre as
Gálias e a Espanha foi tal, que aqueles que passam pelos mais exatos, como
Éforo, imaginaram que a Espanha, que ocupa no Ocidente uma grande
extensão de terra, era apenas uma cidade e nada referem nem dos costumes
dessa província, nem do que ali se passa. Seu afastamento fê-los ignorar a
verdade e o desejo de parecer melhor informados do que os outros, fê-los
escrever coisas inverídicas.
Há, pois, motivo de se admirar que nossa nação, não estando próxima do
mar, não fazendo alarde de escrever, e vivendo da maneira como eu disse,
tenha sido pouco conhecida? Se para me servir do mesmo raciocínio dos gregos
eu citasse, para provar que sua nação não é antiga, que dela nada está escrito
entre os nossos, não zombariam eles de mim e não apresentariam como
testemunha do contrário, os povos que lhes são vizinhos? Deve-me, pois, ser
permitido fazer o mesmo, servir-me entre outras coisas do mesmo testemunho
dos egípcios e dos fenícios, que eu não temo, que me acusem de falsidade,
embora os egípcios nos odeiem e os fenícios não nos amem e particularmente
os de Tiro sejam nossos inimigos. Não direi o mesmo dos caldeus, pois eles
reinaram sobre a nossa nação e falam de nós em vários lugares de seus
escritos.
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CAPÍTULO 5
TESTEMUNHO DOS HISTORIADORES EGÍPCIOS E FENÍCIOS COM RELAÇÃO À ANTIGÜIDADE
DA NAÇÃO DOS JUDEUS.
Mas, para confundir completamente os que me acusam de não ter referido
a verdade, eu mostrarei, depois de a ter estabelecido, que mesmo os
historiadores gregos falaram de nós e servir-me-ei antes do testemunho de
alguns egípcios, dos quais não se poderia duvidar de que nos são favoráveis.
Manetom, um deles, que todos sabem ter sido um sábio na língua grega, pois
escreveu nessa língua a história do seu país, que ele diz ter tirado dos livros
santos, acusa em vários lugares a Heródoto de falsidade pela ignorância, em
que ele vivia a respeito dos assuntos do Egito: eis suas próprias palavras, no
seu segundo livro: "Sob o reinado de Timau, um de nossos reis, Deus, irritado
contra nós, permitiu que quando não havia motivo de se temer um grande
exército, de um povo que não tinha reputação alguma, viesse do lado do
Oriente, e se tornasse sem dificuldade senhor de nosso país, matasse uma
parte de nossos príncipes, acorrentasse os outros, queimasse nossas cidades,
destruísse nossos Templos e tratasse tão cruelmente os habitantes, que muitos
morreram, e reduzisse as mulheres e as crianças à escravidão, estabelecesse
por rei um de sua nação, chamado Salatis. Esse novo príncipe veio a Mênfis,
impôs um tributo às províncias tanto superiores como inferiores, estabeleceu
ali fortes guarnições, principalmente do lado do Oriente, porque previa que
quando os assírios se tornassem mais poderosos do que então, vir-lhes-ia a
vontade de conquistar aquele reino. Tendo encontrado na região de Saite, ao
oriente do rio Bubaste, uma cidade outrora chamada Avaris, cuja situação lhe
pareceu muito vantajosa, ele a fortificou bastante e dispôs em seus arredores
soldados em número de uns duzentos e quarenta mil. Para lá ele ia no tempo
da ceifa, para assistir à colheita e à revista de suas tropas, mantê-las em tal
exercício e tão grande disciplina que os estrangeiros não ousassem perturbá-lo
na posse de seu território. Reinou dezenove anos. Boeon sucedeu-lhe e reinou
quarenta e quatro. Apachnas sucedeu a Boeon e reinou trinta e sete anos e seis
meses. Apofis, que lhe sucedeu, reinou sessenta e um anos. Janias, que cingiu
a coroa depois dele, reinou cinqüenta anos e um mês e Assis, que lhe sucedeu,
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reinou quarenta e nove anos e dois meses. Tudo esses seis reis fizeram para
exterminar a raça dos egípcios, que eram chamados de hicsos, isto é, reis
pastores, porque hic na língua santa significa rei e sos, em língua vulgar,
significa pastor. Alguns dizem que eles eram árabes.
Encontrei em outros livros que essa palavra "hicsos" não significa reis
pastores, mas pastores escravos; porque hic em língua egípcia e hac quando é
pronunciado com aspiração, significa sem dúvida, escravo, e isso me parece
mais verossímil e mais conforme à história antiga".
Esse mesmo autor diz que quando esses seis reis e os que vieram depois
deles reinaram no Egito, durante quinhentos e onze anos, os reis da Tebaida e
do que restava no Egito, que não tinha sido dominado, declararam guerra a
esses pastores; que essa guerra durou muito tempo, mas que por fim o rei
Alisfragmoutofis venceu-os; e depois de ter expulsado a maior parte deles do
Egito, os que ficaram retiraram-se a um lugar de nome Avaris, que continha dez
mil medidas de terra, e o cercaram com um muro muito forte, para lá estarem
em segurança e conservar, além de seus bens, o que pudessem apanhar em
outros
 lugares.
 Temosis,
 filho
 de
 Alisfragmoutofis,
 foi
 atacá-los
 com
quatrocentos e oitenta mil homens, mas, perdendo a esperança de poder vencê-
los, fez com eles um acordo, isto é, que eles sairiam do Egito para se retirarem
onde quisessem, sem que se lhes fizesse algum mal; e seu número era de
duzentos e quarenta mil. Eles partiram com todos os seus bens, para fora do
Egito, através do deserto da Síria, e temendo os assírios que então dominavam
em toda a Ásia eles se dirigiram para um país que hoje é chamado de Judéia,
onde construíram uma cidade capaz de conter aquela grande multidão de povo
e a chamaram Jerusalém.
O mesmo Manetom, em outro livro, onde trata do que se refere ao Egito,
disse que encontrou nos livros que são tidos por sagrados, entre os de sua
nação, que chamavam a esse povo de pastores cativos e nisso ele diz a verdade,
porque nossos antepassados ocupavam-se da criação de gado e eram chamados
de pastores; não há, pois, motivo de admiração de que os egípcios tenham
acrescentado a palavra "cativos", pois que José disse ao rei do Egito que ele era
escravo e obteve desse soberano a permissão de mandar buscar seus irmãos.
Tratarei, porém, mais detalhadamente destas coisas em outro lugar; por ora
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contentar-me-ei em referir o testemunho desses autores egípcios com relação à
antigüidade de nossa descendência.
Assim continua, pois, Manetom a falar: "Depois que o rei Temosis
expulsou os pastores do Egito e eles foram construir Jerusalém, reinou ainda
vinte e cinco anos e quatro meses. Chebron, seu filho, reinou treze anos. Depois
dele, Amenofis reinou vinte anos e sete meses. Amessis, sua irmã, reinou vinte
anos e nove meses. Mefrés reinou em seguida, doze anos e nove meses.
Meframutosis, vinte e cinco anos e dez meses. Temosis, nove anos e oito meses.
Amenofis, trinta anos e dois meses. Oro, trinta e seis anos e cinco meses.
Acencherés, doze anos e um mês. Ratosis, seu irmão, nove anos. Acencherés,
doze anos e cinco meses. Um outro Acencherés, doze anos e três meses.
Armais, quatro anos e um mês. Ramasses, um ano e quatro meses.
Armecsemiamum, sessenta e seis anos e dois meses, e Amenofis, dezenove anos
e seis meses. Cetosis Ramesses, que lhe sucedeu, reuniu grandes tropas, de
terra e de mar, deixou Armais, seu irmão, como seu lugar-tenente geral no
Egito, com poder absoluto, proibindo-lhe somente tomar a qualidade de rei,
nada fazer em detrimento de sua esposa e de seus filhos e abusar de suas
concubinas. Marchou em seguida contra a ilha de Chipre, a Fenícia, os assírios
e os medos, venceu uns e submeteu outros, somente com o terror de suas
armas. Tantos e felizes resultados encheram-lhe o coração e ele quis levar suas
conquistas ainda mais além, ao Oriente, mas Armais, a quem ele tinha dado tão
grande autoridade, fez precisamente o contrário do que ele lhe tinha ordenado:
expulsou a rainha, abusou das concubinas do rei, seu irmão, e, deixando-se
persuadir por seus aduladores, pôs a coroa na cabeça. O sumo sacerdote do
Egito avisou logo a Cetosis. Ele voltou imediatamente, passando por Pelusa e se
manteve no seu reino. Julga-se que foi esse príncipe que deu o nome ao Egito,
porque ele tinha o de Egito, bem como Cetosis, e Armais chamava-se também
Danaus".
Assim fala Manetom, e é certo que contando todos esses anos, eles estão
de acordo e aqueles a que chamavam de pastores, isto é, nossos antepassados,
saíram do Egito trezentos e noventa e três anos antes que Danaus fosse a
Argos, embora os argienses tanto se gloriem da antigüidade desse príncipe.
Assim, vemos que Manetom prova com a autoridade da história do Egito duas
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coisas muito importantes sobre o assunto de que tratamos; uma, que nossos
antepassados vieram do Egito; outra, que eles de lá saíram cerca de mil anos
antes da guerra de Tróia. Quanto ao que ele acrescenta e que ele confessa não
ter tirado da história do Egito, mas de alguns autores sem nome, mostrarei
claramente em continuação, que são meras fábulas, sem verdade e sem
fundamento.
Mas quero referir antes o que os fenícios escreveram e confirmaram sobre
a nossa nação pelo testemunho que eles nos prestaram. Os tírios conservam
com grande cuidado os registros públicos, muito antigos, que referem o que se
passou entre eles e que também dizem da nossa nação, coisas muito
importantes. Diz que o rei Salomão mandou construir um Templo em
Jerusalém cento e quarenta e três anos e oito meses antes que seus
antepassados tivessem deixado Cartago, e eles descrevem esse Templo assim:
"Hirão, um de seus reis, fora muito amigo do rei Davi e continuou a sê-lo do rei
Salomão, seu filho; como prova disso, na construção do Templo, deu-lhe de
presente vinte e cinco talentos e madeira de uma linda floresta que ele mandou
cortar no monte Líbano para servir na sua cobertura e em seus soberbos forros
artísticos. Salomão, por sua vez, fez-lhe muitos ricos presentes, mas o amor da
sabedoria uniu ainda esses dois príncipes. Eles mandaram reciprocamente
enigmas para serem decifrados e Salomão nisso era superior a Hirão". Os tírios
conservam ainda hoje com grande cuidado várias cartas que eles trocaram, e
para confirmar a veracidade do que estou dizendo citarei o testemunho de Dio,
que, todos estão de acordo, escreveu fielmente a história dos fenícios. Eis suas
próprias palavras: "O rei Abibal morrera e Hirão, seu filho, que lhe sucedeu,
aumentou as cidades do seu reino que estavam do lado do oriente, aumentou
ainda mais a de Tiro, e por meio de grandes estradas e pavimentos que
construiu, uniu o Templo de Júpiter Olímpico e o enriqueceu com várias obras
de ouro. Mandou cortar madeira no monte Líbano para a construção dos
Templos; diz-se que Salomão, rei de Jerusalém, mandou-lhe alguns enigmas,
dizendo-lhe que se ele não os pudesse explicar pagar-lhe-ia certa soma e Hirão,
confessando mesmo que os não entendia, lha pagou. Mas depois, Hirão,
mandou também propor-lhe alguns enigmas por meio de um certo Abdemom,
que ele também não pôde explicar; Salomão pagou-lhe do mesmo modo uma
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grande soma".
Este é o testemunho que nos dá este autor, mas eu citarei também o de
Menandro, de Éfeso. Ele escreveu os feitos de vários reis, tanto gregos como
bárbaros, e para provar a verdade dessa história, ele se serve de atos públicos
de todos os Estados de que ele fala. Depois de ter citado os príncipes que
reinaram em Tiro, até o rei Hirão, eis o que ele diz: "Ele sucedeu ao rei Abibal,
seu pai, e reinou trinta e quatro anos. Uniu a cidade de Tiro por uma grande
estrada à ilha de Ericore, e ali consagrou uma coroa de ouro, em honra de
Júpiter. Mandou cortar no monte Líbano uma grande quantidade de madeira
de cedro para cobrir os Templos, destruiu os antigos e construiu novos a
Hércules e à deusa Astarteia, dos quais, ele dedicou o primeiro nome de
Operisteu e o outro quando marchava com o exército contra os tírios, para
obrigar, como ele fez, a pagar o tributo que lhe deviam e recusavam-se a pagar.
Um desses indivíduos, de nome Abdemom, embora ainda jovem, explicava os
enigmas que o rei Salomão mandava. Ora, para saber quanto tempo se havia
passado depois da construção de Cartago, conta-se deste modo: morrendo o rei
Hirão, sucedeu-lhe seu filho Beleazar. Morreu na idade de quarenta e três anos,
depois de ter reinado sete. Abdastrate, seu filho, sucedeu-lhe e só viveu vinte e
nove anos, dos quais reinou nove. Os quatro filhos de sua ama mataram-no à
traição, e o mais velho reinou doze anos em seu lugar, Astarte, filho de
Beleazar, reinou durante doze anos depois de ter vivido cinqüenta e quatro.
Aserino, seu irmão, sucedeu-lhe, viveu cinqüenta e quatro anos e reinou nove.
Felete, seu irmão, assassinou-o, usurpou o trono, viveu cinqüenta anos, mas só
reinou oito meses. Itobal, sacerdote da deusa Astarteia, matou-o, reinou em seu
lugar durante trinta e dois anos e morreu com sessenta e oito anos. Baldozor,
seu filho, sucedeu-o, viveu quarenta e cinco anos e reinou seis. Madgem, seu
filho, sucede-o, viveu trinta e dois anos e reinou nove. Pigmalião sucedeu-o e
viveu cinqüenta e seis anos, dos quais reinou quarenta e sete e foi no sétimo
ano de seu reinado que Dido, sua irmã, fugiu para a África, onde construiu
Cartago, na Líbia". Assim, vemos que se passaram cento e cinqüenta e cinco
anos e oito meses, depois do reinado de Hirão, até a construção dessa célebre
cidade e que o Templo de Jerusalém, tendo sido construído no décimo segundo
ano do reinado desse príncipe, sua construção precedeu somente de cento e
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quarenta e três anos e oito meses a de Cartago.
Que podemos desejar de mais forte, do que esse testemunho dos fenícios?
Não mostra ele mais claramente do que a luz do dia que nossos antepassados
vieram à ]udéia, antes da construção do Templo, pois eles o edificaram depois
somente de tê-la dominado pelas armas, como eu já demonstrei na minha
história dos judeus?
CAPÍTULO 6
TESTEMUNHO DOS HISTORIADORES CALDEUS RELATIVAMENTE À ANTIGÜIDADE DA
NAÇÃO DOS JUDEUS.
Vamos agora ao que os caldeus escreveram a nosso respeito e que está
bem conforme com a minha história. Berose, que era dessa nação e que é tão
conhecido e estimado por todos os literatos pelos seus tratados de astronomia e
das outras ciências dos caldeus, que ele escreveu em grego, afirma, conforme as
mais antigas histórias e ao que Moisés disse, a destruição do gênero humano
pelo dilúvio, com exceção de Noé, autor da nossa raça, que por meio da arca
salvou-se, aportando ao cume dos montes da Armênia. Ele fala em seguida dos
descendentes de Noé, conta o tempo até Nabulazar, rei da Babilônia e da
Caldéia, narra seus feitos e diz como ele mandou Nabucodonosor, seu filho,
contra o Egito e a Judéia, que ele submeteu ao seu império, incendiou o Templo
de Jerusalém, levou escravo para Babilônia todo o nosso povo e assim tornou
Jerusalém um deserto durante setenta anos, até o reinado de Ciro, rei da
Pérsia. Ele diz ainda que esse príncipe tinha Babilônia sob seu domínio, bem
como o Egito, a Síria, a Fenícia, a Arábia e que ele sobrepujava pela grandeza
de seus feitos a todos os reis caldeus e babilônios, que o tinham precedido. Eis
como ele fala: "Nabulazar, pai de Nabucodonosor, grande príncipe,* tendo
sabido que o governador que ele havia colocado no Egito, na Síria inferior e na
Fenícia se havia revoltado, não podendo por causa da idade tomar ele mesmo o
comando
 do
 exército
 mandou,
 entre
 outros,
 com
 grandes
 tropas,
Nabucodonosor, seu filho, que ainda estava no vigor da juventude. Este venceu
o rebelde e reduziu todas aquelas províncias ao domínio de seu pai. Soube,
porém, quase ao mesmo tempo que ele tinha morrido em Babilônia, depois de
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ter reinado quase vinte e nove anos; após ter organizado, e posto em ordem,
todos os negócios e interesses das províncias do Egito e das demais, determinou
que aqueles, nos quais mais confiança depositava, reconduzissem seu exército
para Babilônia, com os prisioneiros, judeus, fenícios, sírios e egípcios; partiu
com um pequeno número dos seus e caminhando pelo deserto dirigiu-se a
Babilônia. Encontrou tudo nas condições em que poderia desejar, nada
havendo que os caldeus e os maiorais do reino não houvessem feito para
provar-lhe sua estima e fidelidade. Vendo-se assim em tão alta posição, com
grande poderio e tendo chegado todos os prisioneiros, deu-lhes excelentes
terras na província de Babilônia e determinou que construíssem para ali se
estabelecerem. Enriqueceu os Templos de Bel e de seus outros deuses com os
despojos que havia trazido da guerra; uniu uma nova cidade à antiga Babilônia
e depois de ter feito de modo que aqueles que tentassem cercá-lo não pudessem
desviar o curso do rio, sobre o qual ela estava situada, rodeou-a com uma
tríplice ordem de muralhas e de outra semelhante ao exterior, cujos muros
eram construídos de tijolos endurecidos com betume. Depois de a ter assim for-
tificado, construiu portas tão soberbas, que seriam facilmente tidas por portas
de um Templo. Construiu também perto do palácio do rei, seu pai, um outro
palácio muito maior e mais suntuoso; eu tornar-me-ia demasiado longo se
quisesse descrever-lhe todos os ornamentos e sua incrível beleza. O que
sobrepuja ainda a toda credulidade é que ele foi feito em somente quinze dias.
Como a rainha, sua mulher, que tinha sido educada na Média, gostava da vista
dos montes, ele o fez, com pedras, de tamanho colossal, encaixadas umas nas
outras uma construção que dava a idéia de um monte e mais um jardim
suspenso onde havia toda espécie de plantas".
_________________________
* Na História dos Hebreus, n° 432, chama-se Nabucodonosor, o príncipe
que aqui é chamado de Nabulazar, que provavelmente era seu verdadeiro nome.
Assim fala Berose desse príncipe e diz ainda várias outras coisas, no seu
livro das Antigüidades Caldaicas, onde censura os autores gregos por terem
escrito erradamente que Semíramis, rainha da Assíria, tinha construído
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Babilônia e feito muitas obras maravilhosas; essa história de Berose é tanto
mais digna de fé, quanto está de acordo com o que se vê ainda nos arquivos dos
fenícios, que esse rei de Babilônia, de que eu acabo de falar, tinha dominado
toda a Síria e a Fenícia. Filóstrato confirma também a mesma coisa na sua
história, onde ele faz menção do assédio de Tiro. Magastene, no seu quarto livro
da história dos indos, diz que esse príncipe sobrepujou a Hércules em coragem,
pela magnitude de seus feitos, e que levou suas conquistas até a África e a
Espanha.
Quanto ao que digo, que o Templo de Jerusalém fora incendiado pelos
babilônios, sendo iniciada a sua reconstruído sob o reinado de Ciro, que
dominava toda a Ásia, isso se vê claramente, pelo que o mesmo Berose refere
em seu terceiro livro, cujas palavras são estas: "Nabucodonosor começou a
construir esse muro para cercar Babilônia, mas caiu enfermo e morreu, depois
de ter reinado quarenta e três anos. Evilmerodaque, seu filho, sucedeu-lhe e
suas crueldades e vícios tornaram-se tão odioso que só reinou dois anos e
Neriglissor, que tinha desposado sua irmã, matou-o à traição e reinou quatro
anos. Laborosarcote, que ainda era muito jovem, reinou somente nove meses,
pois aqueles mesmos que tinham sido amigos de seu pai reconheciam que ele
tinha muito más inclinações e encontraram meios de se desfazer dele e depois
de sua morte escolheram de comum acordo para reinar sobre eles a Nabonide,
que era de Babilônia e da mesma raça que ele. Foi sob seu reinado que se
construíram ao longo do rio, com tijolos endurecidos com betume, aqueles
grandes muros que cercam a cidade de Babilônia. No décimo sétimo ano do seu
reinado, Ciro, rei da Pérsia, depois de ter conquistado o resto da Ásia, marchou
com um grande exército para Babilônia. Nabonide escapou com alguns dos
seus, fugindo para a cidade de Borsipe. Ciro sitiou em seguida Babilônia, na
persuasão de que depois de ter tomado o primeiro muro poderia apoderar-se da
cidade, mas tendo-o encontrado muito mais forte do que esperava, mudou de
idéia e foi sitiar Nabonide em Borsipe. O príncipe, não estando em condições de
resistir ao cerco, recorreu à sua clemência e Ciro tratou-o muito humanamente.
Deu-lhe o necessário para viver tranqüilo na Caramânia, onde passou o resto
de seus dias como um homem particular".
Estas palavras de Berose estão de acordo com a história de nossa nação,
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que diz que Nabucodonosor, no décimo oitavo ano de seu reinado, destruiu
nosso Templo, que ele ficou completamente destruído durante setenta anos e
que de novo lhe foram lançados os alicerces no segundo ano do reinado de Ciro,
e foi terminada sua restauração e reconstrução, no segundo ano do reinado de
Dario.
CAPÍTULO 7
OUTROS TESTEMUNHOS DOS HISTORIADORES FENÍCIOS COM RELAÇÃO À ANTIGÜIDADE
DA NAÇÃO DOS JUDEUS.
Depois de tantos testemunhos da antigüidade de nossa raça, quero ainda
referir outros, que são tirados das histórias dos fenícios, pois podemos deles ter
muitas provas e o cômputo dos anos aí nós encontramos. Eis o que dizem: "Du-
rante o reinado de Tobal, Nabucodonosor sitiou a cidade de Tiro. Baal sucedeu
a Tobal e reinou dez anos. Depois de sua morte, o governo passou dos reis aos
juizes. Echinabalis, filho de Baleque, teve essa dignidade durante dois meses.
Chelbis, filho de Abdeu, exerceu o cargo durante dez meses. O sumo sacerdote
Abbar, três meses. Mutgou e Cerasto, filhos de Abderimo, seis anos e Balator,
um ano. Depois mandaram buscar Marbal em Babilônia, o qual reinou quatro
anos. Ciro, rei da Pérsia, também reinava então: todos esses anos juntamente
fazem cinqüenta e quatro anos e três meses. Foi no sétimo ano do reinado de
Nabucodonosor que começou o cerco de Tiro e no décimo quarto ano do reinado
de Irom que Ciro, rei da Pérsia, subiu ao trono". Assim, o que os caldeus e os
tírios disseram do Templo confirma a verdade de nossa história.
CAPÍTULO 8
TESTEMUNHO DOS HISTORIADORES GREGOS COM RELAÇÃO À NAÇÃO DOS JUDEUS, QUE
TAMBÉM LHE DEMONSTRARAM A ANTIGÜIDADE.
A antigüidade de nossa raça é, pois, evidente, e o que referi basta para
obrigar àqueles que não têm espírito de contestação a estar de acordo conosco.
Mas, para convencer mesmo aos que tratam os outros povos de bárbaros e
querem que nós nos atenhamos somente aos gregos, apresentarei testemunhos
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de seus próprios autores que disso tiveram conhecimento e escreveram sobre
coisas que se referem a nós. Pitágoras, de Samos, que viveu há muitos anos e
que sobrepujou a todos os outros filósofos pela sua admirável sabedoria e sua
eminente virtude, não somente conheceu nossas leis, mas as seguiu em várias
coisas. Pois embora nada encontremos escrito por ele, não deixamos de
conhecer os seus sentimentos, pelo que vários historiadores disseram, dos
quais Hermipo é o mais célebre, o qual era excelente e muito exato entre os
historiadores. Ele diz no seu primeiro livro, com relação a Pitágoras, que um
dos amigos desse grande personagem, de nome Califon, nativo de Crotona,
morrera e sua alma não o abandonava nem de dia nem de noite, e entre outras
coisas dizia-lhe que não passasse por um lugar onde um asno tivesse caído;
que não bebesse água que não fosse bem limpa e que jamais maldissesse a
ninguém: e nisso, ele era do mesmo parecer dos gregos e dos trácios e o que
esse autor diz é muito verdade, pois é certo que ele havia tirado das leis dos
judeus uma parte de sua Fílonsofia.
Nossos costumes foram tão apreciados e tão conhecidos por várias
nações, que muitos os abraçaram, como se vê, pelo que Teofrasto escreveu em
seu livro das leis, onde ele diz que as dos tírios proíbem jurar em nome de
qualquer deus estrangeiro, isto é, de outras nações, e põe no número desses
juramentos proibidos o de Corban, isto é, dom de Deus, e deste, sabemos,
somente os judeus é que usam.
Nossa nação foi conhecida também por Heródoto, de Halicarnasso, pois
dela ele faz menção, de algum modo, no segundo livro de sua história, onde,
falando dos de Colcos, diz: "Somente esse povo e os egípcios observam há muito
tempo o costume de se circuncidarem. Os fenícios e os sírios da Palestina estão
de acordo, em que foi dos egípcios que eles o receberam. Quanto aos outros
sírios que moram ao longo do rio de Termodom e de Bartema, como também os
macrons que lhe são vizinhos, eles reconhecem que foi dos de Colcos que eles
receberam o costume da circuncisão. Esses povos são, portanto, os únicos que
o aceitaram, à imitação dos egípcios. Mas, quanto aos egípcios e aos etíopes eu
não saberia dizer qual desses dois povos o recebeu do outro". Vemos, com essa
passagem, que esse autor diz positivamente que os sírios da Palestina se fazem
circuncidar. Ora, de todos os povos da Palestina, somente os judeus se fazem
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circuncidar e por conseguinte é deles que ele fala.
Choerílio, um antigo poeta, conta também nossa nação entre as que
seguiram a Xerxes, rei da Pérsia, na guerra que fez aos gregos, pois, como
poderemos duvidar de que não é de nós que esse poeta fala, se ele diz que essa
nação habita nos montes de Solima, isto é, de Jerusalém e ao longo do lago
Asfaltite, que é o maior de todos os que estão na Síria?
Não terei também dificuldade em provar que os mais célebres dos gregos
não somente conheceram nossa nação, mas também a estimaram muito.
Clearco, um dos discípulos de Aristóteles e que não era inferior a nenhum outro
de todos os filósofos peripatéticos, introduz num diálogo de seu primeiro livro
do sono, Aristóteles, seu mestre, que fala desta maneira, de um judeu que ele
havia conhecido: "Eu seria demasiado longo se vos quisesse entreter com o
resto; con-tentar-me-ia de vos dizer o que vos fará admirar sua sabedoria. Vós
não podereis, disse então Hiperochide, nos obsequiar mais. Eu começarei
então, continuou Aristóteles, para não faltar aos preceitos da retórica, pelo que
se refere à sua raça. Ele era judeu de nascimento, oriundo da baixa Síria, da
qual aqueles que a habitam agora são descendentes desses filósofos e sábios
das índias que eram chamados de chalans e que os sírios chamam de judeus,
porque moram na Judéia, e o nome da sua capital é difícil de se pronunciar,
pois chama-se Jerusalém. Esse homem recebia em sua casa com muita
bondade os estrangeiros que vinham das províncias afastadas do mar, às
cidades que lhe estavam próximas. Ele não somente falava muito bem a nossa
língua, mas estimava muito a nossa nação. Quando eu viajava na Ásia com
alguns dos meus discípulos, ele nos veio visitar e nas conversas que por vezes
entabulamos, achamos que tínhamos muito que aprender das suas palavras".
Eis o que Clearco refere, que Aristóteles dizia desse judeu. A isso ele acrescenta
que sua temperança e seus costumes eram admiráveis. Aconselho que
consultem esse autor os que quiserem saber mais a esse respeito, porque eu
não quero me estender muito.
Hecateu Abderita, que não somente era um grande filósofo, mas muito
perito nos negócios de Estado e que tinha vivido junto de Alexandre, o Grande,
e de Ptolomeu, rei do Egito, filho de Lago, escreveu um livro inteiro sobre o que
se refere à nossa nação. Citarei brevemente alguma coisa, começando por
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determinar-lhe o tempo. Ele fala da batalha entre Ptolomeu e Demétrio, perto
da cidade de Gaza, onze anos depois da morte de Alexandre, na Olimpíada
cento e dezessete, segundo o cômputo de Castor, na sua crônica, e diz: "Nesse
mesmo tempo Ptolomeu, filho de Lago, venceu perto de Gaza, a Demétrio, filho
de Antígono, cognominado Poliorchetes, isto é, destruidor de cidades". Ora,
todos os historiadores estão de acordo em que Alexandre, o Grande, morreu na
Olimpíada cento e quatorze e assim não podemos duvidar de que no tempo
desse grande príncipe nossa nação não fosse florescente. Hecateu acrescenta
que depois dessa batalha Ptolomeu apoderou-se de todas as cidades fortes da
Síria e que sua bondade e doçura conquistaram de tal modo o coração daqueles
povos, que vários seguiram-no para o Egito, e particularmente um sacerdote
judeu, chamado Ezequias, com a idade de sessenta e seis anos, muito estimado
pelos seus compatriotas, muito eloqüente e tão hábil, que nenhum outro o
sobrepujava no conhecimento dos assuntos mais importantes. Esse mesmo
autor diz em seguida que o número dos sacerdotes que recebiam as décimas e
que governavam em comum era de mil e quinhentos; voltando a falar de
Ezequias, ele diz: "Esse grande personagem, acompanhado de alguns dos seus,
muitas vezes conversava conosco, e nos explicava as coisas mais importantes
sobre a disciplina e o proceder dos seus conacionais, que estavam todas
escritas". Ele acrescenta que nós somos tão apegados à observância de nossas
leis, que nada há que não estejamos prontos a sofrer, antes que violá-las. Estas
são as suas palavras: "Embora muitos fossem os males que eles haviam sofrido
de sues vizinhos e particularmente dos reis da Pérsia e de seus lugar-tenentes
generais, jamais pudemos fazê-los mudar de idéias. Nem a perda de seus bens,
nem os ultrajes, nem as feridas, nem mesmo a morte foram capazes de fazê-los
renunciar à religião de seus antepassados. Eles foram destemidos diante de
todos estes males e deram provas incríveis de sua firmeza e constância na
observância de suas leis. Um governador de Babilônia, chamado Alexandre,
querendo restaurar o Templo de Bel que tinha desabado, e obrigando mesmo a
todos os soldados a carregar os materiais para isso, a fim de encetar a obra, os
judeus, foram os únicos que se recusaram. Ele os castigou de diversas
maneiras sem poder jamais vencê-los em sua obstinação e por fim o rei os
dispensou daquele trabalho, que eles julgavam não poder fazer, em consciência.
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Depois que regressaram ao seu país eles destruíram todos os Templos e altares
que tinham sido construídos por deuses e o governador da província fê-los
pagar, por esse motivo, grandes somas como multa". Esse historiador
acrescenta que não se poderia assaz admirar tão grande firmeza e demonstra
também que nossa nação foi tão poderosa, em número de habitantes, que os
persas levaram um grande número deles para a Babilônia e que depois da
morte de Alexandre, o Grande, vários foram também levados para o Egito e para
a Fenícia, por causa da revolução na Síria. Para mostrar a extensão, a
fertilidade e a beleza do país em que nós habitamos, ele diz: "Contém três
milhões de arpentes, cuja terra é tão excelente que não há frutos que ela não
produza". Falando de Jerusalém e do Templo ele diz: "Os judeus têm, de
diversas aldeias e vilas, muitas praças fortes e dentre outras, a cidade de
Jerusalém, que tem cinqüenta estádios de perímetro (cerca de dez mil
quilômetros), e cento e vinte mil habitantes. No meio dessa cidade há um muro
de pedras de quinhentos pés de comprimento (cento e sessenta e cinco metros)
e cem de largura com duas grandes portas e dentro desse recinto há um altar
de forma quadrangular, feito de pedras unidas sem que se tenha nisso dado um
só golpe de martelo. Cada um dos lados desse altar tem vinte côvados (treze
metros) e tem igualmente dez de altura. Bem perto dele há um edifício muito
grande no qual há um outro altar, todo de ouro e também um candelabro de
ouro, que pesa dois talentos, com lâmpadas, onde arde o fogo continuamente,
dia e noite. Mas não há figura nem bosques nos arredores como se vê perto dos
outros Templos dos bosques sagrados. Os sacerdotes lá passam o dia e a noite
em perfeita contingência e jamais bebem vinho".
Esse mesmo autor refere um fato que viu, de um dos judeus, que serviam
no exército de um dos sucessores de Alexandre. Eis suas mesmas palavras:
"Quando eu me dirigia para o mar Vermelho, havia entre os cavaleiros de nossa
escolta um judeu de nome Mausolam, que era tido como um dos mais corajosos
e dos mais hábeis arqueiros entre os gregos e os estrangeiros; vários insistiam
com um adivinho que dissesse por meio do vôo das aves qual seria o resultado
de nossa viagem; este homem mandou que parassem; eles o fizeram e
Mausolam perguntou-lhe o porquê de tal insistência. Responderam-lhe que era
para observar um pássaro, que ele via, porque, se aquele pássaro não se
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afastasse, eles não deviam passar além; mas se ele levantasse vôo diante deles,
eles deviam continuar a viagem: mas se dirigisse o vôo para trás deles eles
seriam obrigados a regressar. Mausolam, sem nada dizer, entesou o arco e
atirou uma flecha matando o pássaro no ar. O adivinho e alguns outros ficaram
tão ofendidos com isso que lhe disseram injúrias; ele, porém, lhes respondeu
somente isto: Perdeste o juízo por lamentar assim esse pássaro infeliz que
tendes nas mãos? Ele ignorava o que lhe seria da vida, como podia ele nos fazer
conhecer que nossa viagem seria feliz? E se ele tinha algum conhecimento do
futuro teria ele vindo aqui para receber a morte de uma das flechas do judeu
Mausolam?"
Isto é suficiente, quanto ao testemunho de Hecateu. Os que quiserem
saber mais, leiam seu livro. Acrescentarei, porém, uma outra prova, tirada de
Abatarcida, o qual, embora não tenha falado com muitos elogios de nossa
nação, não o fez, sem dúvida, por mal. Ele conta de que modo a rainha
Estratônica, depois de ter abandonado o rei Demétrio, seu marido, veio da
Macedônia à Síria, na esperança de desposar o rei Seleuco e disse que essa
intenção, não lhe tendo sido possível, incitou em Antioquia uma revolta contra
ele, quando estava em Babilônia com o exército; e ao seu regresso, ele tomou
Antioquia; ela quis fugir para a Cilícia, mas um sonho que teve impediu-lhe de
continuar a viagem, sendo então feita prisioneira e vindo a morrer. A esse
respeito Agatarcida, para mostrar quantas superstições semelhantes são
condenáveis, cita por exemplo nossa nação, da qual fala nestes termos:
"Aqueles que são chamados judeus moram numa cidade muito forte chamada
Jerusalém. Eles comemoraram tão festivamente o sétimo dia, que não somente
não usam armas nesse dia e não trabalham na terra, mas não fazem outra
coisa qualquer. Passam o dia inteiro orando a Deus no Templo. Assim, quando
Ptolomeu Lago veio com um exército, em vez de lhe resistir, como teriam podido
fazê-lo, aquela louca superstição fez que de medo de violar aquele dia, a que
chamam de sábado, eles o recebessem como senhor e um senhor mui cruel.
Viu-se então quanto aquela lei estava mal fundada: e tal exemplo deve ensinar
não somente a esse povo, mas também a todos os outros que não se pode sem
extravagância aceitar tais imposições, quando um perigo grave e urgente obriga
a delas nos afastarmos". Foi assim que Agatarcida achou nosso proceder digno
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de riso, mas aqueles que julgarem com mais juízo e ponderação confessarão,
sem dúvida, que deveríamos ser por isso mui elogiados, porque preferimos por
um sentimento de religião e de piedade a observância de nossas leis e nossos
deveres para com Deus, à nossa conservação e à da nossa pátria.
Se outros escritores que viveram no mesmo século não falaram de nós em
suas histórias, será fácil conhecermos, pelo exemplo que vou referir, que sua
inveja contra nós ou alguma outra razão semelhante foi disso a causa,
jerônimo, que escreveu no mesmo tempo de Hecateu a história dos sucessores
de Alexandre e que sendo muito amado pelo rei Antígono, era governador da
Síria, não diz uma palavra sequer de nós, embora ele quase tenha sido educado
em nosso país e Hecateu tenha disso escrito um livro inteiro. Aqui parece que o
sentir dos homens é diferente: um porque julga que nós merecíamos que se
falassem muito detalhadamente de nós e o outro, porque não receia, para
obscurecer-lhe a memória, suprimir a verdade. Mas as histórias dos egípcios,
dos caldeus e dos fenícios são suficientes para fazer conhecer a antigüidade de
nossa raça, quando não lhes quiséssemos acrescentar a dos gregos, dentre os
quais além daqueles de que falei, podemos indicar TeóFílon, Teódoto, Mnazeas,
Aristófanes, Hermógenes, Eumero, Conom, Zopírio e talvez outros, pois eu não
li todos os livros que fazem particular menção de nós. A maior parte deles
ignoraram a verdade do que se passou nos primeiros séculos, porque eles não
leram nossos livros santos, mas todos prestam testemunho da antigüidade de
nossa nação, que é o assunto de que me propus tratar. Falero, Demétrio, Fílon,
o antigo, e Eupolemo não se afastaram muito da verdade e se faltaram a ela;
devem ser perdoados, porque eles não puderam ver todos os nossos livros, o
que seria para se desejar, a fim de ficarem bem informados.
CAPÍTULO 9
CAUSA DO ÓDIO DOS EGÍPCIOS CONTRA OS JUDEUS . PROVAS PARA MOSTRAR
QUE
 MANETOM, HISTORIADOR EGÍPCIO, DISSE A VERDADE NO QUE SE REFERE
À ANTIGÜIDADE DA NAÇÃO DOS JUDEUS, E ESCREVEU SOMENTE FÁBULAS
EM TUDO O QUE DISSE CONTRA NÓS.
Resta-me ainda demonstrar a falsidade do que foi dito contra nós, contra
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nossa nação e desmascarar tão grande impostura. Os que têm maior conheci-
mento da história sabem muito bem dos efeitos que o ódio é capaz de gerar em
tais assuntos e que muitos se esforçam por apagar o brilho e censurar o
proceder das nações e das cidades mais ilustres. Foi assim que Teopompo fez
com relação aos atenienses, Polícrates, com os lacedemônios e aquele que
escreveu o Tripolítico, do qual Teopompo não é o autor, como muitos pensam,
com os tebanos. Timeu, também, na sua história censurou muito injustamente
aqueles povos e ainda outros; a isso todos esses autores são levados a
particularmente atacarem as nações que mereciam louvores, uns por inveja,
outros por ódio e outros pelo desejo de se tornarem célebres, com suas palavras
extravagantes; isto surtiu bom resultado entre os loucos e fê-los serem
condenados pelos sábios.
Os egípcios foram os primeiros que nos caluniaram; outros, para lhes
serem agradáveis, torceram a verdade. Não quiseram dizer de que modo nossos
antepassados passaram para o Egito, nem como de lá saíram, porque não
podiam ver sem ódio e sem inveja que, depois de terem entrado em seu país,
eles se tornaram tão poderosos e foram tão felizes depois de terem saído. A
diversidade das religiões também contribuiu muito para a inveja que lhes
incitou no coração, de que não há menos diferença entre a pureza toda celeste
de uma e a brutalidade terrestre da outra do que entre a natureza de Deus e a
dos animais irracionais. Pois é uma coisa ordinária entre eles tomar animais
como deuses e adorá-los, como uma louca superstição, que lhes é infundida
desde a infância. Assim, jamais eles puderam compreender e ainda menos
deixar-se persuadir da excelência de nossa divina Teologia e toleraram com
tanta impaciência que outros a aprovassem e chegaram até a esquisitice de
contradizer os seus antigos autores. Um só que é muito considerado entre eles,
de que já citei um testemunho, para provar a antigüidade de nossa nação, será
suficiente para provar o que estou dizendo. É Manetom, que depois de ter
protestado que tiraria dos livros santos a história do Egito, que ele queria
escrever, diz que nossos antepassados, tendo ido para lá em grande número, se
haviam tornado senhores de tudo, mas que algum tempo depois foram expulsos
de lá e se estabeleceram na judéia e lá construíram um Templo. Nisto ele está
de acordo com os historiadores antigos. Mas depois, ele se deixa levar à
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narração de fábulas, tão ridículas que não somente não têm a menor aparência
de verdade, confundin-do-nos com o baixo povo do Egito, que ele diz que a
lepra e outras doenças vergonhosas obrigaram-nos a fugir de lá. Fala depois do
rei Amenófis, que é um nome imaginário, e do qual, por essa razão, ele não
ousou enumerar os anos de reinado embora os tenha marcado particularmente
quando falou dos outros reis. Ele acrescenta a essas fábulas ainda outras, sem
se lembrar de que tinha dito antes que fazia quinhentos e dezoito anos que os
pastores tinham saído do Egito para ir a Jerusalém. Pois foi no quarto ano do
reinado de Temósis que eles de lá saíram e os seus sucessores reinaram
trezentos e noventa e três anos até os dois irmãos Setom e Hermeu, o primeiro
dos quais ele diz que era cognominado Egípcio, e o outro, Danus, que Setom
expulsou e reinou cinqüenta e nove anos, que Rampsés, filho mais velho de
Sernom, sucedeu-lhe e reinou sessenta e seis anos. Assim, depois de ter
reconhecido que havia muito tempo que nossos antepassados tinham saído do
Egito, ele põe no número desses outros reis esse fabuloso Amenófis; diz que
esse príncipe, do mesmo modo que Oro, um dos seus predecessores, tinha
desejado muito ver os deuses e que um sacerdote de sua lei chamado Amenófis,
como ele, filho de Pápio, cuja sabedoria e ciência de predizer eram tão
admiráveis, que ele parecia participar da natureza divina, lhe havia dito que ele
podia realizar seu desejo, se ele expulsasse de seu reino a todos os leprosos e os
que estavam contaminados por doenças semelhantes; e o príncipe, seguindo
seu conselho, reuniu quase oitenta mil desses infelizes, que ele mandou com os
egípcios para trabalhar nas pedrarias do lado do Nilo, que está ao oriente e que
entre eles havia sacerdotes também atacados de lepra. Manetom acrescenta que
esse sacerdote Amenófis, temendo que os deuses o castigassem por ter dado ao
rei um conselho tão violento e o príncipe, por tê-lo executado, e que tendo
conhecido por revelação que para recompensar aquela pobre gente pelos seus
sofrimentos, eles os tornariam senhores do Egito durante treze anos, não ousou
dizê-lo ao rei, mas deixou aquela revelação por escrito e em seguida matou-se, o
que causou extremo temor ao príncipe. Eis suas próprias palavras: "Depois que
aquela pobre gente passou um longo tempo em tão penoso trabalho, eles
pediram ao rei que os aliviasse em seu sofrimento e lhes desse como refúgio a
cidade de Avaris, outrora chamada Trifom, e que tinha sido habitada pelos
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pastores; o príncipe lhes concedeu o que pediam e depois que eles lá se
estabelecessem acharam aquele lugar próprio para se revoltar, escolheram para
chefe um sacerdote de Heliópolis, chamado Osarsifom, e obrigaram-se por
juramento a obedecer-lhe. Este começou por ordenar-lhes entre outras coisas a
não fazerem dificuldade em comer animais que são tidos como sagrados pelos
egípcios e a não se aliar senão com os dos seus mesmos sentimentos. Em
seguida, mandou cercar de muralhas e fortificar bem a cidade e preparou-se
para fazer guerra ao rei Amenofis; outros sacerdotes uniram-se a ele; mandou
embaixadores a Jerusalém, aos pastores, que o rei Temósis tinha expulsado,
para avisá-los do que se havia passado e exortá-los a se unirem a ele para todos
juntos fazerem guerra ao Egito. Ele os receberia em Avaris, que outrora fora de
seus
 antepassados,
 dar-lhes-ia
 todas
 as
 coisas
 necessárias
 para
 sua
subsistência e que sendo o tempo conveniente, eles poderiam facilmente
conquistar o Egito. Os habitantes de Jerusalém tinham recebido aquelas
mesmas propostas com alegria e se tinham dirigido a Avaris com duzentos mil
homens e então o rei Amenofis, lembrando-se do que o sacerdote tinha predito,
ficou de tal modo perturbado pelo temor, que depois de ter reunido um
conselho, com os maiores do país mandou na frente os animais que não são
tidos como sagrados, no Egito, ordenou aos sacerdotes que lhes escondessem
as imagens, entregou a um de seus amigos, Setom, seu filho mais velho, que
tinha então somente cinco anos, antes chamado de Remessés, nome do avô, e
partiu com um exército de trezentos mil homens contra os inimigos, mas na
persuasão de que os deuses lhe seriam contrários, não ousou travar combate,
voltou atrás, veio a Mênfis, onde depois de ter tomado a imagem do boi Ápis e
dos outros animais, que ele adorava como deuses, partiu para a Etiópia com
uma grande parte de seu povo e o rei desse país, que lhe era muito afeiçoado,
recebeu-o muito bem, com todos os seus, entregou-lhe cidades e aldeias onde
nada lhes faltou durante os treze anos do seu exílio, conservando sempre
tropas nas fronteiras de seu reino, para a segurança de Amenofis e, entretanto,
os pastores vindos de Jerusalém fizeram ainda muito mais mal do que aqueles
que os haviam chamado ao Egito e não havia impiedade e crueldade que eles
não cometessem, e não se contentando de incendiar as cidades e as aldeias,
acrescentavam-lhes ainda sacrilégios, partiam em pedaços as estátuas dos
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deuses,
 matavam
 mesmo
 os
 animais
 sagrados,
 que
 aquelas
 estátuas
representavam, obrigavam os sacerdotes e os profetas egípcios a serem eles
mesmo os assassinos e os despediam depois completamente nus". Esse autor
acrescenta ainda que eles tiveram por legislador um sacerdote de Heliópolis,
chamado Osarsife, por causa de Osíris, que era o deus que naquela cidade se
adorava e que esse sacerdote, tendo mudado de religião, mudou também de
nome e tomou o de Moisés.
Eis o que os egípcios dizem dos judeus e várias outras coisas
semelhantes, que eu passo em silêncio, para não me tornar enfadonho.
Manetom diz também que Amenofis, acompanhado por Rampsés, seu filho, foi
da Etiópia para o Egito com um mui grande exército, venceu os jerosolimitanos
e os de Avaris e perseguiu o resto até as fronteiras da Síria.
Mostrarei claramente que todas estas palavras de Manetom são puras
fábulas e invencionices. Para isso precisamos primeiramente notar que esse
autor, no princípio, estava de acordo em que nossos antepassados não eram
originários do Egito e que tinham vindo de outro país e que depois de dele se
terem apoderado, haviam sido obrigados a sair de lá. Quanto ao que em
seguida ele diz, que depois misturaram-se com aqueles egípcios atacados de
lepra e de outras enfermidades infecciosas e que Moisés, guia desse povo, e que
o tirou do Egito, estava entre eles, demonstrarei por meio desse autor mesmo
que isso aconteceu muito tempo antes. A primeira coisa que ele diz a esse
respeito é ridícula. O rei Amenofis, diz ele, desejou ver os deuses. Que deuses
poderia ele desejar ver? Se eram os que ele adorava e que os egípcios também
adoravam, como um boi, um bode, um crocodilo e um cinocéfalo; não poderia
vê-los quando quisesse? Se eram celestes e que ele só desejava ver porque um
dos seus predecessores os tinha visto, ele podia então saber como eles eram e
como eram feitos sem ter que se dar a tal trabalho. Mas esse profeta, diz-se, por
meio do qual esse príncipe esperava ver os deuses, era muito sábio e muito
hábil. Se é assim, pergunto, como ele não viu que lhe era impossível satisfazer o
desejo desse príncipe e em que se baseava para crer que aqueles leprosos e
outros doentes impediam que os deuses se tornassem visíveis. Sabemos que
não são os defeitos corporais que os ofendem, mas as impiedades e os crimes,
vícios da alma. Como teria ele podido reunir quase num momento oitenta mil
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homens, atacados por essas doenças contagiosas e cruéis? Como o rei em vez
de se contentar de os mandar para o exílio segundo a ordem desse pretenso
profeta, para purificar o país, os teria empregado em quebrar pedras; se esse
profeta, como diz o autor, prevendo a cólera dos deuses e os males de que o
Egito seria amargurado resolveu matar-se e deixar ao rei essa revelação por
escrito, eu pergunto, por que ele não resistiu ao desejo que o príncipe tinha de
ver os deuses e como males, que a ele não se referiam, pois não estaria mais
neste mundo, quando viessem a suceder, poder-lhe-iam ser mais temíveis que a
morte, que ele se deu voluntariamente? Mas, aqui está ainda a maior e a mais
ridícula de todas as tolices. Se ele tinha o conhecimento das coisas futuras e
elas lhe causavam tanto temor, como, em vez de mandar expulsar do Egito
todos os leprosos, lhes teria dado a cidade de Avaris, que outrora tinha sido
habitada pelos pastores, onde, tendo-se reunido, eles tinham escolhido como
chefe esse sacerdote de Heliópolis, que lhes proibiu adorar os deuses dos
egípcios, de fazer dificuldade em comer a carne dos animais que eles adoravam
como divindades e de contrair aliança com os que não fossem de suas mesmas
idéias e que os obrigou por juramento a observar inviolavelmente essas leis? O
autor acrescenta ainda que depois de ter fortificado essa cidade eles fizeram
guerra ao rei Amenofis, mandaram a Jerusalém pedir aos que lá moravam a se
reunir a eles nessa empresa e que para isso fossem a Avaris, que outrora fora
propriedade de seus antepassados, de onde atacando juntos o Egito eles
poderiam apoderar-se do mesmo: e que esses descendentes dos pastores vieram
em seguida com duzentos mil homens e eles fizeram guerra a Amenofis: que
esse príncipe, não ousando travar combate com eles de medo de resistir a Deus,
havia fugido para a Etiópia depois de ter confiado à guarda de seus sacerdotes
o boi Ápis e os outros animais sagrados que ele adorava como deuses; que
então os judeus de Jerusalém saquearam cidades do Egito, incendiaram seus
Templos e passaram a fio de espada toda a sua nobreza, com crueldade
inaudita; que esse sacerdote de Heliópolis, que os comandava, chamado
Osarfis, por causa do deus Osíris, adorado naquela cidade, mudou de nome e
se fez chamar Moisés: que Amenofis tendo-se retirado para a Etiópia, saiu de lá
com grandes forças, venceu os pastores e os que eles tinham chamado em seu
auxílio, matou um grande número deles e perseguiu o resto até as fronteiras da
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Síria.
Será possível que Manetom não tenha visto que nada há de verdade ou de
verossímil em toda essa longa história? Quando aqueles leprosos e os outros
enfermos tivessem mesmo sido os mais irritados deste mundo contra o rei, por
tê-los tratado de tal modo, ante instância desse profeta, não teria ele mudado
de idéia, quando os dispensou de um trabalho tão penoso como o das pedreiras
e lhes deu uma cidade onde residir? Mas quando tivessem mesmo continuado
em sua ira contra ele, não teriam eles podido procurar vingar-se secretamente,
sem fazer guerra a todo o Egito, onde eles tinham tantos parentes? E quando
mesmo nada os tivesse podido impedir de fazer guerra aos homens, teriam eles
podido resolver-se a fazê-la aos seus deuses e esforçar-se por subverter as leis
de seus antepassados? Devemos, pois, agradecer a Manetom que ele não atribui
tão grande crime aos que tinham vindo a Jerusalém, mas aos egípcios mesmos
e particularmente aos seus sacerdotes, que a isso os haviam obrigado por
juramento. Que há de mais extravagante do que dizer que nenhum dos
parentes e dos amigos desses leprosos, não tendo querido juntar-se a eles
naquela guerra, eles haviam mandado a Jerusalém pedir socorro aos que não
lhes eram nem amigos nem aliados, mas que eles deviam antes considerar
como inimigos, tanto seus costumes e seus hábitos eram diferentes?
Entretanto, esse autor diz que os de Jerusalém consentiram, sem dificuldade,
em fazer o que eles desejavam, na esperança de se tornarem senhores do Egito,
como se não tivessem conhecido por própria experiência aquele país, de onde
haviam sido expulsos. Se eles então se tivessem encontrado em grande miséria,
teriam concordado com essa proposta, mas morando numa cidade tão grande e
tão bela, em um país abundante de toda espécie de bens e mais fértil do que o
Egito, que vantagem tinham de se arriscar a um perigo tão grande, para
contentar
 seus
 antigos
 inimigos?
 Mesmo
 quando
 tivessem
 sido
 seus
compatriotas, eles deveriam ter temido misturar-se com eles e ficar também
contaminados por aquelas enfermidades? Podiam eles prever que o rei fugiria,
pois esse autor diz que ele veio com trezentos mil homens até Pelusa, ao
encontro desses revoltosos. Quanto a acusar os jerosolimitanos de ter tomado
todo o trigo do Egito e de ter assim feito sofrer muito ao mesmo povo, esqueceu-
se ele de que, tendo suposto que eles tinham entrado como inimigos, não é uma
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censura que se lhes pode fazer; que ele disse que antes da chegada deles os
leprosos tinham feito a mesma coisa e se tinham mesmo obrigado com
juramento e ele afirma que alguns anos depois Amenofis venceu os
jerosolimitanos e os leprosos e matou vários deles e os perseguiu até as
fronteiras da Síria, como se fosse fácil apoderar-se do Egito, que os que o
possuíam então, pelo direito de guerra, sabendo que Amenofis marchava contra
eles, não lhe teriam podido fechar o caminho com forças para lhe resistir?
Haverá também mais probabilidade ao que esse autor acrescenta, de que esse
príncipe não somente fez uma grande matança, mas os perseguiu com todo seu
exército através do deserto, até as fronteiras da Síria, pois que sabemos que
esse deserto é tão árido, que não havendo água é quase impossível que todo um
exército o atravesse, mesmo quando sua marcha fosse a mais pacífica do
mundo?
Parece, pelo que acabo de dizer, que segundo o mesmo Manetom não
temos nossa origem do Egito, nem jamais estivemos misturados com os
egípcios. Com relação aos leprosos há grande probabilidade de que muitos
tenham morrido nas pedreiras, muitos nos combates e outros na fuga.
CAPÍTULO 10
REFUTA-SE O QUE MANETOM DISSE DE MOISÉS .
Nada me resta, portanto, para refutar, senão o que tal historiador disse de
Moisés. Os egípcios estão de acordo de que era um homem admirável e estão
persuadidos de que ele tinha algo de divino. Mas não podem, senão por uma
grande impostura, procurar fazer crer que ele era de sua nação, como o fazem,
dizendo que era um sacerdote de Heliópolis, que tinha sido expulso com os
outros por causa da lepra. A cronologia mostra que ele viveu quinhentos e
dezoito anos antes e no tempo em que nossos antepassados, depois de terem
sido expulsos do Egito, se estabeleceram no país que agora possuímos. Para
mostrarmos que ele estava de todo isento de tão vergonhosa enfermidade, basta
dizer-se que ele proibiu aos leprosos morar nas cidades, nas aldeias e nas vilas;
ordenou que vivessem segregados e com vestes diferentes das dos demais;
declarou que deviam ser considerados impuros todos os que tivessem tocado
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neles ou co-habitado com eles; quis que mesmo os que já estavam curados
dessa doença não pudessem entrar em Jerusalém senão depois de certas
purificações, depois de se terem lavado nas fontes, feito raspar todo o pêlo e
terem oferecido vários sacrifícios. Se esse admirável legislador tivesse também
sido leproso, teria usado de tão grande severidade para com aqueles que como
ele também tinham sido atingidos pela doença? Mas não é somente sobre
assunto dos leprosos que ele fez tais leis: ele também proibiu aos que tivessem
o mínimo defeito corporal entrar no ministério das coisas santas e privou da
honra do sacerdócio os que desobedecessem a essas ordens. Como então teria
ele promulgado uma lei que lhe teria sido tão prejudicial e tão vergonhosa?
Quanto ao que Manetom diz, que ele tinha mudado o nome de Osarsife para
Moisés, há menos probabilidade, pois que esses dois nomes não têm entre si
nenhuma relação, ao passo que Moisés significa "que foi salvo das águas", pois
os egípcios chamam a água de moi. Penso ter feito ver claramente que quando
Manetom segue os escritos dos antigos, ele não se afasta muito da verdade,
mas, fora dali, ele só conta fábulas que ridiculamente inventa, ou às quais sua
raiva contra nossa nação fez prestar fé.
CAPÍTULO 11
CHEREMOM, OUTRO HISTORIADOR EGÍPCIO, É TAMBÉM REFUTADO.
Falemos agora de Cheremom, que também escreveu a história do Egito.
Ele supõe como Manetom, o rei Amenófis e censurou-lhe ter seu Templo sido
destruído pela guerra. Que um daqueles santos doutores, chamado Fritifante,
lhe havia dito que para livrá-lo do terror que o perturbava durante a noite era
preciso que ele expulsasse do Egito todos os que estavam atacados de lepra e de
outras doenças más; que em seguida ele expulsou duzentos e cinqüenta mil
desses, dentre os quais estavam também Moisés e José, que ele diz ter sido um
doutor sacro. Que o primeiro, em egípcio, chamava-se Ticita e o outro, Petesefe.
Que esses duzentos e cinqüenta mil homens, tendo chegado a Pelusa,
encontraram aí trezentos e oitenta mil homens, aos quais Amenófis tinha
recusado a entrada no Egito e que eles se reuniram e marcharam contra ele;
que o príncipe, não ousando enfrentá-los, tinha fugido para a Etiópia deixando
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a mulher, grávida; que a princesa deu à luz numa caverna um filho, que foi
chamado Ramessés, o qual, depois de grande, expulsou os judeus, cujo número
era de duzentos mil homens, perseguiu-os até as fronteiras da Síria e mandou
voltar da Etiópia Amenófis, seu pai.
Que pode melhor mostrar a impostura desses dois autores, do que a
grande oposição que encontramos no que eles narram? Se houvesse o mínimo
de verdade, como explicar tão grande diversidade? Os que dizem mentiras não
têm a preocupação de ser coerentes com o que escrevem. Manetom atribui a
expulsão desses leprosos ao desejo que Amnenófis tinha de ver os deuses;
Cheremom o atribui a um sonho no qual ele diz que a deusa ísis lhe apareceu.
Um, diz que um sacerdote chamado Amenófis, como o príncipe, ordenou-lhe
que os expulsasse para purificar seu território, e o outro diz que foi Fritifante.
Se o nome desses dois sacerdotes concorda tão pouco, o número dos
exilados não concorda muito mais, pois um diz que eles eram oitenta mil
homens, e o outro, duzentos e cinqüenta mil. Manetom diz que esses leprosos
foram primeiramente mandados para as pedreiras, para cortar as pedras, e que
depois se lhes deu a cidade de Avaris, como residência, de onde, tendo
começado a guerra, eles chamaram os jerosolimitanos em seu auxílio.
Chemerom diz, ao contrário, que quando eles se viram obrigados a se retirar do
Egito, encontraram em Pelusa trezentos e oitenta mil homens abandonados
pelo rei Amenófis, e que se reuniram a eles e tornaram a entrar no Egito,
obrigando o soberano a fugir para a Etiópia. Mas o que há de raro é que esse
autor que inventou o belo sonho da deusa Isis esqueceu-se de dizer de onde
viera aquele grande exército de trezentos e oitenta mil homens, se eram egípcios
ou estrangeiros e porque Amenófis lhes havia negado a entrada em seu
território.
Não há menos motivo de admiração sobre o que ele acrescenta, que
Moisés e José foram expulsos ao mesmo tempo, embora José tenha morrido
cento e setenta anos antes de Moisés e haja quatro gerações entre um e outro.
Ramessés, filho de Amenófis, se acreditarmos em Manetom, fez, com o rei seu
pai, guerra aos leprosos e aos jerosolimitanos, e com ele fugiu para a Etiópia.
Segundo Cheremom, ele nasceu numa caverna, depois da fuga de seu pai
venceu seus súditos revoltados e os judeus que tinham vindo em seu auxílio em
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número de duzentos mil e os perseguiu até as fronteiras da Síria. Devemos ser
muito crédulos para não se nos rirmos desses belos contos. Ele disse então que
esse exército, detendo-se em Pelusa, era de trezentos e oitenta mil homens; ele
não fala mais agora senão de duzentos mil e não diz o que foi feito dos outros
cento e oitenta mil, se morreram nalgum combate ou se passaram para o lado
de Ramessés. E o que é ainda mais estranho, não poderíamos saber se aqueles
aos quais ele chama de judeus são os duzentos e cinqüenta mil leprosos ou se
são esses trezentos e oitenta mil homens que haviam sido detidos em Pelusa.
Temo que me chamem de louco por procurar convencer de falsidade aqueles
que por si mesmos se convencem e que não passariam tão evidentemente por
impostores, se disso não tivessem sido acusados por outros.
CAPÍTULO 12
REFUTA - SE AINDA OUTRO HISTORIADOR CHAMADO LISÍMACO.
A estes acrescentarei Lisímaco, que não somente tem o mesmo ofício que
eles, de bem mentir, mas os supera de tal modo na extravagância de suas fic-
ções, que não há necessidade de outra prova do excesso de sua ira contra
nossa nação. Ele diz que quando Bochor reinava no Egito os judeus atacados
de lepra e de outras doenças vergonhosas, indo ao Templo pedir esmola,
passaram essas doenças aos egípcios; a esse respeito Bochor consultou o
oráculo de Júpiter Amom, e este respondeu-lhe que era preciso purificar os
Templos e mandar para o deserto esses homens impuros, que o sol não podia
mais, a não ser com tristeza sua, iluminar com seus raios e assim a terra
recuperaria sua primitiva fecundidade. Que depois desse oráculo, o soberano, a
conselho dos seus sacerdotes, mandou reunir todas essas pessoas impuras
para entregá-las aos soldados; mandou atirar ao mar todos os leprosos e os
tinhosos, depois de os ter feito envolver em lâminas de chumbo e mandou levar
o resto para o deserto para que lá morressem de fome; que então esses infelizes
reuniram-se, acenderam suas fogueiras, montaram guarda toda a noite,
jejuaram para que os deuses lhes fossem favoráveis e no dia seguinte, um
deles, de nome Moisés, aconselhou-os a marchar sempre, até encontrar lugares
cultivados, e a não confiar em ninguém e de só dar mais conselhos aos que lhos
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pedissem e a destruir todos os Templos e os alteres que encontrassem; todos
aprovaram-no e eles atravessaram o deserto: depois de inúmeras e grandes
dificuldades, chegaram a um país cultivado. Ali trataram cruelmente seus
habitantes, despojaram os Templos de seus bens, e se dirigiram, por fim, a uma
província a que chamam de Judéia, onde construíram uma cidade a que deram
o nome de Jerosulo, que quer dizer "despojo de coisas santas", e que crescendo
depois em força e poder, eles trocaram esse nome que lhes causava vergonha
pelo de Jerosolima e começaram a se chamar de jerosolimitanos.
Parece, pelo que acabo de narrar, que Lisímaco não supôs como Manetom
e Cheremom que houve um rei do Egito, chamado Amenófis, mas citou um
outro, e que sem falar nem desse sonho no qual a deusa ísis apareceu, nem
desse profeta egípcio, ele traz um oráculo feito por Júpiter Amom e diz que um
número muito grande de judeus se reunia perto dos Templos, mas não se sabe
se são os leprosos, a que ele chama de judeus, porque somente eles eram
atacados por essa doença, ou se ele quer falar dos naturais do país, ou dos
estrangeiros. Se eram os egípcios, por que os chama de judeus? E se eram
estrangeiros, por que não diz de onde vinham? Além disso se o rei os tinha feito
afogar e mandar os outros ao deserto, como é que havia ainda um grande
número deles; como teriam eles podido atravessar o deserto, conquistar o país
que nós possuímos e construir esse Templo tão célebre em toda a terra? Devia
ele também contentar-se de citar nosso legislador, sem falar de seu nascimento,
de seus parentes e do motivo que o tinha levado a dar leis tão injuriosas para
os deuses e tão injustas para os homens? Se esses exilados eram egípcios,
teriam eles tão facilmente renunciado às leis do seu país e se eles eram de uma
outra nação, fosse ela qual fosse, podiam eles não ver que estavam, desde sua
infância, acostumados a observá-las? Se eles tivessem somente jurado jamais
ter afeto para com os que os tinham expulsado, não poderíamos censurá-los:
mas sendo tão miseráveis como esse autor os representa, declarar-se inimigo de
todos os homens, como ele diz que eles a isso obrigam-se por juramento, teria
sido tão grande tolice que é evidente tê-la ele inventado. Não podemos dizer a
mesma coisa desse primeiro nome que ele afirma ter sido dado a Jerusalém,
como sinal do saque dos Templos e ter depois sido mudado? Quando isso fosse
mesmo verdade não teríamos tido razão de o fazer, pois que embora os
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sucessores dos que tinham construído essa grande cidade achassem esse nome
odioso, ele parecia honroso aos que a tinham fundado, mas o ódio que esse
autor nos tinha de tal modo o cegou, que ele não considerou que a palavra
"Jerusalém" não significa em hebreu o que significa em grego. Seria inútil
estender-me mais sobre essas imposturas tão evidentes e vergonhosas. Estando
este livro já assaz volumoso, devemos terminar, para começarmos outro, no
qual procurarei realizar o meu objetivo.
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Livro Segundo
CAPÍTULO 1
INÍCIO DA RESPOSTA DE ÁPIO. RESPOSTA AO QUE ELE DISSE , QUE M OISÉS ERA
EGÍPCIO E A FORMA COMO ELE FALA DA SAÍDA DOS JUDEUS DO
 EGITO.
Mostrei no primeiro livro, ó virtuoso Epafrodita, a antigüidade de nossa
nação, pelo testemunho dos fenícios, dos caldeus, dos egípcios e mesmo dos
gregos, respondendo ao que Manetom, Cheremom e outros escreveram com
tanta falsidade. Resta-me, somente, agora, convencer aqueles que me atacaram
em particular e responder a Ápio, embora eu duvide de que ele o mereça. Uma
parte do que ele disse assemelha-se às fábulas de que falei e o resto é tão
malicioso e tão frio, que não temos necessidade de grande discernimento para
vermos que é obra de um homem ao mesmo tempo ignorante, maldizente e sem
honra. Entretanto, como há muitos que têm também tão pouca inteligência que
se deixam, ao invés, levar mais por semelhantes palavras, do que pelas que
provêm de um grande estudo, e aos quais as maledicências são tão agradáveis
quanto os louvores que se dão à virtude são importunos, julguei-me obrigado a
examinar esse escritor, que me censura tão afoitamente, como seu eu estivesse
sujeito à sua jurisdição, além de que eu espero que muitos hão de gostar, de
ver a malícia dos impostores confundida por aqueles aos quais eles
injustamente ofendem.
As palavras desse escritor são tão confusas que é difícil compreender-se o
que ele quer dizer. Na balbúrdia em que o põem os contra-sensos das suas
mentiras, ora ele fala da saída de nossos antepassados do Egito sem
conformidade com aqueles dos quais eu mostrei a extravagância; ora ele
calunia os judeus que moram em Alexandria e ora censura nossas santas
cerimônias e as outras coisas que se referem à nossa religião.
Penso ter suficientemente demonstrado, no meu primeiro livro, que
nossos avós não eram originários do Egito, nem foram atacados por doenças,
que tenham dado motivo à sua saída desse reino; responderei o mais
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brevemente possível ao que Ápio ainda acrescenta. Estas são as suas palavras
no terceiro livro da história dos egípcios: "Moisés, como eu ouvi os mais antigos
egípcios narrarem, era de Heliópolis e ele foi causa de que, para se conformar
com a religião no qual tinha sido educado, se começassem a fazer na cidade,
em lugares fechados, as orações que antes se faziam ao ar livre, fora da cidade,
voltando-se sempre para o lado do sol levante; como também de que, em lugar
de pirâmides se fizessem colunas, por cima de certas formas de tanques, nos
quais a sombra caindo, ela girava como o sol".
É assim que fala esse raro gramático, em que as ações de Moisés
convencem de mentira, muito mais do que minhas palavras. Quando este
homem admirável ergueu um tabemáculo em honra de Deus, não lhe deu essa
forma, nem determinou que lhe fosse dado no futuro e Salomão, que mais tarde
construiu o Templo de Jerusalém, não fez também nada de semelhante a essa
imaginação fantástica de Ápio.
Quanto ao que ele acrescenta, que tinha sabido dos antigos, que Moisés
era de Heliópolis e que prestava fé às suas palavras, como se o soubessem
muito bem eu pergunto: jamais houve mentira maior do que essa? Como esses
anciãos que cita poderiam falar com tanta certeza de Moisés, que tinha morrido
muitos séculos antes, pois ele mesmo, embora se julgue tão hábil, não ousaria
falar afirmativamente da pátria de Homero e de Pitágoras, embora ainda há
pouco eles vivessem?
Mas, que relação tem o tempo em que ele diz que Moisés levou os
leprosos, os cegos, os coxos, com o de que falam os outros? Manetom diz que foi
sob o reinado de Temósis que os judeus saíram do Egito, trezentos e noventa e
três anos antes que Danaus fosse exilado para Argos. Lisímaco, ao contrário,
afirma que foi sob o reinado de Bochor, isto é, mil e seiscentos anos antes e
Molom e outros, falam disso, cada qual segundo sua fantasia. Mas Ápio, que se
julga mais digno de fé do que todos eles juntos, afirma ousada e precisamente
que aquela saída do Egito se deu no primeiro ano da sétima Olimpíada, quando
os fenícios fundaram Cartago, o que é uma circunstância que ele nota para que
se acredite no que ele diz, sem perceber que ele desse modo apresenta um meio
fácil de ser acusado de falsidade. Se for preciso referir-se, no que concerne a
essa colônia, ao que os autores fenícios escrevem, seremos obrigados a crer que
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o rei Hirão viveu mais de cento e cinqüenta anos antes da fundação de Cartago
e, entretanto, eu demonstrei por meio de escritos dos mesmos fenícios que ele
era amigo de Salomão, que construiu o Templo de Jerusalém e o ajudou
naquele empreendimento, seiscentos e doze anos depois da saída dos judeus do
Egito.
Quanto ao número dos que foram expulsos, Ápio afirma tão falsamente
como Lisímaco que eram cento e dez mil e dá uma razão interessante e digna de
crédito do nome que se deu ao dia de sábado. "Depois de ter caminhado — diz
ele -- durante seis dias, vieram-lhe umas úlceras nas virilhas, mas no sétimo
dia ele recobrou a saúde e tendo chegado à Judéia, chamaram-no de sábado,
porque os egípcios dão a essa doença o nome de sabatosim". Poder-se-ia, sem
vontade de rir, ou melhor, de sentir indignação, saber que um autor teve a
desfaçatez de escrever tais sandices? Que probabilidade há de que cento e dez
mil homens fossem todos atacados por esse mal? E se eles eram cegos, coxos e
atacados por outras doenças infecciosas, como ele antes havia afirmado, como
teriam eles podido caminhar somente durante um dia num deserto e como
teriam podido vencer os povos que lhes eram contrários? E possível que todos
tivessem contraído aquela doença? Isso pode acontecer naturalmente a uma tão
grande multidão? Podemos, sem incorrer em absurdo, atribuí-la ao acaso?
Ápio não é admirável quando diz que aqueles cento e dez mil homens
chegaram à Judéia e Moisés, tendo subido ao monte Sinai, que está entre o
Egito e a Arábia, lá ficou oculto durante quarenta dias e depois de ter descido,
deu aos judeus as leis que eles ainda observam? A esse respeito eu pergunto:
como é possível que um número tão grande de pessoas tenha atravessado em
seis dias um deserto tão extenso e tenha passado quarenta, num lugar tão
estéril e tão selvagem, onde não se encontra nem mesmo um pouco de água?
Quanto à razão impertinente que ele dá, com relação ao nome de sábado,
só pode ela proceder de ignorância ou loucura. Pois há uma diferença muito
grande entre as palavras "Sabbo" e "Sabbatom". Sabbatom, em hebreu, significa
"repouso", e Sabbo, segundo o que esse autor diz, significa, em egípcio, "dor nas
virilhas".
Tais as novas fábulas que Ápio acrescentou às dos outros egípcios, com
relação a Moisés e à saída dos judeus do Egito. Mas devemo-nos admirar de
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que ele tenha falado com tanta falsidade de nossos antepassados, dizendo que
eles tinham sua origem do Egito, se ele não tem receio de mentir, no que se
refere a ele, quando tendo nascido em Oásis, no Egito, ele renuncia à sua pátria
e quer passar por alexandrino? Assim, ele tem razão de dar o nome de egípcios
ao que ele odeia, pois que se ele não estivesse persuadido de que os egípcios são
os piores de todos os homens, ele não temeria que o julgassem daquela nação;
os que têm amor ao seu país julgam uma honra ter nele nascido e erguem-se
contra os que querem injustamente diminuir-lhes a reputação. Mas, de
qualquer maneira se considere o que disseram todos esses historiadores, os
egípcios seriam obrigados a ter afeto por nós, quer porque teríamos a mesma
origem que eles, quer porque o que se lhes censura, ser-lhes-ia comum
conosco; mas Ápio, que sabe do ódio que os de Alexandria têm dos judeus que
moram na sua cidade, quis reconhecer a obrigação que lhes devem por lhes ter
dado o direito de burguesia, assacando tantas calúnias contra aqueles aos
quais considera como inimigos, sem perceber que ele não ofende somente aos
que são objeto de sua animosidade, mas geralmente, a todos os judeus,
espalhados pelo mundo.
CAPÍTULO 2
RESPOSTA AO QUE ÁPIO DIZ EM DESABONO DOS JUDEUS COM RELAÇÃO À
CIDADE DE
 ALEXANDRIA, COMO TAMBÉM AO QUE ELE DIZ, FAZENDO CRER
QUE DE LÁ É ORIGINÁRIO E AO QUE ELE AFIRMA PARA
JUSTIFICAR A RAINHA
 CLEÓPATRA.
Vejamos agora os erros insuportáveis que os de Alexandria atribuem aos
judeus. "Quando — diz Ápio — os judeus vieram da Síria, eles se estabeleceram
ao longo da orla marítima num lugar sem portos e batido pelas ondas." Não faz
ele, falando desse modo, uma grave injustiça a essa cidade, que ele falsamente
diz ser sua pátria, pois que todos sabem que ela está situada à beira-mar e sua
posição é muito cômoda? Se os judeus a ocuparam pela força, sem ter podido
depois de lá ser expulsos, isso é uma prova de seu valor. Mas na verdade é que
Alexandre, o Grande, ali os instalou e quis que eles gozassem das mesmas
honras que os macedônios. Que teria então dito Ápio, se em vez de se ter
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estabelecido nessa cidade real tivessem eles sido postos em Necrópolis e se não
os chamássemos ainda hoje de macedônios? Ou ele leu sobre isso nas cartas de
Alexandre, o Grande, de Ptolomeu Lago e dos reis do Egito, seus sucessores, e o
que o grande César fez gravar em Alexandria sobre uma coluna, para conservar
a memória dos privilégios que ele concedeu aos judeus; nesse caso não se pode
sem negra malícia ter escrito o contrário. Ou se ele não o viu, é preciso eu
confesse que jamais houve tão grande ignorância do que a dele, se não há outra
menor, em se dizer que ele se admira de que os judeus tomem o nome dos seus
antigos habitantes, embora sejam diferentes deles em muitas coisas? Que
exemplo não poderia eu alegar sobre isso? Não se chama de antioquenses os
judeus que moram em Antioquia, porque o rei Seleuco lhes deu direito de
burguesia? Não se chamam efésios os que moram em Efeso e jônios os que
moram na Jônia, como tendo esse privilégio dos outros reis? A bondade dos
romanos não concedeu a mesma graça, não somente aos particulares, mas a
províncias inteiras, o que faz que os antigos espanhóis, os toscanos e os
sabinos tenham o nome de romanos? Se Ápio quer fazê-los perder esse
privilégio, que ele deixe também de se chamar de alexandrino; pois, tendo
nascido no fundo do Egito como poderia ele pretendê-lo, se o privássemos desse
direito como ele quer que nós sejamos privados, pois somente os egípcios, aos
quais os romanos, que são hoje os senhores do mundo, recusam concedê-lo?
Assim, esse raro personagem, achando-se fora da condição de poder esperar
essa garça, esforça-se por caluniar os que tão justamente a obtiveram. Eu digo
tão justamente, pois não foi pela dificuldade de povoar essa cidade que Alexan-
dre construiu com tanto afeto, que ele ali reuniu um grande número de judeus,
mas foi pelo conhecimento que tinha de seu valor e de sua fidelidade, que quis
honrá-los com esse favor. Ele tinha tanta estima por nossa nação, que lemos
em Hecateu que esse grande príncipe estava tão satisfeito com o afeto e a
fidelidade dos judeus, que ele acrescentou Samaria à Judéia e a isentou de
tributos; que Ptolomeu Lago, um de seus sucessores, demonstrou não menos
estima e boa vontade pelos judeus que moravam em Alexandria, que ele confiou
à coragem e fidelidade deles a guarda das praças mais fortes do Egito e que,
para conservar Cirene e as outras cidades da Líbia, de que tinha se apoderado,
para lá mandou colônias de judeus: que Ptolomeu Filadelfo, um de seus
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sucessores, não somente pôs em liberdade todos os da nossa nação que
estavam escravos no seu país, mas lhes deu diversas vezes grandes somas; e, o
que é mais importante, teve tal desejo de ser informado sobre nossas leis e
nossas santas escrituras, que ele mandou buscar pessoas capazes de
interpretá-las e traduzi-las e não entregou o cuidado de lhas levar a pessoas
comuns, mas a Demétrio Falereo, que era tido como o homem mais sábio do
seu tempo e a André e Aristeu, oficiais da sua guarda. Ora, esse príncipe teria
podido desejar com tanto ardor ser instruído em nossas leis e nos nossos
costumes, se ele desprezasse os que as observavam e se, ao contrário, não os
tivesse em grande estima?
Ápio ignorou, então, ou quis ignorar que esses sucessores dos reis da
Macedônia sempre nos foram muito afeiçoados? Ptolomeu III, cognominado
Evergetes, isto é, benfeitor, depois de ter submetido toda a Síria, não deu
graças por sua vitória aos deuses dos fenícios, mas veio a Jerusalém oferecer a
Deus um grande número de vítimas do modo como nós costumamos fazer e fez
ricos presentes ao seu Templo. Ptolomeu Fílonmetor e a rainha Cleópatra, sua
esposa, confiaram aos judeus o governo do seu reino e deram a Dociteu,
também judeu de nascimento, o comando de seus exércitos, do que Apio não
tem receio de zombar, quando, querendo passar por cidadão de Alexandria, ele
deveria admirar-lhes as ações e sentir prazer em ter conservado aquela grande
cidade, quando a revolta contra a rainha Cleópatra fê-la correr risco de ser
totalmente destruída. Ele contentou-se de dizer que Onias para lá levou
algumas tropas, quando Termo, embaixador dos romanos, lá já estava. Mas por
que não acrescenta ele pelo menos que Onias tinha para isso grandes razões?
Ptolomeu Fisco, depois da morte do rei Ptolomeu Fílonmetor, seu irmão, tendo
vindo de Cirene com o fim de usurpar o reino da rainha Cleópatra, sua viúva,* e
deu seus filhos. Onias marchou contra ele e deu nessa ocasião provas de sua
inviolável fidelidade para com os legítimos príncipes. Os exércitos avançaram
para combater e Deus então fez conhecer claramente que ele sustentaria a
justiça da causa que Onias defendia. Fisco fizera expor, atados e nus, aos seus
elefantes, todos os judeus que moravam em Alexandria com suas mulheres e
filhos, a fim de que os pisassem, e tinham mesmo mandado embebedar esses
animais para lhes aumentar o furor, mas aconteceu justamente o contrário. Os
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elefantes afastaram-se dos judeus e lançaram-se sobre seus amigos, matando a
muitos deles. Nesse mesmo tempo o soberano viu um espírito terrível, que lhe
proibiu fazer mal aos judeus, e sua concubina, a quem mais ele queria,
chamada Itaca, ou segundo outros Hirene, rogou-lhe que não tratasse tão
cruelmente aquele povo. Ele fê-lo não somente mas ainda, demonstrou
arrependimento por ter usado de tanta crueldade, o que é tão verdadeiro que
todos sabem que os judeus de Alexandria celebram todos os anos o dia em que
Deus lhes concedeu tão visível favor. Assim, Apio mostra que jamais houve um
caluniador maior do que ele, pois ele ousa censurar os judeus sobre o motivo de
uma guerra que os fez merecer tantos elogios.
_______________________________
* No texto grego, não se encontra mais o que está compreendido desde
este sinal até outro semelhante, e isso foi traduzido de um texto grego antes
que se perdesse.
Quando ele fala também da última Cleópatra, que reinou em Alexandria,
ele nos dá toda a culpa, em vez de condenar sua ingratidão para conosco e de
reconhecer que não há males que aquela princesa não tenha feito aos seus
maridos, de quem tinha sido tão amada, aos seus parentes e a todos os
romanos em geral e em particular aos imperadores, aos quais devia inúmeros
favores. Sua impiedade e sua crueldade chegaram a mandar matar num
Templo a Arsinoé, sua própria irmã, de quem jamais recebera a menor ofensa, e
a mandar assassinar seu irmão. Sua horrível ambição levou-a a saquear os
Templos de seus deuses e os sepulcros de seus antepassados. Sua ingratidão a
tornou inimiga de Augusto, sucessor e filho por adoção do grande César, ao
qual ela era devedora da coroa. Ela corrompeu de tal modo o espírito de Antônio
por meio de todos os artifícios que o amor lhe podia dar, que o tornou inimigo
da sua própria pátria. E foi tão infiel aos amigos que despojou a alguns do que
pertencia à sua origem real e tornou os outros cúmplices de seus crimes.
Se sua ingratidão, sua impiedade e sua ambição chegaram a tão grande
excesso, que direi de sua covardia, que na célebre batalha naval fê-la
abandonar Antônio, de quem queria passar por mulher, e de quem tinha filhos,
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obrigou-o a deixar seu exército para segui-la na fuga e fê-lo perder a glória que
o elevando acima dos reis, fazia-o participante do império, com Augusto? Por
fim, seu ódio e sua desumanidade para com os judeus eram tão grandes que
ela se teria alegrado de que César tomasse Alexandria, se com isso ela tivesse
podido matar, com suas próprias mãos, todos os que lá moravam. Não temos,
pois, motivo de nos vangloriarmos de que Apio nos censure, de que durante tão
grande carestia ela recusou vender trigo aos judeus? Mas foi ela castigada
conforme merecia e o grande César mesmo quis dar testemunho de nossa
fidelidade e do auxílio que lhe havíamos dado na guerra que ele travara no
Egito. Nós podemos também mostrar por meio de decretos do Senado e por
cartas de Augusto qual sua estima por nós e sua satisfação pelos nossos
serviços.
Eram estes os trechos e os títulos que Apio devia examinar. Ele devia ver
tudo o que se passou sob Alexandre, o Grande, sob os Ptolomeus, seus
sucessores, os decretos do Senado e os dos grandes imperadores romanos.
Germânico não pôde mandar entregar trigo a todos os que moravam em
Alexandria, por causa da esterilidade que assolava toda a região, e não é isso
um motivo de acusação contra os judeus, pois que eles não foram tratados
diferentemente de todos os outros habitantes e parece que os reis do Egito não
somente não os distinguiram deles, mas tiveram tal confiança em sua fidelidade
que lhes confiaram a guarda do rio e das principais praças.
"Mas — diz Apio — se os judeus são cidadãos de Alexandria, por que eles
não adoram os mesmos deuses que os alexandrinos?"Respondo: Se vós todos
sois egípcios, por que discutis continuamente, mesmo entre vós, sobre a vossa
religião? não poderia eu, para me servir de vossas mesmas armas contra vós,
dizer que nem todos vós sois egípcios e mesmo acrescentar que não sois
homens como os outros, pois que adorais e alimentais com tanto cuidado a
animais inimigos dos homens; ao passo que não há entre os judeus como entre
vós opiniões diferentes? Que motivo tendes então de vos admirardes de que os
judeus, que estão em Alexandria, continuem a observar as mesmas leis que
sempre e em todos os tempos observaram?
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CAPÍTULO 3
RESPOSTA AO QUE ÁPIO QUER INSINUAR DE QUE A DIVERSIDADE DE
RELIGIÃO FOI CAUSA DAS SEDIÇÕES ACONTECIDAS EM
 ALEXANDRIA; CENSURA
ELE OS JUDEUS POR NÃO TEREM, COMO OS OUTROS POVOS, ESTÁTUAS E
FIGURAS DOS SEUS IMPERADORES.
Apio quer também fazer crer que essa diversidade de religião entre nós e
os antigos habitantes de Alexandria tenha sido a causa das rebeliões que lá se
sucederam. Mas se isso fosse verdade, teriam acontecido também outras
semelhantes em todos os outros lugares onde os judeus estão estabelecidos,
pois que todos estão de acordo em que têm os mesmos sentimentos e idéias na
fé e que se quisermos fazer uma indagação exata dos autores das sedições que
aconteceram em Alexandria, veremos que não foram promovidas por judeus,
mas por cidadãos, como Ápio. Enquanto havia naquela cidade somente gregos e
macedônios não surgiram sedições; eles não se rebelaram contra nós e não nos
perturbaram, no exercício da nossa religião. Mas a confusão dos tempos lá
introduziu um grande número de egípcios e começaram as perturbações, sem
que se possa dar disso a culpa aos judeus que não mudaram de crença nem de
proceder. É, portanto, a esses egípcios, que não têm nem a firmeza dos
macedônios,
 nem
 a
 prudência
 dos
 gregos,
 mas,
 cujos
 costumes
 são
corrompidos e que nos odeiam há muito tempo, que devemos atribuir essas
funestas divisões: é sobre eles que deve cair a censura que Ápio nos faz, quando
nos chama de estrangeiros, embora gozemos com justo título do direito de
burguesia, em Alexandria, ao passo que vários dentre eles não o obtiveram a
não ser por fraude, pois não parece que rei algum ou imperador lhos tenha
concedido. Mas o mesmo Alexandre, o Grande, no-lo deu: os reis do Egito, seus
sucessores, no-lo confirmaram e os romanos no-lo mantiveram.
Ápio toma também motivo de nos censurar por não termos estátuas e
figuras dos imperadores, como se esses príncipes pudessem ignorá-lo e
tivessem necessidade de ser avisados disso. Não deveria ele, ao invés, admirar
sua bondade e sua moderação, em não querer obrigar os que lhes são sujeitos a
violar as leis de seus antepassados, mas contentar-se de receber deles as
honras que julgam lhes poder prestar em consciência, porque eles sabem que
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são verdadeiras aquelas que são voluntárias? Há motivo de nos admirarmos de
que os gregos e os outros povos que guardam com prazer as imagens de seus
parentes e mesmo das pessoas que não lhes têm parentesco algum e de seus
servidores prestem essa homenagem aos seus príncipes? Quando Moisés, nosso
admirável legislador, proibiu fazer estátuas não somente de animais, mas
mesmo de coisas inanimadas, sem ter podido então ter em vista o Império
Romano, ele visava não permitir que se fizessem estátuas do próprio Deus, que
é puro Espírito, porque ele sabia o mal que daí poderia advir: mas não proibiu
que se prestassem outras honras aos que depois de Deus merecem recebê-las
como nós as prestamos aos imperadores e ao povo romano. Por isso é que não
se passa um só dia sem que não ofereçamos sacrifícios por eles, às custas do
povo, o que nós fazemos somente por eles.
CAPÍTULO 4
RESPOSTA AO QUE ÁPIO DIZ ANTE A AFIRMAÇÃO DE POSSIDÔNIO E DE APOLÔNIO
MOLOM, QUE OS JUDEUS TINHAM EM SEU TESOURO SAGRADO
UMA CABEÇA DE BURRO TODA DE OURO E A UMA FÁBULA, QUE ELE
INVENTOU, ISTO É, QUE SE ENGORDAVA TODOS OS ANOS NO
 TEMPLO UM
GREGO, PARA SER SACRIFICADO, AO QUE ELE ACRESCENTA
UMA OUTRA DE SACERDOTE DE
 APOIO.
Penso ter suficientemente respondido ao que Ápio diz contra nós,
referente a Alexandria e não saberia admirar assaz a esquisitice de Possidônio e
de Apolônio Molom, que lhe forneceram a matéria. Esses dois filósofos nos
acusam de não adorar os deuses que as outras nações adoram; dizem mil
mentiras sobre isso mesmo, e não se incomodam em falar de maneira ridícula
de nosso Templo, embora nada seja mais vergonhoso a pessoas livres do que
mentir de qualquer modo que seja, e ainda mais, quando se trata de um lugar
consagrado a Deus, cuja santidade o torna célebre por toda a terra.
Ápio atreveu-se, portanto, a dizer, sob sua afirmativa, que os judeus
tinham em seu tesouro sagrado uma cabeça de burro, toda de ouro e de grande
valor, que eles adoravam e que foi encontrada quando Antioco saqueou o
Templo. Respondo antes de tudo que, mesmo quando essa acusação fosse tão
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verdadeira quanto é falsa, não lhe competiria, sendo egípcio, como ele é,
censurar-nos, porque um burro não é mais desprezível do que um bode, um
crocodilo ou um outro animal que os egípcios colocam no número dos seus
deuses. Será possível que ele seja tão cego, que não veja que jamais houve
mentira tão absurda e tão evidente? Todos sabem que nós sempre observamos
as mesmas leis, sem jamais lhes fazermos a menor modificação; entretanto,
quando Jerusalém sofreu as grandes desgraças, às quais todas as cidades do
mundo estão sujeitas, e foi tomada por Teos, por Pompeu, por Crasso e, final-
mente, por Tito, e eles se tornaram possessores do Templo, que encontraram
todos eles, senão uma grande piedade, sobre a qual, não é este o lugar de eu
me estender?
Quando Antioco, violando o direito das gentes, saqueou o Templo, de que
não se havia apoderado pelas leis da guerra, pois dizia ser nosso aliado e nosso
amigo, mas por um fato imprevisto e para satisfazer à sua ambição e avareza,
tudo o que ele encontrou era digno de respeito, como se vê, pela maneira de
como falam vários autores fidedignos, como Políbio Megalopolitano, Estrabão da
Capadócia, Nicolau de Damasco, Castor, o cronógrafo, e Apolodoro, que dizem
que Antioco, tendo necessidade de dinheiro, violou a aliança feita com os
judeus e saqueou o Templo, que estava cheio de riquezas.
Apio deveria ter considerado três coisas, se não fosse tão estúpido como
um asno impudente como um cão, que é um dos deuses de sua nação. Não
prestamos honra alguma aos asnos, nem lhes atribuímos poder algum, como os
egípcios aos crocodilos e às serpentes, que eles adoram, a ponto de acreditar
que os que são devorados por aqueles e picados por estas, devem ser colocados
no número dos bem-aventurados. Os asnos entre nós, como em qualquer outro
lugar civilizado onde se age com raciocínio, só servem para carregar fardos e
outros instrumentos, principalmente para a agricultura e damos-lhes pancadas
quando são preguiçosos ou vêm comer o trigo na eira.
É preciso que Ápio tenha sido bem pouco inteligente para inventar tais
fábulas ou então incapaz de escrever, pois que de tudo o que ele diz com
falsidade contra nós, nada há que nos possa prejudicar. Ele não se contenta
com tantas esquisitices e acrescenta outra fábula, a mais ridícula que se possa
imaginar, e que veio dos gregos — embora falem de piedade, devem saber que
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por maior que seja o pecado de profanar um templo, é ainda mais grave supor-
se que os sacerdotes cometem impiedades, em que jamais pensaram. Assim,
para defender um rei sacrílego, ele não teme escrever coisas falsíssimas de nós
e de nosso Templo. Para justificar a perfídia que a necessidade de dinheiro fez
Antíoco cometer contra nossa nação, ele diz que esse soberano encontrou no
Templo um homem num leito, com uma mesa junto dele coberta de iguarias
saborosas tanto de carne como de peixe; que aquele homem, fora de si pelo
espanto, atirou-se aos seus pés e de joelhos rogou-lhe que o libertasse. Antíoco
mandou-o sentar-se e dizer-lhe quem ele era, quem o tinha trazido para ali e
porque era tratado com tanto cuidado e suntuosidade. O homem, então
suspirando e derramando lágrimas, dissera-lhe que era grego de nascimento e
que passando pela Judéia, fora aprisionado, e tinham-no levado para o Templo
e tratado daquele modo, sem se indagar quem ele era; a princípio ele ficara
muito contente, mas em seguida, começara a desconfiar e por fim, uma
estranha aflição invadira-lhe a alma, pois, tendo interrogado aos que o serviam,
soube que o alimentavam daquele modo para observar uma lei inviolável entre
os judeus, que os obrigava a reter todos os anos um grego, para, depois de tê-lo
engordado durante um ano, levá-lo a uma floresta para matá-lo e oferecer-lhe o
corpo em sacrifício, com certas cerimônias, comer sua carne, atirar o resto
numa fossa e protestar com juramento, conservar ódio mortal para com os
gregos; assim, não lhe restava mais que poucos dias de vida; ele rogava então,
pelo respeito que ele tinha para com os deuses dos gregos, que o livrasse do
perigo em que o colocava tão horrível desumanidade.
Esta narração, embora feita apenas por passatempo, com espantosa
desfaçatez, poderia desculpar a Antíoco do sacrilégio, como pretendem aqueles
que a inventaram, em seu favor, pois que não era, segundo eles mesmos, o fim
de livrar aquele grego, que o tinham feito entrar no Templo, mas ele o
encontrou, sem esperar e assim, tal mentira não justifica sua impiedade. Pois
não é somente com as leis dos gregos que as nossas não concordam; são ainda
mais contrárias às dos egípcios e às de outros povos. Haverá algum país, de
onde às vezes os habitantes não viajem para o nosso? Porque os gregos seriam
os únicos de que nós quiséramos todos os anos derramar o sangue, para
renovar tal juramento? Além disso, seria possível que todos os judeus se
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reunissem para sacrificar uma vítima, e que a carne de um único homem fosse
suficiente para que todos comessem, como Ápio diz? Como Antíoco não teria
devolvido à Grécia com grande pompa aquele homem de quem não se diz o
nome, a fim de granjear, além da reputação de piedade o afeto dos gregos e
animar em seu favor os outros povos contra os judeus?
A esse respeito, porém, já falamos demais, pois é por meio de coisas
evidentes e não com palavras que devemos confundir os loucos. Todos os que
viram nosso Templo sabem que nós observamos inviolavelmente as leis, que lhe
conservavam a pureza. Tinha ele quatro pórticos, em cada um dos quais
montava-se guarda, como a lei o ordenava. A entrada ao primeiro era permitida
a todos, mesmo aos estrangeiros, exceto às mulheres durante seu incômodo
ordinário. Os judeus, e só eles entravam no segundo e suas mulheres também,
depois de purificadas. Os homens entravam também no terceiro, contanto que
estivessem
 purificados.
 Os
 sacerdotes,
 revestidos
 de
 seus
 paramentos
sacerdotais, entravam no quarto. E somente o sumo secerdote podia entrar no
Santuário, com aquele hábito tão santo e tão veneráve! que lhe era peculiar.
Todas estas coisas eram ordenadas com tanta piedade, que os sacerdotes só
entravam em determinadas horas. Pela manhã, quando o Templo se abria, os
que deviam sacrificar as vítimas entravam e eram obrigados a lá se encontrar
ao meio-dia, quando se fechava. Não era permitido levar vaso algum e dentro só
havia o altar, a mesa, o turíbulo e o candelabro, todas coisas determinadas pela
lei, e não havia mistérios secretos e jamais se comia ali. Sobre isso nada direi,
de que os olhos de todo o povo não tenham sido testemunhas irrefragáveis.
Embora houvesse quatro raças de sacerdotes, de mais de cinco mil homens
cada uma, todas elas desempenhavam sua função em determinados dias, vez
por vez, o seu ofício no ministério.*
______________________________
* Há no latim, e não mais se encontra no texto grego, mediante die.
Ao meio-dia eles se reuniam no Templo e uns entregavam as chaves aos
outros, entregavam igualmente todos os vasos, depois de conferidos, sem que
houvesse um só para nele se comer ou beber e era mesmo proibido colocá-lo
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sobre o altar, exceto os que serviam para o sacrifício.
Que diremos então de Ápio, que afirmou coisas incríveis e ridículas sem
tê-las examinado antes? Que há de mais vergonhoso a um homem do que nada
referir de verdadeiro? Embora conheça a santidade de nosso Templo, ele não
quis dizer uma palavra sobre isso. Não teve vergonha de fingir aquela aventura
do homem grego aprisionado no Templo, tratado suntuosamente, num lugar
onde não era nem mesmo permitido entrar aos mais ilustres dos judeus, se não
fossem sacerdotes. Como se pode isso chamar, senão de enorme impi-edade e
mentira voluntária, feita com o fim de enganar aos que não se querem dar ao
trabalho de aprofundar a verdade? É assim que se esforçam por nos prejudicar,
por meio de calúnias e Ápio, que se finge de homem de bem, não teme, para nos
tornar ainda mais odiosos, acrescentar a essa ridícula fábula, que aquele grego
tinha também dito que enquanto ele fora conservado prisioneiro no Templo e
tratado magnificamente, os judeus, estando empenhados numa longa guerra
contra os idumeus, um certo Zabida veio de uma cidade da Iduméia, onde era
sacerdote de Apoio, deus dos dórios, procurar os judeus e prometeu entregar-
lhes a estátua daquela divindade e vir ao Templo de Jerusalém contanto que
todos os judeus para lá se dirigissem; que aquele homem encerrou-se em
seguida numa máquina de guerra, em redor da qual havia três ordens de
tochas, que à medida que ele andava faziam-no parecer um astro que rolava por
cima da terra;* que tão surpreendente visão deixou atônitos os judeus, que o
viam vir de longe e que quando sem fazer rumor ele chegou ao Templo, tomou
aquela cabeça de burro, que era de ouro e regressou imediatamente a Dora.
__________________________________
* Aqui termina o latim sobre o qual o precedente foi traduzido, porque se
perdeu o texto grego.
Posso dizer, com verdade, que Ápio não poderia fazer um conto tão
impertinente, sem mostrar que é ele mesmo o maior burro e o mais
desavergonhado mentiroso que jamais existiu, pois aqueles lugares de que ele
fala são imaginários e sua ignorância é tão grande que ele não sabe que a
Iduméia confina com nosso país, perto de Gaza, e não tem nenhuma cidade
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com o nome de Dora. Há, porém, um na Fenícia, perto do monte Carmelo, que
tem esse nome, mas não tem relação nenhuma com o que Ápio diz, tão fora de
propósito, estando distante quatro jornadas da Iduméia.
Em que se funda ele também para nos acusar de não reconhecermos
como deuses os que os estrangeiros adoram, pois que ele nos quer persuadir de
que nossos antepassados tinham acreditado facilmente que Apoio vinha a eles,
e que caminhava sobre a terra rodeado de estrelas? Não haviam eles jamais
visto lâmpadas e tochas, eles, que as tinham em tão grande quantidade? Esse
pretenso Apoio podia caminhar através de um país tão povoado sem encontrar
alguém que descobrisse sua esperteza? Teria ele, num tempo de guerra,
encontrado as aldeias e as vilas sem sentinelas? Não falo dos outros absurdos
que encontramos nessa história ridícula. Eu não saberia perguntar como é
possível que as portas do Templo que, tendo sete côvados de altura (4,5
metros), vinte de largura e estando todas cobertas de lâminas de ouro, eram tão
pesadas que se precisavam de duzentos homens para fechá-las, todos os dias,*
e seria um crime deixar abertas, tivessem sido por esse impostor tão facilmente
revestidas de luz e ele tivesse podido sozinho carregar aquela pesada cabeça de
burro de ouro maciço. Eu pergunto também se ele a levou ou se a deu a algum
Ápio, para levá-la a fim de que Antíoco a achasse para dar motivo a este
segundo Ápio de inventar a fábula.
_________________________________
*
 Deixaram
 em
 branco
 a
 altura
 dessas
 portas
 porque
 deve
necessariamente haver no texto grego uma lacuna que Genebrard seguiu,
havendo em um e no outro apenas sete côvados, o que é impossível, porque a
largura dessas portas era de vinte côvados (13 metros) e eram necessários 200
homens para fechá-las.
CAPÍTULO 5
RESPOSTA AO QUE ÁPIO DIZ, QUE OS JUDEUS FAZEM JURAMENTO DE
JAMAIS FAZER BEM AOS ESTRANGEIROS E PARTICULARMENTE AOS GREGOS;
QUE SUAS LEIS NÃO SÃO BOAS, POIS ELES NÃO SÃO LIVRES; QUE ELES NÃO
TIVERAM GRANDES HOMENS, EXCELENTES NAS ARTES E NAS CIÊNCIAS,
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E QUE OS CENSURA PORQUE NÃO COMEM CARNE DE PORCO
E PORQUE SE FAZEM CIRCUNCIDAR.
Ápio não é mais verdadeiro, quando afirma tão ousadamente que nós
juramos por Deus, Criador do céu, do mar e da terra, jamais fazer bem aos
estrangeiros, e particularmente aos gregos. Ele devia, ao invés, dizer aos
egípcios a fim de concordar essas mentiras com as que havia dito antes, com
relação a esse juramento, atribuindo-lhe a causa ao ressentimento que nossos
pais tinham porque os egípcios os haviam expulsado de seu país, sem que para
isso tivessem dado motivo, mas somente porque tinham contraído enfermidades
corporais. Quanto aos gregos, estando mais afastados deles pela distância dos
lugares do que pela nossa maneira de viver, não temos por eles nem ódio nem
inveja.
 Ao
 contrário,
 vários deles abraçaram
 nossas
 leis,
 que
 alguns
continuaram a observar e outros as deixaram, porque as achavam muito
severas. Mas haverá um só desses que possa dizer que tenha sido obrigado a
fazer algum juramento? Toca a Ápio revelar esse mistério. Ele deve ter disso
conhecimento, pois foi ele que o inventou.
Eis algo que dará muito melhor a conhecer seu admirável juízo. Ele diz
que parece que nossas leis não são justas, nem nosso culto para com Deus,
como deveria ser, visto que em vez de mandar, nós obedecemos a diversas
nações e somos maltratados em diversos lugares e que mesmo nossa capital,
outrora tão livre e tão poderosa, está sujeita aos romanos. Sobre isso, pergunto
qual a nação que pôde resistir ao ímpeto de suas armas, e que outro senão Ápio
é capaz de falar dessa maneira? Quem não sabe que é uma felicidade, que
quase não tocou a povo algum, poder conservar-se numa dominação constante
e não ser obrigado a obedecer depois de ter governado? Os egípcios são os
únicos, se neles quisermos crer, que jamais experimentaram essa mudança,
porque, dizem eles, que os deuses expulsos de outros países refugiaram-se no
deles e lá se esconderam, transformando-se em animais e que para
recompensá-los, os preservaram das conquistas e das dominações dos
conquistadores da Ásia e da Europa, houve jamais vaidade mais extravagante?
Não sabemos, que desde todos os tempos eles não foram livres, nem mesmo sob
o reinado de seus próprios soberanos? Que os persas por várias vezes
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saquearam-lhes as cidades, destruíram-lhes os Templos e mataram esses
animais que eles põem no número dos deuses? Não pretendo, entretanto, fazer-
lhes censuras e imitar a loucura de Ápio, que, quando manchou sua pena no fel
e no veneno para escrever contra nós, não considerou as desgraças que
aconteceram aos atenienses e aos lacedemônios, dos quais uns passam sem
contestação pelos mais valentes e outros, pelos mais religiosos de toda a Grécia.
Não direi também quantos reis célebres por sua piedade e Creso, entre outros,
experimentaram a inconstância da sorte. Não referirei outros-sim de que modo
essa poderosa cidade de Atenas, esse soberbo Templo de Efeso e o de Delfos
foram reduzidos a cinzas, sem que ninguém tenha censurado os autores desses
deploráveis incêndios.
Somente Apio foi capaz de forjar contra nós semelhantes acusações, sem
se lembrar de tantos males que o Egito, sua pátria, sofreu, porque Sesóstris,
que ele falsamente supõe ter sido rei do Egito, sem dúvida cegou-o. Não direi
também quantos povos foram submissos aos nossos reis Davi e Salomão. Mas,
para falar somente dos egípcios, é possível que Ápio desconheça o que todos
sabem, que eles estiveram sob a dominação dos persas, e dos outros povos da
Ásia, e dos macedônios, que os trataram como escravos? Nós, ao contrário,
continuamos livres e tivemos durante cento e vinte anos as cidades vizinhas
sob nossa dominação até Pompeu, o Grande; e os romanos submetendo os
outros reis, nossos antepassados, trataram-nos como amigos e como aliados,
pelo seu valor e pela sua fidelidade.
Ápio diz também que não possuímos grandes homens, que tenham sido
excelentes nas artes e nas ciências, como Sócrates, Cleanto e outros, no
número dos quais nos não devemos admirar muito de que ele tenha tido a
vaidade de se colocar, e de dizer que Alexandria só é feliz por ter sido a pátria
de um cidadão como ele. Entretanto, era de mister que, querendo passar por
um homem tão importante, ele desse esse testemunho de si mesmo, pois sendo
conhecido por todos como um homem mau, tão corrompido em seus costumes
quão extravagante em suas palavras, devemos lamentar Alexandria, se ela se
orgulha de possuir tal cidadão. Quanto aos homens de nossa nação que foram
excelentes nas artes e nas ciências, poderíamos, lendo as nossas histórias
antigas, constatar que ela os teve e não inferiores aos gregos.
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As outras censuras desse ridículo autor são tão desprezíveis, pois recaem
sobre ele mesmo e sobre os egípcios, que seria talvez mais conveniente não res-
ponder a nenhuma delas. Ele lamenta-se de que, sacrificando animais, nós não
queremos comer a carne de porco e zomba da nossa circuncisão. A isso respon-
do que, quanto a matar animais, isso nos é comum com todos os outros povos,
e quanto aos nossos sacrifícios, a aversão que ele por isso demonstra prova
muito bem que ele é egípcio. Os gregos e os macedônios não se preocupam com
isso e nada têm a recriminar, porque eles oferecem aos seus deuses*
hecatombes e comem com seus sacerdotes a carne dos animais sacrificados,
sem temor de que isso venha a eliminar da terra tal espécie de animais, como
Ápio mostra recear, ao passo que, se todos os outros países se conformassem
com os costumes dos povos de que são originários, não restaria bem depressa
um homem sobre a terra, tanto estaria ela cheia desses cruéis animais, que os
egípcios adoram como divindades e que alimentam com tanto cuidado.
___________________________
* Hecatombe é um sacrifício de cem bois.
Se lhe perguntarmos quais os negócios que ele julga mais sábios e mais
religiosos, ele responderá, sem dúvida, que são os sacerdotes, pois ele disse que
a eles os primeiros reis do Egito ordenaram reverenciar os deuses e fazer
profissão particular de sabedoria. Ora, todos esses sacerdotes fazem-se circun-
cidar e se abstêm de comer carne de porco e nenhum outro dos egípcios faz
sacrifícios com eles.
Ápio não teria perdido o juízo quando, nos caluniando para favorecer aos
egípcios, ele não percebeu que é sobre eles mesmos que recaem as censuras
que nos faz, pois que eles não somente fazem o que ele condena, mas
ensinaram os outros povos a se fazem circuncidar, como o afirma Heródoto.
Depois disso, nos não admiraremos de que Ápio, não tendo tido receio de falar
tão ultrajosamente contra as leis do seu país, tenha sido castigado como
merecia, porque não pôde evitar fazer-se circuncidar e sua ferida tornou-se tão
grave que ele expirou, com sofrimentos e dores inauditas, para mostrar ao
mundo, com que piedade e respeito devemos observar as leis que estamos
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obrigados a seguir, e de como não devemos censurar as dos outros. Tal o fim de
Ápio, por ter feito o contrário; este deveria ser também o fim deste livro que eu
determinei escrever, para lhe dar as convenientes respostas.
CAPÍTULO 6
RESPOSTA AO QUE LISÍMACO, APOLÔNIO MOLOM E ALGUNS OUTROS
DISSERAM CONTRA
 MOISÉS. JOSEFO MOSTRA COMO ESSE ADMIRÁVEL
LEGISLADOR SOBREPUJOU A TODOS OS OUTROS E QUE NENHUMA OUTRA LEI
JAMAIS FOI TÃO SANTA NEM TÃO RELIGIOSAMENTE OBSERVADA COMO AS
QUE ELE NOS DEU.
Mas, como Lisímaco, Apolônio Molom e alguns outros por ignorância e por
malícia quiseram fazer crer que Moisés, nosso legislador, era um sedutor e um
mago e que as leis que ele nos legou só têm maldade e perigo, julgo-me obri-
gado a provar e a mostrar qual o nosso proceder em geral e nossa maneira de
viver, em particular; espero que todos possam sabê-lo e que nada se pode
acrescentar às nossas santas leis, quer no que se refere à piedade, quer à
sociedade civil, à caridade, à justiça, à paciência no sofrimento, e ao desprezo
da morte. Rogo aos que as lerem que não se deixem levar pelo desejo de
encontrar o que censurar; este pedido é tanto mais razoável, quanto meu
intento não é estender-me sobre elogios de nossa nação, mas somente justificá-
la nas coisas de que a acusam tão falsamente.
Não é por simples palavras continuadas, como as de Ápio, que Molom fala
contra nós; ele espalhou suas calúnias por diversos lugares de sua obra. Ora
nos trata de ateus e de inimigos de todos os homens, ora censura nossa
timidez, ora nos acusa de sermos ousados. Diz em outros pontos que nós
somos mais brutais que os bárbaros, e que assim ninguém se deve admirar de
que nada tenhamos inventado de útil para a vida. Nada é mais fácil que
confundir tanta impostura, pois não há outra coisa a se fazer, que ler as nossas
leis, para se saber que elas ordenam justamente o contrário do que ele afirma e
todos sabem que nós as observamos mui religiosamente. Se para justificar a
pureza de nossas cerimônias eu sou obrigado a falar das de outras nações,
devemos nos ater aos que se esforçam para fazer crer que as nossas lhes são
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muito inferiores.
Tudo o que esse autor e os outros dizem contra nós reduz-se a dois
pontos: que nossas leis não são boas, das quais, porém, somente o resumo que
eu apresentarei mostrará o contrário, e que nós não as observamos. Para
responder a essas objeções devemos tomar o assunto um pouco mais atrás. Eu
digo, pois, que aqueles que por seu amor pelo bem público estabeleceram leis
para o regimento dos costumes são muito mais estimáveis do que os que vivem
sem ordem e disciplina. Assim, todos devem conformar-se com as mesmas, não
fazer novas leis, pela vaidade de passar por criadores e não por imitadores. O
dever do legislador consiste em não ordenar que não seja justo, e cujo uso seja
útil aos que observam as causas preceituadas; vice-versa o dever dos povos
consiste em jamais se afastar delas, nem na prosperidade nem na adversidade.
Ora, eu digo que nosso legislador, em antigüidade, precede a Licurgo, a
Sólon, a Zaleuco de Locres e a outros, tanto amigos como modernos de quem os
gregos tanto se ufanam de que o nome de lei entre eles não era conhecido
outrora, como parece, pois Homero nunca o usou. Os povos eram governados
por máximas e ordens dos reis, das quais se usavam, segundo a oportunidade,
sem que algo houvesse escrito. Mas nosso legislador, que aqueles mesmos que
falam contra nós não podem negar ser muito antigo, mostrou que ele era um
guia provecto de um grande povo, porque depois de lhe ter dado excelentes leis,
ele o persuadiu a recebê-las e observá-las inviolavelmente. Vejamos, pela
grandeza de seus feitos, quem ele foi. Nossos antepassados, que se haviam
multiplicado excessivamente no Egito, gemiam sob o jugo de uma servidão
insuportável; ele não somente lhes serviu de chefe, para de lá retirá-los e levá-
los à terra que Deus lhes tinha prometido, mas salvou-os por sua grande
prudência de inúmeros perigos. Tiveram que atravessar desertos sem água e
sustentar diversos combates para defender suas esposas, seus filhos e seus
bens. Tiveram-no em tantas dificuldades como excelente general, guia muito
sábio e protetor incomparável. Embora persuadisse tudo o que queria àquela
grande multidão e ela lhe fosse muito submissa, jamais ele foi tentado pelo
desejo de dominar; mas, ao contrário, quando todos os outros aspiram à tirania
e soltam as rédeas ao povo, para que viva na desordem, em vez de abusar de
sua autoridade, ele só pensou em caminhar na sua presença e no temor de
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Deus, em incitar o povo à piedade e à justiça, em fortalecê-lo com seu exemplo
e garantir-lhe a tranqüilidade. Tão santo proceder e tão grandes feitos nos não
levam a acreditar que Deus era o oráculo que ele consultava e que, estando
persuadido de que devia em todas as coisas conformar-se com a sua vontade,
tudo ele fazia para inspirar esse mesmo sentimento ao povo, de que tinham o
governo? Nada é tão capaz de impedir que os homens caiam no pecado do que a
crença de que Deus tem os olhos abertos sobre todas as suas ações? Eis o que
foi o nosso legislador, não um sedutor, como imaginam esses autores, mas
semelhante a Minos e àqueles outros legisladores, de que os gregos se
vangloriam. Minos dizia que tinha recebido suas leis de Apoio, cujo oráculo
tinha consultado em Delfos; os outros diziam tê-las recebido de outras
divindades, quer o acreditassem deveras, quer quisessem inculcá-lo ao povo.
Mas é fácil julgarmos pela comparação dessas leis, quais as mais santas e
quais os legisladores que tiveram um conhecimento mais particular de Deus. É
o que nos falta examinar.
As diversas nações que existem no mundo governam-se de maneiras
diferentes: umas abraçam a monarquia; outras, a aristocracia; outras, a
democracia. Mas nosso divino legislador não estabeleceu nenhuma dessas
espécies de governo. Escolheu uma república, à qual podemos dar o nome de
Teocracia, pois que a fez inteiramente dependente de Deus e ao qual nós
consideramos como o único autor de todo bem, que prove às necessidades
gerais de todos os homens. Só a Ele recorremos em nossas aflições e estamos
persuadidos de que não somente todas as nossas ações lhe são conhecidas,
mas de que penetra mesmo todos os nossos pensamentos.
Os outros legisladores ensinaram que há um só Deus, monarca Todo-
poderoso; mas misturam com essa verdade, diversas fábulas, reconhecendo
outras divindades, que são incapazes de compreender as suas orações e
conhecer suas necessidades, seus pensamentos e suas ações. Moisés, ao
contrário, declara que há somente um Deus perfeitamente bom e sempre pronto
a nos escutar, Incriado, Imortal, Eterno, Imutável, que sobrepuja em beleza a
todas as criaturas e que somente nos é conhecido mediante seu poder e cuja
essência nos é desconhecida. Os mais sábios e os mais sensatos dos gregos
parecem ter tido essa idéia de Deus, tendo, como eu já disse, falado dEle como
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de um monarca, o que exclui a pluralidade de deuses e de uma maneira
conveniente, à sua suprema majestade, chamado a um princípio sem princípio
e elevado acima de todas as coisas. Pitágoras, Anaxágoras, Platão e outros
estóicos, e quase todas as outras seitas, tiveram essa crença de Deus, mas não
ousaram professá-la abertamente, por causa das superstições de que o povo
estava possuído. Nosso legislados foi o único cujas ações e palavras foram
conformes. Ele não somente instruiu os seus contemporâneos nessas santas
verdades, mas fez que seus descendentes conservassem fielmente a mesma
crença e nada fosse capaz de os abalar em sua fé, porque ele só deu leis que
eram úteis a todos e não se contentando de lhes ensinar a adoração que deviam
a Deus, ensinou-lhes também que uma parte de seu culto consiste em praticar
as virtudes, como a justiça, a fortaleza, a temperança e a viver numa estreita
união uns com os outros. Assim, nada lhes ordenou que não se referisse a
Deus e que não tendesse a uma verdadeira piedade. Ele os instruiu a respeito
de tudo o que concerne à religião e aos costumes e uniu a prática à teoria, ao
passo que os outros legisladores, tomando um desses dois caminhos, que
aprovaram e preferiram, deixaram o outro. Os lacedemônios e os candiotas não
se serviam de palavras, mas somente de exemplos; os atenienses e quase todos
os outros gregos contentavam-se em fazer leis e dar preceitos, sem se
incomodar em fazê-los observarem. Nosso legislador, ao contrário, jamais
separa essas duas coisas. Tudo ele fez do que pode servir para formar os
costumes e cuidou de tudo por meio das leis que nos deu. Determinou até as
mínimas coisas que nos é permitido comer e com quem as podemos comer. Fez
do mesmo modo que se refere às obras, ao trabalho e ao descanso, a fim de
que, vivendo sujeitos à lei como a um pai de família ou a um senhor, não
pudéssemos faltar por ignorância. E para termos desculpas se faltássemos à
observância dessas santas leis, ele não se contentou de nos obrigar a ouvir, lê-
las uma vez, duas vezes, ou diversas vezes: mas ordenou que num dia da
semana nos abstivéssemos de toda espécie de trabalho, para somente, sem
distração, ouvi-las e mesmo aprendê-las, o que nenhum outro legislador jamais
fez. Vemos também entre as outras nações que a maior parte não somente não
vive segundo as leis estabelecidas, mas as ignora quase completamente e só
sabe que faltou a elas quando é advertido, o que faz que as pessoas mais
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ilustres em dignidade tenham junto de si outras pessoas que são dotadas de
uma inteligência particular; ao passo que se interrogarmos os nossos a esse
respeito, veremos que todos são tão instruídos nas leis, que seu próprio nome
não lhes é mais conhecido. Nós as aprendemos desde a infância, gravamo-las
em nosso espírito, a elas faltamos raramente e não as deixamos de observar
sem sofrer logo o castigo. Esse conhecimento produz também entre nós uma
admirável união porque nada é tão capaz de a fazer nascer e conservar do que
os mesmos sentimentos da grandeza de Deus, a mesma orientação na maneira
de viver e os mesmos costumes; não se ouve entre nós falar diversamente de
Deus, como acontece com os outros povos, não somente entre pessoas do povo,
que dizem ao acaso o que lhes vem à mente, mas entre os filósofos. Uns querem
fazer crer que não existe Deus; outros, sustentam que sua providência não vela
pelos homens nem estabelece entre eles diferença alguma e que todas as coisas
lhes são comuns. Nós cremos, ao contrário, que Deus vê tudo o que se passa no
mundo. Nossas mulheres e nossos servos disso estão persuadidos como nós;
podemos ouvir de suas bocas as regras do proceder de nossa vida e eles sabem
que todas nossas ações devem ter por objeto agradar a Deus.
Quanto ao que se nos censura, como um grande defeito, de não
procurarmos inventar coisas novas, quer nas artes, quer nas línguas, quando
os outros povos merecem elogios porque apresentam sempre novidades, nós
atribuímos, ao invés, a causa disso à virtude e à prudência de permanecermos
constantemente na observância de nossas leis e dos costumes de nossos
antepassados, porque é uma prova de que foram feitos com perfeição, pois
somente os que não têm essa vantagem é que devem ser modificados quando a
experiência mostra a necessidade de se lhe corrigirem os defeitos. Assim, como
não duvidamos de que foi Deus que nos deu essas leis, por intermédio de
Moisés, poderíamos sem impiedade não nos esforçarmos por observá-las mui
religiosamente? Que normas podem ser mais justas, mais excelentes e mais
santas do que as de que esse soberano monarca do universo é o autor, do que
esse proceder admirável que atribui a todos os sacerdotes em comum a
administração das coisas santas e ao sumo sacerdote a autoridade sobre os
outros, para que todos desempenhem com tanto desinteresse e pureza um
ministério divino, que eles desprezam as riquezas e se elevam por sua virtude
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acima dos afetos que corrompem o espírito dos homens? São eles que velam
com um contínuo cuidado pela observância das leis e a manutenção da
disciplina: eles são juizes nas questões e ordenam o castigo dos culpados. Que
forma de governo pode ser então mais perfeita que a nossa, que maiores honras
pode dar a Deus, pois que estamos sempre preparados a cumprir o culto que
lhe devemos e pelo qual nossos sacerdotes foram constituídos para velar sem
cessar, para que nada se faça que lhe seja contrário, e para que todas as coisas
sejam mais bem organizadas num dia de festa solene, do que o são sempre,
entre nós? Mal as outras nações observam durante alguns dias as cerimônias
às quais dão o nome de mistérios e nós, ao contrario, jamais a elas faltamos há
tantos séculos, nem deixamos de praticar com alegria todas as nossas.
CAPÍTULO 7
CONTINUAÇÃO DO CAPÍTULO ANTERIOR, ONDE TAMBÉM FALAMOS DOS
SENTIMENTOS QUE OS JUDEUS TÊM DA GRANDEZA DE
 DEUS E DO QUE ELES
SOFRERAM PARA NÃO FALTAR À OBSERVÂNCIA DE SUAS LEIS.
Entre outros preceitos de nossa religião e que todos nós conhecemos, ela
nos obriga a crer que Deus compreende tudo em si; que nada falta à sua
perfeição, nem à sua felicidade, que Ele é bastante a si mesmo e a todas as
criaturas, que Ele é o princípio, o meio e o fim de todas as coisas, que Ele opera
em todas as nossas ações e nossas boas obras, que nada é mais visível do que
seu poder, mas sua forma e sua grandeza são incompreensíveis; que tudo o que
há de mais rico, e de mais excelente no mundo é incapaz de o representar e é
desprezível em comparação à sua glória; que não somente nossos olhos nada
podem ver que lhe seja semelhante, mas nosso espírito nada pode imaginar que
se lhe aproxime e nós o conhecemos apenas por meio de suas obras, quando
consideramos a luz, o céu, o sol, a lua, a terra, o mar, os rios, os animais e as
plantas, que são obra de suas mãos, sem que Ele tenha tido necessidade para
criá-los, nem de trabalhar, nem de ser ajudado por quem quer que seja, sendo
sua única vontade suficiente para lhes dar o ser, no momento em que Ele assim
quis. É, pois, a Ele que todos os homens são obrigados a adorar e a servir,
praticando a virtude, que é o único meio de agradá-lo.
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Como há somente um Deus e um mundo conhecido a todos os homens,
nós não temos senão um único templo e essa conformidade é-lhe agradável. E
nesse templo que nossos sacerdotes adoram sua Eterna Majestade. Aquele que
ocupa entre eles o primeiro lugar oferecer-lhe, antes de todos os outros,
sacrifícios, vigia pela observância de suas leis, castiga os que são culpados de
sua violação, julga as questões e todo aquele que desobedece é castigado como
se tivesse desobedecido ao mesmo Deus.
Comemos a carne das vítimas que imolamos, não para que nos façam
proveito e tenhamos prazer, o que atrairia sobre nós a cólera de Deus, que ama
a sobriedade e a temperança.
Começamos nossos sacrifícios por pedir o bem geral do mundo e depois,
por nós mesmos, como fazem parte desse todo, sabendo que nada agrada mais
a Deus que o liame de um afeto mútuo que nos une a todos.
Os votos e as orações que lhes oferecemos não têm por objetivo pedir-lhe
bens; Ele o faz voluntariamente a todos; e a terra está cheia de seus benefícios,
mas é para rogar-lhe a graça de bem usarmos de todos eles.
Antes de oferecermos os sacrifícios a lei nos obriga a nos purificarmos,
sepa-rando-nos por alguns dias da companhia de nossas esposas, e observando
outras coisas que seria mui longo enumerar.
Foi assim que Moisés ordenou vivermos para nos tornarmos agradáveis a
Deus, que é Ele mesmo a nossa lei. Quanto ao que se refere ao casamento, dele
podemos usar para ter filhos, mas todo comércio que viola as leis da natureza
nos é proibido, sob pena de morte.
A lei quer também que no casamento nossa intenção seja tão pura que
consideremos o bem e que longe de mantermos mulheres, não usemos do
menor artifício para persuadi-las a nos desposar. Devemos recebê-las das mãos
daqueles que têm o poder de no-las dar e com o consentimento dos pais. A
mulher deve estar sujeita, em todas as coisas, ao seu marido, embora ela seja
mais virtuosa do que ele, porque Deus lhe deu esse poder sobre ela, mas ele
disso não deve abusar. A mulher só deve ter relações com seu marido e se a
isso faltar, será castigada com a pena de morte.* A lei proíbe também, sob pena
de morte, fazer violência a uma jovem prometida a outro e cometer adultério
com uma mulher casada e com aquela que amamenta filhos, e proíbe às
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mulheres, sob o mesmo castigo, suprimir os filhos, que traem ao mundo ou
fazê-los morrer em seu seio, porque é matar uma alma, sacrificando um corpo e
diminuir o número dos homens.
__________________________
* O intérprete latino e Genebrad tomaram mal esta passagem, atribuindo
ao homem o que se diz da mulher.
Por menor que seja a impureza em que se tenha caído, não se poderia
oferecer o sacrifício e as mulheres são mesmo obrigadas a se lavar depois de
terem tido a companhia de seus maridos, por causa da comunicação que a
alma tem com o corpo.
A lei não permite mesmo no dia em que se soleniza o nascimento das
crianças fazer festas, de receio de se dar motivo a embriaguez e para ensiná-las
desde então a serem sóbrias. Ela quer que sejam instruídas, desde tenra idade,
nas letras e no conhecimento de nossas leis e que lhes ensinemos os grandes
feitos dos nossos antepassados, a fim de animá-los à sua imitação e tirar-lhes
todo pretexto de faltar, por ignorância.
A sabedoria dessa lei tão santa chega a se interessar até mesmo pelos
funerais dos defuntos; ela lhes modera a suntuosidade, como também a dos
sepulcros, mas ordena aos domésticos que cuidem das homenagens de seus
amos, com ordem de se purificarem depois de se terem aproximado de seus
corpos mortos e permite aos parentes dos falecidos chorá-los e lamentá-los,
porque isso é um dever de piedade, que não se poderia com justiça negar à
natureza.
Se alguém cometeu um assassínio, voluntária ou involuntariamente, a
mesma lei ordena-lhe o castigo.
Ela manda dar, depois de Deus, toda espécie de honra aos pais e às mães;
determina que aqueles que a isso faltarem sejam apedrejados; que os moços
respeitem os velhos, porque nada é tão antigo como Deus. Quer também que os
amigos, juntos, vivam com grande sinceridade de coração, porque não pode
haver amizade onde não há confiança. Mas se acontecer que sua amizade se
desfizer ela proíbe expressamente revelar os segredos que haviam sido
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revelados durante a amizade. Se um árbitro recebe presentes, ela o condena à
morte, porque ele calcou aos pés a justiça.
Trata como culpados os que podendo ajudar o próximo não o fazem;
proíbe tomar o que pertence a outrem e emprestar com usura.
A sabedoria que reluz em todas essas leis e em outras semelhantes
conserva a união entre nós e creio dever também referir com que prudência
nosso excelente legislador nos ordena como proceder para com os estrangeiros,
para que se veja que nada se pode acrescentar às suas determinações, para nos
impedir de afrouxarmos na observância de nossas leis, pelas nossa relações
com eles ou de faltar à caridade, invejando-lhes a felicidade de segui-las se eles
o desejarem. Ele nos manda então que, no caso de eles desejarem aceitá-la, nós
os recebamos de braços abertos, porque a união entre os homens não consiste
tanto em ser de uma mesma nação, do que em haver conformidade nos
sentimentos e na maneira de viver. Quanto aos estrangeiros que estão somente,
Ele não permite comu-nicarmos-lhes algo de nossos costumes, mas quer que
nos contentemos em ajudá-los no que lhes é necessário. Acrescenta que não
devemos recusar a ninguém o fogo, a água, o alimento, a sepultura e o
conhecimento do caminho que ele deve seguir. Sua bondade estende-se até aos
inimigos, pois proíbe-nos de incendiar seu país, cortar-lhes as árvores
frutíferas, despojar os que morrem na luta e maltratar os prisioneiros,
particularmente as mulheres.
Ele teve tanto cuidado em nos inspirar a humanidade e a doçura, que
quer que a pratiquemos até mesmo com os irracionais. Permite-nos deles
usarmos de maneira legítima, mas proíbe-nos matar os que, sendo domésticos,
nascem em nossas casas, bem como matar os filhotes com as mães dos que nos
é permitido comer. Quer ainda que poupemos aos animais que nos são inimigos
e proíbe matar os que nos ajudam em nossos trabalhos.
Assim vemos que a tudo o que nos pode ser útil a sua sabedoria se
estende; Ele determinou penas contra os transgressores destas leis, mas penas
que em vários casos não são menores que a mesma morte. A elas condena os
que cometem adultério, os que violentam uma moça ou que caem, com uma
pessoa do mesmo sexo, num crime que causa vergonha à natureza, sem
exceção alguma, quer seja livre quer escravo.
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Ele determinou também penas contra os que vendem com peso e medidas
falsas, os que usam de fraude de qualquer outro modo e essas penas são muito
maiores que nas outras nações.
Quanto aos que cometerem alguma impiedade para com Deus ou que
ofendem aos próprios genitores, fazem imediatamente. Porém aqueles que
observam religiosamente todas estas leis recebem como recompensa de sua
virtude não somente ouro, prata, ou coroas adornadas de pedrarias, mas
também o que é incomparavelmente mais precioso: o testemunho da própria
consciência e a felicidade de serem amados por Deus, que confirma o que
Moisés, seu servo, predisse, não poder deixar de acontecer; e de tal modo
fortifica-lhes tanto a fé que eles se expõem com alegria à morte para a defesa
dessas santas leis, com a firme esperança de gozar de uma felicidade eterna na
outra vida.
Eu não teria dito o que acabo de dizer se não fosse de todos sabido, que
muitos de nossa nação sofreram tantas e tão grandes perseguições, e com uma
coragem invencível toda sorte de tormentos e a mesma morte, antes que
proferir a mínima palavra contra nossa lei. Mas, quando mesmo isso não fosse
coisa de todos conhecida e que nunca se tivesse ouvido falar de nós, se alguém
dissesse ter lido numa história ou visto num país longínquo, afastado de todo
comércio, um povo que tinha sentimentos religiosos para com Deus e que
observava há muitos séculos tais leis, sem jamais delas se ter afastado, poderia
deixar de se admirar? Não seria o espanto ainda maior, se visse continuamente
em seu país mudanças na religião e nos costumes? Não sabemos que os gregos,
que deliberaram há pouco escrever sobre o governo da república foram tratados
de ridículos, por que propuseram coisas cuja prática é impossível? Não falamos
dos filósofos dessa nação que escreveram sobre esse assunto, antes de Platão,
que tanto eles admiram, como sobrepujando a todos os outros pela pureza dos
costumes pela eloqüência e pela força do raciocínio; não foi ele criticado mesmo
nas suas comédias, por aqueles que afirmavam que o que ele tinha escrito de
política não se podia praticar; entretanto, se considerarmos suas obras
encontraremos que há várias coisas que se referem aos costumes dos outros
povos e ele mesmo confessa que por causa da ignorância do vulgo, ele não se
atreveu a escrever tudo o que sabia da grandeza e da glória de Deus, porque
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não o teria podido fazer sem perigo. Mas outros zombam dessas leis propostas
por Platão, como sendo novidades e feitas apenas por passatempo e julgam de
tal modo as de Licurgo, que têm os lacedemônios por felizes por observá-las há
tanto tempo. É, pois, por seu próprio testemunho um sinal de virtude perse-
verar na prática das mesmas leis; e se eles admiram nisso aos lacedemônios,
não deveriam muito mais nos admirar, comparando o pouco de tempo que esse
povo teve de observá-las, com os mais de dois mil anos que nós observamos as
nossas? Podemos ainda acrescentar que eles só praticaram quando se tomaram
livres e depois mesmo, as abandonaram quando a fortuna os abandonou. Nós,
ao contrário, embora ela nos tenha de tal modo perseguido nas diversas
vicissitudes dos dominadores da Ásia e embora oprimidos por males, jamais
delas nos afastamos sem que nos possam acusar de ter considerado nisso
nosso descanso ou prazer, e embora as dificuldades e trabalhos que nos
impuseram tenham sido muito maiores que os dos lacedemônios: pois eles
apenas trabalhavam a terra e desempenhavam diversos ofícios e viviam à
vontade nas aldeias e cidades, bem alimentados e bem vestidos, sem que outra
coisa deles se exigisse que ir à guerra contra os inimigos daqueles que os
haviam sujeitado. Não me detenho, porém, em fazer notar que eles não lhes
permaneceram fiéis, como suas leis os obrigavam, pois tomaram as armas e
passaram para os inimigos. Poder-se-á dizer a mesma coisa de nós? Sei apenas
de duas ou três pessoas que renunciaram às nossas leis, de medo da morte;
não falo da morte no campo da luta, que é fácil de se suportar, mas da morte
cruel, no meio dos tormentos, tão horrível que eu não poderia crer, seja por um
movimento de ódio, que aqueles aos quais estamos sujeitos tenham feito sofrer
a muitos de nossa nação. Estou persuadido de que a isso foram levados, para
ver se havia homens tão apegados à observância de suas leis, que
considerassem como o maior de todos os males fazer ou dizer a mínima coisa
que lhes fosse contrária.
Não há, entretanto, motivo de admiração de que nenhum outro povo se
exponha tão corajosamente como nós à morte, para a defesa de suas leis, pois
não se podem resolver a observar somente coisas que nos parecem leves, como
a simplicidade na bebida e na comida, nos hábitos, a continência e a
observância dos dias de descanso. Devemos perguntar-lhes se no ardor da
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peleja, quando eles põem em fuga os inimigos, eles se poderiam resolver a
praticar aquela abstinência de certas carnes, que a lei determina, mas nós
sentimos prazer em prestar essa obediência às nossa leis com firmeza
invencível.
Que Lisímaco, Molom e esses outros filósofos que só escrevem calúnias e
enganam a juventude cessem de nos querer fazer passar pelos piores de todos
os homens.
CAPÍTULO 8
NADA É MAIS RIDÍCULO QUE ESSA PLURALIDADE DE DEUSES DOS PAGÃOS, NEM TÃO
HORRÍVEL COMO OS VÍCIOS DE QUE ELES ESTÃO DE ACORDO , ESSAS
PRETENSAS DIVINDADES SÃO CAPAZES .
 OS POETAS , OS ORADORES E OS
EXCELENTES ARTISTAS CONTRIBUÍRAM PRINCIPALMENTE PARA ESTABELECER
ESSA FALSA CRENÇA NO ESPÍRITO DOS POVOS;PORÉM OS MAIS SENSATOS E
SÁBIOS ENTRE OS FILÓSOFOS NÃO A TINHAM.
Não quero examinar as leis dos outros povos; nós nos contentamos em
observar as nossas, sem censurar as dos outros; e nem tampouco zombamos
delas, nem maldizemos aquilo que essas nações consideram como deuses,
porque nosso legislador no-lo proibiu, pelo respeito devido a tudo o que traz o
nome de Deus. Mas eu não poderia não responder às coisas de que nos acusam
tão falsamente, embora pareça que este escrito não seja necessário para refutá-
las, porque já o foram por tantas outras. Quem são os mais estimados entre os
gregos por sua sabedoria, que não tenham repreendido os poetas mais célebres
e particularmente os legisladores, por terem feito os povos crer nessa
pluralidade de deuses, nascidos uns dos outros, em tantas maneiras diferentes
e que faziam chegar a tal número como bem lhes parecia e lhes davam, como
aos animais, diversos lugares para morada, uns sobre a terra, outros no mar e
queriam que os mais antigos estivessem acorrentados no inferno. Quanto aos
que eles diziam habitar no céu davam-lhes um pai de nome, mas um tirano de
fato, contra o qual sua mulher, o irmão e a filha nascida do cérebro, tinham
conspirado para expulsá-lo do trono como ele tinha expulsado o pai. Assim os
gregos que sobrepujavam aos outros em sabedoria não podiam zombar dessas
extravagantes e de que os que as apregoavam tão ousadamente queriam fazer
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crer que esses deuses, uns eram jovens, outros na flor da idade, e outros,
velhos; que havia toda a espécie de ofícios e profissões entre eles; um era
ferreiro, outro era tecelão, outro, guerreiro, que combatia contra os homens,
outro tocador de harpa, outro, que era hábil no manejo do arco, interessando-
se pelas questões dos homens, vinha combater com eles, recebia ferimentos,
que suportava com impaciência. Mas, o que é ainda horrível, eles atribuem a
esses pretensos deuses e deusas amores e licenciosidades, coisas ridículas de
se imaginar, de que as divindades sejam capazes. Admitem que aquele deus,
que eles representam, tão poderoso, senhor de todos os outros, depois de ter
abusado de mulheres, não teve o poder de impedir que elas ficassem
prisioneiras e que fossem afogadas com os filhos que tivera delas, embora sua
morte o fizesse derramar lágrimas, porque ele era obrigado a ceder às
imposições do destino. Eis ações certamente muito louváveis para deuses,
cometer com tanta imprudência adultérios no céu, que demonstravam invejar
eles os que eram surpreendidos em ações tão infames: e que não podiam fazer
os deuses menores, vendo que esse Júpiter que eles reverenciavam como rei era
tão arrebatado por essa brutal paixão? Que direi também do que eles
demonstravam crer, que alguns desses deuses conduziam os rebanhos dos
homens e os serviam com outras coisas, para disso tirar proveito; outros
estavam encerrados numa prisão como criminosos e amarrados com correntes
de ferro? Outros não têm receio de representar essas falsas divindades como
capazes de temor, de furor, de fraude e de todas as outras paixões mais
condenáveis. Embora representando-os tão imperfeitos, eles tinham persuadido
os povos a lhes oferecerem sacrifícios; julgavam a uns benfeitores, a outros,
malfeitores, e procediam para com eles como o fariam com os homens, pois
procuravam torná-los favoráveis por meio de presentes, na persuasão de que de
outro modo ter-lhes-iam feito muito mal.
Poderemos ser
 sensatos e
 não sentir
 indignação
 contra
 os que
envenenaram os espíritos com tão grande impiedade, e não nos admiramos da
loucura daqueles que foram tão simples deixando-se persuadir? Não posso
atribuir-lhes a causa senão ao afeto de legisladores terem tão grande ignorância
da natureza e da grandeza de Deus, que não podendo daí tirar alguma luz para
o governo das repúblicas, eles permitiam aos poetas fazer passar por deuses
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sujeitos às paixões dos homens, todos os que eles queriam, e aos oradores
escreverem tratados referentes ao governo das repúblicas, apoiando suas idéias
com a autoridade dos deuses estrangeiros. Os pintores e os escultores muito
também
 contribuíram
 para
 isso
 entre
 os gregos,
 representando essas
divindades segundo seu capricho e, particularmente, os mais hábeis dos
artifícios que para isso empregavam o ouro e o marfim. Aconteceu mesmo que
deixaram de adorar as mais antigas dessas divindades para adorarem novas.
Restabeleceram em sua honra os antigos Templos, e construíram-se outros
novos, segundo a inclinação dos homens a isso os levavam; ao passo que o
culto do verdadeiro Deus deve ser perpétuo e imutável.
Podemos com razão colocar Molom no número desses insensatos, que se
perdem por seu orgulho no desgarramento de suas idéias, mas os verdadeiros
filósofos gregos não ignoravam o que eu disse sobre a essência e a natureza de
Deus. Eles estão de acordo conosco e zombaram dessas ridículas ficções. Por
isso Platão não admite poeta na sua república e exclui o mesmo Homero, com
quem depois reconcilia, presta-lhe honra, coroando-o de louros, aspergindo-o
com perfumes para que não destrua, por meio de suas fábulas, a idéia que se
deve ter de Deus e lhe não arrebate a glória que lhe é devida. Esse grande
personagem também imitou a Moisés, ordenando expressamente aos cidadãos
da república, dos quais formou a imagem, que aprendessem com grande
cuidado as leis que lhes dá, de medo que a elas se misture algo de estrangeiro,
que lhe corrompa a pureza e lhes impeça a duração.
Molom
 não
 considera
 nenhuma
 dessas
 razões.
 Ele
 nos
 acusa
ousadamente de não recebermos os que têm opinião e maneira de viver
completamente contrárias às nossas, embora nada façamos do que os gregos
fazem, e mais que nenhum outro dos que passam entre eles pelos mais
prudentes. Os lacedemônios não recebiam estrangeiros e proibiam aos seus
cidadãos viajar, de medo que suas relações com outros povos enfraquecessem
em seu espírito o vigor da disciplina. Nisso poderíamos com justiça acusá-los de
serem demasiado severos e podemos passar, parece-me, por mais bondosos e
humanos, pois ainda que não tenhamos motivo de invejar leis e costumes de
outras nações, não fazemos dificuldade em receber os que querem se instruir
nos nossos.
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Mas, deixando os lacedemônios, Molom mostra ignorar os sentimentos
dos atenienses, que ao contrário dos lacedemônios, se vangloriam de que a
entrada em suas cidade está aberta a todos e castigam com a morte os que
ousam dizer, com relação aos deuses, a mínima palavra, a mais do que está
exarado em suas leis. Não foi por esse motivo que eles fizeram Sócrates morrer?
Tinha ele conspiração com os inimigos contra a pátria, ou querido profanar os
Templos? Seu único crime foi ter usado de um novo juramento e ter dito
iradamente ou por gracejo, que uma divindade lhe havia revelado o que ele
devia fazer. Julga-se que o acusaram também de ter corrompido o espírito da
juventude, inspirando-lhes o desprezo pelas leis e pelos costumes de seu país e
cidadão de Atenas, como ele era, uma dessas coisas ou todas as duas, ao
mesmo tempo, custaram-lhe a vida, sendo obrigado a beber cicuta.
Esses mesmos atenienses não condenaram também à morte Anaxágoras
de Clazomende, porque ele julgava que o sol era um deus, da forma de uma
pedra redonda, toda inflamada, que rodava sem cessar? Prometeram também
um talento a quem lhes trouxesse a cabeça de Diágoras Meliano, porque ele
fora acusado de ter zombado de seus mistérios; teriam feito morrer Pitágoras se
ele não tivesse fugido, porque julgava-se que ele era autor de um escrito em que
punha dúvidas sobre seus deuses. Mas admirar-nos-emos de que eles tenham
tratado tão cruelmente os homens, quando fizeram morrer uma sacerdotisa,
acusada de adorar deuses estrangeiros e ordenaram por meio de um édito a
mesma pena contra os que tentassem introduzir uma nova crença? Está claro
que eles não reconhecem por seus deuses os que as outras nações adoram, pois
que do contrário não teriam querido se privar do auxílio que deles teriam
podido esperar.
Os citas mesmos, tão cruéis que não sentem maior prazer do que
derramar sangue humano e não diferem quase nada dos animais selvagens, os
mais ferozes, não deixam de ser tão ciosos da observância de seus mistérios,
que mataram Anacárcis, tão admirado pelos gregos pela sua grande sabedoria,
porque ao seu regresso ele parecia compenetrado de respeito pelos deuses que
lá são adorados.
Não vemos também que entre os persas muitos sofreram grandes
tormentos pelo mesmo motivo? Ora, todos sabem que Molom aprecia muito as
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leis dos persas e admira, como os gregos, a uniformidade de seus sentimentos
com relação aos deuses e a constância invencível que eles demonstraram
quando lhes queimaram os Templos. Mas ele não os estima somente, ele os
imita, ultrajando as mulheres dos outros e fazendo em pedaços seus filhos,
crimes que entre nós mereceriam a pena de morte, se os cometêssemos, ainda
mesmo contra os irracionais.
CAPÍTULO 9
COMO OS JUDEUS SÃO OBRIGADOS A PREFERIR SUAS LEIS A TODAS AS
OUTRAS.
 DIVERSOS POVOS NÃO SOMENTE AS AUTORIZAVAM COM SUA
APROVAÇÃO, MAS OS IMITARAM.
Não houve poder, por maior que fosse, nem consideração qualquer, que
jamais nos pudesse afastar da observância de nossas leis. O único desejo de as
conservar e não o de nos engrandecemos nos fez empreender generosamente
grandes guerras. Nós sofremos com paciência todos os outros males, mas quan-
do quiseram tocar nessas santas leis, para defendê-las, praticamos atos de
valor que parecem superiores às nossas forças, sem que o extremo a que nos
vimos reduzidos tivesse podido afrouxar nosso ardor e enfraquecer nossa
coragem. Como então poderíamos preferir a nossas leis às dos outros povos,
vendo que elas não são observadas, nem mesmo por aqueles que as criaram?
Como poderíamos não censurar os lacedemônios por sua pouca humanidade
para com os estrangeiros e por sua negligência com relação aos casamentos?
Como poderíamos não sentir horror pela abominação dos elídios, dos tebanos e
de outros povos da Grécia, que se vangloriam de cometer pecados que causam
vergonha à natureza? Que os misturaram às suas leis, que os atribuíram
mesmo aos seus deuses e que soltando o freio de suas brutais paixões, não
fazem caso de despo-sar suas próprias irmãs? Que direi dos meios de que
vários desses legisladores de que eles se gabam, aqueles deram aos maus, para
evitar o castigo de seus crimes, ordenando como pena de um adultério apenas
uma multa pecuniária? Ou ainda depois de ter violado uma virgem ficar-se livre
de desposá-la? Eu não o teria feito, se quisesse examinar particularmente todas
as ocasiões que eles dão de renunciar à virtude e à piedade, e quantos pretextos
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eles acharam para calcar aos pés todas as leis. É o que não se dá entre nós; nós
observamos inviolavelmente as nossas leis até à morte; por não querer
abandoná-las, fomos expulsos de nossas cidades e despojados de nossos bens.
Não encontrará um só judeu, por mais afastado que ele esteja do seu país e por
mais rudes e temíveis que sejam os príncipes sob a dominação dos quais eles
vivem, que faça, por temor, algo contrário às suas leis. Se a pureza dessas leis
nos torna tão afeiçoados à sua conservação, devemos estar de acordo em que
elas são muito boas. E se dissermos que são más, e que é por teimosia que a
ela nos apegamos, que castigo não merecem os que, julgando as suas mui
perfeitas, não as observam?
Ora, como uma longa seqüência de séculos é a melhor de todas as provas,
disso me servirei para mostrar as virtudes de nosso admirável legislador, e que
nada se pode acrescentar à santidade das regras que ele nos deu, com relação
ao culto que somos obrigados a prestar a Deus. devemos apenas computar os
anos para vermos que Moisés precedeu de muito a todos os outros legisladores.
Foi, portanto, de nós que vieram as leis que tantos outros abraçaram, e embora
os mais sábios dos gregos observem aparentemente as de seu país, eles seguem
na verdade as nossas, têm as mesmas idéias sobre Deus e ensinam a viver do
mesmo modo.
Vários outros povos também há muito tempo ficaram tão impressionados
pela nossa piedade, que não há cidade grega, nem bárbaros, onde não se deixe
de trabalhar no sétimo dia, onde não se acendam lâmpadas e onde não se
façam jejuns. Muitos mesmo se abstêm, como nós, de comer certas carnes e
iguarias e procuram imitar a união em que nós vivemos, a comunicação que
fazemos de nossos bens, nossa indústria nas artes e nossa constância no
sofrimento, para observar nossas leis.
O que é, porém, muito mais admirável ainda é que, assim como Deus
governa o mundo com sua sabedoria e com seu poder, nossa lei age por si,
mesmo nos espíritos e nos corações, sem que seja necessário, para fazê-la
observar, que se obrigue a quem quer que seja, e aqueles que refletirem no que
se passa em seu país e em suas casas não terão dificuldade em prestar fé ao
que estou dizendo. Poderemos então não admirar assaz a malícia dos que
querem que abandonemos leis tão santas, para tomarmos outras más? Se eles
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não o querem, que deixem então de nos atacar com calúnias. Protesto
sinceramente que não me empenhei por ódio algum a defender esta causa. Meu
único fim é sustentar a honra de nosso legislador e do que ele nos alegou, por
ordem de Deus. Quando não compreendêssemos por nós mesmos a santidade
dessas leis, o grande número dos que as observam e que as admiram nos
deveria causar respeito para com elas. Já falei muito difusamente delas, bem
como também da antigüidade de nossa nação e da forma de nossa república na
minha história dos judeus; foi somente por necessidade que voltei a fazê-lo
agora aqui, sem intenção de censurar os outros, nem de nos louvar, mas
somente para mostrar a malícia dos que nos atacam e nos atribuem tantas
coisas contrárias à verdade.
CAPÍTULO 10
CONCLUSÃO DESTAS PALAVRAS QUE CONFIRMAM AINDA O QUE JÁ FOI DITO EM FAVOR DE
MOISÉS, E DA ESTIMA EM QUE SE DEVE TER A LEI DOS JUDEUS.
Penso ter cumprido plenamente o que tinha prometido, pois contra o que
dizem esses caluniadores eu mostrei que nossa nação é muito antiga e que
vários dos mais antigos historiadores fazem menção de nós em seus anais.
Os egípcios querem fazer crer que nossos antepassados eram originários
de seu país e eu mostrei que eles para lá tinham ido procedentes de outro
lugar. Dizem que eles tinham sido expulsos por causa de doenças corporais e
eu mostrei que eles o fizeram, com coragem e decisão, para regressar ao seu
país. Eles se esforçaram maliciosamente por fazer mau e eu mostrei outrossim
que o mesmo Deus quis prestar testemunho de sua virtude e que ela foi
louvada em todos os séculos.
Quanto às nossa leis, seria inútil estender-me mais a esse respeito, pois
basta considerá-las para se ver logo que elas inspiram uma verdadeira piedade
para com Deus e uma grande caridade para com os homens; convidam os que a
professam a tornar comuns seus bens; são amigas da justiça e inimigas da
injustiça; rejeitam o luxo e a ociosidade; recomendam a frugalidade e o
trabalho; não incitam à guerra com o fito de enriquecer, nem de se aumentar o
território, mas, por uma verdadeira generosidade, e não nos ensinam a pagar o
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mal com o mal, nem a usar de dissimulação, mas querem que nossas ações
sejam sempre conformes às nossas palavras.
Assim, eu digo com sinceridade que nenhum outro poderia dar tão bons
conselhos e preceitos como nós. Que pode haver de mais louvável que uma
piedade constante, de mais justo do que obedecer às leis e de mais vantajoso
que viver numa perfeita união, sem que a adversidade nos torne insolentes?
Que não termos na guerra medo da morte, ocuparmo-nos na paz da agricultura
e das artes e em qualquer tempo e em qualquer lugar, estarmos sempre
fortemente persuadidos de que Deus vê nossas ações, e que nada acontece no
mundo, que por sua ordem e por sua determinação?
Se outros povos escreveram ou observaram estas coisas antes de nós,
considerá-los-emos como nossos mestres e reconheceremos que muito lhes
devemos. Mas se eles ao contrário as receberem de nós e eu demonstrei, como
penso, que nenhum outro as pratica tão exatamente, que os Ápios, os Molons e
todos os outros, que sentem prazer em inventar contra nós tantas imposturas e
calúnias, deixem de nos atacar. Quanto a vós, virtuoso Epafrodita, que tendes
tanto amor pela verdade, é para vós e para aqueles que desejam como vós ser
instruídos no que se refere à nossa nação que eu realizei este trabalho.
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Martírio
Macabeus
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Prefácio de Josefo
Tendo me determinado escrever, para mostrar que a razão, acom panhada
pela virtude e pela piedade, domina as paixões, peço a atenção de todos os que
lerem o que se segue. O assunto o merece, pois nos é muito importante
sabermos que a razão nos fornece armas para vencer, pela temperança, a gula e
a impureza; pela justiça, a injustiça e a malícia, e pela generosidade, a covardia
e o temor.
Mas, dir-se-á, se a razão domina as paixões, por que não se torna ela
também senhora da ignorância e do olvido? Esta questão é de pouca
importância. Pois o juízo não pode vencer os defeitos, que se encontram em si
mesmo, embora sobrepuje pela razão as paixões contrárias à temperança, à
justiça e à generosidade e a razão não as domina, destruindo-as, mas não se
conformando com elas.
Ser-me-ia fácil mostrar por meio de vários exemplos que é muito verdade
que ela domina as paixões. Mas nada pode provar mais claramente que a
constância invencível com que Eleazar, sete irmãos e sua virtuosa mãe, por
meio de ações heróicas de virtude, deram suas vidas pela defesa da própria fé e
mostram até o último respiro pelo desprezo dos tormentos mais horríveis, que a
razão, quando é acompanhada pela virtude e pela piedade, domina as paixões.
Contentar-me-ei, portanto, de relatar essa história, pois que a coragem e a
paciência desses generosos mártires não somente foram admirados por
testemunhas de seu suplício, mas por seus próprios algozes; e tendo vencido
por sua constância a crueldade de um príncipe tão cheio de furor, seu
sofrimento trouxe tranqüilidade para sua pátria.
Vou, porém, retomar meu primeiro discurso, para dar a glória que é
devida à sabedoria infinita de Deus. Trata-se então de saber: se a razão é
senhora das paixões; o que é a razão, o que são as paixões, qual a diferença
entre elas e se a razão domina a todas.
A razão outra coisa não é que a justeza do espírito unida a uma sabedoria
que nos serve de regra em nosso proceder e em nossas ações. A sabedoria
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consiste no conhecimento das coisas divinas e humanas. Esse conhecimento
mesmo nos dá a compreensão de nossa lei, nos ensina a reverenciar a Deus,
nos instrui sobre o que é útil ao bem geral de todos os homens. A temperança,
a justiça, a prudência e a generosidade são efeitos dessa sabedoria, mas a
prudência eleva-se acima das outras e é por ela que a razão domina as paixões.
Entre essas paixões há duas que compreendem todas as demais: o prazer e a
dor; embora pertençam ao corpo, ele não as abriga, que por causa de sua
relação com a alma, que, por seu lado, também tem seu prazer e sua dor.
Outras paixões acompanham estas. O desejo precede o prazer e a alegria o
segue. O temor precede a dor e a tristeza a segue; a cólera é uma paixão que se
refere ao prazer e à dor. Ela nos leva a destruir o que nos priva de algum prazer
e nos irrita contra o que nos causa dor.
Quando a voluptuosidade chega a se tornar um mau hábito, causa
diversas paixões espirituais e corporais. O espírito deixa-se levar à vaidade, à
ambição, à inveja, à teimosia, e o corpo aos excessos da boca. Essas más
plantas produzem vários rebentos que a razão, como um sábio jardineiro
corrige e corta, como sendo guia das virtudes e senhora das paixões. Começa
por reprimir as que são contrárias à temperança, combate os maus desejos,
quer espirituais, quer corporais, e vence a uns e outros; é por ela que nos
abstemos de comer coisas que a lei proíbe e nos moderamos nas de que nos
permite o uso, por mais repugnância que o corpo sinta; tanto é verdade que
seus movimentos desregrados são reprimidos pela temperança, que a razão nos
torna amável.
Poderíamos nos admirar de que essa mesma razão tenha também o poder
de vencer as mais violentas paixões da alma, e apagar o fogo que o amor da
beleza acende? Quem, entretanto, pode duvidar de que ela não opere com esse
poder, pois, não louvaríamos tanto a castidade de José, se no ardor de sua
juventude ela não lhe tivesse feito dominar os atrativos da voluptuosidade?
A razão não apenas vence as paixões agradáveis, mas de todas ela sai
vencedora: Por isso a lei diz: Não desejareis a mulher do próximo nem algo que
lhe pertença. Como a lei nos proíbe desejar, não é claro que ela nos julga
capazes de vencer nossos desejos e as paixões que são contrárias à justiça? Do
mesmo modo, se a razão não dominasse as paixões, como os que são levados à
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gula poder-se-iam corrigir desse vício? Como aqueles que naturalmente são
avarentos poder-se-iam resolver a emprestar sem juros? Mas lembrando-se de
que a lei proíbe a usura e todos os outros ganhos ilícitos, eles reprimem pela
razão o desejo do lucro. Podemos julgar do mesmo modo nas outras coisas que
a lei determina que a razão domina as paixões. Assim, por maior respeito que
tenhamos por nossos pais, a obrigação de obedecermos à lei impede-nos que
façamos algo para agradá-los, contrário à virtude; por maior amor que
tenhamos para nossas esposas não deixamos de repreendê-las por seus
defeitos; por maior ternura que sintamos por nossos filhos, ela não nos impede
castigá-los para corrigi-los de suas faltas; por mais amizade que tenhamos por
nossos amigos, não deixamos de censurá-los quando fazem o mal; e o que é
ainda mais difícil, não somente nos não vingamos de nossos inimigos, nem lhes
cortamos as árvores frutíferas, mas se encontramos o que eles perderam nós
lhes restituímos, e não lhes recusamos nosso auxílio em suas necessidades,
como por exemplo, ajudando-os a levantar os animais nalguma queda.
A razão torna-se assim senhora das paixões, até das mais violentas, como
a ambição, a vaidade, a inveja e o ódio. Por isso Jacó, nosso pai, cuja bondade e
sabedoria não podemos estimar assaz, repreendeu severamente a Simeão e Levi
pela matança que haviam feito entre os siquemitas, dizendo: "Que vossa cólera
e furor, por que vos deixastes levar, sejam malditos". Como poderia ter ele
falado desse modo se a razão não tivesse sobrepujado em seu coração o
ressentimento pelo ultraje feito à sua filha?
Quando Deus, criando o homem, com uma só palavra, deu-lhe o livre-
arbí-trio, rodeou-o e o revestiu de diversas paixões, colocou seu espírito sobre
um trono, para dominá-las e deu-lhe depois leis, por meio das quais ele poderia
fazê-lo e outrossim reinar sobre elas a temperança, a bondade e a justiça. Como
então poder-se-ia dizer: se a razão é senhora das paixões, por que não é
também dominadora da ignorância e do olvido? Essa pergunta não é
extravagante, pois é evidente que o entendimento que forma nossa razão não
pode, como eu disse, ser vitorioso sobre si mesmo, mas somente sobre as
paixões? Podemos ter más inclinações, mas a razão nos dá força de vencê-las.
Nós não poderíamos não ter desejos, mas a razão pode nos impedir de segui-
los. Nós não poderíamos deixar de ser movidos pela cólera, mas a razão pode
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nos conter, para não nos deixarmos levar por ela. Nós não poderíamos nos
despojar de nossas paixões, mas a razão pode resistir-lhes. Davi disso nos dá
um belo exemplo: Depois de ter, durante todo o dia perseguido os inimigos,
matou um grande número deles, voltou à noite para sua tenda, cansadíssimo e
com muita sede. Todos os seus puseram-se a comer e por mais ardente que
fosse a sede e embora houvesse ali fontes e nascentes, ele não quis beber
porque estava resolvido a matar a sede com a água de uma fonte que ainda
estava em poder dos inimigos. Três daqueles valorosos oficiais, que jamais o
abandonavam, comovidos por vê-lo sofrer tanto e sabendo do seu desejo,
tomaram as armas e um vaso, atravessaram as defesas do inimigo e sem que os
guardas percebessem, passaram pelo seu acampamento, chegaram à fonte,
encheram o vaso e o trouxeram ao seu rei. Então, embora o grande rei ardesse
de sede, julgou não poder, sem impiedade, beber de uma água que ele
considerava como sendo o mesmo sangue, porque aqueles que a tinham trazido
tinham se exposto para consegui-la, ao risco de perder a vida. Assim resistindo
pela razão ao seu desejo, ele a derramou e ofereceu a Deus. Vê-se, pois, por
estas palavras, que não há paixão que a razão não possa dominar, nenhum
ardor que ela não seja capaz de extinguir, nenhuma dor que ela não tenha a
força de superar e nenhuma luta de paixões de que não seja vitoriosa.
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Livro Único
CAPÍTULO 1
SIMÃO, EMBORA JUDEU, É CAUSA DE QUE S ELEUCO NICANOR, REI DA ÁSIA,
MANDE
 APOLÔNIO, GOVERNADOR DA SÍRIA E DA FENÍCIA, TOMAR OS
TESOUROS QUE ESTAVAM NO
 T EMPLO DE JERUSALÉM. ALGUNS ANJOS
APARECEM A
 APOLÔNIO, E ELE CAI SEMIMORTO. DEUS, A ROGO DOS
SACERDOTES, SALVA-LHE A VIDA.
 ANTÍOCO SUCEDE AO REI SELEUCO , SEU PAI,
CONSTITUI
 JASÃO, SUMO SACERDOTE, O QUAL ERA MUITO ÍMPIO, E SERVE-SE
DELE PARA OBRIGAR OS JUDEUS A RENUNCIAR À SUA RELIGIÃO.
Devemos agora trazer provas do que eu disse do poder da razão sobre os
sentidos. Nossos antepassados gozavam de profunda paz; seu sábio proceder e
sua piedade faziam-nos estimados de todos e Seleuco Nicanor, rei da Ásia, per-
mitia tomarem eles tanto dinheiro quanto quisessem, para empregá-lo no servi-
ço de Deus, mas alguns malvados, que só sentiam prazer nas agitações e nas
guerras, foram-lhe causa de grandes males.
Um certo Simão, traidor de sua pátria, depois de ter perseguido muito a
Onias, sumo sacerdote, mas inutilmente, porque ele era um homem de bem e
nada havia de censurável em suas ações, foi procurar Apolônio, governador da
Síria e da Fenícia, e disse-lhe que seu zelo pelo serviço do rei o obrigava a
declarar-ihe que havia no tesouro do Templo de Jerusalém uma quantidade
muito grande de dinheiro que o rei tinha o direito de tomar. Apolônio, depois de
muito ter elogiado esse péssimo indivíduo, avisou a Seleuco e recebeu ordem
dele de ir acompanhado por Simão apoderar-se daquele tesouro. Dirigiu-se
depois com grandes tropas a Jerusalém e os judeus para dissuadi-lo de
executar tão injusta resolução, disseram-lhe que não se poderia sem grande
impiedade despojar o Templo daquilo que tinha sido consagrado a Deus... Mas
Apolônio, sem se incomodar com essas razões, entrou com ameaças no Templo
para saqueá-lo seguido por seus soldados. Então os sacerdotes, como também
suas mulheres e filhos, recorreram a Deus para pedir-lhe com fervorosas preces
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que protegesse aquele lugar santo, onde Ele era adorado, contra aqueles
profanadores, que tiveram a ousadia de desprezar o seu poder. Apolônio então
viu uns anjos em forma de cavaleiros descerem do céu e suas armas brilharem
com vivíssima luz; foi tal o terror que sentiu que ele caiu por terra, semimorto.
Pediu então com lágrimas nos olhos que os sacerdotes intercedessem a Deus
por ele, a fim de que se retirassem aqueles temíveis ministros de sua vontade.
Onias, comovido por suas preces e temendo que se ele morresse, Seleuco
acusasse os judeus como culpados disso, rogou por ele; Deus escutou-o e
Apolônio deu contas ao rei, seu amo, do que havia acontecido.
Seleuco morreu, logo depois, e Antíoco, seu filho, sucedeu-o no trono. Era
um príncipe soberbo e cruel. Tirou a sacrificadura de Onias e a deu a Jasão,
seu irmão, com a condição de ele lhe pagar, a cada três anos, mil e seiscentos e
sessenta talentos. Como ele era mau e ímpio, apenas se viu elevado a essa
dignidade; ele procurou afastar o povo do serviço de Deus e o levou, a seu
exemplo, a se entregar a toda sorte de crimes e de coisas abomináveis. Não se
contentou de estabelecer em Jerusalém academias de exercícios profanos, mas
subverteu toda a ordem do Templo. Deus, porém, castigou logo tanta impiedade
e serviu-se de Antíoco mesmo, para fazer sentir àqueles malvados os efeitos de
sua indignação e de sua cólera. O príncipe soube que quando ele fazia guerra a
Ptolomeu, rei do Egito, correra a notícia de que ele havia morrido, a cidade de
Jerusalém tinha, mais que qualquer outra, dado demonstrações de alegria e ele
para lá se dirigiu com seu exército, saqueou-a e ordenou por um édito que
todos os que continuassem a viver na religião de seus antepassados seriam
castigados com a morte.
Seu furor foi ainda além. Vendo que nem suas ordens nem suas ameaças
podiam obrigar os judeus a renunciar às suas santas leis e que havia mesmo
mulheres que, depois de ter feito circuncidar seus filhos, morriam com eles,
orque preferiam perder a vida do que a alma, resolveu obrigá-los, por meio de
tormentos, a abjurar à sua religião.
CAPÍTULO 2
MARTÍRIO DO SANTO SUMO SACERDOTE ELEAZAR.
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Para executar esse desígnio tão tirânico, o cruel príncipe subiu a um lugar
elevado, acompanhado pelos mais importantes da sua corte e por todos os
soldados, com armas. Em seguida, mandou reunir os judeus e ordenou-lhes
que comessem a carne dos porcos que ele tinha imolado aos seus ídolos, em
sacrifícios abomináveis, sob pena de morte nas rodas, caso recusassem a
obedecer-lhe. Eleazar foi um dos que se lhe apresentaram. Ele era de família
sacerdotal, muito instruído nas nossas leis e nos nossos costumes, venerável
por sua idade e conhecido de todos por suas virtudes. Antíoco, depois de o ter
observado, disse-lhe: "Não espereis que os tormentos vos obriguem a fazer o
que eu ordeno, mas procureis salvar a vossa vida, obedecendo-me. A compaixão
que tenho de vossa idade, vendo que ainda não estais desiludido de vossa falsa
religião, faz-me dar-vos este conselho. Poder-se-á sem extravagância sentir
horror por uma carne que é muito boa e não desprezar somente por uma
ridícula superstição o favor que a natureza vos faz de vo-la dar, mas desprezar
a mim e correr assim voluntariamente ao suplício?
"Desiludi-vos dessa vã sabedoria, obedecei ao que eu vos ordeno e dai-me
assim o meio de vos fazer sentir os efeitos de minha bondade. Quando mesmo
com isso viésseis a desobedecer a vossa lei, ela vo-lo perdoará, se é tão justa
como a julgais, pois que não o fazeis voluntariamente, mas à força".
Antíoco assim falou e permitiu a Eleazar que lhe respondesse deste modo:
"Estando certo, majestade, como eu estou da veracidade de minha religião, não
há violência nem tormento que me levem a fazer algo que lhe seja contrário. Vós
estais persuadido de que ela está cheia de erros e eu creio firmemente no
contrário, isto é, que ela é santa e divina. Como ser-me-ia então permitido
renunciar a ela? Vossa majestade não deve imaginar que é pecado leve comer
carnes que entre nós são consideradas como impuras. Não devemos fazer
distinção entre coisas pequenas e grandes quando são proibidas, pois é
desprezar igualmente a lei, não observá-la tanto numa como nas outras. Vós
considerais uma loucura a sabedoria que temos em tão grande estima: é ela
que nos ensina a abraçar a temperança, a amar a justiça, a desprezar a
voluptuosidade e a vencer de tal modo as nossas paixões por uma generosa
resolução de agradar a Deus, que não há tormento que não soframos com
alegria para demonstrar-lhe a fidelidade que lhe devemos, como único Deus,
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Eterno e Todo-poderoso. Como então poderíamos comer carnes que nós cremos
impuras, porque Ele nos proibiu, e sua vontade, sendo nossa lei suprema, não
devemos considerar os sentimentos da natureza, quando lhe são opostos? Ele
nos permite comer o que sabe que nos é próprio, proíbe-nos comer o que sabe
nos ser prejudicial, e não se pode, sem exercer sobre nós uma injusta violência,
obrigar-nos a desobedecer-lhe. Censurai, pois, majestade, o meu proceder
quanto quiserdes; eu não deixarei de observar as leis dadas por Deus a nossos
antepassados e a conservar inviolavelmente o nosso juramento. Quando me
arrancásseis os olhos, quando me rasgásseis as entranhas, minha velhice não
impedirá que, para cumprir o que eu devo a Deus, encontreis em mim todo o
entusiasmo da mais corajosa e da mais vigorosa juventude. Preparai, pois,
corajosamente as rodas, acendei os fogos e vereis se minha idade é capaz de
algo fazer de contrário ao que nossos pais tão religiosamente observaram.
Santas leis, de onde tirei a minha instrução, jamais eu vos hei de desobedecer.
Cara continência, que tornais pura a minha alma e meu corpo, casto, jamais
hei de renunciar a vós. Sábia resolução que fortificais meu coração, jamais me
envergonharei de vos haver tomado. Veneravel sacrificadura, que dais a
compreensão da lei, jamais deixarei de vos homenagear e reunir-me-ei aos
meus antepassados no céu, porque desprezarei até à morte todos os tormentos
com que me querem atemorizar".
Depois que Eleazar respondeu deste modo, Antíoco fez seus guardas
despojarem-no de suas vestes, atacarem-no e vergastá-lo até fazer sangue; um
arauto clamava ao mesmo tempo que ele obedecesse ao rei. Embora, porém,
seu sangue corresse de todos os lados e seus ossos estivessem a descoberto,
nada foi capaz de quebrar a sua constância e firmeza e ele estava tão tranqüilo
como se dormisse profundo sono. Ele somente levantava os olhos para o céu;
seu corpo não podia mais resistir à violência de tantas dores; caiu então por
terra, sem que sua alma se abatesse. Um daqueles cruéis soldados pisou-lhe o
ventre, para obrigá-lo a se levantar, mas o santo velho, desprezando tudo o que
lhe podiam fazer sofrer, venceu pela sua constância a crueldade daqueles
ímpios e os obrigou a admirar-lhe a resolução e coragem.
Sua velhice causou compaixão aos que acompanhavam o rei e alguns
gritaram-lhe: "Que imprudência vos leva, Eleazar, a sofrer tantos tormentos,
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quando poderíeis evitá-los? Só tendes, para vos salvardes, que comer a carne
que vos é apresentada". Então esse verdadeiro servo de Deus, que se havia
calado nas maiores dores, disse: "Eu seria muito indigno de ser descendente de
Abraão, se quisesse seguir tão mau conselho, como o que vós me dais. Não
seria loucura ter vivido até agora no amor da verdade e ter posto toda a minha
glória em observar nossas santas leis, para abandoná-las na velhice, comendo
de uma iguaria que eu não poderia saborear, sem cometer um sacrilégio? Deus
me livre de comprar com um tão grande crime a prolongação desse pouco de
tempo que me resta de vida e de me expor, com essa covardia, à zombaria de
todo o mundo".
Depois de terem feito tudo para persuadir ao bom velho, viram que sua
constância era invencível; atiraram-no ao fogo, aproximando-lhe do nariz os
cheiros mais nauseabundos. Quando o fogo o queimou até os ossos, e ele
estava prestes a exalar o último suspiro, ainda dirigiu a Deus uma oração
nestes termos: "Senhor, em quem ponho todas as minhas esperanças e toda a
minha salvação, e que vedes o que eu sofro, vós sabeis que eu padeço tantos
tormentos unicamente para não desobedecer à vossa santa lei. Tende
compaixão do vosso povo, contentai-vos de satisfazer sobre mim a vossa justiça,
purificai-o por meu sangue e salvei a vida a todos os outros, tomando a minha".
Terminando esta oração, ele morreu e mostrou como tudo o que dissemos é
verdadeiro, isto é, que a razão domina as paixões, pois se fosse por elas
vencida, com esse generoso ancião teria podido decidir-se a sofrer tantos
tormentos? Devemos, pois, confessar que é a razão que nos torna capazes de
desprezar as dores e de triunfar sobre a voluptuosidade.
No meio da tempestade que as ameaças do tirano e a crueldade de tantos
e tão diversos suplícios excitaram nos sentidos desse admirável mártir, sua
razão, como um excelente piloto, conservou sempre tão firmemente o leme, que
o furor dos ventos e das vagas não puderam afastá-lo da verdadeira rota e ele
levou, com rara felicidade, seu barco ao porto de uma vida gloriosa e imortal.
Essa mesma força invencível da razão pode-se ainda comparar a uma fortaleza,
cuja resistência vence todos os esforços e todas as máquinas, que o furor de um
grande rei empregou inutilmente para delas se apoderar. Oh! bem-aventurado
ancião, verdadeiramente digno de honra do sacerdócio, não manchastes vossos
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lábios com essas carnes abomináveis de que não se poderia comer sem
impieda-de. Oh! verdadeiro observante da lei! Oh! espírito cheio daquela
sabedoria celeste, que só se conquista pela meditação contínua da Palavra de
Deus, é assim que aqueles que são chamados ao ministério do altar devem,
derramando seu sangue, dar testemunho da própria fé; é assim que eles devem
combater até a morte, para defendê-la. Vós nos ensinais, por vossa constância,
a tudo sofrer para merecer a mesma glória. Nada foi capaz de abalar vossa
santidade e confirmais com vossas ações a verdade das palavras que vos
inspirava uma sabedoria toda divina. Ilustre ancião, vós vos colocastes acima
dos tormentos mais temíveis, o fogo, assaz poderoso como é, foi obrigado a vos
ceder. Do mesmo modo que Aarão, correndo com o turíbulo na mão, deteve o
anjo que estava prestes a exterminar todo o povo, assim, esse digno sucessor
desse soberano sumo sacerdote, ainda que estivesse no meio das chamas, não
mudou de sentimentos; sua velhice nada diminuiu de sua energia e tendo seu
corpo já destruído, os nervos descobertos, ele elevou-se com o pensamento à
pátria celeste. Oh! velhice, como sois ilustre! Oh! cabelos brancos, como sois
venerados! Oh! vida, passada toda numa fiel observância da lei do Senhor,
como sois feliz de ter até o último suspiro tão generosamente desprezado todos
os males da terra e mostrado com vossa morte a pureza de vossa fé.
CAPÍTULO 3
LEVAM AANTÍOCO A MÃE DOS MACABEUS COM OS FILHOS. ELE FICA
COMOVIDO POR VER ESSES SETE IRMÃOS TÃO BELOS E APRESENTÁVEIS.
 FAZ TUDO
O QUE PODE PARA PERSUADI-LOS A COMER A CARNE DE PORCO, E MANDA
TRAZER, PARA ASSUSTÁ-LOS, TODOS OS INSTRUMENTOS DE SUPLÍCIO, OS MAIS
CRUÉIS.
 MARAVILHOSA GENEROSIDADE COM QUE TODOS LHE RESPONDEM.
Mas, para melhor ainda demonstrar como é verdade, que a razão, cheia
de piedade, domina as paixões, eu referirei também o exemplo de alguns jovens,
que a razão fez vitoriosos sobre os maiores tormentos que o mais bárbaro furor
poderia inventar.
Antíoco, levado pela cólera, por ver que a extrema constância de um
ancião tinha vencido sua crueldade, ordenou que lhe trouxessem alguns outros
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judeus, com a deliberação de pô-los em liberdade, se eles comessem a carne de
porco e de mandar matá-los, se se recusassem.
Apresentaram-lhe uma senhora venerável por seu nascimento e por sua
idade, com seus sete filhos, tão belos e tão formosos, que ele ficou
surpreendido. Ordenou-lhe que se aproximasse e disse-lhe: "Não somente vejo,
com prazer, mas admiro-me ainda, de que sejais em tão grande número e tão
formosos. Assim, não somente eu vos aconselho, mas rogo-vos a não imitar a
loucura daqueles que se perdem por sua imprudência. Procurai ser da minha
mesma opinião e sentimentos e tornai-vos dignos de meu afeto. Eu não estou
menos disposto a fazer o bem aos que me obedecem, como resolvido a castigar
severamente os que ousam resistir às minhas ordens. Confiai na minha palavra
e sentir-lhe-eis o efeito. Renunciai às superstições dos vossos antepassados,
comei da carne que os gregos comem e conservai assim vossa vida e vossa
juventude, por um sábio proceder. Do contrário, se não abandonardes àqueles
dos quais eu me declarei inimigo, mandarei matar a todos, ainda que sinta
compaixão da vossa idade e da vossa beleza. Não delibereis. Não há meio-termo
entre obedecer-me ou perder a vida no meio dos tormentos".
Depois de ter assim falado, ele mandou trazer todos os instrumentos de
suplícios, os mais horríveis, a fim de incutir o terror no espírito daqueles sete
irmãos, para que fizessem o que ele desejava. Vieram rodas, caldeiras, grelhas,
unhas de ferro, tenazes, açoites e todos os instrumentos que a crueldade mais
horrível pode inventar e que não se podia contemplar, sem estremecer. Então o
príncipe disse-lhes: "Tremei, jovens! Se temeis fazer algo contrário à vossa
religião, quem vos poderá censurar, pois a isso fostes obrigados?" Aqueles fiéis
servidores de Deus, porém, em vez de se deixarem persuadir por essas
palavras, e se acovardarem pelo terror de tantos tormentos, não somente não se
sentiram abatidos pelo temor, mas reafirmaram ainda mais a sua resolução de
resistir; só assim venceram a crueldade desse príncipe.
Se algum dentre os nossos tivesse perdido o ânimo, teria dito estas
palavras aos outros: "Miseráveis que somos! Perdemos então o juízo? O rei nos
pede e nos promete recompensas se fizermos o que ele nos ordena e em vez de
obedecer-lhe, nós nos obstinamos por pensamentos vãos de generosidade,
numa resistência que nos custará a vida, como castigo de nossa ousadia? É
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possível, meus irmãos, que tantos tormentos não nos assustem e não nos levem
dessa loucura? Não teremos compaixão de nós mesmos, quando em nossa
juventude, apenas começamos a gozar as doçuras da vida e não teremos
também piedade da velhice de nossa mãe? Deus é muito bom, para nos perdoar
o que o temor das ameaças do rei nos terá obrigado a fazer. Não sejamos, pois,
os assassinos de nós mesmos, não mostremos por vaidade não temer tão
horríveis sofrimentos, mas cedamos a uma necessidade inevitável. Pois que a lei
não nos permite darmos a morte, para nos isentarmos dos maiores tormentos,
que vantagem teremos de nos expormos a eles, quando nada a isso nos obriga,
e o rei nos exorta a conservar a vida?"
Mas, embora esses jovens se vissem prestes a sofrer tais torturas, a razão
reinava de tal modo sobre seus sentidos e dava-lhes tal desprezo pelo
sofrimento, que bem longe estavam de pensar e de dizer algo de semelhante.
Antíoco apenas os tinha exortado a comer daquela carne, de que se não podiam
servir sem manchar a alma, e todos juntamente, como se tivessem uma só voz,
animados pelo mesmo espírito, responderam-lhe: "É em vão que pretendeis nos
persuadir a vos obedecer. Estamos resolvidos a morrer antes que violar as leis
dadas por Moisés a nossos antepassados. Nós teríamos vergonha de ser
descendentes deles se não as observássemos. Deixai, pois, de nos aconselhar a
cometer tão grande crime; deixai de nos dar, sob pretexto de bondade, provas
de vosso ódio; a morte nos parece muito mais suave do que essa cruel
compaixão que nos quer salvar a vida à custa de nossa salvação. Julgais
assustar-nos com vossas ameaças, como se pudesse haver maiores tormentos
do que os que a vossa horrível desumanidade fez sofrer a Eleazar e que nos
prepara também para nós? Se não há torturas que a piedade desse santo
ancião não o tenha feito sofrer, com constância, nossa juventude nos torna
ainda mais capazes de as desprezar e de as sofrer, para obtermos, imitando-o,
uma coroa semelhante à sua. Experimentai então, se puderdes, fazer também
morrer nossas almas, porque elas querem permanecer fiéis a Deus, e não vos
vanglorieis da esperança de poder abater nossa coragem pelo que sofrerão
nossos corpos, pois que nossa paciência, unida a esses sofrimentos, nos fará
vitoriosos desse combate? Ao passo que a justiça de Deus vos castigará com
tormentos eternos, por ter tão injustamente manchado vossas mãos no nosso
sangue".
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CAPÍTULO 4
MARTÍRIO DO PRIMEIRO DOS SETE IRMÃOS.
Uma resposta tão corajosa e tão generosa pôs esse bárbaro príncipe em
desesperado furor, porque ele não considerava somente aqueles sete irmãos
como desobe-dientes, mas como ingratos, que desprezavam os favores que lhes
queria fazer.
Os algozes para obedecer-lhe, começaram por arrancar as vestes do mais
velho dos irmãos, amarraram-lhe as mãos às costas e o vergastaram com
açoites, até rasgarem-lhe a carne. Estenderam-no depois na roda, onde se
quebraram todas as partes de seu corpo; então ele dirigiu a palavra a Antíoco e
disse: "Oh! crudelíssimo dentre todos os tiranos, que vos fiz para me pordes
neste estado? Sou talvez um assassino ou violei com algum outro crime a lei de
Deus? Não é justamente o contrário, porque eu a quero guardar, que me tratais
deste modo?" Os guardas do príncipe então disseram-lhe: "Prometei comer esta
carne e livrar-vos-eis de todos estes sofrimentos". Ele, porém, respondeu:
"Ministros da iniqüidade, por mais temível que seja esta roda, jamais o será
para me fazer mudar de resolução. Cortai todos os meus membros em
pedacinhos, consumi toda a minha carne no fogo, quebrai todos os meus ossos,
eu vos mostrarei que não há tormento contra os quais os verdadeiros filhos dos
judeus não saiam vencedores, por sua constância e por sua fé". Enquanto ele
assim falava os carrascos acenderam o fogo sob aquela terrível roda, banhada
de sangue, que jorrava de seu corpo; via-se cair pelos raios a carne em pedaços,
os ossos estavam todos quebrados e moidos. Mas no meio de tantos e tão
horríveis sofrimentos esse generoso israelita, digno sucessor de Aarão, não
soltou nem um suspiro. Como se o fogo não agisse sobre seu corpo, senão para
torná-lo incorruptível e impassível, sua alma permanecia sempre numa atitude
tão elevada, acima dos seus sofrimentos, que ele disse aos seus irmãos: "Agora
não nos deve restar nenhum pensamento do presente século. Chegou a hora de
mostrarmos a grandeza de alma que a torna vitoriosa sobre todos os
sentimentos da natureza. Devemos responder com nossa coragem à honra que
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temos de ser incluídos nessa milícia santa, que nos obriga a dar nossa vida com
alegria para cantarmos a glória de Deus. Ele é bom, é Todo-poderoso: toda
nossa nação deve-lhe a nossa fidelidade; não há castigos que esse tirano não
deva esperar de sua justiça". Morreu, depois de ter dito estas palavras, e sua
coragem invencível encheu de espanto a todos os que foram testemunhas do
seu martírio.
CAPÍTULO 5
MARTÍRIO DO SEGUNDO DOS SETE IRMÃOS.
Os guardas de Antíoco trouxeram depois o segundo dos sete irmãos;
puseram-lhe nas mãos uma espécie de manopla de ferro, cujos dedos
terminavam, em pontas afiadas, ferindo as unhas; amarraram-no em seguida a
um instrumento de suplício, chamado catapulta. Depois perguntaram-lhe, se
para evitar outros tor-mentos ele estava disposto a obedecer às ordens do rei.
Vendo, porém, que ele continuava firme em sua deliberação, de não obedecer,
os carrascos arrancaram-lhe a pele da cabeça e rasgaram-lhe a carne, até o
ventre com unhas de ferro. Mas em vez de se queixar, naquelas dores cruéis,
ele as suportou com tanta paciência que ainda disse a Antíoco: "Pode haver
gênero de morte que não seja suave quando se sofre, para não renunciar à
religião de nossos antepassados? Não sois mais atormentado do que eu, vendo
que meu respeito e meu amor pela lei de Deus me dá a força de triunfar, pela
minha constância sobre a vossa espantosa crueldade? O prazer de cumprir o
meu dever abranda todos os meus tormentos. Mas os horríveis castigos com
que Deus ameaça a vossa impiedade não poderiam não tormentar vossa alma e
nada será capaz de vos livrar dos raios de sua cólera".
CAPÍTULO 6
MARTÍRIO DO TERCEIRO DOS SETE IRMÃOS.
Depois que este generoso mártir terminou a vida como acabamos de
narrar, trouxeram o terceiro dos sete irmãos. Exortaram-no a se livrar da morte
pela obediência às ordens do rei: ele, porém, respondeu: "Ignorais que aqueles
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que acabam de morrer e eu, temos nossa origem do mesmo pai e da mesma
mãe, e que recebemos as mesmas instruções? julgais que sendo do mesmo
sangue eu não tenha a mesma coragem?" Palavras tão corajosas foram
intoleráveis a Antíoco, e acenderam ainda mais o fogo de sua cólera. Mandou
então amarrá-lo de pés e mãos a um instrumento de tortura, feito em círculo.
Esse instrumento quebrou todas as juntas que uniam cada uma das partes de
seu corpo, estropiou as outras, mas nada foi capaz de fazê-lo mudar de idéia.
Arrancaram-lhe a pele com unhas de ferro e colocaram-no sobre a roda.
Quando esse invencível mártir viu sua carne feita em pedaços, suas entranhas
rasgadas, seu sangue correr de todos os lados e estando prestes a deixar a vida,
ele disse ao cruel príncipe: "Impiedoso tirano, é para observar a lei de Deus e
prestar a honra que eu devo ao seu soberano poder, que eu sofro todos estes
tormentos. Eles, porém, são passageiros, ao passo que os que vós sofrereis,
como castigo de vossa impiedade e de vossos sacrilégios homicidas, serão
eternos".
CAPÍTULO 7
M ARTÍRIO DO QUARTO DOS SETE IRMÃOS.
As palavras desse glorioso mártir foram seguidas de sua morte, e logo
trouxeram o quarto dos sete irmãos. Exortavam-no a não imitar a loucura que
tinha custado a vida aos precedentes; ele, porém, respondeu: "Por mais ardente
que seja o fogo que acendereis para me queimar, ele não me fará medo. Sei que
nada mais se pode acrescentar à felicidade de que agora gozam meus irmãos,
bem como à desgraça que experimentará um dia esse cruel príncipe, e nada
desejo senão morrer como eles, para gozar como eles de uma vida que não terá
fim. Por isso", acrescentou, falando a Antioco, "inventai novos suplícios a fim de
ver se eu não sou um verdadeiro irmão dos que fizestes morrer no meio de
tantos e tão horríveis tormentos". O rei, levado pelo furor, ouvindo-o falar
daquele modo, ordenou que lhe cortassem a língua e então ele disse: "Ainda que
me priveis do órgão da palavra, Deus não deixará de ouvir a minha voz. Podeis
cortar minha língua e eu vo-la apresento para ser cortada, mas não tendes
poder sobre meu espírito. Verei com prazer cortarem todas as outras partes de
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meu corpo para testemunhar com esse sacrifício, que com ele dou a Deus uma
prova do meu amor; mas Ele vos castigará bem depressa por cortardes uma
língua que eu queria apenas empregar para cantar as suas glórias e seus louvo-
res". Cortaram em seguida a língua e ele expirou no meio dos tormentos.
CAPÍTULO 8
MARTÍRIO DO QUINTO DOS SETE IRMÃOS.
O quinto dos sete irmãos veio então por si mesmo apresentar-se e falou
assim a Antioco: "Eu vim sem esperar que me obriguem, a me oferecer, para
sofrer por minha religião o mesmo tormento que meus irmãos, a fim de que,
multiplicando vossos crimes, a mão de Deus pese ainda mais sobre vós, para
vos fazer sentir os terríveis efeitos que deveis esperar de sua justiça. Inimigo
dos homens, inimigo da virtude, que fizemos para vos obrigar a nos tratar deste
modo? É verdade que professamos adorar o Criador de todas as coisas e de
observar suas santas leis; mas é isso motivo para nos fazer morrer no meio dos
tormentos e nisso não somos nós, ao invés, dignos de elogio?" Quando ele
assim falava os carrascos ataram-no e o amarraram pelos joelhos à catapulta
com cadeias de ferro, quebrara-lhe todos os ossos da espinha, com cunhas, que
enfiavam com força por baixo das cadeias de ferro, e o rolaram na orla da
máquina, que estava cheia de pontas de ferro, em forma de escorpiões. Mas,
embora o corpo do mártir estivesse crivado de feridas e ele suportasse uma dor
imensa, seu espírito estava sempre livre e ele disse a Antioco: "Mais esses
tormentos são cruéis, mais vós me obrigais contra vossa intenção pelo meio que
eles me dão, a testemunhar que nada é capaz de me fazer violar suas santas
leis".
CAPÍTULO 9
MARTÍRIO DO SEXTO DOS SETE IRMÃOS.
Depois da morte do quinto dos irmãos, trouxeram o sexto, que era muito
jovem. Antioco perguntou-lhe se ele não queria salvar a vida, comendo a carne
que ele havia ordenado comer e ele respondeu: "É verdade que quanto à idade
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eu sou mais moço que meus irmãos, mas não tenho menor firmeza e coragem
do que eles. Como fomos educados juntos e instruídos nos mesmos sentimen-
tos, eu os conservarei como eles, até à morte. Por isso, se resolvestes fazer ator-
mentar-me porque eu não quero comer dessas iguarias, que nossa lei proíbe,
não deveis perder tempo". Estenderam-no então sobre a roda, para queimá-lo a
fogo lento, furaram-lhe todas as partes do corpo até às entranhas, com peque-
nas pontas de ferro, bem agudas, que haviam feito ficar rubras no fogo. Ele
permaneceu intrépido nesse combate e disse, dirigindo-se a Antioco: "Feliz e
glorioso tormento que, sobre tantos irmãos não lhe puderam vencer a constân-
cia, porque todos eles o sofreram pela própria religião e uma consciência pura
acompanhada pelas boas obras, é invencível. Inimigo dos servos de Deus, estou
pronto a morrer com meus irmãos e a ser como eles para vossa alma criminosa,
um objeto de horror que a atormentará sem cessar. Por mais jovens que
sejamos, triunfaremos de vossa tirania, sem que esteja em vosso poder fazer-
nos experimentar essa comida, de que não poderia eu me servir sem sacrilégio.
Nós só encontramos frescura no fogo e alegria nos tormentos, porque desejando
executar, não as ordens de um tirano, mas as de Deus, nossa resolução é
inquebrantá-vel". Mal havia acabado de dizer estas palavras, lançaram-no a
uma caldeira, onde terminou sua vida mortal para passar à eterna.
CAPÍTULO 10
MARTÍRIO DO ÚLTIMO DOS SETE IRMÃOS.
Trouxeram em seguida o mais jovem e o último dos sete irmãos. Antioco
não pôde deixar de sentir dó: estavam para amarrá-lo, quando ele o chamou e
procurou persuadi-lo a obedecer-lhe: "Vistes de que modo vossos irmãos
terminaram a vida no meio dos tormentos. Não imiteis seu exemplo. Tornai-vos,
ao contrário, digno de meu afeto e das graças que estou disposto a fazer-vos e a
vos honrar". Depois de ter dito estas palavras, mandou buscar sua mãe e disse-
lhe quanto a lastimava por lhe haverem arrebatado tantos filhos. Exortou-a a
fazer o possível para salvar o único que lhe restava, persuadindo-o a fazer o que
ele desejava. A generosa mulher, em vez de seguir essa ordem, fortaleceu ainda
mais o filho em sua resolução, falando-lhe em hebreu; então ele disse aos
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guardas: "Desamarrai-me, a fim de que eu possa dizer ao rei, na presença
daqueles em quem mais ele confia, coisas que eu lhe tendo a dizer". Desataram-
no imediatamente com grande alegria e ele correu ao lugar onde o fogo estava
aceso para queimá-lo, exclamando: "Oh! cruel e ímpio, o mais cruel e o mais
ímpio de todos os tiranos, não foi Deus quem vos pôs a coroa na cabeça? E
sentis prazer em fazer morrer seus servos nos mais horríveis tormentos, porque
eles lhe querem ser fiéis? Sua justiça vos pedirá contas de seu sangue e vós vos
queimareis num fogo que não será somente muito mais ardente do que o que a
vossa crueldade fez acender e vossos tormentos serão sem fim. O furor dos
animais ferozes não é comparável ao vosso! Eles pelo menos poupam seu
semelhante. Vós, como homem, sentis prazer em fazer sofrer homens, o que
não podemos pensar, sem horror. Mas, morrendo com constância invencível,
eles satisfazem plenamente ao que devem a Deus, ao passo que, por maiores
que sejam as penas que sofrereis na outra vida, não poderiam expiar tão grande
crime, como o de fazerdes morrer pela mais detestável de todas as injustiças,
pessoas, não somente inocentes, mas muito justas. Eis-me pronto a segui-los.
Quero fazer ver que sendo seu irmão, não degenero de sua virtude". Dizendo
estas palavras, lançou-se ao fogo e morreu.
CAPÍTULO 11
DE QUE MANEIRA ESSES SETE IRMÃOS HAVIAM SE EXORTADO RECIPROCAMENTE NO
MARTÍRIO.
Que pode melhor provar que a razão, a qual inspira sentimentos tão
virtuosos e tão generosos e triunfa sobre as paixões, do que a constância com
que esses sete irmãos desprezam até a morte, os mais horríveis de todos os
tormentos, tornando-se vencedores quando outros, vencidos pela fraqueza,
comiam da carne de animais imundos, oferecidos em sacrifícios detestáveis?
Podemos então assaz agradecer a Deus ter-nos dado essa razão que nos faz
triunfar sobre as paixões e as dores. Foi pela força da razão que esses sete
irmãos resistiram ao poder do fogo e foram como outras tantas torres,
solidamente erguidas à beira-mar, que desprezam o esforço e o ímpeto das
ondas, dos ventos e das vagas. Para se exortarem uns aos outros à firmeza em
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sua resolução, um dizia: "O nascimento nos uniu, não nos separemos na morte,
mas demos todos juntos nossa vida pela defesa de nossa religião. Imitemos os
três moços que caminharam sem temor sobre as chamas ardentes na fornalha
de Babilônia e não mostremos menos zelo do que eles pela observância da lei de
Deus". Um outro dizia: "Coragem, meus irmãos!" Outro: "Devemos permanecer
firmes até o último suspiro". Um outro dizia: "Lembremo-nos de que somos
descendentes de Abraão, que, para mostrar a Deus sua obediência, ofereceu-lhe
Isaque, seu filho, em sacrifício". Assim, todos animavam-se nesse glorioso
combate, com uma generosidade incomparável e fortalecendo-se cada vez mais,
diziam: "Oferecemos de todo o nosso coração a Deus a vida que dEle
recebemos, para empregá-la em defender suas santas leis. Não tememos
aqueles que só podem matar o corpo, porque sabemos que tormentos eternos
esperam num outro mundo os que não guardam seus mandamentos e nos
devemos armar de uma firme resolução de obedecer à sua vontade, a fim de
que, depois de nossa morte, Abraão, Isaque e Jacó, e nossos outros santos
predecessores, nos recebam com alegria para participarmos de sua glória".
Quando um dos irmãos era atormentado, os outros que ainda viviam
diziam-lhe: "Não envergonhes, irmão, nem a nós, nem aos que acabaram de
expirar. Não sabes que nada é mais agradável a Deus, nem lhe deve ser mais
forte, do que esse laço de amor com que sua sabedoria infinita uniu os irmãos?
Eles quis que eles devessem uma parte de seu ser aos pais; que as mães os
concebessem em seu seio e eles aí fossem formados, aí ficassem durante o
mesmo tempo e fossem alimentados com o mesmo e gerados da mesma
maneira, recebendo a alma e, depois de terem visto a luz do dia, tirassem o
alimento da mesma fonte, sugando o mesmo leite, fossem tomado nos mesmos
braços, criados, educados e instruídos da mesma maneira na lei de Deus e nas
santas práticas de nossa religião".
Assim, esses sete irmãos, numa mesma e estreita união, exortavam-se
uns aos outros, porque a maneira como tinham sido educados acrescentava
ainda a piedade ao seu afeto fraterno e a natureza era fortalecida pela virtude,
sem que a magnitude dos tormentos dos que os haviam precedido na morte
lhes fosse capaz de causar horror.
CAPÍTULO 12
ELOGIOS DOS SETE IRMÃOS.
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Esses admiráveis irmãos, exortando-se assim uns aos outros, a sofrer
tantos tormentos, mostraram que não somente não os desprezavam, mas sua fé
os tornava vencedores sobre o afeto fraterno. Mais elevados por sua resolução,
que os reis por seu poderio, e mais livres sob os ferros do que os príncipes mais
temíveis sobre o trono, nenhum deles mostrou o menor temor, nem hesitou um
minuto sequer em se expor à morte: mas considerando o martírio como um
caminho que leva à imortalidade, para lá correram e com alegria. Do mesmo
modo que a alma fez mover as mãos e os pés, assim estes sete irmãos, que
eram como se animados por uma só alma, impelidos por ela, procuraram uma
morte que os tornou dignos, por sua piedade, de viver para sempre no céu. Feliz
o número sete que se encontra nesses irmãos. Não tendes uma santa relação
com os sete dias que formam o ciclo da semana, empregado por Deus para a
criação do mundo e para descansar depois de ter realizado tão grande obra?
Não poderíamos, sem estremecer, ouvir falar de vossos sofrimentos; e vós, bem-
aventurados mártires, não tendes somente, sem vos assustar, ouvido as
ameaças de um príncipe enfurecido; não tendes somente visto sem temor o
fogo, as rodas, as unhas de ferro e todos os outros tormentos que vos estavam
preparados; mas os sofrestes sem vos comoverdes e mostrastes que o poder que
eles tinham sobre vossos corpos era inferior à constância tão maravilhosa como
a vossa.
CAPÍTULO 13
ELOGIO DA MÃE DESSES ADMIRÁVEIS MÁRTIRES E DE COMO ELA OS FORTALECIA NA
RESOLUÇÃO DE DAR A VIDA PARA A DEFESA DA LEI DE
 DEUS.
Devemos talvez nos admirar de que tão firme resolução tenha triunfado
sobre os tormentos, no sexo mais forte, quando vemos que admirável mulher,
de quem os sete irmãos tinham recebido a vida, sofreu sozinha tanto quanto
todos eles juntos? Podemos talvez duvidar de que seu amor materno não os
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tenha feito sentir todas as penas, quando vemos a dor, mesmo em animais,
como as abelhas, embora naturalmente mansas, servem-se de seu ferrão, como
de uma espada, para repelir os moscardos que querem entrar em suas colmeias
e os perseguem até à morte, para defender os filhos? Embora essa generosa
mãe, de que falamos, tivesse sete filhos, ela não amava menos a nenhum deles,
como Abraão amava Isaque, seu único filho, e, entretanto, na necessidade em
que se encontravam, de se expor à morte para observar a lei de Deus ou violá-
la, para salvar a vida, ela sentiu-se arrebatada, por ver que eles preferiam uma
felicidade eterna a sofrimentos passageiros. Quem não sabe que por mais amor
que os pais sintam por seus filhos, nos quais eles de algum modo imprimiram o
caráter de sua alma e de sua semelhança, o das mães o sobrepujava ainda,
porque jamais a teve como a destes sete irmãos. Ela não os tinha somente como
os outros trazido em seu seio e tido por todos eles tantos cuidados e tantas
penas, mas os tinha educado a todos no temor de Deus e não tendo outro
desejo que sua salvação, ela os amava tanto mais, quanto via que lhes eram
muito fiéis, pois eram todos sensatos, virtuosos, generosos e tão unidos e
tinham tão grande respeito por ela, que cumpriram até à morte as instruções
que lhes havia dado. Mas, por mais extraordinário que fosse o amor que ela
lhes tinha e embora suas entranhas fossem rasgadas vendo-os sofrer tantos
tormentos, nada pôde abalar sua admirável fortaleza. A piedade triunfou em
seu coração, sobre os sentimentos da natureza, e ela acompanhou-os todos à
morte; sem demonstrar jamais a menor fraqueza, ela viu o fogo devorar-lhes a
carne, os dedos das mãos e dos pés, espalhados pelo chão e a pele arrancada
da cabeça e da maior parte de seus corpos. Santa mulher, que outra mãe como
vós pode dizer ter experimentado na pessoa de seus filhos e as dores mais
cruéis do mundo e de todos os entes que deu no mundo, nem um só deu
mostras de fraqueza em sua piedade: Vistes morrer o primeiro, sem que vossa
constância se abalasse; vistes o segundo expirar, sem mostrar fraqueza ou
desalento; vistes com os olhos enxutos tudo o que sofreram os demais, sua
carne grelhada, suas mãos e cabeça decepadas, o resto de seus corpos
amontoados uns sobre os outros. Considerastes todos os tormentos como pro-
vas de sua virtude e nenhuma harmonia é tão agradável aos que a música
arrebata, como era o concerto de suas vozes unidas à vossa, quando eles
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suportavam tantos tormentos. Aquela grande alma tinha visto de um lado a
morte de seus filhos, inevitável, se eles continuassem em sua resolução; e do
outro, sua vida garantida, se obedecessem às ordens do rei, e sentia por eles a
maior ternura de que é capaz um coração materno; mais ela os amava, menos
desejava o prolongamento de sua vida, por um pouco de tempo, que lhes teria,
ao invés, dado a morte para sempre; mostrou que era uma verdadeira filha de
Abraão, preferindo com coragem invencível, Deus a todas as coisas. Oh! mãe
que mantivestes a honra das nossas santas leis e a santidade de nossa religião,
que
 trouxestes
 ao
 vosso
 lado
 estes
 generosos
 combatentes,
 que
 tão
corajosamente as defenderam, devemos comparar-vos talvez, à arca, pois do
mesmo modo que no dilúvio universal ela salvou do furor das ondas tudo o que
restava da raça dos homens, assim vós levastes àqueles, que num dilúvio de
tormentos, saíram, vencedores da crueldade dos carrascos e os fortificastes com
vossa admirável constância e vossa heróica piedade, poderemos duvidar de que
uma resolução santamente tomada não domine os sentidos, quando vemos a
mãe, já idosa, permanecer firme no meio da mais terrível tempestade que possa
agitar um coração, vendo sete de seus filhos morrerem diante de seus olhos, da
maneira mais cruel do mundo? Que homens jamais demonstraram tão grande
coragem? O furor dos leões aos quais Daniel foi exposto e o ardor da fornalha
onde Misael e seus companheiros foram atirados, tinham algo de mais terrível
do que o fogo do amor que devorava as entranhas dessa mãe, pela dor de ver
arrancar de seus braços todos os filhos, para mandá-los aos mais atrozes
suplícios? Mas, foi nesse combate que a razão fez triunfar sua virtude sobre os
sentimentos mais vivos da natureza. Do contrário, como poderia ser, que uma
mulher e mãe, não tivesse dito de si mesma: "Mãe infeliz, a mais infeliz que se
possa imaginar, dei ao mundo sete filhos só para hoje vê-los arrebatados de
meus braços, sem que me reste nem mesmo um só deles? Foi em vão que eu
sofri a dor de tantos partos, que eu criei todos esses filhos com meu leite e os
eduquei com tanto cuidado? Não somente não vos verei mais, meus caros
filhos, mas não verei nem mesmo vossos filhos e perderei assim o doce nome de
mãe, depois de o ter possuído com tanta alegria, pela consolação que vós
mesmos me proporcionáveis por vossa virtude que nenhuma outra jamais foi
mais feliz. Na minha idade estou sozinha, consumida pela dor, sem que der
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tantos filhos que tive, haja pelo menos um de quem eu possa receber a honra
da sepultura."
Essa santa mulher estava muito longe de ter pensamentos tão humanos e
tão carnais. Ela não se contentou em não afastar seus filhos de sua resolução,
de sofrer a mesma morte mas também de não queixar-se nem lamentá-los,
depois de terem morrido. Como se seu coração fosse de bronze, ela os incitava e
os exortava a dar sem temor uma vida mortal para conquistar uma imortal.
Generosa mãe, que num sexo frágil, como um soldado envelhecido nas armas,
demonstrastes tanta firmeza, que saístes vencedora por vossa constância do
furor de um tirano e demonstrastes nas vossas palavras e nas vossas ações
mais coragem do que homens, os mais valentes, nunca poderemos assaz
admirar a maneira como falastes aos vossos filhos, quando depois de ter sido
aprisionado e levada com eles, vistes o santo e venerável ancião Eleazar
atormentado e lhes dissestes então: "Meus caros filhos, jamais combate foi mais
glorioso que aqueles que estais empreendendo. Trata-se de defender a
santidade de nossa religião e que vergonha para vós, no vigor da idade, temer
sofrer por ela dores que um ancião sofre com tanta firmeza. Lembrai-vos de que
recebestes de Deus, criador do universo, a vida que lhe ides oferecer. Imaginai
com que solicitude Abraão, nosso pai, ofereceu-lhe Isaque em sacrifício, embora
ele o considerasse com olhe devendo dar um número indefinido de des-
cendentes. Pensai com que coragem Isaque em vez de se espantar, por ver
armada a mão de seu pai, contra ele, apresentou-se para ser imolado. Tende
presente aos vossos olhos a constância de Daniel, quando o expuseram aos
leões, e a de Ananias, de Azarias e de Misael, quando os lançaram na fornalha
de Babilônia. Pois que tendes, meus filhos, a mesma fé, mostrai a mesma
resolução. Como tendo diante dos olhos tais objetos, vossa piedade poderia não
sair vitoriosa dos tormentos que vos são preparados?" Tais as palavras dessa
mulher forte que ninguém jamais poderia assaz louvar; e elas fizeram tal
impressão no espírito desses sete irmãos, tão dignos de tê-la por mãe, que,
tendo todos morrido parta não faltar ao que deviam a Deus, vivem agora com
ele, na companhia de Abraão, de Isaque, de jacó e dos outros patriarcas.
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CAPÍTULO 14
MARTÍRIO DA MÃE DOS MACABEUS. SEU ELOGIO E DE SEUS FILHOS, BEM COMO DE
ELEAZAR.
Depois que os sete irmãos terminaram a vida da maneira como descrevi,
levaram também a Antíoco a santa mãe. Atiraram-na ao fogo e aquela mulher
forte, bom como seus filhos, teve a glória de triunfar sobre o tirano. Ela foi como
um soberano edifício, de tal modo sustentado por eles, como por outras tantas
colunas, que nenhum tormento jamais foi capaz de abalar. Ela agora goza no
céu da recompensa de seus sofrimentos e de sua fé e resplandece com seus
filhos, de uma luz mais viva do que a da lua e das estrelas. Devemos prestar-
lhes a honra, que lhes é devida, por terem sustentado combates, que causam
horror aos mesmos algozes que os atormentaram, com tão espantosa crueldade,
tornando-os sempre presentes aos olhos da posteridade, por esta história, que
merecia ser gravada sobre o bronze de um magnífico túmulo, a fim de que
nossa nação jamais viesse a esquecê-los. ilustre ancião, ilustres irmãos,
resististes a todos os esforços desse cruel príncipe, que queria abolir nossas
santas leis e com os olhos em Deus vós lhe resististes até à morte, no meio dos
maiores tormentos. Jamais combate foi mais divino, pois só foi empreendido
pela glória de Deus e jamais a virtude, provada pela paciência, triunfou com
maior brilho. Eleazar, por primeiro, entrou na arena. Os sete irmãos seguiram-
no. Sua mãe palmilhou o mesmo caminho. O tirano fez tudo o que o furor mais
implacável lhe poderia inspirar; o mundo foi espectador do combate, a piedade
saiu vitoriosa e os que a tinham tão generosamente defendido, foram coroados.
Como poderíamos não admirá-los e não ficarmos comovidos pelos seus
sofrimentos, pois, o mesmo Antíoco e todos os seus ficaram atônitos e fora de
si? O sangue desses admiráveis mártires aplacou a cólera de Deus, salvou o
povo e deu-lhes a paz, quando havia mesmo probabilidade de esperá-lo. O
príncipe concebeu tal estima por sua coragem e perseverança, que os propôs
como exemplo aos seus soldados e fortificou suas tropas com um grande
número de judeus, que o serviram valentemente, dando-lhe mesmo muitas
vitórias.
Israelitas, raça de Abraão, jamais abandoneis vossas santas leis, mas
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observai-as mui religiosamente e reconhecei que a razão acompanhada pela
piedade domina as paixões. Quanto a Antíoco, cruel príncipe, foi castigado
neste mundo e o é ainda agora no outro. Vendo que lhe era impossível obrigar
os judeus a renunciar à sua religião, ele saiu de Jerusalém para ir fazer guerra
na Peréia e lá morreu miseravelmente.
É de mister terminar: creio, não poderia fazê-lo de modo melhor, do que
referindo as palavras daquela admirável mãe a seus filhos: "Meus filhos, passei
o tempo de minha virgindade com todo o pudor da virtude que se pode exigir de
uma donzela e minha juventude, no casamento, com toda a honestidade que
deve ter uma mãe de família. Quando começáveis a progredir nos anos,
perdestes vosso pai. Ele tinha vivido santamente e suportado com paciência
privar-se durante alguns anos da consolação de ter filhos. Ele vos instruiu nas
leis e nos profetas, falou-vos sobre o assassínio de Abel, por Caim, seu irmão,
sobre o sacrifício de Isaque, a prisão de José, o zelo de Finéias; disse-vos da
fossa dos leões onde haviam atirado a Daniel, da fornalha de babilônia, onde
Ananias, Azarias e Misael foram lançados; citou-vos estas palavras de Isaías:
Quando estiverdes no meio do fogo não experimentareis o ardor de suas chamas;
este Salmo de Davi: Os sofrimentos são a herança dos justos; estas, de Salomão:
O Senhor é como a árvore da vida para todos os que fazem a sua vontade. Estas,
de Ezequiel: Ele reanimara um dia seus ossos dissecados; estas, de um cântico
de Moisés: Eu sou o Senhor; eu mato e eu vivifico. Meus filhos, esse Deus Todo-
poderoso, Eterno, que é a vossa vida, Ele somente pode prolongar vossos dias
na eternidade."
Quantas amarguras nesta vida! Como esses sete irmãos, ao contrário,
encontraram consolação e doçura quando os lançaram nas caldeiras de óleo
fervente, quando lhes arrancaram os olhos, cortaram a língua e exalaram o
último suspiro no meio de todos os tormentos que a crueldade mais desumana
poderia inventar. A justiça de Deus faz agora sofrer o castigo a esse malvado
soberano, e as almas puras desses verdadeiros filhos de Abraão e de sua bem-
aventurada mãe, como recompensa de suas penas e sofrimentos, recebem no
céu com os santos antepassados coroas imortais, das mãos de Deus, ao qual
seja dada honra e glória por todos os séculos dos séculos.
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Relato de Fílon
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Prefácio de Fílon
Até quando uniremos a velhice com a infância e seremos, de cabelos
brancos, tão imprudentes como as crianças? Que maior imprudência pode
haver do que considerar a fortuna como coisa certa, embora nada haja de mais
inconstante, e considerar esta natureza imutável, como se ela estivesse sujeita
a contínuas mudanças? Não seria inverter a ordem, como se se brincasse com
dados, encarando assim as coisas incertas como mais firmes e duradouras do
que as certas? A razão de tal erro vem de que os objetos presentes
impressionam muito mais os homens pouco experimentados do que os objetos
afastados, e eles prestam mais fé aos sentidos, ainda que enganadores, do que
às reflexões que seu espírito poderia fazer, porque nada é mais fácil do que se
deixar levar pelo que se apresenta aos nossos olhos; ao passo que é preciso
raciocínio para se compreender as coisas futuras e as invisíveis. Não é que a
alma tenha a vista mais penetrante que o corpo, mas alguns aguçam-na pela
sua intemperança no comer e no beber, e outros, por sua estupidez, que é o
maior de todos os defeitos.
Tantos fatos tão extraordinários, acontecidos em nosso século, obrigam-
nos a crer que há uma Providência, e que Deus cuida dos homens virtuosos que
a Ele recorrem em suas necessidades e, particularmente, daqueles que são
consagrados ao seu serviço. Eles são como uma herança desse supremo
soberano, cujo império não tem limites. Os caldeus dão-lhes o nome de Israel,
isto é, que vêem a Deus; o que é uma felicidade preferível a todos os tesouros da
terra, pois se a presença daqueles que a idade torna veneráveis, de nossos
preceptores, de nossos superiores, e de nossos parentes nos incute tal respeito,
que nos corrige de nossos defeitos e nos leva à virtude, que vantagem não é,
para nos fortalecer, elevarmos nossa alma acima de todas as coisas criadas,
para nos acostumarmos a considerar a Deus, que não somente é incriado, mas
infinitamente bom, infinitamente belo, infinitamente feliz, ou melhor, cuja
bondade sobrepuja a toda bondade; cuja beleza, a toda beleza e cuja felicidade,
a toda felicidade, o que explica apenas imperfeitamente a sua grandeza? Como
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as palavras seriam capazes de o representar, se Ele é tão superior a tudo que
depois dos esforços do nosso espírito para se elevar a Ele, como por outros
tantos degraus, pelos atributos que lhe dá, é até obrigado a voltar atrás, sem
poder se aproximar dEle e sem poder conhecê-lo, porque Ele é de tal modo
incompreensível, que mesmo quando todas as criaturas se tivessem mudado
em tantas línguas, não poderiam exprimir o soberano poder, pelo qual Ele criou
todas as coisas, o proceder real digno de um monarca eterno, pelo qual
conserva o mundo, e a justa distribuição das recompensas e dos sofrimentos
que fazem, que se possam colocar mesmo seus castigos no número dos
benefícios, não somente como fazendo parte da justiça, mas porque eles servem
freqüentemente para converter os pecadores, ou pelo menos para impedir que
continuem em seus crimes, pelo temor dos castigos que vêem os outros sofrer.
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Livro Único
CAPÍTULO 1
EM QUE INCRÍVEL FELICIDADE PASSARAM-SE OS SETE PRIMEIROS MESES DO REINADO DO
IMPERADOR
 CAIO CALÍGULA.
O imperador Caio Calígula é um exemplo ilustre do que eu acabo de dizer.
Jamais se viu maior tranqüilidade do que a de que todas as províncias
gozavam, tanto no mar como na terra, quando ele subiu ao trono do império,
depois da morte de Tibério. O Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, viviam em
profunda paz; os gregos não tinham questões com os bárbaros e os soldados
viviam em união com os habitantes das cidades. Tão grande felicidade parecia
inacreditável e não se podia assaz admirar de como esse jovem príncipe
subindo ao trono, se visse cumulado de tanta prosperidade e de que seus
desejos não podiam ir além de sua felicidade. Ele possuía riquezas imensas,
grandes extensões de terras e rendimentos prodigiosos, que lhe vinham como
de uma fonte inesgotável de todas as partes do mundo naquele tempo
habitavel. Seu império era limitado pelo Reno e pelo Eufrates; o primeiro,
separando-o da Alemanha e daquelas outras nações ferozes, e o Eufrates dos
partos, dos sarmatas e dos citas, que não são inferiores aos alemães em
ferocidade. Assim, poder-se-ia dizer que desde o nascer do sol até o seu ocaso,
tanto sobre a terra como nas ilhas e mesmo além do mar, todos viviam alegres e
felizes e o povo romano, com toda a Itália e as províncias da Europa e da Ásia,
passavam seus dias numa festa perpétua, porque jamais se havia visto, sob o
reinado de nenhum outro imperador, com o auxílio do céu, gozar-se em tão
grande paz, dos próprios bens e ter-se tanta parte na felicidade pública, que
nada mais restava a desejar. Em todas as cidades viam-se altares, vítimas,
sacrifícios, mulheres vestidas de branco e coroadas de flores, rostos alegres,
festas, jogos, concertos musicais, corridas de cavalo, banquetes, danças ao som
de flautas e de harpa e todos os outros divertimentos imagináveis, sem que eu
pudesse notar diferença entre o contentamento dos ricos e o dos pobres, das
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pessoas da nobreza e das do povo comum, dos senhores e dos escravos, dos
devedores e dos credores. Um tempo tão feliz nivelava todas as condições; a
verdade fazia quase se prestar fé ao que os poetas dizem em suas fábulas, do
século de Saturno; sete meses passaram-se desse modo.
CAPÍTULO 2
O IMPERADOR CAIO, NÃO TENDO AINDA REINADO SETE MESES, CAI
GRAVEMENTE ENFERMO.
 MARAVILHOSO AFETO QUE TODAS AS PROVÍNCIAS
DEMONSTRAM E INCRÍVEL ALEGRIA PELO SEU RESTABELECIMENTO.
No mês seguinte esse felicíssimo imperador caiu gravemente enfermo, por-
que tendo deixado sua maneira sóbria de viver, que lhe mantinha a saúde, o
que ele fazia desde os tempos de Tibério, entregara-se à intemperança e ao
luxo. Bebia demasiado vinho, comia em excesso, tomava banho em tempo
inoportuno, recomeçava a comer e a beber depois de ter vomitado, abandonava-
se a todos os desejos impudicos pelas mulheres, a voluptuosidades criminosas
e por fim a todas as outras desordens que muito contribuem para alterar essa
união do corpo com o espírito, que a temperança mantém na força e na saúde,
ao passo que a intemperança as enfraquece e leva à enfermidades que causam
a morte.
Estava-se no começo do outono, que é quase a última estação do ano,
própria para a navegação e o tempo em que aqueles que fazem comércio com os
estrangeiros voltam para seu país. Assim, essa notícia foi levada como um raio
por todo o mundo e mudou em tristeza a alegria na qual todos passavam
docemente a vida. As cidades e as casas encheram-se de aflição e de tristeza; a
enfermidade do imperador tornou-se a de todas as províncias e era ainda maior,
porque ele sofria apenas do corpo e todos aqueles povos sofriam no espírito pelo
temor de perder, com a paz, o gozo dos bens que ela traz, quando imaginavam
que a morte dos imperadores era ordinariamente seguida pela carestia e por
outros males que a guerra causa, e nada lhes parecia mais próprio para se
evitar tudo isso do que a saúde de seu soberano.
A
 doença,
 porém,
 começou
 a
 diminuir
 e
 a
 notícia
 espalhou-se
imediatamente, levando a alegria até os extremos da terra, porque nada corre
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tão rápido como a fama e todos esperavam com impaciência incrível tão feliz
notícia. Quando souberam que o imperador tinha recobrado completamente a
saúde, parecia-lhes ter com ele recobrado a própria e a sua primeira felicidade.
Não se tem recordação de alegria mais geral; parecia que se tivesse passado
num momento, de uma vida selvagem e rústica a uma vida doce e sociavel, dos
desertos para as cidades e da desordem para a ordem, pela felicidade de se
estar sob o governo de um chefe tão benévolo e legítimo.
CAPÍTULO 3
O IMPERADOR CAIO ENTREGA-SE A TODA SORTE DE DEVASSIDÃO E DE
CRIMES, E POR UMA HORRÍVEL INGRATIDÃO E UMA ESPANTOSA CRUELDADE
OBRIGA O JOVEM
 TIBÉRIO, NETO DO IMPERADOR T IBÉRIO, A SE MATAR.
Mas mui depressa se viu como o espírito humano é cego, como ele ignora
o que lhe é útil e toma as sombras pela verdade. O soberano, que era
considerado como um admirável benfeitor, cujas graças e
 favores se
derramavam por toda a Europa e toda a Ásia, tornou-se um monstro de
crueldade, ou melhor, manifestou a que tinha nascido com ele e que tinha até
então dissimulado.
O imperador Tibério tivera de Druso, seu filho, que morrera antes dele, o
jovem Tibério, e tivera de Germânico, seu sobrinho, Caio Calígula, que preferira
a Tibério, na sucessão ao trono, com a condição de reconhecer um tão grande
benefício, pela maneira como viveria com seu neto. Mas Caio, em vez de se
comover por ter recebido com essa adoção o que pertencia ao jovem Tibério, por
nascimento, levou sua ingratidão a tal excesso de desumanidade, que depois de
ter sido causa de que ele perdesse o império, fê-lo também perder a vida, sob o
pretexto de que tinha tentado contra a dele, como se uma pessoa de sua idade
fosse capaz de tal ação; muitos julgam que se ele tivesse tido alguns anos mais,
seu avô tê-lo-ia sem dúvida escolhido para seu sucessor e ter-se-ia desfeito de
Caio, de quem já começava a suspeitar.
Eis como Caio procedeu para executar uma resolução tão detestável
contra aquele, com o qual a justiça obrigava a dividir a suprema autoridade.
Mandou vir o jovem Tibério, reuniu seus amigos e disse-lhes falando dele: "Eu
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não o amo somente como meu primo, mas como se ele fosse meu próprio irmão,
e desejaria, de todo meu coração, poder agora associá-lo ao governo, para
satisfazer à última vontade de Tibério, mas vedes que, sendo tão jovem, ele tem
mais necessidade de governante do que de ser governador. Se não fosse isso,
quanta alegria não sentiria eu de poder dividir com ele uma parte tão grande do
peso, como o de governar tantos povos! Como meu afeto por ele a isso me
obriga, eu vos declaro que estou disposto a servir-lhe não somente de preceptor,
mas de pai; quero que assim ele me chame, e eu o chamarei, daqui por diante,
de meu filho".
Depois que Caio com este ardil enganou a todos os seus ouvintes e com
essa fingida adoção, tirou, em vez de dar ao pobre príncipe, a parte que lhe
tocava no império, não encontrou mais obstáculo para fazê-lo cair na armadilha
preparada, porque as leis romanas dão aos pais um poder absoluto sobre os
filhos, e esse supremo grau de autoridade em que ele se achava não deixava a
ninguém a liberdade de lhe perguntar a razão do que ele fazia. Assim,
considerando o jovem príncipe como inimigo, tratou-o como tal, sem se deixar
comover nem pela idade, nem por ter sido educado com ele, na esperança de
poder suceder ao avô, ao qual, depois da morte de seu pai, ele tinha o lugar de
filho e não somente o de neto.
Diz-se que para executar o seu projeto ele ordenou-lhe que se matasse na
presença dos tribunos e dos oficiais, proibindo-lhes que o ajudassem nessa
ação, porque os descendentes dos imperadores só podem morrer por suas
próprias mãos, pois ele ainda queria passar por um grande observante das leis,
violando-as; por religioso, cometendo um grande crime, não temia zombar da
verdade, com tão estranha hipocrisia. Então o pobre moço, que jamais havia
presenciado qualquer gênero de morte e nunca tomara parte naqueles
combates falsos nos quais os moços e os jovens príncipes em tempo de paz se
exercitam, apresentou a garganta ao primeiro que encontrou e todos
recusaram-se matá-lo; ele então tomou um punhal e perguntou em que lugar
devia ferir. Concederam-lhe o favor de lho mostrar e assim instruído por
aqueles caridosos mestres, ele feriu-se com tantos golpes, que, por uma
deplorável imposição, foi assassino de si mesmo.
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CAPÍTULO 4
CAIO MANDA MATAR MACROM, COMANDANTE DA GUARDA PRETORIANA, AO QUAL ELE
DEVIA A VIDA E O IMPÉRIO.
Depois que Caio resolveu o assunto mais importante para ele, ninguém
mais restava que tivesse o direito de lhe disputar o trono e a quem aqueles que
quisessem perturbar a ordem se pudessem juntar; preparou-se então para
descarregar sobre Macrom os efeitos de sua crueldade e de sua ingratidão. Ele
não somente o tinha servido muito bem, depois que ele subira ao trono, o que é
coisa comum, porque a boa sorte sempre tem aduladores, mas fora também a
causa da escolha que Tibério tinha feito dele para seu sucessor. Pois, além de
que jamais príncipe teve o espírito mais penetrante do que este imperador, a
experiência adquirida com a idade dava-lhe o conhecimento dos pensamentos
mais secretos dos homens, e ele tinha concebido graves suspeitas de Caio.
Julgava-o inimigo de toda a família dos Cláudios; estava persuadido de que ele
não tinha afeto algum pelos da sua origem, do lado materno, e temia por
Tibério, o neto, se o deixasse em tenra idade. Além disso, ele julgava Caio
incapaz de governar tão grande império, por causa da leviandade de seu
espírito, que parecia ter algo de loucura, tanto se via pouca firmeza em suas
palavras e em suas ações. Tudo, porém, Macrom fez para dissipar essas
dúvidas e suspeitas e particularmente o temor que ele tinha pelo neto; ele
afirmava-lhe que Caio tinha por ele grande respeito, muito afeto como primo, e
que lhe cederia de boa vontade o império; que só se devia atribuir ao pudor e ao
seu retraimento o que todos julgavam espírito fraco. Macrom via que essas
razões não persuadiam a Tibério e não temia oferecer-se a ele como garantia: o
príncipe não podia duvidar de sua sinceridade e de sua fidelidade, depois das
provas que lhe havia dado, descobrindo e sufocando-lhe a conspiração de
Sejam. Por fim, louvava-lhe continuamente a Caio, se louvar uma pessoa é
querer justificá-la contra suspeitas incertas e acusações indeterminadas;
mesmo que Caio fosse seu irmão e mesmo seu próprio filho, ele não teria podido
fazer mais. Vários atribuíram a causa disso aos favores que Caio lhe prestava e
ainda mais aos bons ofícios da mulher de Macrom, que, por uma razão oculta,
falava continuamente a seu marido em seu favor e todos conhecem o poder da
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mulher, principalmente daquelas que são impudicas, porque não há adulação
de que não se sirvam para esconder seus crimes aos maridos. Assim, como
Macrom ignorava o que se passava em sua casa, ele atribuía esses artifícios ao
afeto e seus maiores inimigos passavam em sua mente por pessoas que mais o
amavam. O ter ele livrado Caio de tantos perigos não o deixava imaginar como
ele fosse ingrato; falava-lhe assim com muita liberdade, no temor de que ele não
se viesse a perder por si mesmo ou que outros corrompessem seu espírito. Ele
se assemelhava àqueles bons operários, ciosos de seus trabalhos, que não
podem tolerar que outros os estraguem. Assim, quando Caio dormia à mesa, ele
o despertava, dizendo que aquilo não lhe ficava bem, nem mesmo era seguro,
porque poder-se-ia facilmente tentar contra sua vida. Quando ele contemplava
os dançarinos e saltadores com prazer e atenção extraordinárias, imitando-lhes
os gestos, ou quando ele não se contentava de sorrir, mas desatava em
gargalhadas ante os gracejos dos comediantes e dos palhaços, ou quando ele
unia sua voz às dos músicos e cantores, ele o tocava levemente, quando lhe
estava perto, para impedir que continuasse e dizia-lhe ao ouvido, o que somente
ele teria coragem de fazer: "Não deveis, como os outros homens, vos
abandonardes aos prazeres dos sentidos, mas sobrepujá-los tanto em
prudência e em sabedoria, quanto estais elevado acima deles. Como é que um
príncipe que governa toda a terra não sabe se moderar em coisas tão
desprezíveis? Tão grande glória como a que vos rodeia vos obriga a nada fazer
indigno da majestade de chefe de tão poderoso e temido império. Assim, quer
estejais no teatro, nos lugares de exercício público, não é o espetáculo que
deveis principalmente considerar, mas o trabalho, o cuidado que aqueles que
vo-lo apresentam, empregaram para bem realizá-lo, e dizer em vós mesmo: Se
eles fizeram tantos esforços para coisas inúteis à vida e se dedicam
exclusivamente ao prazer dos espectadores, a fim de merecer serem coroados
com grandes elogios e aplausos, que não deve fazer um príncipe que se dedica a
um objetivo muito mais importante? Não sabeis que nenhum outro iguala ao de
bem reinar, pois que produz a abundância em todos os lugares capazes de
serem cultivados, garante a navegabilidade dos mares, o que faz que todas as
províncias se comuniquem entre si e trafiquem seus bens para o aumento do
comércio? A inveja e o ciúme, para impedir essa feliz comunicação, tinham
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envenenado alguns particulares e algumas cidades. Mas depois que vossa
augusta família foi elevada a esse supremo grau de poder, que se estende sobre
todas as terras e todos os mares, ela obrigou esses monstros a fugirem para os
desertos mais afastados. Somente a vós foi confiada essa suprema autoridade.
A Providência vos colocou à proa, como um digno piloto, para terdes o leme em
vossa mãos. É vosso dever bem conduzir esse incomparável navio, do qual a
salvação de todos é o rico carregamento. Como um cuidado tão nobre não tem
preço, vós não deveis ter maior prazer que tornar felizes por vossos benefícios
tantos povos que vos são sujeitos. Eles podem receber alguns, de outros, mas é
somente do príncipe que eles devem esperar esse excelente proceder, pelo qual
ele espalha a mãos-cheias, seus bens sobre eles, exceção feita daqueles que a
prudência obriga a reservar, para remediar aos acidentes que se devem prever".
Foi assim que esse infeliz conselheiro exortou a Caio, para procurar torná-
lo melhor. Mas esse malvado imperador mudava os remédios em veneno,
zombava dessas advertências e tornava-se, ao invés, sempre pior. Assim,
quando via Macrom chegar, dizia aos seus amigos e aos que estavam junto
dele: "Aí vem o impertinente preceptor, ridículo pedagogo, que se quer meter a
dar-me instruções, não a uma criança, mas a uma pessoa que é mais
competente do que ele. Ele pretende que um súdito dê ordens a um imperador,
que conhece a arte de reinar e julga ser perito nessa ciência. Mas eu quisera
bem saber de quem ele teria podido aprender o que diz; eu fui instruído desde o
berço por meu pai, meus irmãos, meus primos, meus avós, meus bisavós e
tantos outros grandes príncipes, de quem sou descendente dos lados paterno e
materno, sem falar das sementes de virtude que a mesma natureza introduz no
sangue daqueles que ela destina a governar. Do mesmo modo que as crianças
se assemelham aos genitores, não somente nos traços do rosto e nas qualidades
da alma, mas também nos gestos, nas inclinações e nas ações, quem duvida de
que aqueles que são de uma família acostumada a dominar não recebem, com a
vida, uma disposição que os torna capazes de receber todas as impressões que
formam um grande príncipe? Posso então dizer que quando minha mãe me
trazia ainda em seu seio e antes mesmo que eu tivesse visto a luz do dia, eu fui
instruído na ciência de reinar; um homem qualquer, cujos pensamentos nada
têm de elevado e de nobre, ousará dar-me conselhos com relação ao governo do
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império, que são para ele mistérios insondáveis?"
Assim, Caio concebia, cada vez mais, aversão por Macrom; procurava
acusá-lo de falsos crimes, com pretextos de pouca probabilidade; julgou ter
encontrado um por estas palavras que às vezes lhe escapavam: "O imperador é
obra minha e ele não me deve menos obrigação do que àqueles que o puseram
no mundo. Eu o livrei três vezes com meus rogos da cólera de Tibério, que o
queria mandar matar, e depois de sua morte fi-lo declarar imperador, pela
guarda pretoriana, que eu comandava, fazendo-lhes ver que o único meio de
conservar o império inteiro era obedecer a um só".
Muitos aprovavam estas palavras de Macrom, porque nada era mais
verdadeiro, e eles não conheciam ainda a leviandade e a dissimulação de Caio.
Mas poucos dias depois, o infeliz Macrom e sua mulher perderam a vida. Foi
assim que a ingratidão de Caio recompensou esse fiel servidor, por tê-lo salvo
da morte e elevado ao trono do império. Diz-se que o obrigaram a se matar e
que sua mulher não foi mais bem tratada do que ele, embora não se duvidasse
de que ela tivera relações criminosas com Caio. Mas, que há de mais
inconstante que o amor pelos desgostos que se encontram nos afetos
desregrados? A crueldade de Caio chegou a mandar matar também todos os
domésticos de Macrom.
CAPÍTULO 5
CAIO MANDA MATAR MARCO S ILANO, SEU SOGRO, PORQUE LHE DAVA SÁBIOS
CONSELHOS.
 ESSE ASSASSÍNIO É SEGUIDO DE MUITOS OUTROS.
Depois que esse pérfido príncipe se desfez do seu competidor ao império e
de um homem ao qual ele devia o favor de ter sido elevado ao trono e mesmo a
quem devia a própria vida, restava-lhe ainda um terceiro projeto a executar, e
para isso ele empregou toda a sua habilidade. Marco Silano, seu sogro, que era
muito generoso e deu mui ilustre descendência, tinha, depois da perda da filha,
que falecera muito jovem, continuado a mostrar a Caio a afeição, não somente
de um sogro, mas de um verdadeiro pai, na persuasão de que, por ter a
princesa falecido há pouco, também Caio conservaria para com ele os mesmos
sentimentos. Assim, falava-lhe ele com grande liberdade, do procedimento que
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ele devia ter para corresponder por suas ações às esperanças que dele haviam
concebido. Mas Caio era muito presunçoso, e em vez de reconhecer seus
defeitos, gabava-se de ser exímio em todas as virtudes; considerava como inimi-
gos os que lhe davam bons conselhos e tinha como injúrias os sábios avisos de
Silano; este tornou-se-lhe insuportável e ele não pôde tolerá-lo por mais tempo,
como um empecilho para as suas paixões desregradas. Afastou em seguida de
sua memória, bem como do coração, a lembrança de sua esposa, e por uma
crueldade mais que bárbara, mandou matar, à traição, aquele de quem ela
tinha recebido a vida e que ele devia considerar como pai. A notícia desse
assassínio, que foi seguido de muitos outros, de pessoas as mais ilustres do
império, espalhou-se por toda parte e disso se falava com horror, mas em
segredo, porque o temor não deixava os sentimentos manifestarem-se.
Entretanto, como o povo é muito fácil de se deixar enganar e tinha dificuldade
em crer que um príncipe, que parecera tão bom e tão afável, se tivesse de tal
modo mudado num momento, dizia para desculpá-lo: quanto à morte do jovem
Tibério, o soberano poder não pode tolerar divisão; que ele tinha sido precedido
por Caio, pois se sua idade lhe tivesse permitido, ele teria feito o mesmo que ele
lhe fizera; que fora talvez por uma providência de Deus e para utilidade de toda
a terra, que ele tinha perdido a vida, a fim de preservar o império de guerras
civis e estrangeiras, que o teriam dividido pelas facções dos que abraçariam o
partido desses dois príncipes: que nada é mais desejável do que a paz; e esta
não subsiste senão pelo bom governo dos Estados, e um Estado só poderia ser
bem governado por um único soberano, cuja autoridade mantém todas as
coisas na tranqüilidade e na calma. Com relação a Macrom, ele se tinha
tornado tão orgulho, que bem parecia ter-se esquecido daquelas belas palavras
do oráculo de Delfos: Conhece-te a ti mesmo, o que é tão necessário que não
podemos com esse conhecimento deixar de ser felizes, nem evitar sermos
infelizes, quando não o temos; que era uma coisa intolerável, que Macrom se
quisesse colocar acima do imperador, como se não tocasse aos príncipes
governar e aos súditos, obedecer. Era assim que esses homens rudes
interpretavam, por ignorância ou por bajulação, os salutares conselhos de
Macrom. Com relação a Silano, eles diziam que era ridículo que ele pretendesse
tanto poder sobre o genro, como um pai tem sobre o filho, visto mesmo que os
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pais, apenas cidadãos, são inferiores aos filhos quando elevados aos cargos e
que tinha sido bem ingênuo, imaginando que, sendo apenas sogro, ele tinha o
direito de imiscuir-se em coisas que não lhe competiam, sem considerar que a
aliança que o unia com o imperador tinha terminado pela morte da filha, pois
os casamentos são como ligações externas, que unem as famílias e terminam
com a morte de uma da pessoas que os contrai.
Tais eram as palavras que se diziam nas assembléias, para não se acusar
o imperador de crueldade, porque tendo-se tido antes, somente motivo de se
conceber dele uma opinião de grande bondade, não se podia, no momento,
pensar como eu já disse, que ele se tivesse mudado de um instante para outro.
CAPÍTULO 6
CAIO QUER SER ADORADO COMO UM SEMIDEUS.
Ações tão criminosas, na mente de Caio, eram como outras tantas vitórias
que ele obtivera sobre o que havia de mais ilustre no império. Seu furor tinha
sufocado o brilho da família imperial no sangue do jovem Tibério, seu primo,
que ele devia, ao invés, ter associado ao soberano poder. Sua espantosa
desuma-nidade tinha ofendido a todo o Senado pela morte de Silano, seu sogro,
que lhe era um dos mais belos ornamentos. Sua horrível ingratidão tinha feito
perder a vida a Macrom, que ocupava a primeira linha na ordem dos cavaleiros
e ao qual ele era devedor da grandeza em que se encontrava e à qual fora
elevado.
Julgou, então, que não havendo mais ninguém que se ousasse opor à sua
vontade, ele não se devia somente contentar com as grande honras, que se
costumam dar aos homens, mas podia aspirar às que se devem somente a
Deus, e, diz-se, que para se persuadir a si mesmo de tão grande extravagância,
assim ele raciocinava: "Como aqueles que conduzem manadas de bois,
rebanhos de carneiros ou de cabras não são nem bois, nem carneiros, nem
bodes, mas homens de uma natureza infinitamente mais digna e superior à dos
animais, assim, do mesmo modo, os que governam a todos os homens, a todas
as criaturas do mundo, merecem ser considerados como sendo muito mais que
simples homens, e devem ser tidos por deuses".
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Depois de ter metido em sua cabeça tão ridícula idéia e de ter tido a
ousadia de assim se declarar, passou aos efeitos práticos, por gradações.
Começou por querer passar por semideus, como Baco, Hércules, Castor e
Pollux. Tritão, Anfiauro, Anfíloco e outros. Mas ele zombava de seus oráculos e
de suas cerimônias, e as tirava deles, para atribuí-las a si mesmo.
Assim, do mesmo modo que os comediantes mudam freqüentemente de
personagem, para representar Hércules, ele tomava uma pele de leão e uma
maçã, adornada de ouro; ora cobria-se com um chapéu semelhante ao de
Castor e de Pollux; ora, para imitar Baco, ele se revestia da pele de uma corça.
Não se parecia, porém, com as mencionadas divindades, porque elas se
contentavam com honras particulares que lhe eram prestadas, sem invejar as
dos outros, e ele queria que lhe prestassem todas juntamente para ter
vantagem sobre elas. Entretanto, o que lhe atraía a multidão de tantos
espectadores não era que ele tivesse três corpos como Geriom; era porque ele se
transformava em tantas figuras diferentes, como Proteu em Homero, mudava-se
em vários elementos, em diversos animais e em diversas plantas.
Mas, Caio! Não é essa vã semelhança com os semideuses que deveis
procurar imitar, mas deveis esforçar-vos para imitar suas ações e suas
virtudes. Hércules, com seus grandiosos feitos, purgava as terras e o mar dos
monstros que perturbavam o sossego dos homens. Baco, que foi o primeiro que
plantou a vinha, dela tirou um líquido tão agradável e tão útil ao corpo e ao
espírito, que os faz esquecer suas penas, os alegra e os fortalece e dele se notam
os efeitos nas danças e nos banquetes, não somente das nações civilizadas,
mas até mesmo entre os bárbaros. Quanto a Castor e a Pollux, dois filhos de
Júpiter, não se diz que um deles, tendo nascido imortal e o outro mortal, o que
tinha tão grande vantagem sobre o irmão, não podendo suportar a dor de ver
morrer uma pessoa que lhe era tão querida, quis igualá-lo e igualar-se a ele,
comunicando-lhe uma parte de sua imortalidade e tornando-lhe ele também
sujeito à morte? Esta é a maior ação de justiça que se possa imaginar. Esses
heróis que foram a admiração de seu século, e são ainda a do nosso, só
receberam honra como deuses, por causa dos benefícios que fizeram aos
homens. Mas, Caio! Que fizestes de semelhante que vos possa dar motivo de
tanto vos glorificardes? Começando, pelo que se refere a Castor e Pollux,
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imitastes essa perfeita amizade fraterna, que os torna tão recomendáveis? Vós,
que, sem compaixão da juventude daquele que devia ocupar o lugar de vosso
irmão e com quem a justiça vos obrigava a dividir o império, tão cruelmente
manchastes vossas mãos em seu sangue e mandastes suas irmãs a um longín-
quo exílio, para reinar com mais segurança ainda? Imitastes a Baco,
espalhando como ele a alegria por toda a terra, com uma admirável invenção?
Vós, que só podeis ser considerado como uma peste pública, só encontrais
novas invenções para mudar a alegria em dor e tornar a vida odiosa, quando,
em recompensa de bens infinitos que tendes recebido de todos os lugares do
mundo, vossa insaciável avareza e ambição oprimem os povos sob o peso de
tantos e novos tributos e os obrigam a detestar vossa horrível desumanidade.
Imitais também seus feitos heróicos e as realizações esplêndidas de Hércules,
para restaurar a paz, fazer reinar a justiça, e restabelecer a abundância sobre a
terra e sobre o mar? Vós, que, sendo, ao contrário, tão covarde e o mais tímido
de todos os homens, banis de todas as cidades a ordem, a tranqüilidade e a
felicidade, para introduzir em seu lugar a desordem, a perturbação e todas as
outras misérias? É com essas ações que julgais poder passar por um semideus
e desejais ser imortal, a fim de continuar a praticá-las indefinidamente? Não
há, ao invés, motivo de se crer que, quando mesmo fósseis deus, um proceder
tão detestável vos incluiria nas fileiras dos homens, pois que, se a virtude os
toma imortais, os vícios os tornam mortais?
Deixai, pois, de vos comparardes a Castor e a Pollux, tão célebres por sua
amizade fraterna, depois que não tivestes temor de ser o assassino de vosso
próprio irmão e não pretendais ser honrado como Hércules ou Baco que se
distinguiram por seus benefícios, quando vossas maldades e crimes tornam
inúteis qualquer benemerência.
CAPÍTULO 7
A LOUCURA DE CAIO AUMENTA SEMPRE MAIS E ELE QUER SER HONRADO COMO UM DEUS ;
IMITA
 MERCÚRIO, APOLO E MARTE.
Mas a loucura de Caio não se deteve. Era pouco para ele igualar-se aos
semideuses; ele queria mesmo igualar-se aos deuses. Começou por querer
passar por Mercúrio. Vestiu-se com roupas parecidas com as dele, tomou nas
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mãos um caduceu e calçou botinas com asas. Outra vez, para se parecer com
Apoio, coroou a cabeça com uma auréola resplandecente, pôs uma aljava às
costas, e com flechas na mão esquerda, fazia gestos com a direita, para mostrar
que os favores são preferíveis aos trabalhos.
Instituiu depois danças sagradas nas quais se cantavam hinos em louvor
desse novo deus, que se contentava antes, quando representava Baco, de ser
chamado Evio Lieu e Liber. Muitas vezes, também, quando queria passar por
Marte, tomava um capacete, uma couraça, um escudo e se apresentava com
uma espada desembainhada na mão, acompanhado de homens dispostos a
matar, para acompanhar o furor daquela divindade, que só respira sangue e
crueldade.
Espetáculo tão estranho impressionava vivamente o espírito do povo, que
se não podia assaz admirar de que ele quisesse parecer com os deuses, aos
quais não possuía nenhuma virtude, nem boa qualidade e ousasse usar os
sinais dos bens que eles tinham proporcionado aos homens. Pois, que
representam aqueles sapatos alados de Mercúrio, senão que ele possui a
dignidade de embaixador dos deuses, intérprete de suas vontades, o que seu
nome em grego significa, sendo portador de boas notícias e levando-as com toda
a solicitude, pois que, não somente um deus, mas um homem sensato não se
pode resolver a levar más notícias? O caduceu não indica também que ele é
medianeiro da paz e dos tratados, pois os homens também os usam para os
mesmos fins e de outro modo jamais veríamos terminarem os males que
causam a guerra? Caio, pondo assaz os seus calçados, o fazia para espalhar
mais ainda em todas as províncias do império a fama de seus crimes, que
deveriam, ao invés, serem sepultados num esquecimento perpétuo? Por que
dar-se tanto trabalho, pois que, sem se afastar de seu lugar, ele cometia crimes
infinitos, que jorrando sem cessar daquela detestável fonte, inundavam toda a
terra? Tinha ele necessidade de um caduceu, pois que jamais se via algo em
suas palavras e em suas ações que tivesse a menor aparência de paz, mas, ao
contrário, não havia nem cidades nem províncias, gregas ou bárbaras, às quais
ele não causasse divisão e perturbação. Que esse falso Mercúrio deixe então tal
nome, que lhe é tão pouco conveniente.
Com relação a Apoio, em que se lhe pode ele assemelhar? Será por aquela
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coroa resplandecente de raios, como se o sol e a lua fossem mais próprios para
se cometerem crimes, do que as noites mais horríveis e as trevas? Somente as
ações louváveis e virtuosas o dia deve aclarar: as vergonhosas e as infames
devem procurar a escuridão para se ocultarem, no mais profundo dos antros e
das cavernas. Esse fabuloso Apoio também subverteu a ordem da medicina,
pois, quando o verdadeiro Apoio tinha inventado remédios salutares para curar
as doenças, este só empregava venenos próprios para dar a morte. Sua
insaciável ambição animava-o principalmente contra as pessoas da mais alta
nobreza e as mais ricas da Itália, porque ali havia mais ouro e prata que em
todo o resto do mundo, e se Deus o não tivesse libertado desse inimigo do
gênero humano, não teria havido lugar no império que ele não tivesse também
saqueado, destruído e arruinado. Louva-se assim a Apoio, por ter ele não
somente se distinguido na ciência da medicina, mas predito o futuro para o
bem dos homens, que ele impedia, por seus oráculos, de cair nas desgraças de
que estavam ameaçados. Mas os oráculos que Caio proferia só se referiam às
pessoas de condição e às mais ilustres, predizendo confiscações, o exílio e a
morte, que eram únicos favores que se poderiam esperar de sua injustiça, de
sua crueldade e de sua tirania.
Que semelhança tinham então esses dois Apoios? Que vergonha ver que
se cantavam igualmente hinos em louvor de um e do outro, com se fosse um
crime menor dar a um homem vicioso as honras que só se devem a um deus,
como falsificar a moeda que traz a imagem do príncipe?
Nada, porém, é mais surpreendente do que se ver que um homem, cujo
espírito e corpo eram tão efeminados, quisesse atribuir-se a força e a coragem
de Marte e enganar os espectadores, mudando a todo momento de personagem,
como os atores no teatro. Pois, em que se poderia ele assemelhar, não digo a
esse Marte fabuloso, que é apenas um fantasma, mas ao que ele quis
representar, supondo que há um, isto é, uma força generosa e benéfica sempre
pronta a socorrer os oprimidos como a palavra grega Aris, significa, a uma força
que por guerras justas produz uma paz feliz. Esse Marte fabuloso tem dois
nomes, um dos quais significa que ele ama a paz e que restaura a tranqüilidade
pública, e o outro, que ama a guerra e que não poderia deixar de ser
acompanhado de confusão e de perturbação.
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CAPÍTULO 8
CAIO SE ENFURECE CONTRA OS JUDEUS, PORQUE ELES NÃO QUERIAM, BEM COMO OS
OUTROS POVOS, REVERENCIÁ-LO COMO DEUS.
Penso ter demonstrado claramente como Caio não tinha relação alguma
com os semideuses e menos ainda com os deuses. Jamais um príncipe teve
mais mesquinhas e vergonhosas inclinações; ele aceitava cegamente e com
ardor desmesurado tudo o que lhe vinha à mente; sua ambição tocava as raias
da loucura, sua obstinação era invencível e seus desejos desregrados não
tinham limites, nos abusos que ele fazia do poder. Os judeus, outrora tão
felizes, vieram também a sentir-lhe os deploráveis efeitos, porque ele os
considerava como os únicos capazes de se oporem aos seus desígnios, porque
desde a infância aprenderam de seus antepassados, por uma constante
tradição e ainda mais por suas santas leis, que existe um só Deus, criador do
céu e da terra. Todos os outros povos, embora gemendo sob o peso do domínio
tirânico desse cruel príncipe, não deixaram, por adulação, de se submeter ao
seu desejo e de aumentar assim a sua presunção e sua vaidade. Vários
romanos mesmo não tinham vergonha de desonrar a liberdade romana,
introduzindo na Itália uma complacência e uma submissão de bárbaros, pela
adoração que lhe prestavam. Mas ele sabia que, ao contrário, os judeus, antes
de permitir que se tocassem por pouco que fosse nas suas leis, prefeririam
correr para a morte como para a imortalidade, porque do mesmo modo que não
se pode tirar uma pedra de um edifício sem que pouco a pouco o resto venha a
cair, assim também, que tudo é importante, no que se refere à religião, e não
poderia haver empreendimento mais ousado e mais ímpio, do que pretender
trocar um homem mortal num deus imortal, pois que é mais fácil que Deus seja
mudado em homem do que um homem em Deus; além de que seria abrir a
porta a uma horrível infidelidade e a uma espantosa ingratidão para com Deus,
Todo-poderoso, cuja bondade infinita espalha continuamente graças e favores
sobre todas as criaturas.
Esta foi a causa da cruel guerra feita à nossa nação. Que maior desgraça
pode suceder aos servidores, do que terem seu senhor como inimigo? Ora, os
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súditos dos imperadores são seus servidores e quanto à moderação dos
príncipes que tinham precedido Caio tornava sua obediência justa e doce, tanto
a sua era insuportável. A clemência era para ele uma virtude desconhecida e ele
se gloriava de calcar aos pés todas as leis e de aboli-las como inúteis, para fazer
reinar em seu lugar a violência e a tirania. Mas seu furor tinha principalmente
por objeto os judeus. Ele não se contentava de tratá-los como servos, mas os
tratava como escravos e como os mais vis e mais abjetos de todos os escravos.
Assim, podia-se dizer, com verdade, que eles tinham nele em vez de um senhor,
um cruel e impiedoso tirano.
CAPÍTULO 9
OS ANTIGOS HABITANTES DE A LEXANDRIA SERVEM-SE DA OPORTUNIDADE DO
FUROR DE
 CAIO CONTRA OS JUDEUS PARA LHES FAZER TODOS OS ULTRAJES,
TODAS AS INSOLÊNCIAS E TODAS AS AÇÕES DE CRUELDADE IMAGINÁVEIS.
DESTRÓEM A MAIOR PARTE DOS SEUS ORATÓRIOS E LÁ COLOCAM AS ESTÁTUAS
DO PRÍNCIPE, EMBORA JAMAIS SE TIVESSE FEITO ALGO DE SEMELHANTE SOB
AUGUSTO NEM SOB T IBÉRIO. LOUVOR E ELOGIO DE A UGUSTO.
Quando o ódio desse imperador contra os judeus chegou ao conhecimento
dos habitantes de Alexandria, que já há muitos anos também os odiavam, eles
julgaram não poder encontrar uma ocasião mais favorável de fazê-los explodir.
Assim, como se tivessem recebido ordem desse príncipe, ou como tendo sido
atacados pelos judeus, o direito da guerra os expunha à sua cólera, assaltaram-
lhes as casas, delas os expulsaram com suas famílias, saquearam-nas, levaram
tudo o que havia de melhor, não de noite, como os ladrões, que temem o casti-
go, mas em pleno dia, fazendo alarde, como se aquilo lhes pertencesse, ou o
tivessem comprado e alguns mesmo, por uma detestável sociedade em ações,
tão criminosos, dividiam entre si o roubo nas praças públicas na presença
daqueles que eles tinham tão cruelmente despojado de seus bens e
acrescentavam ainda a zombaria e as injúrias à violência que lhes tinham feito.
Mas, que é ter reduzido à indigência pessoas antes ricas, tê-las feito sair
de suas casas e se exporem como vagabundos às inclemências do tempo, em
comparação com o que aconteceu em seguida? Aqueles homens furiosos
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expulsaram os judeus com suas esposas e filhos de todos os pontos da cidade
para encurralá-los como animais em um lugar tão apertado, que eles não
podiam nem sequer levar alguma coisa consigo, e todos pensavam que logo eles
viessem a morrer de fome ou infeccionados pelo ar, cuja pureza é tão necessária
para a vida, pior causa do calor interno, que é como acrescentar fogo ao fogo e
não dar aos pulmões, em vez de um ar suave e temperado, que refresca, um ar
aquecido por uma tão grande quantidade de pessoas apertadas umas contra as
outras.
Em tal conjuntura, esses pobres infelizes para poder pelo menos respirar,
retiravam-se uns para o deserto, outros para as proximidades do mar e outros
para os sepulcros. Aqueles que ainda restavam nalgum lugar da cidade ou que
vinham de fora, sem saber do que se estava passando, eram recebidos a
pedradas ou a pauladas e os tratavam do mesmo modo que aqueles que já
estavam encerrados naqueles lugares pequenos demais para tão grande
multidão. Esses cruéis perseguidores iam esperar nas margens do rio os
negociantes judeus que vinham fazer transações em Alexandria, roubavam-lhes
toda a mercadoria e os queimavam vivos, uns na fogueira, que acendiam com
lenha tirada dos navios e outros no meio da cidade de maneira ainda mais
cruel, porque esse fogo era feito com lenha muito úmida, produzia muito mais
fumaça do que chamas. Arrastavam a outros com cordas pelas ruas e praças
públicas e se enfureciam de tal modo contra eles, que sua morte não lhes
satisfazia à raiva e eles ainda os pisavam, despedaçavam-lhes os corpos, de
modo que nada restava para ser sepultado, quando mesmo se lhes tivesse
querido prestar aquele serviço.
Quando eles viram que o intendente da província, que teria podido
acalmar num momento tão grande agitação, a autorizava fingindo ignorá-la,
eles se tornaram ainda mais atrevidos e mais insolentes. Reuniram-se em
grupos, foram em massa aos oratórios que existiam em grande número em
várias partes da cidade, cortaram as árvores da vizinhança, destruíram
completamente alguns desses oratórios, e incendiaram outros, cujo fogo
destruiu também as casas das adjacências; esses incêndios destruíram os
escudos e as estátuas douradas, com as inscrições com que os imperadores
tinham honrado a virtude dos judeus e que deviam ser respeitadas. Nada,
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porém, era capaz de conter aqueles alucinados, porque em vez de temer um
castigo, eles sabiam que a raiva de Caio contra os judeus era tão grande, que
nada lhe era mais agradável do que vê-los tratados com tão espantosa
crueldade.
Para conquistar ainda mais as boas graças do soberano com novas
adulações, e oprimir-nos ainda mais seguramente para subverter sem receio
nossas leis, eles colocavam suas estátuas nos nossos oratórios, quando não os
podiam destruir, porque o grande número de judeus lhes impedia; a que
colocaram no principal desses oratórios estava colocada sobre um carro puxado
por quatro cavalos de bronze. Nisso procederam com tanto ardor, que não
tendo cavalos recém-fundi-dos, foram buscar nos lugares de exercício alguns,
todo estropiados, que se dizia terem sido feitos outrora para a rainha Cleópatra,
última desse nome. Isso deveria ter ofendido a Caio, em vez de contentá-lo, pois
significava honras extraordinárias; mas quando mesmo esses cavalos tivessem
sido feitos recentemente, o terem servido para honrar a uma mulher, os tornava
indignos dele e se tivessem sido feitos para ele, eram demasiado imperfeitos
para lhe serem agradáveis. Mas eles julgavam merecer muito dele, mudando
esses oratórios em templos para aumentar o número dos que lhes eram
dedicados, embora não o fizessem tanto pelo desejo de lhe prestar essa
homenagem, como pelo extremo ódio contra nossa nação. Não é necessário
melhor prova do que durante trezentos anos do reinado de dez de seus reis, eles
não lhes consagraram estátuas naquelas capelas, embora os colocassem no
número de seus deuses e lhes dessem o nome. Mas haverá motivo de admira-
ção de que, embora eles soubessem com certeza que eram apenas homens, eles
os colocassem no número de seus deuses, pois adoravam cães, lobos, leões,
crocodilos e vários outros animais, tanto terrestres como aquáticos e aves, e
todo o Egito está cheio de Templos, de altares e de bosques consagrados à sua
honra?
Mas, como jamais houve maiores aduladores e eles consideram muito
mais a fortuna que a pessoa dos príncipes, eles responderão que talvez o poder
e a prosperidade dos imperadores romanos sobrepujam de muito a dos
Ptolomeus, e portanto, era prestarem-se-lhes as maiores honras. Que resposta
pode ser mais ridícula? Por que eles não prestaram honras semelhantes a
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Tibério, ao qual Caio é devedor do império, pois que esse príncipe reinou
durante vinte e três anos com tanta prudência e felicidade, que manteve até à
morte não somente as províncias gregas, mas as bárbaras, em profunda paz e
as fez gozar de toda espécie de bens? Era talvez sua origem inferior à de Caio?
Não a sobrepujava, talvez, tanto do lado paterno como do materno? Era-lhe ele
inferior em erudição? Que outro foi no seu tempo mais hábil e mais eloqüente?
Não tinha ele bastante idade e portanto bastante experiência? Que outro
imperador terminou seus dias em tão venturosa velhice e não se viu com
admiração que mesmo na sua juventude ele já tinha a capacidade que de
ordinário se adquire depois de um grande número de anos? Entretanto, vós não
julgastes que ele merecia que lhe prestásseis a mesma honra.
Que direi também desse admirável príncipe que parece se ter elevado, pela
grandeza de suas virtudes, acima da condição dos homens, que pela multidão
de seus benefícios e a felicidade de seu reinado mereceu por primeiro o glorioso
título de Augusto e sem tê-lo recebido de nenhum outro o transmitiu aos seus
sucessores? As terras opunham-se aos mares e os mares, às terras: a Europa
armada contra a Ásia, e a Ásia contra a Europa. Todos os grandes do império
estavam divididos para ver quem seria o senhor e podemos dizer que a raça dos
homens estava prestes a perecer por essa sangrenta e cruel guerra acesa ao
mesmo tempo em todos os lugares do mundo, quando em tão horrível tem-
pestade esse grande príncipe tomou nas mãos o leme, restituiu a calma toda a
terra, estabeleceu a abundância por meio do comércio, amenizou os costumes
das nações mais bárbaras, que podiam passar por livres, conservou a paz, fez
reinar a justiça e jamais deixou de espalhar a mãos-cheias favores sobre todos
os povos, até o fim da vida. Esse incomparável benfeitor viu durante quarenta e
três anos o Egito sujeito ao seu império, sem que lhe tenhais prestado a mesma
honra que a Caio, nem colocado sua estátua em nenhum dos oratórios dos
judeus, embora nenhum outro príncipe merecesse mais do que ele ser
reverenciado de maneira extraordinária, não somente porque ele é o autor da
augusta família imperial, mas porque tendo reunido nele esse soberano poder,
antes dividido e tendo dele usado com tanta moderação, ele cuidou da
felicidade pública, nada havendo de mais verdadeiro do que estas palavras de
um antigo: "O governo de vários é perigoso, por causa dos males que produz a
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diversidade de seus sentimentos". O exemplo dos outros povos a isso vos devia
mesmo obrigar, pois que de todas as partes lhe foram prestadas honras divinas
e em diversos lugares lhe foram consagrados Templos, tão grandiosos que não
podemos encontrar outros semelhantes em parte alguma, particularmente na
nossa Alexandria, tanto antigos como modernos, que os igualem? Pois, que
outro é comparável ao que traz por sua causa o nome de Sebaste, construído
perto do porto e tão reverenciado por aqueles que navegam? É tão espaçoso e
tão elevado que pode ser visto de muito longe: está todo cheio de admiráveis
estátuas e quadros, bem como de outros presentes enriquecidos de ouro e prata
que lhe foram oferecidos; nada se pode ver de mais magnífico do que seus
pórticos, seus vestíbulos, suas galerias, suas bibliotecas e nada de mais belo
que seus bois sagrados. Nesse concurso geral de todos os povos haverá algum
homem de bom senso que possa dizer que não se dava toda a honra devida a
Augusto, sem colocar suas estátuas nos oratórios dos judeus? Não, sem
dúvida; mas o que impediu que isso se fizesse foi que se sabia que aquele
admirável príncipe via com não menor prazer que cada qual vivesse segundo as
leis do seu país, ao que ele tinha cuidado em fazer observar as leis romanas, e
que as honras que lhe prestavam aqueles cegos adoradores não eram por ele
aprovadas, mas ele julgava que assim contribuíam para erguer ainda mais a
grandeza e a majestade do império. Quem melhor pode manifestar que ele não
se deixou arrebatar, nem transportar pela vaidade, por aquelas reverências
excessivas, que jamais quis tolerar que se lhe desse o nome de deus e de
senhor? E não somente rejeitou aquela adulação, mas demonstrou reprovar o
horror que nossa nação tinha por coisas semelhantes? Do contrário, como teria
ele permitido que judeus, dos quais a maior parte tinha sido libertada pelos
senhores, sob o poder dos quais a sorte das armas os havia reduzido, tivessem
ocupado em Roma aquela grande parte da cidade que está além do Tibre? Ele
não ignorava que tinham oratórios onde se reuniam para orar e principalmente
no dia de sábado; que eles arrecadavam as décimas para mandá-las a
Jerusalém e faziam oferecer sacrifícios. Entretanto, não os expulsou de Roma e
estava tão longe de lhes querer abolir a religião, suas leis e seus costumes, que
ele fez ricos presentes ao nosso Templo e ordenou que lá se imolassem todos os
dias em holocausto, vítimas ao Deus Todo-poderoso: o que se faz ainda hoje,
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sempre se há de observar e será para sempre um sinal da virtude desse
incomparável imperador. Ele quis também que os judeus fossem incluídos na
distribuição pública de dinheiros e de trigo, que se fazia ao povo em certos
meses; se caísse ela em dia de sábado, nos quais não lhes é permitido agir, nem
receber alguma coisa, principalmente para sua utilidade, punham-lhes a
porção de lado, para que a recebessem no dia seguinte. O que os tornava tão
importantes entre as outras nações que ainda naturalmente elas não lhes
fossem favoráveis, não ousavam perturbá-los na observância de suas leis.
Tibério tratou-os do mesmo modo que Augusto, embora Sejam tudo
fizesse para procurar perdê-lo por meio de calúnias, especialmente os que
moravam em Roma, porque ele sabia que eles eram incapazes de entrar em sua
detestável conjuração contra seu senhor; o soberano ordenou em seguida a
todos os governadores das províncias que exceto alguns em número muito
pequeno, que tinham entrado nessa conjuração, tratassem bem a todos os
outros, sem obrigá-los a alguma modificação em seus costumes, porque eles
eram naturalmente inclinados à paz e nada faziam em suas leis nem em seus
costumes de contrário à tranqüilidade pública.
CAPÍTULO 10
CAIO, ESTANDO JÁ TÃO ENRAIVECIDO CONTRA OS JUDEUS DE ALEXANDRIA,
ENCONTRA UM EGÍPCIO CHAMADO
 H ELICOM, QUE TINHA SIDO ESCRAVO,
E SE ENCONTRAVA ENTÃO EM INVEJÁVEL POSIÇÃO JUNTO DELE,
E IRRITA -O POR MEIO DE CALÚNIAS.
Caio chegou então ao máximo da vaidade e da loucura, dizendo não
somente que ele era deus, mas acreditava-o e não encontrou povo algum, nem
entre os gregos nem mesmo entre os bárbaros, mais próprios, que o de
Alexandria, para satisfazer ao seu desejo, nessa idéia extravagante. Nenhum
outro povo é mais falso do que esses habitantes, mais astutos, mais
aduladores, nem tem tão pouco respeito pelo nome de Deus, pois não fazem
dificuldade em dá-lo a íbis, às serpentes e aos outros animais. Assim, como eles
são pródigos dessa honra, facilmente enganam aos outros que não sabem qual
a impiedade dos egípcios, que lhes é impossível enganar os que a conhecem e a
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detestam. Caio, desconhecendo-lhes então a malícia, estava persuadido de que
era de verdade e não por fingimento, que eles o julgavam um deus, porque o
declaravam em voz alta e com todas as aclamações de que usam para
demonstrar respeito para com os deuses; além de que considerava como provas
de seu zelo os sacrilégios que eles tinham cometido naqueles oratórios e não
havia poemas nem histórias que ele não lesse com tanto prazer, como as
relações que lhe eram mandadas do que estava acontecendo sobre aquele
assunto. Os seus domésticos que viviam preocupados em louvá-lo ou em
censurá-lo em tudo o que lhes agradava ou desagradava, para isso ainda
contribuíam; destes, a maior parte eram egípcios e infelizes escravos, educados
desde a infância naquele erro abominavel, que os fazia adorar como deus
serpentes e crocodilos. O chefe desse detestável grupo era um celerado de nome
Helicom, que por maus meios se tinha introduzido no palácio. Tinha alguma
noção das letras e aquele de quem antes tinha sido escravo e que lhas havia
ensinado tinha-o dado a Tibério. Mas o príncipe não fizera grande caso dele,
porque a maneira como tinha sido educado em sua juventude o tinha feito
grave e severo, e o fazia desprezar as coisas pouco sérias. Quando depois de
sua morte Caio sucedeu-o no império, aquele espírito perigoso, vendo que não
havia voluptuosidade ou desregramento a que ele não se deixasse levar, disse
consigo mesmo: "Eis um tempo, Helicom, que não te podia ser mais favorável;
nada deixes então para procurar aproveitá-lo o mais possível. Tu tens um
senhor tal como o poderias desejar. Ele te escuta; tu lhe agradas: tu tens o
espírito flexível; és excelente na astúcia; os jogos, os gracejos e as ninharias,
que lhe podem causar prazer são teu elemento. Tu és instruído nas ciências
liberais e nas outras também. Não sabes somente agradar por tuas adulações,
mas também por palavras cuja malícia tanto mais perigosa quanto mais oculta
suscita a suspeita e a cólera contra os que queres prejudicar, quando teu
senhor está com vontade de te ouvir, e o está quase sempre, tanto está disposto
a dar ouvidos a maledicências e as calúnias. Não tens necessidade de pores em
aflição para encontrar um motivo, para isso os judeus te fornecerão amplo
material. Só tens que clamar contra suas leis e seus costumes, e é o que
aprendeste deste sua meninice, não somente de alguns particulares, mas de
quase todo o povo de Alexandria. Mostra então que sabes fazer".
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Helicom, cheio destes pensamentos, não abandonava Caio, nem de dia
nem de noite, e nas horas mais particulares de seus divertimentos e prazeres
não perdia ocasião alguma de irritá-lo contra os judeus por meio de
imposturas, que faziam tanto mais efeito quanto eram ditas de maneira
agradável e delicada. Ele não queria passar por inimigo, mas agia com astúcia e
habilidade e fazia-lhes assim muito mais mal do que se se manifestasse
abertamente e mostrasse seu ódio contra eles.
Quando os embaixadores dos habitantes de Alexandria, que nos tinham
sempre declarado tão cruel guerra, souberam quanto esse infeliz homem lhes
era útil, não somente lhe deram dinheiro, mas ainda prometeram-lhe grandes
honras, logo que o imperador tivesse chegado a Alexandria, pois sabia-se que
ele devia chegar em breve! Tudo então ele lhes prometeu, tanto se alegrava com
o pensamento do prazer que sentiria em receber honras na presença dos
embaixadores, que não deixariam de vir de todas as partes do mundo para
aquela soberba cidade prestar suas homenagens àquele príncipe.
Como não sabíamos ainda que tínhamos na pessoa de Helicom um
inimigo tão perigoso, só pensávamos em nos defender contra aqueles, dos quais
não podíamos duvidar de que o fossem realmente. Mas, depois que o soubemos,
usamos de todos os meios possíveis para procurar acalmá-lo e conquistá-lo.
Nenhum outro nos causava mais mal e não no-lo poderia fazer ainda mais, pois
ele estava em todos os jogos, em todos os divertimentos, em todos os banquetes
e em todas as licenciosidades de Caio; seu cargo de mordomo de quarto, que
era um dos principais do palácio, dava-lhe azo de desconsiderar a todo
momento e seu amo sentia grande prazer em escutá-lo. Ele deixou todas as
outras preocupações para só pensar em nos fazer mal com suas calúnias,
misturando-as com boas palavras, de maneira tão agradável sob o pretexto de
divertir a Caio e aparentemente sem má intenção, mas na realidade para nos
perder; tal impressão fizeram em seu espírito que jamais se pôde apagar.
CAPÍTULO 11
OS JUDEUS DE A LEXANDRIA MANDAM A CAIO UMA EMBAIXADA PARA
FALAR-LHE DE SEUS SOFRIMENTOS;
 FÍLON ERA O CHEFE DESSA EMBAIXADA .
CAIO RECEBE-O DE MANEIRA QUE PARECIA MUITO FAVORÁVEL. MAS FÍLON
JULGOU BEM QUE NÃO PODIA CONFIAR NELE.
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Depois de termos feito todo o possível para tornarmos Helicom favorável a
nós, vendo que trabalhávamos inutilmente, porque ele era tão insolente e tão
cheio de si que ninguém ousava aproximar-se dele, não sabendo além disso se
ele tinha algum ódio pessoal e particular contra nós, que o levasse a irritar o
imperador para nos perder, julgamos dever tomar outro caminho e resolvemos
apresentar um pedido ao príncipe para informá-lo de nossos sofrimentos, o
qual continha em resumo o que nós tínhamos escrito mais detalhadamente
num memorial mandado pouco antes ao rei Agripa, quando ele viera a
Alexandria, para ir à Síria tomar posse do reino que Caio lhe havia dado. Assim,
partimos para Roma na persuasão de encontrar na pessoa do imperador um
justo juiz, quando nele tínhamos o mais mortal dos inimigos. Ele nos recebeu
no campo de Marte, ao sair dos jardins de sua mãe, com um rosto alegre e
palavras afáveis; fez-nos sinal com a mão, de que nos seria favorável e nos
mandou em seguida a Homus, introdutor dos embaixadores, para que tomasse
conhecimento de nosso assunto. Assim, não havia um só dos que estavam
presentes, nem mesmo dos de nossa nação, que conheciam bem as coisas, que
não julgasse que nossa embaixada seria bem-sucedida, como podíamos desejar
e todos se alegravam conosco. Mas minha idade e o conhecimento que eu tenho
das coisas do mundo faziam-me mais capaz de julgar e o que alegrava aos
outros era-me suspeito, porque eu raciocinava assim: "Como é possível que
havendo aqui embaixadores de todas as partes da terra, nós somos os únicos
aos quais o imperador mandou dizer que daria audiência? Não sabe ele que
sendo judeus, nós ficaríamos assaz contentes se ele nos tratasse como os
demais? Poderíamos pretender sem loucura, favores particulares, de um
príncipe que não é da nossa nação, duvidar de que ele não tenha mais simpatia
pelos de Alexandria do que por nós e não crermos que é somente para
obsequiá-los que ele quer se apressar em apressar o seu parecer? Praza a Deus
que em vez de ser nesse assunto um justo juiz, ele não fosse o protetor deles e
nosso inimigo!"
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CAPÍTULO 12
FÍLON E SEUS COLEGAS SABEM QUE CAIO TINHA ORDENADO A PETRÔNIO,
GOVERNADOR DA
 SÍRIA, DE MANDAR COLOCAR SUA ESTÁTUA
NO
 TEMPLO DE JERUSALÉM.
Estando eu ocupado com estes pensamentos que não me davam
descanso, nem de dia nem de noite, sobreveio uma outra desgraça que não
teríamos podido prever e que não importava somente na ruína de uma parte de
judeus, mas que de toda a nação, acabou por me deixar aniquilado. Nós
tínhamos seguido o imperador a Puteolo, onde viera divertir-se à beira-mar; ele
passava o tempo em casas de recreio muito suntuosas e que aí existiam em
grande número, em nada pensava, menos ainda em tomar conhecimento dos
nossos interesses, que nos haviam obrigado a segui-lo e nem que esperávamos
a todo momento o seu juízo. Um homem então chegou com o rosto perturbado,
olhos esbugalhados, mal podendo respirar. Chamou alguns à parte e disse:
"Não soubestes da terrível notícia?" Ele queria continuar, mas os soluços
embargaram-lhe a voz e por mais que quisesse falar, não pôde fazê-lo. Pode-se
julgar do nosso espanto e de nossa surpresa. Rogamos-lhe que nos revelasse a
causa da sua aflição, pois não havia motivo para que ele tivesse vindo apenas
para chorar diante de nós e se o assunto merecia tantas lágrimas, era bem
justo que, estando tão acostumados a sofrer, como estávamos, misturássemos
as nossas com as suas. Ele então fez um novo esforço e disse entre suspiros
que lhe entrecortavam as palavras: "Está decretada a ruína do nosso Templo. O
imperador ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário e que se
escrevesse na coluna o nome de Júpiter". Tão espantosa notícia deixou-nos
quase petrificados, pois nos foi a mesma quase imediatamente confirmada, por
outros. Retiramo-nos e nos encerramos em nossos aposentos para chorarmos a
ruína particular e geral de nossa nação; como a dor é eloqüente que não nos fez
ela dizer?
Assim, depois de nos termos exposto ao mais rigoroso inverno e aos
perigos de tão difícil navegação, para procurar algum alívio aos nossos
sofrimentos, encontramos em terra uma tempestade muito mais cruel do que a
do mesmo mar, porque estas são naturais, e por conseguinte suportáveis, ao
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passo que aquela era causada por um homem que de homem só tinha a
aparência, por um jovem monarca que só desejava perturbação e agitação, e
que vendo seus desejos obstados por todas as forças do império, deixava-se
levar sem impedimento algum a uma tirania desenfreada, o que era um mal
tanto maior quanto não havia remédio! Quem teria a coragem de lhe dizer que
ele não devia violar a santidade do mais augusto dos Templos? Poder-se-ia, sem
perder a vida, opor-se por demonstrações à torrente de tão grande impiedade?
Morramos, então, dizíamos, pois que nada nos pode ser mais glorioso do que
dar a vida pela defesa de nossas santas leis. Mas nossa morte não poderá
produzir nenhum efeito bom e sendo embaixadores como somos, não seria isso
aumentar ainda a aflição dos que nos mandaram e dar motivo às pessoas de
nossa nação, que nos apreciam, de dizer que para nos livrarmos dos males
presentes, em tais perigos, faltamos à república, embora os menores interesses
devam ceder aos maiores e os particulares, aos públicos, porque, na
perturbação de um Estado, todas as leis que lhe tinham conservado a grandeza
e a existência perecem com ele? Não poderiam também imputar-nos como
crime abandonarmos os direitos dos judeus de Alexandria e deixarmos um as-
sunto, no qual se trata da ruína de toda nação, pelo motivo que dá, de temer
que um príncipe tão violento e tão cruel não a queira destruir completamente?
E se alguém disser que se se tomar um destes dois partidos, não se poderia daí
tirar alguma vantagem, podemos pensar em nos retirarmos em segurança: eu
respondo que, para fazer tal proposta, é preciso ou não ter ânimo ou ignorar
nossas divinas leis. Os que são verdadeiramente generosos jamais perdem a
esperança e nossos livros santos nos ensinam a conservá-la sempre. Deus quer
talvez servir-se dessa oportunidade para provar a nossa virtude e ver se
estamos dispostos a suportar com paciência as nossas amarguras. Assim, em
vez de procurar nossa salvação no auxílio incerto dos homens, ponhamos toda
nossa confiança em Deus, com firme certeza de que Ele nos ajudará como
outrora nos ajudou e a nossos antepassados, em tantos perigos que pareciam
fatais. Foi assim que nós procuramos nos consolar em um tão grande mal, tão
imprevisto, e nos iludíamos com a esperança de tempos mais felizes.
Depois de ter ficado em silêncio um instante, dissemos àquele que nos
tinha trazido a notícia: "Por que vos contentais de, por uma palavra ter lançado
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a perturbação em nosso espírito, como uma fagulha que causa um grande
incêndio e não nos dizeis o que levou o imperador a tomar tão estranha
resolução?"
"Ninguém desconhece," respondeu-nos, "que ele quer ser adorado como
Deus; como está persuadido de que os judeus são os únicos que se recusam a
reconhecê-lo como tal, julga não poder castigá-los e afligi-los mais do que
desonrando a majestade do seu Templo e profanando-lhe a santidade, que ele
sabe ser o mais belo do mundo e rico de inúmeros presentes, que lhe foram
feitos no decorrer de tantos séculos, além de que sendo empreendedor e ousado
como é, quer ainda dele se apoderar. Capitom, encarregado da arrecadação dos
tributos da judéia, o irritou ainda mais contra nós por cartas que lhe escreveu.
Como ele não tinha bens até então, quando foi enviado a essa província, ele se
enriqueceu pelas arrecadações que fez, e quis prevenir por meio de calúnias as
justas queixas que temia que os judeus fizessem dele, e serviu-se da
oportunidade de que vou falar.
"Jâmnia é uma das cidades da judéia das mais povoadas e todos os seus
habitantes são judeus, com exceção de alguns estrangeiros que aí vieram, para
nossa desgraça, morar, das províncias vizinhas. Sua aversão por nossos
costumes e leis é tão grande que procuram fazer-nos todo o mal possível e,
tendo sabido que Caio arde na louca paixão de ser honrado como um deus e
que ele concebeu para esse fim um ódio mortal contra nós, eles julgaram não
poder encontrar um tempo mais propício para nos perder. Assim, elevaram-lhe
um altar de tijolo, com esse único fim, porque eles sabem que jamais
permitimos que se violem desse modo as leis de nossos pais; sua malícia
produziu o efeito desejado. Os judeus destruíram esse altar e imediatamente
aqueles rebeldes foram queixar-se a Capitom, o autor da cilada, que tinham
armado aos seus concidadãos para lhes causar a ruína. Aquele malvado,
contente por ter conseguido o seu intento, não deixou de escrever a Caio e de
exagerar naquela ação, acrescentando muito à verdade, a fim de irritar ainda
mais o imperador. O príncipe presunçoso e violento apenas recebeu essa
comunicação, e determinou que em vez de um altar de tijolo se erigisse a sua
estátua de tamanho descomunal toda dourada e a colocassem no Templo de
Jerusalém.
 Nisso
 teve
 como
 conselheiros
 dois
 grandes
 e
 eminentes
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personagens. Helicom, ilustre comediante e cínico por excelência, e Apeles,
famoso artista, que depois de ter, ao que se diz, vendido sua beleza na
juventude, subiu ao palco, quando estava mais avançado em anos e sabemos
qual o pudor dos que abraçam essa profissão. Por essas excelentes qualidades,
esses dois homens chegaram a ser conselheiros de Caio. Ele seguia a um
quanto à maneira de bem se divertir, e ao outro, na maneira de bem recitar
seus versos, sem se importar de manter a paz no império e a tranqüilidade
pública. Helicom, sendo egípcio, fere-nos com uma língua viperiana; Apeles,
sendo ascalonita, é também nosso inimigo capital, e vomita contra nós todo o
seu veneno".
Cada uma das palavras daquele que nos fez esta relação era como uma
pu-nhalada, que nos penetrava no coração, mas esses dois detestáveis
conselheiros receberam bem depressa o castigo que merecia a sua impiedade.
Caio mandou prender Apeles com ferros nos pés, por outros crimes, e torturá-lo
na roda, de vez em quando, para aumentar e prolongar o seu suplício. Cláudio,
tendo sucedido a Caio no trono, também mandou matar a Helicom, por outras
razões.
CAPÍTULO 13
EXTREMA AFLIÇÃO EM QUE PETRÔNIO SE ENCONTRA COM RELAÇÃO À ORDEM QUE CAIO
LHE DERA, DE PÔR SUA ESTÁTUA NO
 TEMPLO DE JERUSALÉM, PORQUE ELE LHE
CONHECIA A INJUSTIÇA E VIA-LHE AS CONSEQÜÊNCIAS .
Caio escreveu, então, que se consagrasse e se pusesse sua estátua no
nosso Templo, e tudo fez para que essa ordem fosse cumprida. Ordenou a
Petrônio, governador da Síria, que tomasse a metade do exército que se
localizava ao longo do Eufrates, para se opor às tentativas dos reis e dos povos
do Oriente, a fim de acompanhar aquela estátua, não para lhe tornar a
consagração mais solene, mas para dizimar os judeus que tivessem a ousadia
de se opor aos seus inten-tos. É então, assim, cruel príncipe, que prevendo que
esse povo se exporia à morte, antes que permitir a violação de suas leis e a
profanação de seu Templo, vós lhe declarais guerra e mandais um exército
inteiro para consagrar vossa estátua com o sangue de tantas vítimas inocentes,
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sem poupar as mulheres não menos que os homens?
Essa ordem pôs Petrônio em grande aflição, porque de um lado ele sabia
que Caio não toleraria que se provocasse o menor atraso na execução de suas
ordens, e de outro, ele via-lhe a execução assaz difícil, porque os judeus
sofreriam mil mortes, antes que a subversão de sua religião. Ainda que todos os
outros povos tenham amor por suas leis, não são como os judeus. Eles
consideram as suas como oráculos que o mesmo Deus lhes outorgasse;
aprenderam-nas desde a infância, trazem-nas gravadas no coração e não se
cansam de admirá-las e recebem no número de seus cidadãos os estrangeiros
que as abraçam, consideram inimigos os que as desprezam e têm tal horror por
tudo o que lhes é contrário, que não há nem grandeza, nem fortuna, nem
felicidade temporal, que seja capaz de os levar a violá-las. Não precisamos
também de melhor prova de seu respeito e veneração pelo Templo, do que ser a
morte inevitável para os que ousam entrar no santuário: em todos os outros
lugares a entrada é livre, a todos os que são de sua própria nação, de qualquer
província eles venham.
Petrônio, passando e repassando estas coisas em sua mente, achava o
encargo tão ousado que não se apressou em executá-la: e mais ele agitava esse
assunto, mais se persuadia de que não se devia tocar no que se refere à
religião, quer porque a justiça e a piedade obrigam a nada se modificar, quer
por causa do perigo que havia, não da parte de Deus, mas da dos judeus, que
se deixariam levar ao desespero e ele considerava também a multidão do povo
daquela nação que não está, como os outros, reunido numa única província,
mas tão espalhado em tão grande número, quase por todo o mundo, tanto nos
continentes como nas ilhas, que pouco falta para que iguale o número dos
habitantes do lugar. Isso dava motivo a temores de que se reunindo de todas as
partes eles declarassem uma guerra, que não se poderia vencer, mesmo porque
então eles já eram muito fortes na Judéia e não menos hábeis do que valentes,
preparados para morrer empunhando as armas, com invencível coragem, antes
que abandonar suas leis, tão justas e excelentes, por mais que seus inimigos
queiram fazer passar por bárbaras. Esse sensato governador temia também os
daquela nação que residem além do Eufrates, em Babilônia e nas outras
províncias, porque ele sabia com certeza, vendo com seus próprios olhos, que
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eles mandavam todos os anos ao Templo, sob o nome de primícias, o dinheiro
que diziam sagrado, sem temer o perigo das estradas por maiores que fossem,
porque eram levados por um dever de piedade. Assim, ele temia com razão, que
apenas soubessem da consagração da estátua, eles se poriam em campo e o
rodeariam de todos os lados.
Esses pensamentos detinham-no, mas outros comentários punham a
agitação e a perturbação em seu espírito quando ele se recordava de que seu
senhor era um jovem príncipe que só conhecia a justiça da sua vontade e não
tolerava que o desconhecessem, por mais injustas que fossem as suas ordens e
cujo orgulho e presunção chegavam a tal excesso de loucura, que o faziam
esquecer de que ele era homem, para passar por Deus; e assim ele não podia
executar a ordem que lhe dera, sem correr risco de vida, com esta diferença,
que a poderia salvar na guerra cujos eventos são duvidosos, ao passo que não
podia não perdê-la, se se recusasse obedecer ao soberano.
CAPÍTULO 14
PETRÔNIO MANDA TRABALHAR NA EXECUÇÃO DA ESTÁTUA, MAS
LENTAMENTE ; ESFORÇA-SE EM VÃO POR PERSUADIR OS PRINCIPAIS DOS
JUDEUS A RECEBÊ-LA.
 TODOS ABANDONAM AS CIDADES E OS CAMPOS PARA
IR PROCURÁ-LO E ROGAR-LHE QUE NÃO EXECUTASSE AQUELA ORDEM QUE LHES
ERA MAIS INSUPORTÁVEL QUE A MESMA MORTE, MAS LHE PERMITISSE
MANDAR EMBAIXADORES AO IMPERADOR.
Os oficiais romanos que tinham mais relações com Petrônio nos assuntos
da Síria inclinavam-se para a solução da guerra; conheciam o furor de Caio e
não duvidavam de que se se recusassem a cumprir suas ordens, ele
descarregaria imediatamente sobre eles toda a sua cólera, certo de que eles
também tinham tido parte na desobediência. Mas aconteceu, por felicidade, que
tiveram oportunidade de deliberar, enquanto preparavam a estátua, porque ela
não lhes seria mandada da Itália; creio que Deus o permitiu para salvar seu
povo, como também não havia ordem expedida, para tomar na Síria a mais bela
das que lá se encontravam. Sem isso, a guerra já se teria iniciado, antes que se
tivesse podido encontrar algum remédio para tão grave mal.
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Petrônio, depois de ter deliberado mandar fazer a estátua, mandou buscar
os mais hábeis escultores da Fenícia, deu-lhes o material e escolheu Sidom
como o lugar mais próprio parta o trabalho. Mandou em seguida os mais
ilustres dos sacerdotes dos judeus e de seus magistrados comunicar-lhes a
vontade do imperador, exortou-os a obedecer, para não serem feridos pelas
desgraças que do contrário lhes seriam inevitáveis, pois as principais forças do
exército da Síria estavam prontas para atacá-los e obrigá-los, se eles se
recusassem a obedecer. Petrônio estava certo de poder persuadi-los e assim
eles persuadiriam o resto do povo, mas enganou-se. Aquelas palavras
impressionaram-nos profundamente e a princípio ficaram petrificados, mas
depois desataram em lágrimas; arrancaram a barba e os cabelos, e disseram
com uma voz intercalada de suspiros: "Vivemos então até esta hora para ver o
que nenhum dos nossos antepassados jamais viu? Como poderíamos ver, se
perderemos os olhos com a vida, antes que sermos espectadores de tão horrível
impiedade?"
Essa notícia espalhou-se em Jerusalém e em toda a Judéia e todos
deixaram imediatamente as cidades e os campos, como se agissem de comum
acordo, para ir à Fenícia encontrar-se com Petrônio. Aquela inumerável
multidão fez pensar aos que não sabiam como a Judéia era populosa, que era
um grande exército que vinha atacar Petrônio, e deram-lhe imediatamente
aviso; mas suas armas eram apenas gemidos e gritos que faziam reboar o
espaço com tão grande barulho, o qual não cessou nem mesmo quando eles os
retiveram, para se entregar aos rogos que o excesso da dor lhe trazia aos lábios.
Estavam distribuídos em seis grupos, três de um lado, em que estavam os
velhos, os moços e as crianças e três do outro, onde estavam as mulheres
idosas, as senhoras e as virgens.
Quando se aproximaram de Petrônio, que apareceu num lugar elevado,
todos se lançaram por terra soluçando tanto, que nada podia ser mais
comovente; embora ele lhes ordenasse que se levantassem e se aproximassem,
com dificuldade a isso se resolveram. Vieram por fim, com a cabeça coberta de
cinzas, os olhos marejados de lágrimas, e as mãos às costas como condenados
à morte: um dos Senadores falou em nome de todo o povo, a Petrônio, nestes
termos:
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"Para eliminar todo pretexto, senhor, de nos acusarem de ter alguma má
intenção, nós viemos sem armas, não somente, mas sem nem mesmo nos
querermos servir de nossas mãos, que são armas, dadas pela natureza aos
homens; nós nos apresentamos para que nos trateis como quiserdes. Deixamos
nossas casas desertas, para trazer conosco nossas esposas e filhos, a fim de
unirem suas preces às nossas e rogar ao imperador, por vosso intermédio, ou
que nos conserve a todos, ou que nos faça morrer a todos. Amamos
naturalmente a paz e a ela somos tanto mais inclinados, quanto nosso maior
prazer é educar nossos filhos no trabalho e para isso ela nos dá a oportunidade.
Quando Caio subiu ao trono e nós soubemos por suas cartas a Vitélio, que
então estava em Jerusalém, ao qual vós sucedestes, demonstramos-lhe nossa
alegria e foi por nosso meio que essa notícia se espalhou em todas as outras
cidades. Nosso Templo foi o primeiro onde por esse fim se ofereceram
sacrifícios, para desejar ao nosso soberano um feliz reinado. Seria justo que ele
fosse o único onde se aboliria a religião, que há tanto tempo ali é observada?
Nós abandonamos nossas casas, nossos bens e tudo o que possuímos. A única
coisa que pedimos é que nada se modifique no nosso Templo, mas que ele
permaneça no mesmo estado em que nossos pais no-lo deixaram. Se nos
recusardes esse favor, tirai-nos também, então, a vida; ser-nos-á muito mais
suave perdê-la, do que vermos violar nossas santas leis. Sabemos que se
preparam grandes forças para nos atacar, se nos opusermos a essa ordem, mas
nós não somos tão imprudentes em querer resistir ao nosso soberano.
Sofreremos antes a morte do que conceber tal idéia. Podem nos matar, fazer-
nos em pedaços sem correr perigo, porque não nos defenderemos. Faremos nós
mesmos o ofício de sacerdotes, imolando no Templo como vítimas, nossas
esposas, nossos filhos, nossos irmãos; e depois de termos derramado seu
sangue inocente, derramaremos também o nosso, para misturá-lo com o deles,
matando-nos com nossas próprias mãos; exalaremos nossos últimos suspiros
rogando a Deus que não no-lo impute o crime, pois o fizemos somente para não
faltar ao nosso dever para com o imperador e também à observância de nossas
leis. Mas, antes de chegarmos a esse extremo, nós vos pedimos, senhor, que
nos concedais um pouco de tempo para mandarmos uma embaixada ao
imperador. Talvez obtenhamos dele que não nos perturbe, na honra que
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devemos a Deus e no exercício de nossa religião, e não nos reduza à condição
pior do que a das outras nações, a que ele deixa liberdade de viver, segundo
seus antigos costumes e confirme os decretos de Augusto e de Tibério, seus
predecessores, que bem longe de censurar nosso proceder e de encontrar algo
de prejudicial em nossos costumes, aprovaram-nos inteiramente. Talvez nossas
palavras e razões aplaquem sua cólera; a ira dos príncipes passa e sua vontade
nem sempre é a mesma. Foi por meio de calúnias que atraíram a ira do
imperador
 contra
 nós;
 permiti-nos,
 por
 favor,
 que
 nos
 justifiquemos,
mostrando-lhe toda a verdade; e que haveria de mais rude do que condenar-nos
sem nos ouvir antes? Se nada pudermos obter dele, quem lhe impedirá de fazer
então o que ele agora pretende? Mas não nos tireis, senhor, pela recusa, essa
permissão, a única esperança que nos resta e a tão grande multidão de pessoas
que só vos pedem esse favor, por um sentimento de piedade, que é verdade, que
nenhum outro interesse, pode ser tão grande como o que se refere à própria
salvação".
CAPÍTULO 15
PETRÔNIO, COMOVIDO PELAS RAZÕES DOS JUDEUS E JULGANDO QUE NÃO SE DEVIAM
MESMO REDUZI-LOS AO DESESPERO, ESCREVEU A
 CAIO DE UMA
MANEIRA QUE PROCURAVA GANHAR TEMPO.
 O CRUEL PRÍNCIPE ENFURECE-SE, MAS ELE
DISSIMULOU SUA RAIVA ESCREVENDO EM RESPOSTA A
 P ETRÔNIO.
Essas palavras foram acompanhadas de tantas lágrimas e suspiros, que
encheram de compaixão a todos os que as ouviram e particularmente Petrônio,
que era naturalmente afável e moderado. O pedido feito em nome de todo o
povo parecia-lhe justo e jamais nada foi mais deplorável do que o estado em que
o viam reduzido. Petrônio tratou do assunto com seus conselheiros e ficou
satisfeito por ver que aqueles que antes eram os mais rigorosos começavam a
ceder, e que os outros não dissimulavam sua comoção pela sorte e pela aflição
daquele povo. Assim, embora ele não desconhecesse a crueldade de Caio e de
como jamais ele perdoava, parecia agir levado pela piedade de nossa religião,
quer porque sendo homem de letras já há muito a conhecia, quer porque depois
a conhecera desde que assumira o cargo de governador da Ásia e na Síria, onde
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há um grande número de judeus, quer porque pelo seu natural se inclinasse a
tudo o que é justo e razoável, ou quer ainda, porque Deus dá ordinariamente
bons sentimentos aos homens de bem, para que deles se sirvam em próprio
proveito e para o do público, como aconteceu nessa ocasião. A resolução foi
então tomada, de fazer os escultores não se apressarem, mas ordenar-lhes que
trabalhassem com calma, para tornar o próprio trabalho o mais perfeito
possível, para que se lhe pudesse dar o nome de obra-prima e porque os
trabalhos feitos às pressas duram pouco, ao passo que os que são demorados
na execução, passam pelos mais apreciáveis de século em século. Petrônio não
permitiu aos judeus mandar legados ao imperador, porque ele julgava que lhes
não seria vantajoso, nem deveriam depender do capricho do soberano, mas não
lhes recusou o que pediam, porque via perigo numa e noutra coisas; escreveu,
porém, a Caio, sem lhe falar do pedido que lhe tinham feito e se contentou em
atirar a culpa do atraso da consagração daquela estátua sobre os operários que
tinham necessidade de mais comodidade para fazê-la digna dele. julgou assim
poder ganhar tempo, e talvez Caio se deixasse comover porque estava próxima a
ceifa e havia motivo de se temer que os judeus, não fazendo caso da vida,
depois da subversão de suas leis, queimassem eles mesmos seus campos de
trigo bem como todas as árvores, o que se devia tanto mais temer, quanto se
dizia que Caio estava para vir a Alexandria. Não havia probabilidade alguma de
que ele se quisesse expor aos perigos do mar com um grande séquito, e era
muito mais verossímil que ele passaria por terra ao longo das costas da Síria e
da Ásia, onde poderia embarcar e desembarcar quando quisesse e onde, no
meio daqueles navios, havia duzentos barcos longos, próprios para lhe trazer os
víveres e a forragem, que lhe eram necessários, para reunir em grande
nuantidade. em todas as cidades da Síria e particularmente as marítimas, por
causa da infinita multidão de povos de todas as condições que viriam procurá-
lo, tanto da Itália como de todas as outras partes do mundo.
Não se duvidava de que aquela carta seria agradável a Caio e de que ele
louvaria mesmo aquele atraso, não em consideração aos judeus, mas para
poder reunir muitos viveres e assim ela foi escrita e mandada. Mas a cólera do
cruel príncipe acendeu-se de tal modo ao lê-la, que seus olhos faiscavam de
furor; e ele disse batendo as mãos: "Ora, Petrônio! Ainda não aprendestes a
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obedecer ao vosso imperador? Vossos grandes feitos vos enchem de vaidade e
parece que conheceis a Caio só de nome. Mas em breve o conhecereis por vossa
própria experiência. Considerais então mais as leis dos judeus, que são meus
inimigos mortais, do que as ordens do vosso soberano? Temeis seu grande
número como se não tivésseis um exército valoroso em todo o Oriente temido
mesmo ao rei dos partos, e vossa compaixão por esse povo é mais poderosa em
vosso espírito que o desejo de me obedecer e de me agradar? Tomais como
pretexto a necessidade de fazer a colheita para fornecer-me viveres, para a
viagem que eu me preparo para fazer, como se eu não o pudesse obter das
províncias vizinhas e elas não fossem capazes de me fornecer por sua
abundância, ante a esterilidade da Judéia. Mas, por que esperar mais e
empregar o tempo em palavras inúteis? Será pela morte desse atrevido que lhe
deveremos mostrar a magnitude de sua falta e que minha cólera não se acalme
e diminua, ainda que eu deixe de ameaçá-lo".
O furioso soberano em seguida respondeu a Petrônio, mas como ele tinha
medo dos governadores, que eram capazes de suscitar uma revolução e
particularmente os que governavam províncias tão distantes e poderosas como
aquela extensão de terras que está ao longo do Eufrates, e que tinha também
grande tropas, como as da Síria, ele ocultou sua raiva no coração, louvou sua
prudência e sua previdência e ordenou-lhe somente que não perdesse tempo
para fazer consagrar aquela estátua, pois que a ceifa, podendo então ser feita,
não havia mais motivo de se adiar.
CAPÍTULO 16
O REIAGRIPA VEM A ROMA E, TENDO SABIDO DO PRÓPRIO CAIO QUE ELE
QUERIA MANDAR COLOCAR SUA ESTÁTUA NO
 TEMPLO DE JERUSALÉM,
DESMAIA.
 DEPOIS DE SE TER REFEITO DAQUELA FRAQUEZA E DO ESPANTO
QUE SE LHE SEGUIU, ELE ESCREVE PARA O PRÍNCIPE.
Pouco depois, o rei Agripa chegava sem de nada saber, nem da carta de
Petrônio, nem da resposta de Caio e quando foi saudá-lo, não teve dificuldade
em perceber pela maneira como o recebeu, que ele ardia de cólera em seu
coração. Procurou recordar-se para ver se havia feito alguma coisa que lhe
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pudesse desagradar e nada encontrando, julgou, como era verdade, que não era
contra ele, mas contra algum outro, que ele estava irritado. Entretanto,
notando que aquela agitação lhe transparecia no rosto, quando olhava para ele,
seu temor continuava e muitas vezes vinha-lhe à mente perguntar-lhe a causa,
mas continha-se, de medo de atrair sobre ele por uma imprudente curiosidade,
a cólera que o soberano podia ter contra outros.
Como ninguém mais que Caio penetrava o pensamento dos homens, ele
logo percebeu o temor de Agripa e disse-lhe: "Quero vos esclarecer o que
desejais saber. Vós me conheceis muito bem para ignorar que eu não falo
menos com os olhos do que com a língua. Os homens de bem de vossa nação
são os únicos de todos os homens que não me querem reconhecer como deus e
que parecem correr voluntariamente para sua ruína, pela recusa em obedecer à
ordem que dei, de colocar no seu Templo a estátua de Júpiter. Eles se reuniram
de todas as cidades e dos campos para vir a mim, aparentemente, como
suplicantes, mas para demonstrar-me na realidade o desprezo que têm por
minhas ordens". Ele queria continuar a falar, mas Agripa, tocado de uma dor
violenta, retirou-se para cair, desmaiado, se não o tivessem amparado.
Levaram-no ao seu apartamento e ele ficou por muito tempo sem conhecimento
algum.
O estado em que se encontrava o príncipe aumentou ainda mais a ira de
Caio contra nossa nação. "Se Agripa", dizia ele, "que sempre tanto me amou e
que me deve tantos benefícios, tem tão forte amor aos costumes de seu país,
que não pôde suportar que a eles se desobedeçam, por pouco que seja, pois o
que eu lhe disse pareceu custar-lhe a vida, que deverei esperar dos outros
judeus, aos quais nenhuma consideração leva a renunciar, para inclinar-me, eu
aos seus sentimentos?"
Durante todo o resto do dia e uma parte do dia seguinte, Agripa caiu em
tal delírio que não podia voltar a si. Por fim, à tardinha, ele ergueu um pouco a
cabeça e abrindo os olhos, com grande dificuldade, lançou-os sobre os que
estavam em redor dele, mas não os reconheceu. Recaiu depois em seu desmaio.
Sua respiração, porém, era mais livre. Algum tempo depois ele despertou,
dizendo: "Onde estou? E em casa do imperador? Ele está presente?" "Coragem,
senhor", responderam-lhe, "estais em nossa casa, e o imperador não está aqui;
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dormistes demais; despertai agora, por favor, e fazei algum esforço para nos
reconhecer. Somos aqui todos amigos, vossos domésticos, vossos libertos, que
vós amais e vos amam mais que a própria vida". O soberano, então, voltou a si
e percebeu em seus rostos a impressão que seu mal lhes tinha feito no coração.
Os médicos mandaram sair a maior parte dos que estavam no quarto, para lhe
dar algum remédio e alimento. Ele, então, disse: "Não penseis em me dar
alimentos delicados. Basta-me na aflição em que estou, que me impeçais de
morrer de fome. Eu não me poderia mesmo resolver a comer, se não me
restasse alguma esperança de ajudar minha nação em tal e tão grande
desgraça". Acompanhou estas palavras com lágrimas, tomou somente o que lhe
era absolutamente necessário para manter a vida, e não quis mesmo permitir
que lhe misturassem uma só gota de vinho na água que ele bebeu. "Deram ao
meu corpo", disse depois, "o que ele precisava apenas para não morrer, que me
resta agora, senão fazer todo o esforço possível junto do imperador, para
procurar demovê-lo dessa grande tempestade?" Pediu então tabuinhas e
escreveu esta carta ao príncipe.
"O respeito e o temor impediram-me, senhor, de me apresentar diante de
vós. O brilho de vossa majestade me deslumbra e vossas ameaças me
assustam. Uma carta vos exprimirá melhor minha mui humilde oração, mais do
que eu poderia fazer de viva voz. Sabeis, grande príncipe, que a natureza gravou
no coração de todos os homens um ardente amor pela pátria e uma singular
veneração pelas leis que eles receberam de seus antepassados, como vós bem
manifestais por vossa afeição por uma e pelo cuidado que tomais em fazer
observar as outras. Essa inclinação que nasce conosco é tão forte que não há
povo ao qual suas leis não pareçam justas, embora não nos sejam de fato,
porque delas se julga mais pelo respeito que se lhes tem do que pela razão.
"Bem sabeis, senhor, que eu sou judeu, nascido em Jerusalém, onde está
esse santo Templo, consagrado em honra do Deus Todo-poderoso. Eu tive por
antepassados os reis desse país. Alguns deles foram soberanos sacerdotes e
estimaram mais essa dignidade do que a própria coroa, porque estavam
persuadidos que tanto quanto Deus está acima dos homens, tanto o sacerdócio
está acima do trono; as funções de um têm por objeto as coisas divinas, ao
passo que o poder que o outro dá só se refere às coisas humanas.
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"Como eu me encontro, senhor, ligado por tantos liames àquela nação, a
essa pátria e a esse Templo, eu não poderia recusar ser-lhes medianeiro e
intercessor junto de vós. Peço-vos, então, por minha nação, de não permitir que
ela seja obrigada a sentir diminuir o seu zelo por vós. Nenhum outro povo em
toda a Europa e toda a Ásia nunca demonstrou tanto por vossa augusta família
imperial, em tudo o que sua religião e suas leis podem permitir. Ele não
somente faz seus votos e sacrifícios para vossa prosperidade e a de vosso
império, nas festas públicas e solenes, mas fá-lo todos os dias, o que demonstra
que não é com simples palavra e falsas aparências, mas de fato e do fundo do
coração, que ele demonstra tão sincero afeto por seus imperadores.
"Quando à cidade santa, onde vi a luz do dia, posso dizer que não
somente ela deve ser considerada como a capital da Judéia, mas ela o é ainda
de vários outros países, por causa das tantas colônias que ela povoou no Egito,
na Fenícia, na Síria Superior e Inferior, na Panfília, na Cilícia, em várias outras
partes da Ásia, até a Bitínia e mais além, no Ponto. Na Europa, a Tessália, a
Beócia, a Macedônia, a Etólia, Atenas, Argos, Corinto, com a maior parte do
Peloponeso e mesmo as ilhas Célebres, como a Eubéia, Chipre e Cândia. Que
direi também dos países de além do Eufrates, onde exceto uma parte da
província de Babilônia e de alguns governos, todas as cidades situadas em
regiões férteis são habitadas por judeus? Assim, se o país de onde tenho minha
origem encontrar graça diante de vós, vós não favoreceis, senhor, uma só
cidade, vós beneficiareis um mui grande número de outras, espalhadas por
todas as partes do mundo e é uma coisa digna da grandeza de vossa fortuna,
participando do favor que ela vos dever, não haverá lugar em toda a terra onde
não brilhe a vossa glória e onde não ressoem os louvores e as ações de graças
que vos serão devidas.
"Vós tendes, em favor de alguns de vossos amigos, concedido a cidades
inteiras o direito de burguesia romana, e assim elevastes acima dos outros os
que antes estavam submissos; nisso, não menos obsequiastes, do que àquelas
cidades, àqueles, em consideração aos quais concedestes esse favor. Posso dizer
que entre todos os príncipes que vos têm por senhor e que honrais com vossa
amizade, há poucos que me precedem em dignidade e nenhum me sobrepuja,
ou melhor, não me iguala em afeto, quer porque ela me é hereditária, quer por
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causa dos benefícios com que vos dignastes cumular-me. Eu não ousaria,
entretanto, pedir por minha pátria o direito de burguesia romana, nem mesmo
que a libertásseis da servidão e a dispensásseis dos tributos. Eu vos peço
somente, senhor, uma graça, que embora não vos esteja a peito, não deixará de
vos ser útil, pois que nada é mais vantajoso aos súditos do que um soberano
favorável. Jerusalém soube antes de todos os outros da vossa feliz sucessão ao
trono do império e essa cidade santa fez imediatamente sabê-lo a todas as
outras províncias vizinhas, comunicando-lhes tão grata notícia. Assim como ela
foi a primeira de todo o Oriente que vos saudou como imperador, não pode ela
esperar com justiça uma graça particular ou pelo menos não estar em piores
condições que as outras?
"Depois de vos ter falado, senhor, por minha nação e por minha pátria,
resta-me fazer-vos um humilde pedido por nosso Templo. Como ele está
consagrado em honra de Deus e sua majestade ali habita, lá jamais se colocou
estátua ou figura alguma, porque os pintores e os escultores só podem
representar divindades visíveis, e o Deus que adoramos é invisível; nossos
antepassados julgaram que não se podia, sem impiedade, procurar representá-
lo. Agripa, vosso avô, visitou esse Templo, com respeito. Augusto ordenou por
cartas expressas que de todas as partes para lá se levariam as primícias e que
não se passaria um só dia sem que ali se oferecessem sacrifícios. A imperatriz,
vossa bisavó, teve-o também em grande veneração. Jamais houve grego,
bárbaro ou príncipe, por mais ódio que tivessem contra nós, nem sedição, nem
guerra, nem cativeiro, nem alguma outra das maiores desgraças e das maiores
desolações que possam acontecer aos homens, que nos fizesse colocar alguma
estátua no nosso Templo, porque, mesmo os nossos maiores inimigos reverenci-
aram esse lugar consagrado ao Criador do universo, pelo temor dos espantosos
castigos que sabiam ter recaído sobre os que tinham ousado violá-lo. A esse
respeito, sem citar exemplos estrangeiros, eu tratei, senhor, outros que vos são
sabidos.
"Quando Marco Agripa, vosso avô, quis, para homenagear o rei Herodes,
meu avô, ir à Judéia e passar do mar a Jerusalém, ficou tão comovido com a
magnificência do Templo, com seus ornamentos, com as diversas funções dos
sacerdotes, suas vestes e principalmente as do supremo sacerdotes, resplande-
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cente de majestade, com a ordem que se observa nos sacrifícios, com a piedade
e com tudo o mais, bem como com o respeito com o que todos o assistem, que
não pôde deixar de manifestar a sua admiração. Ele sentia tanto prazer em con-
siderar estas coisas que não se passava um dia sequer, enquanto ele esteve em
Jerusalém, que lá não voltasse para apreciá-lo. Ele ofereceu ricos presentes a
esse Templo e concedeu aos habitantes daquela grande cidade tudo o que
poderiam desejar, exceto a isenção dos tributos. Herodes, depois de lhe ter
prestado todas as honras possíveis e de ter igualmente dele recebido outras
tantas, acompanhou-o ao seu embarque e o povo vinha também de todas as
partes, atirar ramos de árvores e flores à sua passagem abençoando-o, muitas
vezes.
"Não é também, senhor, coisa sabida de todos, que o imperador Tibério,
vosso grande tio, durante os vinte e três anos de seu reinado, teve a mesma
estima pelo nosso Templo, sem permitir que lá se fizesse a menor modificação
na ordem que se observa? Quanto a isso, embora tanto ele me tenha feito
sofrer, eu não poderia deixar de referir um fato que lhe mereceu grandes elogios
e eu sei que sentis prazer em saber da verdade. Pilatos, então governador da
Judéia, consagrou-lhe, no palácio de Herodes em Jerusalém, uns escudos
dourados, não tanto pelo desejo de honrá-lo, como por seu ódio contra nossa
nação. Não havia figuras nesses escudos, nem inscrição alguma, a não ser o
nome daquele que o consagrava e o daquele ao qual era consagrado.
Entretanto, o povo revoltou-se de tal modo, que enviou os quatro filhos do rei,
os outros príncipes da casa real e os mais ilustres de sua nação, para rogar a
Pilatos que mandasse retirar os escudos, porque era uma desobediência às leis
e aos costumes de seus antepassados, nos quais seus reis e imperadores jamais
tinham querido tocar. Vendo que Pilatos, que era de natural violento e teimoso,
recusava-o grosseiramente, disseram-lhe: 'Deixai de perturbar a paz de que
gozamos. Deixai de nos querer levar à revolta e à guerra. Não é pelo desprezo
das leis que se honra o imperador. Vós tendes necessidade de um outro
pretexto para disfarçar um empreendimento tão injusto e que nos é intolerável,
pois esse grande príncipe está muito longe de querer que se desobedeça às
nossas leis e costumes. Se tendes alguma determinação, alguma carta e alguma
outra ordem dele, que vos autorize a fazê-lo, mostrai-no-lo, e mandaremos
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embaixadores a ele, para apresentarem humildemente nossas razões'. Estas
palavras irritaram ainda mais a Pilatos e ao mesmo tempo causaram-lhe grande
aflição porque ele temia, se se mandassem embaixadores, que eles informassem
o imperador de suas concussões, de suas injustiças e de sua horrível
crueldade, que fazia sofrer tantos inocentes e custava mesmo a vida a vários.
Em tal agitação, esse homem tão duro e tão colérico não sabia que partido
tomar. Não ousava retirar os escudos já consagrados e mesmo que o tivesse
feito, não se podia decidir a causar um prazer e um favor ao povo; conhecia o
espírito de Tibério. Os que intercediam pelos judeus julgando que, ainda que
dissimulasse, ele se arrependeria do que tinha feito, escreveu a Tibério uma
carta muito insistente e muito respeitosa; não há necessidade de outra prova
da cólera que sentiu contra Pilatos, do que depois de lhe ter manifestado sua
indignação pela resposta que lhe deu; no mesmo instante ele mandou retirar os
escudos e levá-los ao Templo construído em Cesaréia, em honra de Augusto, o
que se fez. Assim, prestou-se o devido respeito ao imperador e não se
desobedeceu às nossas leis e aos nossos costumes. Não havia, entretanto,
figura alguma naqueles escudos, e agora trata-se de uma estátua. Aqueles
escudos só tinham sido colocados no palácio do governador: e quem colocar
essa estátua no Templo, no mesmo santuário, lugar santo, no qual somente o
soberano sumo sacerdote pode entrar e somente uma vez por ano, depois de
um jejum solene, para queimar perfumes em honra de Deus, e pedir-lhe por
preces humildes que faça feliz a todos, aquele ano. Se algum outro, não
somente de nossa nação, homem qualquer, mas sacerdote, sem excetuar aquele
que ocupa o mais alto cargo, depois do sumo sacerdote, ousa lá entrar ou se o
sumo sacerdote, ele mesmo entrassem duas vezes no ano, ou três ou quatro, no
dia em que lhe é permitido entrar, isso lhes custaria a vida e ninguém lhes
poderia alcançar o perdão, tanto o nosso legislador expressamente ordenou que
se reverenciasse aquele lugar santo e o tornasse inacessível. Não deveis
portanto duvidar, senhor, de que, se para lá se levar uma estátua, não se
encontrará um sacerdote que não se mate com suas próprias mãos, bem como
a suas esposas e filhos, para não ver tal violação de nossas santas leis.
"Foi assim que Tibério fez nessa ocasião. Quanto ao mais feliz de todos os
imperadores que
 jamais
 subiu
 ao trono,
 o admirável príncipe, vosso
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predecessor, que depois de ter dado a paz a toda a terra mereceu pela virtude o
glorioso nome de Augusto, quando ele soube que não se colocava em nosso
Templo nenhuma figura visível para representar o Deus invisível, admirou essa
prova de nossa piedade e da de nossa nação, porque ele era muito instruído nas
ciências e passava a maior parte do tempo, quando estava à mesa, falando do
que tinha aprendido com os grandes filósofos e com a convivência de homens
de letras que mantinha junto de si, a fim de dar ao seu espírito um alimento
agradável, ao mesmo tempo que não podia recusar ao corpo o que lhe era
necessário. Eu poderia trazer outras provas de sua boa vontade para com nossa
nação, mas contentar-me-ei com estas duas. Tendo sabido que se descuidava
do que se refere às nossas sagradas primícias, ele ordenou aos governadores
das províncias da Ásia que permitissem somente aos judeus, de se reunirem,
porque suas assembléias não eram bacanais, nas quais só se pensava em se
embriagar ou reuniões com o fim de incitar revoltas e perturbar a paz, mas
verdadeiras sessões literárias, onde se aprendia a virtude, onde se aprendia a
amar a justiça e a temperança e que aquelas primícias que se mandavam todos
os anos a Jerusalém só eram empregadas nos sacrifícios a Deus no Templo.
Assim, esse grande príncipe proibiu expressamente a quem quer que fosse,
perturbar os judeus no que se referia às suas reuniões e primícias. Se não são
estas precisamente as suas palavras, que eu acabo de referir, são pelo menos o
sentido das mesmas, como podeis, senhor, constatar por uma de suas cartas de
C. Norbano Flacco, que transcrevo em seguida: 'C. Norbano Flacco, aos
magistrados de Efeso, saudação. O imperador escreveu-me que em qualquer
parte do meu território, onde há judeus, que eu lhes permita reunirem-se
segundo seu antigo costume e levar o dinheiro a Jerusalém. Comunico-vos este
aviso e ordeno-vos que não ponhais a isso nenhuma dificuldade'.
"A vontade de Augusto e seu afeto por nosso Templo não se revela
claramente aí, pois que ele permite aos judeus reunirem-se publicamente para
recolher essas primícias e fazer outros atos de piedade?
"Eis aqui uma outra prova que não é menos importante. Ele ordenou que
se oferecesse do dele, cada dia em nosso Templo, um touro e dois cordeiros,
para serem imolados em honra do Deus Todo-poderoso: o que se faz ainda
agora, sem que se tenha jamais interrompido essa ordem. Ele não ignorava,
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entretanto, que não havia nem dentro nem fora do Templo algum simulacro.
Mas como nenhum outro não o sobrepujava em saber, ele julgava bem, que
devia ser um Templo singular e mais santo que qualquer outro, consagrado em
honra do Deus invisível, onde não havia nenhuma outra figura e onde os
homens podiam levar seus votos com confiança e esperança de serem ajudados
por seu auxílio.
"A imperatriz júlia,* vossa bisavó, imitando a piedade do grande príncipe,
seu marido, adornou esse Templo com um grande número de taças e outros
vasos de ouro de grande valor, sem neles mandar gravar figura alguma, pois
ainda que as mulheres dificilmente compreendam o que não é sensível, sua
inteligência e sua aplicação às coisas grandes tinham-na de tal modo elevado
nisso, como em todo o resto, acima do seu sexo, que ela diferenciava com
menos luz as inteligíveis das sensíveis e estava muito persuadida de que estas
últimas apenas podiam passar como sombra das primeiras.
__________________________
* Deveria estar escrito Lívia.
"Como tendes, então, senhor, tantos exemplos domésticos e uma grande
afeição por nós, conservai por favor, o que esses gloriosos antepassados dos
quais tendes a vida e cuja sucessão vos elevou ao cúmulo da grandeza tão
cuidadosamente conservaram. São imperadores que intercedem em favor de
nossas leis, perante um imperador, príncipes augustos, perante um príncipe
augusto, avós e bisavós perante seus netos e bisnetos, vários, perante um só, e
que vos dizem: 'Não destruais o que nós estabelecemos e que sempre foi
observado, mas considerai que ainda que a subversão dessa ordem não
produza no momento nenhum mau resultado, a incerteza do futuro deve fazer
temer aos mais ousados, se eles renunciaram a todo temor de Deus'.
"Se eu quisesse narrar, senhor, todos os favores que vos devo, o dia
haveria de terminar, antes que eu os tivesse enumerado: sinto ter que falar
deles somente de passagem. Tão grandes benefícios são conhecidos por si
mesmos. Quebrastes meus grilhões, mas esses ferros prendiam somente uma
parte do meu corpo e a pena que sofro oprime minha alma. Livrastes-me do
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temor da morte, e depois, como ressuscitado, um temor ainda maior me pôs em
tal estado que eu podia passar por morto. Conservai, senhor, essa vida, que eu
recebi de vós e que não quiséreis, sem dúvida, ma ter dado, apenas para
prolongar meus sofrimentos. Elevastes-me à maior das honras à qual os
homens possam aspirar, dando-me um reino e a este reino acrescentastes a
Traconítida e a Galiléia. Depois de favores tão extraordinários não me recuseis,
rogo-vos, senhor, um, que me é tão necessário, que os outros, sem ele, ser-me-
iam inúteis e depois de me ter elevado a uma condição tão excelsa, não me
precipiteis nas trevas. Eu vos não suplico que me conserveis nessa alta fortuna,
de que vos sou devedor; estou pronto a renunciar a toda glória que ela me dá. O
único favor que vos peço é de não tocar nas leis de meu país e se me
recusardes, que opinião teriam de mim, não somente todos os judeus, mas
todos os homens do mundo? Não teriam eles motivo de crer ou que eu traí
minha pátria ou que perdi a honra de vossa amizade, que são dois dos maiores
males que se possa imaginar? Entretanto, eu não poderia evitar cair ou num ou
no outro, pois seria preciso que eu fosse um covarde e um pérfido para
abandonar o interesse que me deve ser tão caro, ou que não tivesse mais parte
nas vossas boas graças, se implorando vossa bondade para a conservação do
meu país e do Templo que lhe é a glória principal, vos recusásseis de me tratar
como os imperadores tratam sempre aos que honram com sua benevolência. Se
eu for infeliz de não mais vos ser agradável, não vos peço nenhum outro favor,
não de mandar-me prender, como o fez Tibério, mas de me mandar matar
imediatamente. Poderia eu desejar viver depois de ter perdido vossa amizade na
qual unicamente confio e ponho toda a minha esperança?"
CAPÍTULO 17
CAIO, COMOVIDO COM A CARTA DE AGRIPA, ORDENA A PETRÔNIO QUE NADA MODIFIQUE
NO
 T EMPLO DE JERUSALÉM . MAS LOGO SE ARREPENDE DE LHES TER CONCEDIDO TAL
FAVOR E MANDA FAZER OUTRA ESTÁTUA EM
 ROMA
PARA MANDÁ-LA SECRETAMENTE A
 JERUSALÉM, QUANDO FOSSE PARA ALEXANDRIA,
ONDE QUERIA FAZER-SE RECONHECER COMO
 DEUS. INJUSTIÇA E
CRUELDADE DESSE PRÍNCIPE.
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Depois que o rei Agripa mandou esta carta a Caio, ficou esperando a
resposta, muito aflito e inquieto, julgando muito bem que não se tratava
somente da conservação ou da ruína da Judéia, mas da de toda a nação dos
judeus espalhada por toda a terra.
A carta incitou no espírito de Caio diversos sentimentos. Ele não podia
ver, sem se irritar, que se resistia à sua vontade e não podia deixar de se
influenciar pelas razões e rogos de Agripa. Censurava seu afeto por um povo, o
único que se ousava opor à consagração de suas estátuas, mas louvava a
sinceridade daquele príncipe, procedente de uma alma nobre e generosa. Por
fim, seu afeto por Agripa sobrepujou a cólera; ele acalmou-se e respondeu-lhe
favoravelmente; concedeu-lhe como o maior de todos os favores: que não mais
se fizesse aquela consagração. Ordenou também que se escrevesse a Petrônio
que nada modificasse no Templo de Jerusalém. Mas incluiu a esse favor
condições tão severas que ele tinha sempre motivo de temer. Ele acrescentou
estas palavras à carta: "Se fora de Jerusalém, outras cidades, sejam quais
forem, quiserem erguer-me altares e estátuas e houver alguém, tão atrevido que
se oponha a isso, quero que seja castigado no momento mesmo, ou que me seja
mandado". Não era isso revogar com tais palavras o favor que fazia ao mesmo
tempo que o concedia, pois só podiam eles ser considerados como sementes de
revolta e de guerra? Quem duvidaria de que os povos inimigos dos judeus não
encheriam imediatamente todas as províncias desses sinais sacrílegos de uma
honra que é devida somente a Deus, mais para prejudicar à nossa nação do que
para causar prazer a Caio, e que os judeus, não podendo tolerar tal ultraje às
suas leis, Caio, para castigá-los por sua obstinação não ordenaria novamente
que se colocasse a estátua no Templo? Entretanto, por uma proteção visível de
Deus, nenhum dos povos vizinhos da Judéia deu motivo a essa perturbação,
por mais que houvesse motivo de ser ela temida. Mas, dirá alguém, que
vantagem se teve disso, pois que, ainda que os outros ficassem em paz, Caio
não ficava? Bem depressa ele se arrependeu do favor que tinha concedido,
voltou aos primeiros sentimentos e sem mais falar da estátua que se fazia em
Sidom, a fim de não suscitar uma revolta, ordenou que se fizesse uma em
Roma, de bronze dourado, para mandá-la secretamente por mar e fazê-la
colocar sem rumor no Templo de Jerusalém, quando partisse para o Egito.
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Apressou-se em dar ordens aos preparativos para essa viagem, tanto ele
desejava ver Alexandria, onde havia determinado ficar muito tempo, porque
nenhum outro lugar não lhe parecia tão próprio para executar seu ridículo
intento, de se fazer reconhecer como Deus, na esperança que tinha de que o
exemplo daquela grande cidade, onde, por causa das vantagens que sua
situação lhe dá, lá se vem de todos os lugares do mundo, para levar as outras
cidades, menos importantes, a lhe prestar as mesmas honras divinas, que ele
estava persuadido, aquela lhe prestaria; além disso, ele era de natural leviano e
tão inconstante, que jamais fazia algo de bom, de que logo não se arrependesse
e não procurasse meios para fazer pior do que antes. Eis aqui as provas:
Tendo um dia dado liberdade a alguns prisioneiros, quase em seguida os
mandou prender de novo, sem lhes dar mais esperanças de sair, embora nada
eles tivessem feito de novo de que pudessem ser acusados.
Outra vez mandou alguns cidadãos para o exílio, os quais não tinham
cometido a menor falta e eles consideraram aquele castigo como um favor,
porque conheciam sua horrível desumanidade, e estavam preparados para
morrer. Assim, foram para as ilhas, onde trabalhavam no cultivo da terra e
suportavam pacientemente sua desgraça. E sem que tivessem feito coisa
alguma que o pudesse desagradar, mandou alguns soldados para matá-los e
encheu assim de luto, em Roma, muitas nobres famílias.
Se ele dava dinheiro a alguém, logo em seguida o exigia de volta, não
como empréstimo, com a condição de pagar juros, mas como um roubo que lhe
tinham feito. Esses desgraçados não eram somente obrigados a entregá-lo, mas
isso lhes custava também todos os seus bens, quer os tivessem somente como
patrimônio, quer adquirido com trabalho.
Os que se julgavam melhor junto dele eram arruinados com o pretexto de
afeto; obrigava-os a tão excessivas despesas, em vãos divertimentos e
banquetes, que, às vezes, uma só dessas festas, suntuosas e magníficas, era
suficiente para arruiná-los completamente, obrigando-os mesmo as pedir
emprestado, o que não podiam restituir. Muitos então temiam seus favores,
porque não somente eram inúteis, mas tão perigosos que podiam ser tidos
como verdadeiras ciladas, de que se deveriam precaver.
Tal era Caio, e como a ninguém mais ele odiava do que aos judeus,
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nenhum outro povo, mais que este, lhe veio a sentir os efeitos. Ele começou por
Alexandria, tirando-lhe todos os oratórios e os encheu de estátuas, sem que
ninguém se ousasse opor a tão grande violência. Só restava o Templo de
Jerusalém, que até então tinha sido um asilo inviolável, e ele quis, para cúmulo
de impiedade, arrebatá-lo a Deus para torná-lo para si, com este título: "O
Templo do novo Júpiter, o ilustre Caio".
Em que estais pensando, presunçoso e insensato príncipe? Sois apenas
um homem e quereis usurpar o céu. Não vos contentais de reinar sobre tantos
povos, que não há nação ou clima onde vosso império não se estenda? Mas não
quereis que haja somente na terra um lugar particularmente consagrado a
Deus; onde seja permitido prestar-lhe com piedade sincera as honras devidas à
sua adorável majestade. São essas as grandes esperanças que todo o universo
concebe de vosso reinado e ignorais que é, ao contrário, atrair sobre vós e sobre
o império um dilúvio de todos os males possíveis e imagináveis?
CAPÍTULO 18
COM QUE FUROR CAIO TRATA FÍLON E OS OUTROS EMBAIXADORES DOS JUDEUS DE
ALEXANDRIA, SEM QUERER ESCUTAR SUAS RAZÕES .
Mas é preciso passarmos agora ao que aconteceu no assunto que era o
motivo de nossa embaixada. Chegou o dia, quando Caio devia nos dar
audiência; quando fomos introduzidos à sua presença, foi-nos fácil conhecer,
logo de início, por seu aspecto e seus gestos, que o teríamos por inimigo e não
por juiz. Se ele tivesse querido agir como juiz, ele deveria ter examinado com
seu conselho um negócio de tal importância, onde se tratava dos privilégios de
uma grande multidão de judeus que moravam em Alexandria e de que gozavam
há mais de quatrocentos anos e que se tinham até então observado, sem jamais
revogá-los nem deles duvidar. Ele devia ouvir as partes: ele devia aceitar as
advertências e pronunciar por fim um juízo justo e equânime. Mas, em vez de
observar essas regras da justiça, o impiedoso tirano, enrugando o sobrecenho
com brutal altivez, mandou vir dois intendentes dos jardins de Mecenas e de
Lâmia, que estão perto da cidade e do seu palácio, onde ele se tinha já há três
ou quatro dias retirado. Ordenou-lhes que abrissem as portas de diversos
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aposentos daqueles belos jardins, porque queria passear por toda a parte e nos
fez entrar também. Caminhamos diante dele e o saudámos, dando-lhe o nome
de Augusto e de imperador. A maneira com ele recebeu a saudação, tão
mansamente e com tanta afabilidade, começou por nos fazer perder a
esperança não somente do bom êxito da nossa empresa, mas até de nossa vida.
Pois ele nos disse, franzindo a testa e com um riso sarcástico: "Não sois aqueles
inimigos declarados dos deuses que, embora todos os outros me reconheçam
por deus, me desprezais e preferis adorar um Deus que não se conhece?"
Depois elevou as mãos para o céu e proferiu palavras que eu escutei com horror
e não as posso repetir. Nossos adversários, então, não duvidando de que
tinham ganho a causa, não puderam ocultar sua grande alegria e não houve
um só de todos os nomes e títulos com que se honram os deuses, que eles não
lhe dessem. Um certo Isidoro, que era um grande e perigoso caluniador, vendo
que Caio escutava com grande prazer essas bajulações e elogios ímpios, disse-
lhe: "Detestaríeis ainda mais esses homens e os que os mandam, se soubésseis
quão grande é o ódio que eles vos têm. São os únicos de todos os homens que
se recusam a oferecer vítimas pela vossa saúde e geralmente todos os dessa
nação são do mesmo parecer". A estas palavras, nós exclamamos: "São
calúnias, senhor! Imolamos hecatombes e depois de ter banhado o altar com o
sangue das vítimas, nós não levamos a carne para comer, como fazem vários
outros povos, mas as queimamos todas, no fogo sagrado. Assim fizemos por
três vezes; a primeira quando subistes ao trono, a segunda quando ficastes
curado daquela grave enfermidade que afligiu toda a terra, e a terceira quando
pedimos a Deus que vos fizesse vencedor da Alemanha".
"É verdade", respondeu o furioso imperador, "oferecestes sacrifícios, mas a
um outro e não a mim. Assim, que honra recebi então?" A estas palavras senti-
mos o sangue gelar-nos nas veias. Caio, entretanto, visitava todos os aposentos,
notava-lhes os defeitos, ordenava as modificações que queria se fizessem. Nós o
seguíamos impelidos pelos nossos adversários, que se riam de nós; injuriavam-
nos com satíricas e humilhantes zombarias, como fariam os palhaços num tea-
tro, e na verdade aquele assunto poderia passar por uma comédia, que de
verdade só tinha a aparência. Aquele que deveria ser o nosso juiz era nosso
acusador, e nossos adversários animavam contra nós aquele mau juiz. Tendo-o
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então como inimigo e tal inimigo, que poderíamos fazer senão ficar em silêncio,
que é uma espécie de defesa, principalmente nada tendo a responder, que lhe
pudesse ser agradável, porque o temor de violar nossas santas leis nos fechava
a boca.
Depois de ter ele dado algumas ordens com relação aos edifícios,
perguntou-nos seriamente e com gravidade, por que fazíamos dificuldade em
comer carne de porco. Nossos adversários, então, para torná-lo ainda mais
favorável a eles, por meio de suas adulações, puseram-se a gargalhar tão
desabridamente, que alguns, mesmo dos oficiais do príncipe, mal toleravam
aquele desprezo e falta de respeito, que lhe era devido e que era tanto maior,
quanto no estado em que ele estava, somente os seus mais íntimos poderiam
sem perigo tomar a liberdade de apenas sorrir em sua presença.
Assim respondemos: "Os costumes dos povos são diferentes e como há
coisas que nos são permitidas e a outros não, assim há outras também que são
proibidas aos nossos adversários". Um dos nossos acrescentou que há mesmo
muitos que não comem carne de carneiro e ele retorquiu rindo-se: "Eles têm
razão. A carne não é boa". Essas zombarias aumentaram ainda nossas penas,
mas por fim ele nos disse, com emoção: "Quisera saber em que direito fundais
vosso direito de burguesia". Nós então começamos a apresentar-lhe nossas
razões; ele achou facilmente que eram boas e nós quisemos então citar outras
mais fortes, mas ele levantou-se de repente, foi depressa a uma grande sala,
mandou fechar as janelas, cujos vidros impediam que o ar entrasse, somente
deixavam passar a luz e eram tão claros e tão brilhantes que poderiam ser tidos
por cristais de rocha. Depois veio a nós assaz mansamente e disse-nos com um
tom moderado de voz: "Que me tendes então a dizer?" Quisemos então
continuar a apresentar-lhe as nossas razões, em poucas palavras, mas em vez
de nos escutar, ele foi correndo para outra sala, onde tinha ordenado que
colocassem quadros de antigos pintores. Vendo assim o julgamento do nosso
assunto interrompido e de tantas maneiras diferentes, julgando que nada mais
tínhamos a fazer do que nos preparar para a morte, recorremos em tal
contingência ao verdadeiro Deus, para rogar-lhe que nos salvasse do furor
daquele falso deus. Ele teve compaixão de nós e sua infinita bondade acalmou a
cólera de Caio. Ele ordenou que nos retirássemos e foi-se embora, depois de nos
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ter dito somente: "Essa gente não é tão má, quanto infeliz! São insensatos em
não acreditar que eu sou de natureza divina".
Foi assim que saímos não de um tribunal, mas de um teatro e de uma
prisão, pois não era deveras uma comédia vermo-nos ridicularizados e
motejados, desprezados mesmo? E os rigores de uma prisão são talvez
comparáveis aos tormentos que nos faziam sofrer tantas blasfêmias contra
Deus e tantas ameaças de um tão poderoso imperador, encolerizado contra nós,
porque os judeus eram os únicos que resistiam à sua louca paixão de ser
reconhecido como Deus? respiramos então um pouco, não por amor à vida, pois
se nossa morte tivesse podido ser útil à conservação de nossas leis, nós a
teríamos recebido com alegria, como podendo nos levar a uma feliz eternidade;
mas, além de inútil, ela teria sido também vergonhosa para os que nos tinham
enviado porque ordinariamente não se julgam as coisas senão pelos seus
resultados; esta razão fazia que nos consolássemos de algum modo por termos
escapado de tão grande perigo em que nos encontrávamos, pela sentença que o
imperador pronunciaria. Como poderia ele estar informado da justiça de nossa
causa se ele não se dignava nem mesmo a nos ouvir? Que há de mais cruel do
que ver a salvação de toda nossa nação depender da maneira como os seus
cinco embaixadores eram tratados? Se Caio se declarasse em favor dos
habitantes de Alexandria, que outra cidade deixaria os judeus em paz? Que
outra os pouparia? Que outra não destruiria seus oratórios? Que outra não
lhes procuraria impedir viver segundo suas leis? Assim, tratava-se da anulação
de todos os privilégios e de sua inteira ruína. Esses pensamentos nos
esmagavam sob o peso da dor; não víamos recurso algum em nossa desgraça e
aqueles que antes nos ajudavam, perdendo então a esperança no feliz resultado
de nossa causa, retiravam-se sem mais nos querer auxiliar, quando nos
mandavam chamar, tanto estavam persuadidos da bondade e da justiça
daquele homem que queria passar por Deus.
Contracapa
História dos Hebreus
De Abraão à queda de Jerusalém
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Tendo atravessado séculos até os nossos dias, a história do povo judeu,
através do registro de Flávio Josefo, pemanece como o mais fidedigno elato dos
acontecimentos contidos nas Escrituras.
Diversas razões contribuíram para tornar esta uma obra-prima, não
apenas a magnitude do assunto, mas também o fato de seu autor ser tanto
testemunha ocular quanto coadjuvante de alguns dos eventos por ele narrados.
Além disso, o que se revela em História dos Hebreus é a confirmação das
promessas de Deus para o seu povo e o cumprimento de sua Palavra em todos
os fatos registrados em suas páginas.
O Autor
De origem judaica, sendo também de linhagem sacerdotal, Flávio Josefo,
um escritor e historiador judeu que viveu entre 37 e 103 d.c., escreveu a obra
que se tornaria, depois da Bíblia, a maior fonte de informações sobre os
impérios da Antiguidade, o povo judeu e o Império Romano.