Parte
0 G uia dos Perplexos
Parte 2
M
a im ô n id e s
0G u ia
dos
ParteP er plex o s
2
T radução
U ri L am
P refácio
J o s é L uiz G o ld fa rb
LANDY
II
Título original:
M oré Há-Nevuchim
© da presente edição:
Uri Lam
e Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.
Tradução e Introdução:
Uri Lam
Preparação de originais:
Sylm ara Beletti
Capa:
C am ila M esquita
Coordenação editorial:
V ilm a M aria da Silva
Editor:
Antonio D aniel Abreu
Produção:
Kleber Kohn
.Editoração:
ETCetera Editora de Livros e Revistas Ltda.
Fones: (011) 3825-3504 / 3826-4945
Fax: (011) 3826-7770
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Direitos reservados a
LANDY
para a língua portuguesa
Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.
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2003
Os m ais sinceros agradecim entos ao m eu orientador
d e M estrado, Prof. Dr. Luiz Paulo R ouanet, p elo
m om ento inspirado em que m e sugeriu trabalhar com
O Guia dos Perplexos. Ao J o sé Luiz Goldfarb, p ela
feliz indicação da Editora Landy p a ra a p u b lica çã o
desta obra. A toda a eq uipe da Landy, em especial ao
Daniel, p o r acreditar no projeto, à Vilma e à Sylmara,
pelo cuidado e sensibilidade na revisão epelas sugestões
que tanto enriqueceram este trabalho. Finalm ente,
um agradecim ento especial à Nancy, q ue está tão
orgulhosa quanto eu pela concretização deste trabalho
cu ja im portância, sabem os hoje, superou em m uitas
vezes as nossas expectativas iniciais.
Sumário
P R E F Á C IO ...................................................................................................................................
IN T R O D U Ç À O ............................................................................................................................
A nálise da Parte 2 de O G uia dos P erp le x o s....................................................
In tro d u ç ão .........................................................................................................
Provas filosóficas para a existência, incorporeidade e unicidade
da P rim eira C ausa (cap. 1) .........................................................................
Sobre as Esferas Celestes e as Inteligências Puras ou Separadas
(cap. 2 a 1 2 ) .......................................................................................................
Sobre a teoria da E ternidade do U niverso (cap. 13 a 3 1 ) ............
Sobre a P rofecia (cap. 32 a 4 8 ) ............:...................................................
P ossível contribuição de M ainiônides p a ra a filo so fia socia l con tem p orâ n ea .....
O P ro feta com o m odelo de líder e crítico s o c ia l............................
A b raham lo sch u a H eschel: os Profetas com o m o d e lo ...............
13
15
25
25
26
27
28
31
35
40
43
O G U IA D O S P E R P L E X O S
P arte 2
INTRODUÇÃO
Y in te e seis proposições dos Peripatéticos para dem onstrar a existência,
unicidade e in corporeidade de D e u s .........................................................................
47
1.
PROVAS FILOSÓFICAS PARA A EXISTÊNCIA,
INCORPOREIDADE E UNICIDADE DA PRIMEIRA CAUSA
Os argum entos filo só fic o s................................................................................. :
55
SOBRE AS ESFERAS CELESTES
E AS INTELIGÊNCIAS PURAS OU SEPARADAS
2.
3.
4.
Sobre a ex istên cia das In teligên cias P uras ou Seres P uram ente
E sp iritu a is....................................................................................................................
Sobre a hipótese de A ristóteles acerca das causas dos m ovim entos
das esferas celestes ..................................................................................................
As esferas celestes e as causas do seu m o v im en to .....................................
65
69
71
10
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
5.
. Concordância da teoria de A ristóteles com os ensinamentos da
Bíblia..........................................................................................................
6.
O que se entende pelo term o Malách (Anjo) e suas acepções,
especialmente a de Inteligências Separadas.........................................
7.
-A polivalência do termo Malách (A njo)...............................................
8.
Sobre a música das esferas celestes......................................................
9.
Sobre o número de esferas celestes......................................................
10.
A influência das esferas celestes sobre a Terra se manifesta de quatro
modos d iferentes.....................................................................................
11.
A teoria da Excentricidade preferível à dos Epiciclos.......................
12.
Sobre a natureza da Influência (Emanação) Divina e a das esferas
celestes.......................................................................................................
75
79
85
87
89
91
97
101
SOBRE A TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO
13.14.
15.16.
17.18.
19.
20.
21.
22.
23.24.25.26.Três teorias diferentes sobre a origem do U niverso..........................
Sete métodos por meio dos quais os filósofos buscaram provar a
Eternidade do U n iverso .........................................................................
Aristóteles não prova sua teoria............................................................
A teoria da Creatio ex nihilo, mais provável que a da Eternidade do
U niverso....................................................................................................A s Leis da Natureza se aplicam às coisas criadas, mas não regulam
o ato criativo que as produz. Refutação das quatro primeiras provas
dos aristotélicos.......................................................................................Refutação dos três últimos métodos dos aristotélicos......................
Plano da Natureza. Provas em favor da Creatio ex nihilo. Refutam-se
algumas falhas da teoria aristotélica.....................................................Objeções à teoria da Eternidade do U niverso....................................
A teoria da Creatio ex nihilo é preferível à da Eternidade do Universo
As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento das
esferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem diante
da idéia do Universo criado por D e u s .................................................A Teoria da Creatio ex nihilo é preferível àquela da Eternidade do
U niverso....................................................................................................As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento das
esferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem diante da
idéia do Universo criado por D eus.......................................................A Teoria da Criação é adotada devido à sua superioridade própria,
mesmo que as provas baseadas na Bíblia sejam inconclusivas.........
Exame de uma passagem de Pirkê di-Rabi Eliezer com relação à
Criação ......................................................................................................
105
111
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145
149
151
157
161
S U M Á RI O
II
27.28.
29.
30.
31.
A teo ria de um a fu tu ra d e stru ição do U n iv erso não faz p a rte da
crença religiosa ensinada na B íb lia ..................................................................O ensinamento bíblico está a favor da indestrutibilidade do Universo.
A do utrin a de Salom ão - livro s sap ienciais a ele atrib uíd o s —com
relação à E ternidade do U niverso e sua p e rm a n ê n c ia ..........................E xplicação das frases bíblicas que im p licam a destruição dos Céus
e da T e r r a .....................................................................................................................Interpretação filosófica de G ênesis 1 - 4 ........................................................
A instituição do Shabát serve para ensinar a Teoria da Criação e para
prom over o b em -estar do H o m em ..................................................................165
167
171
183
193
SOBRE A PROFECIA
32.
33.34.
35.
36.
37.
38.
39.
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
47.
48.
Três teorias a respeito da P ro fe c ia ...................................................................
A d ife ren ça en tre M o isés e os o utro s isra e lita s com resp eito à
R evelação no M onte S in a i...................................................................................
E xplicação de Ê xodo 23:20 ................................................................................A d iferen ça en tre M oisés e os o utros P ro fetas com resp eito aos
m ilagres perpetrados p or e le s ............................................................................Sobre as faculdades m entais, físicas e m orais dos P ro fe ta s.................A E m anação D ivina sobre as faculdades im aginativas e m entais do
H om em através do Intelecto A tiv o ................................................................A coragem e a intuição atingem o grau m ais alto da perfeição nos
Profetas ........................................................................................................................M oisés foi o P ro feta m ais ap ropriado para receb er e p ro m u lg ar a
L ei Im utável. Os P rofetas que o sucederam apenas a ensinaram e
ex p lic aram ...................................................................................................................O teste da P rofecia V e rd a d e ira .........................................................................O que se entende p or V isão P rofética: os quatro m odos bíblico s
Profetas receberam comunicação direta apenas em Sonhos ou Visões
Sobre as parábolas dos P ro fe ta s........................................................................Sobre os diferentes m odos através dos quais os Profetas recebem
m ensagens d iv in a s ...................................................................................................Os diverso s tipos de P ro fetas: onze grau s de P ro fecia ou de
P ercep ção P rofética; seu estudo cm três grupos ....................................As parábolas dos Profetas fazem parte das visões P ro fé tic a s............Sobre o estilo m etafórico dos escritos p ro fé tic o s....................................A B íb lia confere a D eus, com o P rim eira C ausa de todas as coisas,
os fenôm enos diretam ente originados de causas n a tu ra is ...................195
199
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209
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219
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227
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235
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245
253
257
261
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................... 265
Prefácio
Em 1990, atuando então como editor, tive a oportunidade de con
vidar Haroldo de Campos a escrever a quarta capa da edição brasileira
de Os 613 Mandamentos de Maimônides. E o sábio poeta pontuou:
“J. G u in sb u rg escreveu a respeito de M aim ô n id es: “ O m o vim en to fi
lo só fico que se in icia co m A b raão ibn D au d e que exige um a sín tese
o rgân ica, racio n al, en tre as do utrin as p erip atéricas e os textos e sc ritu
rais en co n tra na obra de M aim ô n id es a sua Su m a R ab ín ica. C o m isso
torn ou-se ele o gran de lum in ar da escolásrica judaica da Id ad e M éd ia e,
m ais ain da, p ela qu alid ad e filo só fica e rig o r de suas fo rm u laçõ es, que
co n stitu em resp o stas clássicas aos p ro b lem as in telectu ais de seu tem
po, um dos m aio res p en sado res em Israel de todos os tem p o s.” (D o
E stu do e da Oração, Col. Ju d aic a, V. 3, Ed. P ersp ectiva, 1968).
M aim ô n id es, que o auto r d e d E strela da R edenção, F. R o sen zw eig,
ch am a “ o gran d e teórico da R ev elação ” , in sp iro u -se em A ristó teles
no seu em p en h o em m o strar a co m p atib ilid ad e da fé co m a razão. A
tarefa assu m id a p ela teo lo gia ju d aica clássica, segun d o G. Sch o lem , na
fo rm u lação de “an títeses ao p an teísm o e à teo lo gia m ític a ”, ou seja,
em “p ro v ar que estão errad o s” ÇA M ística Judaica, C ol. E stud o s, Ed.
P ersp ectiv a, 1972). E ste livro , S eferH á -M it^ votb (L ivro dos M an d a m en tos
ou O s 613 M an dam en tos), co n fo rm e salien ta seu tradutor, G. N ah áíssi,
“ co n stitu i a m elh o r in tro d u ção ao estudo da L ei M o sa ica” , (quarta
cap a de O s 613 M an dam en tos, Ed. N o va Stella, 1990).
As palavras de Haroldo de Campos antecipam-nos a dimensão do
pensador que podemos agora conhecer em português na primorosa
edição que aqui nos oferece a Editora Landy. Maimônides é sem dúvi
da um dos pilares do pensamento judaico. Não há hoje escola judaica,
religiosa, leiga, filosófica que não reflita o pensamento de Maimônides.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Uri Lam, em sua brilhante pesquisa como mestrando, produziu uma
tradução a um só tempo precisa e apaixonada da Segunda Parte — de
três partes — de 0 Guia dos Perplexos, na qual segundo o exímio tradutor
‘Maimônides teve por meta estabelecer uma relação inteligível entre a
sabedoria judaica e a filosofia clássica grega através de uma espécie de
diálogo entre os discursos dos nossos Sábios, por um lado; e os de Aris
tóteles (considerado por Maimônides “o Príncipe dos Filósofos”) e os
Peripatéticos, por outro”.
Fundir religião e ciência, filosofia e fé, um projeto medieval, de
uma Idade Média que há quase um século deixa de aparecer-nos como
um período de Trevas e cada vez mais apaixona o contemporâneo. Um
período fecundo em que o Ocidente greco-latino aprende/dialoga com
o Oriente árabe-hebraico. Em que culturas e geografias diversas exi
gem um pensamento criativo e sintético.
Nestas páginas vamos reconhecer questões que hoje sabemos te
rem sido de vital importância nas determinações do contexto cultural
em que se moldaram as origens da ciência moderna. Tomemos, para
tomar apenas um caso emblemático, a discussão em torno da existên
cia da música das esferas celestes. Maimônides tem de enfrentar-se, na
defesa desta tese, com Aristóteles e com os Sábios de Israel. A mesma
tese que viria a influenciar Kepler e o próprio Isaac Newton. A heran
ça medieval incorporada à modernidade, de uma Idade Média redes-
coberta, torna-se mais e mais re-dimensionada principalmente nos es
tudos da história da ciência.
Conhecer mais a fundo esta erudita e importante contribuição filo
sófica de Maimônides é um convite para re-visitarmos o século XII
medieval, lançando ao mesmo tempo bases para compreendermos mais
a fundo as origens da modernidade, sua ciência e sua tecnologia. As
sim poderemos melhor reconhecer as luzes do futuro que novamente
estão a exigir sínteses entre Ocidente e Oriente. Como o tradutor, o
jovem corajoso e audacioso Uri Lam nos indica, é hora de estudarmos
Maimônides.
J o séSetembro, 2003.
L u iz G o ld fa rb *
*
Professor de História da Ciência da PUC-SP; Assessor de Gabinete, Secretaria
de Estado da Cultura; curador do Prêmio Jabuti, CBL; Diretor Geral de Cultura,
A Hebraica’.
Introdução
>
i
Há uma antiga expressão sobre Maimônides que afirma: “De Moisés a
Moisés, nunca houve outro como Moisés”, A extensa obra de Maimô
nides sempre foi alvo de grande interesse. Sua importância para o pen
samento judaico pode ser comparada à de São Tomás de Aquino para
a filosofia cristã católica.
Além de exercer inúmeras atividades durante sua vida, principal
mente médico da corte do Sultão Saladino no Egito, Maimônides foi
também um importante teórico e construiu uma obra considerável,
que abrange a teologia, a filosofia, a astronomia e a medicina.
Todavia, três de suas obras merecem maior destaque: M ishnaiót, ou
os múltiplos Comentários sobre a M ish n á M ish n ê Torá (Repetição da
Lei), obra gigantesca que lhe ocupou doze anos de trabalho contínuo
(1168-1180) e marcou época na história do pensamento judaico tal-
múdico, pois se trata de uma sistematizaçâo da vasta literatura talmú-
dica até então; e Dalalát al-Hairín (em árabe,) ou M oréH á-N evucbim (em
hebraico), O Guia dos Perplexos (1180-1190) —escrito originalmente
em árabe — tida como a obra de sua maturidade. Segundo Maeso,2 “o
M oréHá-Nevuchim só admite comparação, quanto à grandiosidade, com
a Suma Teológica e a Divina Comédia, cada uma em seu gênero, a cujos
autores precedeu em um século ou mais, balizando assim, os três, a
história da cultura como figuras máximas da Baixa Idade Média (sécu
lo X II, Maimônides; século X III, São Tomás de Aquino; século X IV ,
Dante Aliguieri)”.
1
2
Mishná-. o Código da Lei Rabínica que constitui o cerne do Talmnd.
Cf. Maeso in: Maimônides. Guia de Perpkjos, p. 13.
IÓ
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Estas três obras maiores de Maimônides estão entremeadas crono
logicamente com outras muitas, cujas datas são impossíveis de preci
sar. Provavelmente escreveu seus tratados médicos nos últimos anos
de vida, quando atuou quase que exclusivamente como médico da cor
te de Saladino.
2
Maimônides, também conhecido como Rambám, um acrônimo for
mado pelas iniciais de seu nome completo, acrescido do título de Ra
bino - Rav (Mestre, em hebraico), Moshé (Moisés), be.n (filho), Mai-
mon — nasceu em Córdoba, na Andaluzia,3 Espanha, em 30 de março
de 1135, no tempo da dominação dos Almohades* sobre a Península
Ibérica. Córdoba era a cidade de sua família há oito gerações. Seu pai
era estudioso do Talmúd e foi discípulo do Rabino Yossêf ibn Migáts,
da Academia Talmúdica de Lucena;5 era então o chefe do Tribunal
Rabínico de Córdoba e o mais importante mestre das tradições judai
cas do local. Em 1148, os Almohades — sob a liderança de M ahadiibn
3
4
5
Andaluzia: também conhecida como AlAndalus^ ou Espanha Muçulmana. '
Almohades - do árabe “Confessores da Unidade”: grupo muçulmano funda-
mentalista liderado por Abd ei Mumin, cujo reinado se estendeu da Síria ao
Oceano Atlântico. Os Almohades exigiam a conversão ao “Verdadeiro Islamis-
mo”, a emigração ou a morte; constituíram uma séria ameaça aos cristãos e
principalmente aos judeus, já então ameaçados pelas Cruzadas (cf. Nahaissi in:
Maimônides, M. —Os 613 Mandamentos. 1990, p. 15).
Lucena ( Al-Yussana); cidade espanhola considerada, durante os séculos IX a
XII, uma cidade de judeus. Com a decadência da Academia Talmúdica de Sura,
na Babilônia, seus últimos mestres, após naufragarem em Córdoba e terem
sido vendidos como escravos, foram resgatados por seus correligionários, in
corporaram-se à comunidade judaica e transformaram a Andaluzia no centro
espiritual do Judaísmo. Com o fim do califado de Córdoba, em meio a lutas
pelo poder, muitos judeus fugiram para Lucena, já então denominada “A Péro
la de Sefarád” (Espanha judaica). Os séculos XI e XII foram o período de
maior esplendor da Lucena judaica, cujo maior destaque foi a Academia Tal
múdica sob o comando espiritual de Isaac ibn Gaj^yát. A invasão dos Almoha
des, na primeira metade do século XII, culminou com a conversão, expulsão
ou morte de todos os não-muçulmanos. Em 1148 a Academia de Lucena foi
fechada. Os judeus, em boa parte, exilaram-se em terras cristãs. O último rabi
no de Lucena, Meir ibn Yossêf, passou a ensinar a tradição talmúdica em Mar-
bona, no sul da França.
INTRODUÇÃO
17
Tamurt, sucedido por Abd el Mumin — conquistaram a antiga capital
do califado, o que desencadeou uma sangrenta perseguição contra
judeus e cristãos, dando-lhes as opções de conversão ao Islamismo, a
emigração ou a morte. Dadas as condições, em 1151 a família Mai-
mon foi forçada a deixar Córdoba. Maimônides e sua família passa
ram por um período relativamente pacífico em Almeria,6 até a toma
da também desta cidade pelos Almohades. A partir de então, iniciaram
novamente a vida de peregrinos por diversas cidades do sul da Espa
nha. Em 1158, aos 23 anos, Maimônides iniciou sua carreira literária
com um tratado sobre o calendário judaico; na mesma época escre
veu, em árabe, o livro Conceitos de Lógica. Em 1160, abandonaram a
Espanha, rumo ao Marrocos (norte da África). Durante sua adoles
cência e juventude, Maimônides pôde se dedicar aos estudos, pois era
sustentado por seu irmão mais velho, David, um próspero mercador
de pérolas. Em 18 de abril de 1165, um sábado, emigraram para a
Terra de Israel, então Palestina. Maimônides tinha trinta anos. Chega
ram em Aco (Acre) no dia 16 de maio, depois de penosa travessia. A
Terra de Israel na época estava devastada pelas Cruzadas. Seguiram
então a Fustat (Velho Cairo, Egito). Neste ano faleceram: o pai de
Maimônides, seu irmão David — em um naufrágio durante uma via
gem de negócios — e sua esposa. Maimônides casou-se novamente
com a irmã de um influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos
secretários do rei. Este, por sua vez, casou-se com uma irm ã de
Maimônides, com a qual teve um filho de nome Abrahão. Após um
ano em estado depressivo, Maimônides recobrou a saúde física e emo
cional. Dedicou-se então à prática da Medicina para assegurar o sus
tento da família e se tornou um dos médicos mais respeitados de todo
o Egito, Maimônides também abriu uma escola de Filosofia e se in
corporou à Academia de Medicina. Em 1168 terminou seu grande
Tratado Sobre aM isbná, iniciado na Espanha ainda em 1158. Em 1171
foi nomeado médico da corte de Saladino, a convite do Vizir Al-Fadel —
cargo que desempenhou até sua morte e herdado por seu filho e des
cendentes. Maimônides era especialista em Gastroenterologia e escre
veu uma longa série de tratados médicos, especialmente no campo da
6
Almeria: província de posição estratégica, voltada ao m ar M editerrâneo. No
século X os árabes fundaram sua capital, Almoraciti, que se tornaria um dos
mais importantes centros da Espanha muçulmana durante oito séculos.
i8
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
medicina preventiva. Em 1177 foi nomeado N aguíd (Presidente) da
comunidade judaica do Egito. Em 1180 terminou de escrever sua obra
de maior fôlego, o M ishné Torá, iniciada doze anos antes e, aos 45 anos,
passou a escrever, em árabe, o Dalalát al-Hairín — O Guia dos Perplexos —
que terminaria em 1190. Em 1199, Maimônides escreveu uma carta a
Shmuêl ibn Tibon, residente em Lunel (França), que, em setembro
daquele ano, iniciara a tradução do Dalalát al-Hairín para o hebraico,
sob o título de M oré há-Nevuchím. A tradução, encerrada em 1204, foi
aprovada por Maimônides. Maimônides morreu em 13 de dezembro
do mesmo ano, aos 69 anos. Foi enterrado em Tiberíades, Israel.
3
O objetivo inicial de Maimônides, com 0 Guia dos Perplexos, era res
ponder aos anseios de Yossêf ibn Yehuda ibn Aknin, que viera de
Ceuta7 para Alexandria com o único intuito de se tornar seu discípulo.
Ele partiu, após dois anos, para Alepo, na Síria, por motivos ignorados.
Antes de sua partida, obteve de Maimônides a promessa de que este
redigiria um tratado no qual responderia as suas dúvidas.
Maimônides acreditava que, ao escrever uma obra que abordasse a
relação possível entre o texto bíblico e a tradição oral contida no Tal-
mud, por um lado, e a filosofia, por outro, poderia possibilitar o acesso
da razão aos segredos contidos na Bíblia e, assim, aliviar a “perplexida
de” dos judeus eruditos diante das dificuldades na compreensão do
texto bíblico.
Segundo o estudioso Nahaissi,8 Maimônides, ao escrever O Guia
dos Perplexos, não visava o público em geral, mas sim os estudiosos das
tradições judaicas. Para ele, “a originalidade de Maimônides nesse tra
balho foi a de estabelecer um diálogo entre o mosaísmo e a filosofia,
ao invés de se limitar à utilização de seus conhecimentos filosóficos
para fazer a apologia do judaísmo. Ele não renuncia a nenhuma das
tradições do pensamento judeu, nem tampouco alimenta a ilusão de
poder “conciliar” a verdade bíblica e a verdade filosófica. Ao invés
7
8
Ceuta: cidade portuária localizada na costa mediterrânea do Marrocos, cm frente
ao Estreito de Gibraltar, Espanha.
Veja em Maimônides, M. Os 613 Mandamentos. 1990, p. 27.
INTRODUÇÃO
19
disso, confronta as duas tradições, de maneira a sobrepô-las. Assim,
Maimônides se outorga a missão de guiar os estudiosos para o conhe
cimento metafísico, o qual, segundo ele, é uma possessão original do
judaísmo que havia se perdido durante o Exílio, e c essa perda que
torna o Exílio tão trágico. Ele tem a convicção de que o renascimento
da compreensão mais elevada, obtida graças à introdução da filosofia
nos estudos religiosos, é o fato libertador que conduzirá ao aconteci
mento messiânico, teoria essa que, aliás, acredita-se ser ele o primeiro a
introduzir naqueles tempos de Exílio”. Maeso, por sua vez, afirma que
“(...) a obra não é dirigida nem aos filósofos nem tampouco aos leigos
de toda formação intelectual, mas sim ao círculo de estudiosos que se
vêem desconcertados por certos problemas que aparentam contradi
ção entre a religião e a filosofia ou simplesmente a razão natural (...)”,
e declara que filosofia e religião são “(...) ambos os extremos que 0
Guia dos Perplexos se propõe a conciliar”.9
Conforme o historiador Nachman Falbel, o acesso de Maimônides à
filosofia grega somente teria sido possível de forma indireta, por meio
dos filósofos árabes muçulmanos —afinal de contas, segundo ele,
Maimônides não sabia grego. Seu interesse em buscar a conciliação en-
ffe filosofia e religião estaria em criar uma teologia judaica de alto nível
e em demonstrar que a leitura dos textos bíblicos não deveria ser literal.
4
0 Guia dos Perplexos consiste de uma introdução e três partes, cujos
temas centrais são os seguintes:
Plimeira Parte: Exposição das idéias esotéricas (sodót— segredos) con
tidas nos Livros dos Profetas.
Segunda Parte: Defesa da Teoria da Criação em contraposição à Teo
ria da Eternidade do Universo de Aristóteles e seus seguidores, os
Peripatéticos; caracterização dos conceitos de Profeta c Profecia.
Terceira Parte: Exame e refutação do sistema e do método do Kalám —
corrente filosófica de orientação islâmica; análise do M aassê Merkavá,
ou seja, do texto esotérico denominado Relato das Carruagens Divinas
(Ezequiel 1).
9
Veja em Maimônides, Guia de Perplejos, p. 15.
2.0
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
De acordo com esta estrutura e seu conteúdo, o trabalho ao qual
Maimônides se propôs termina com o sétimo capítulo da Terceira Par
te. Os capítulos que se seguem podem ser considerados um apêndice e
tratam dos seguintes temas teológicos: a existência do Mal; Onisciên-
cia e Providência; Tentações; a Forma na Natureza; por dentro da Lei
(Tora) e por dentro das narrativas bíblicas; e, finalmente, a verdadeira
adoração a Deus.
Parece que o autor adotou este arranjo pelas seguintes razões:
primeiro pretendeu estabelecer o fato de que os antropomorfismos
bíblicos não implicam corporeidade e que o Ser Divino mencionado
pela Bíblia poderia, portanto, ser considerado idêntico à Primeira
Causa dos filósofos. Estabelecido este princípio, na Segunda Parte
discute, a partir de um ponto de vista filosófico e em diálogo com 'a
filosofia aristotéüca, as propriedades da Primeira Causa e sua relação
com o Universo. Uma vez estabelecida a possibilidade de exposição
das passagens da Bíblia à razão, na Terceira Parte Maimônides trata
de refutar o Kalám, demonstrando que os argumentos dele são ilógi
cos e ilusórios.
Maimônides era um grande admirador da filosofia de Aristóteles,
se bem que, à primeira vista, a filosofia islâmica dos Mutakálemim10
pudesse parecer mais simpática às crenças judaicas. O Kalám sustenta
va a teoria da Existência de Deus, da Incorporeidade e da Unicidade,
juntamente com a Creatio ex nihilo. Maimônides, contudo, se opôs ao
Kalám, expôs o que considerava ser, do seu ponto de vista, a fragilidade
e as falácias desta filosofia e preferiu o sistema de Aristóteles, apesar
de este incluir a teoria da Eternidade do Universo, contrária ao ensina
mento fundamental da Bíblia.
5
A partir do original escrito em árabe, ao longo de oito séculos foram
escritas muitas versões de 0 Guia dos Perplexos em diversas línguas.
Abaixo, citamos as principais:
Hebraico: Há duas mais conhecidas — a de Shmuêl ibn Tibon, reali
zada entre 1199 e 1204 e a de Yehudá al Harizí, contemporâneo de
10
Mutakálemim. partidários da filosofia muçulmana do Kalám.
INTRODUÇÃO
21
Shmuêl ibn Tibon. A versão do primeiro, realizada ainda durante a
vida de Maimônides, com quem trocou cartas de orientação, foi auto
rizada por ele. Segundo Friedlander,11 a versão de Shmuêl ibn Tibon é muito
acurada; ele sacrificou a elegânda de estilo pelo desejo consáente de reproduzir o
trabalho do autor, e não negligenciou nem mesmo, uma ínfima parte, p o r menos
importante que pudesse parecer. Sua versão, por isso mesmo, é considerada
um calco do original, favorecida até pelo fato de se tratar de duas lín
guas semíticas antigas muito próximas.'Embora a versão de Yehudá al
Harizí seja considerada mais sofisticada e elegante, a literalidade e o
fato de ter sido autorizada pelo próprio Maimônides consagraram a
versão de Shmuêl ibn Tibon.
A edição mais antiga que se tem notícia da versão de Shmuêl ibn
Tibon encontra-se na Biblioteca Nacional de Paris. Trata-se de um
manuscrito de 1452, copiado por um certo Shmuêl ben Yitzchák.12
Utüizou-se, nessa tradução, a versão de ibn Tibon.
Tatim: Imagina-se que já havia versões de 0 Guia dos Perplexos em
latim no século XIII, pois a obra era conhecida de Alberto Magno e
São Tomás de Aquino. A mais conhecida, e tida como a melhor, foi
realizada por Juan Buxtorf Filho, publicada em 1629 na Basiléia, Suíça.
Francês: Aquela que é considerada a melhor versão é a de Salomão
Munk, sob o título U Guide dês Egarés, Traite de Théologie et de Philosophie,
parM oise ben Maimoun, dit Maimonide. Considerada por muitos como a
melhor já escrita em línguas modernas,13 é referência para muitas tra
duções posteriores. Publicada originalmente entre 1856 e 1866, era
tida como obra rara até ser reimpressa em 1970.
Italiano: A primeira foi realizada por Amadeo M. di Recanati (Yedí-
dia ben Moshé), que a ditou ao irmão, Elias. Este terminou a tradução
para o idioma italiano (mas com letras hebraicas) em 1583. Uma se
gunda versão, na verdade uma re-tradução da versão francesa de Munk,
11
12
13
Maimônides, M. The Guideforthe Perplexed. Tradução por Moses Friedlander. 2a
edição. New York, USA: Dover Publications, 1956 [1904], 414p. Tradução de:
Da/alât al-Hairín, p. xxviii.
Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 32.
Idem, p. 33.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
foi realizada por j. Maroni nos anos de 1870-1871, em Firenze, sob o
título Guida degli Smarriti.
Alemão: A obra foi traduzida parcialmente por três autores. A Ter
ceira Parte por Simon Scheyer, em Frankfurt A. M., em 1838; a Primei
ra Parte por R. Fürstenthal, em Krotoschin, em 1839 e a Segunda Par
te, por M. E. Stern, em Viena, em 1864.
Inglês: São duas as versões mais conhecidas. A de M. Friedlander,
The G uideforthe Perplexed, diretamente do árabe e com base na versão
francesa de Munk. A Primeira Parte foi originalmente publicada em
1881. A versão completa e revisada, em três tomos, só viria a ser
publicada em 1904. A outra versão é a de Shlomo Pines e Leo Strauss,
sob o patrocínio da Universidade de Chicago, cuja primeira edição
data de 1936. Embora a contracapa do livro a considere a melhor
versão de O Gaia dos Perplexos já escrita em inglês, Maeso considera-
a excessivamente literal.14
Espanhol: Há uma antiga tradução em espanhol, realizada a partir da
versão hebraica de Yehuda al Harizí, por um certo Pedro de Toledo
entre 1419 e 1432. Somente na segunda década do século XX surgiram
outras versões espanholas (somente da Primeira Parte), re-traduções
da versão francesa de Munk: a mais conhecida sob o título Guia de los
descarnados, por José Suarez Lorenzo. Em 1955 foi publicada uma nova
tradução, pouco conhecida, realizada por Leon Dujovne. Em 1994, a
primeira edição da versão de David Gonzalo Maeso foi publicada na
Espanha, sob o título Guia de Perplejos, pela Editora Trotta. A terceira
edição foi lançada em 2001.
Português: uma coletânea de O Guia dos Perplexos foi recentemente
publicada pela Editora Sêfer em 2003. Esta tradução integral da Parte
2 de O Guia dos Perplexos, publicada agora pela Editora Landy, é a pri
meira traduzida diretamente do hebraico para a língua portuguesa. A
primeira e terceira partes serão publicadas em breve pela Landy.
14
Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 33.
INTRODUÇÃO
6
A tradução de 0 Guia dos. Perplexos para o português foi realizada to
mando-se por base a versão de Maeso em espanhol, comparada ã ver
são de Friedlander em inglês. Por último foi feita a tradução definitiva
a partir da versão em hebraico de Shmuêl ibn Tibon. Quanto à transli-
teração dos caracteres hebraicos para a língua portuguesa, optou-se
por uma das metodologias atualmente em voga no Brasil, particular
mente segundo o Sidur Completo com Tradução e Transliteração, livro de
orações judaicas publicado pela Editora Sêfer.lD
Assim, utilizamos a seguinte metodologia quanto à translitera
ção de letras hebraicas para o português:
•
•
•
•
•
•
•
Consoante Guímel —G. Diante das vogais “e” e “i”, substitui-
se por “gue” e “gui”, respectivamente.
Consoante H ei — H, pronunciada de modo aspirado, como em
half, em inglês. No final da palavra torna-se muda e nem sempre
é transliterada.
Consoantes C báf e C bêt— CH, pronunciadas de forma gutural,
como o “j” espanhol.
Consoante Rêish — R pronunciada sempre como em “caro”.
Consoantes Sámech e Sín — “S” sempre que estiver no início da
palavra, precedido ou seguido de consoante; “SS” quando esti
ver entre vogais.
Consoante Shín — Sh..
Consoante Tsádi— Ts.
Além destas regras, foi adotado também o uso de um hífen para dis
criminar o artigo do substantivo, que no hebraico vêm juntos. Por exem
plo, escreve-se Há-Nevucbim (dos Perplexos), ao invés de Hanevuchím.
As consoantes K a f e K u f foram transliteradas pela letra K.
15
Em FRIDLIN, 1- (prgl), Sidur Completo com Tradução e Transliteração. São Paulo:
Sêfer, 1997 [1987], 707 p. Tradução do: Sidur Rinat Israel, pp. VII-VIII.
INTRODUÇÃO
2-5
Análise da Parte 2 de
O Guia dos Perplexos
IN TRO D UÇÃO
Maimônides enumera, em princípio, vinte e cinco proposições, por meio
das quais Aristóteles e os filósofos aristotélicos posteriores provaram a
existência de Deus — na linguagem filosófica, a Primeira Causa — e suas
propriedades principais: o fato de ser incorpóreo, imutável, sempre
atuante e único.
As três prim eiras proposições afirmam a impossibilidade da existência
de magnitudes e séries de causa e efeito infinitas. A quarta proposição
determina quatro categorias sujeitas à mudança: 1) Substância — mo
dificada pela Gênese e Destruição; 2) Q uantidade — sujeita a A umento ou
Diminuição-, 3) Q ualidade — sujeita a Transformações', e 4) L u ga r— a pas
sagem de um lugar para outro é chamada de Movimento. O conceito
de movimento é desenvolvido entre a q uinta e a nona proposição. A déáma,
décima prim eira e déáma segunda proposições tratam das coisas abstratas,
incorpóreas, ligadas à matéria. São elas: a causa do objeto e os aciden
tes que existem através do objeto. Por estarem ligados ao objeto e
este ser finito, tanto a causa quanto os acidentes são considerados
finitos. A décima terceira, déáma quarta, déáma quinta, déáma sétima e décima
oitava proposições falam sobre movimento e mudança, com destaque
para a déáma quinta, que ressalta a ligação indissolúvel entre tempo e
movi?nento. A déáma sexta proposição diferencia os seres incorpóreos li
gados ao corpo — e, portanto, contados juntamente com estes — dos
seres espirituais puros, que não podem ser contados, pois não estão
ligados a um corpo; a décima nona proposição afirma que uma coisa
abstrata, dependente de certas causas, somente existirá enquanto
estas existirem — portanto, é finita. As seis últimas proposições tratam
2.6
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
da diferença entre um ser de existência necessária, que não é conse
qüência de nenhuma causa, e seres compostos de no mínimo dois
elementos, que são necessariamente materiais, têm uma causa exter
na que lhes provoca a existência e, antes de existirem de fato, perma
necem em estado de potência.
Maimônides então acrescenta, a estas, uma vigésima sexta proposição,
que afirma que o Tempo e o Movimento são eternos, constantes e de existência de
fato, posição aristotélica da qual discorda. Apesar disto, propõe-se a
aceitá-la provisoriamente, para posteriormente refutá-la e demonstrar
sua própria teoria: somente Deus é eterno, constante e de existência
constante.
PR O V A S FILOSÓ FICAS P A R A A EXISTÊNCIA, INCORPOREIDADE
E UNI CIDADE D A PR IM E IR A C A U S A (CAP. 1)
Os filósofos aristotélicos apresentam quatro argumentos para provar a
existência, incorporeidade e unicidade da Primeira Causa:
Primeiro argumento filosófico: Deve haver um prim eiro agente motor que mova
todas as coisas transitórias e lhes dê condições para receber Torma. Somente
uma possibilidade satisfaz esta condição, sem ferir as proposições men
cionadas anteriormente: que se trate de um ser incorpóreo e separado
do Universo.
Segundo argumento filosófico'. Se dois elementos coexistem em um estado combi
nado, e um destes elementospode também ser achado livre, então também o segundo
elemento pode ser achado livre. Sendo possível existir seres sozinhos, é pos
sível a existência de um que possa mover, mas não ser movido — a
Primeira Causa, de acordo com o primeiro argumento, única, indivisível,
incorpórea e atemporal: Deus.
Terceiro argumento filosófico'. H á três possibilidades de existência-. 1) Nada
tem iníáo efim , 2) Tudo tem iníáo efim-, 3) A lgumas coisas têm e outras não têm
iníáo efim . A única possibilidade viável é a terceira, pois além dos seres
transitórios, deve haver um ser imortal que seja a causa dos demais,
caso contrário, se o Universo fosse totalmente destruído, não poderia
ser reproduzido.
Quarto argumento filosófico-, É necessário um agente externo quefa ça o outro
sair do estado de potência para o estado de movimento. No limite, haverá ne
cessariamente uma Primeira Causa, que não é posta em movimento
INTRODUÇÃO
2-7
por nenhum agente externo — logo, esta jamais esteve em estado de
potência, pois, se assim fosse, nunca poderia colocar outra coisa em
movimento. Do mesmo modo, não satisfaz a condição de um ser
corpóreo, qual seja, ter estado em um determinado momento em es
tado de potência. Portanto, é um ser incorpóreo. Como incorpóreo,
não pode ser contado, então só poder ser Um.
Além destes, Maimônides apresenta outros dois argumentos adi
cionais, relativos à unicidade de Deus:
1) “Não se pode imaginar a atuação de dois deuses que agem de
forma alternada na formação do Universo”: não há razão para que um
esteja agindo e o outro, não; por outro lado, deveria haver então uma
causa anterior que permitisse a um atuar e ao outro não. A vinculação
ao tempo e o estado de potência são condições impossíveis para um
Deus, como já vimos; logo, na hipótese de dois deuses, nenhum deles
seria Deus de fato.
2) “Não se pode imaginar dois deuses amando juntos na formação
do Universo”: para que houvesse esta união seria necessário uma causa
anterior; logo, nenhum deles seria, tampouco, Deus de fato. Quanto à
incorporeidade de Deus, Maimônides argumenta que Ele é uno, enquan
to todo corpo é necessariamente composto de ao menos duas partes —
portanto, Deus é incorpóreo.
SOBRE A S ESFERAS CELESTES E A S INTELIGÊNCIAS PU R A S OU
SE P A R A D A S (CAP. 2 A 12 )
A teoria filosófica da Primeira Causa foi relacionada ao conceito judaico
de Deus. O Universo, do qual a Terra é o centro, é vivo e orgânico.
Qualquer mudança na Terra é causada por uma seqüência constante de
influências que fluem desde Deus, passando por quatro esferas: dos
astros fixos; dos planetas; do Sol e da Lua. A divisão das esferas em
quatro é tida como um insight de Maimônides. Para ele, esta divisão
harmoniza as várias, redes de transmissão: a primeira transmissão de
forças parte de Deus {Primeira Causa) e se distribui entre as quatro Inte
ligências Separadas, destas para as quatro esferas celestes, daí para os
quatro elementos terrenos (terra, água, ar e fogo) e destes, finalmente,
às quatro classes de seres: mineral, vegetal, animal e racional (huma
no). Esta transmissão de forças de um nível para outro é denominada
Shéfa (Emanação ou Injluênád).
2.8
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Maimônides segue Aristóteles em sua descrição das esferas celes
tes. As esferas não contêm qualquer dos quatro elementos do mundo
terreno; são tidas como um Quinto Elemento, totalmente diferente. En
quanto as coisas na Terra são transitórias, os seres que habitam as esfe
ras celestes são eternos. Segundo Aristóteles, as esferas celestes e as
Inteligências Separadas existem de forma permanente e coexistem desde
sempre com a Primeira Causa. Maimônides, fiel à tradição judaica, dis
corda de seu mestre: sustenta que tanto as esferas celestes quanto as
Inteligências Separadas tiveram um início e passaram a existir a partir da
vontade de Deus.
As esferas são dotadas de Alma, que permitem a elas se mover
livremente.O impulso para o movimento é dado pelo Intelecto, que con
cebe uma idéia a partir do desejo de se assemelhar ao ideal, representado
pela Primeira Causa (Deus). Cada esfera tem o seu intelecto, que, por sua
vez, recebe a influência de uma determinada Inteligência Separada. A Inte
ligência Separada que atua sobre o intelecto da esfera da Lua é denomina
da Intelecto Ativo (Sêchel há-Poêl). Os anjos, mencionados na Bíblia como
malachím, elohím ou adoním, são considerados idênticos às Inteligências Se
paradas-. são seres incorpóreos, e suas vontades tendem invariavelmente
para aquilo que é bom e nobre. Mas, de acordo com Maimônides, o
termo anjo contém diversos significados: assim, além de Inteligências Se
paradas, também significa ideais, Profetas, homens comuns e animais;
até mesmo os quatro elementos podem ser identificados como anjos
em um dado contexto, se estiverem servindo ao propósito de Deus,
SOBRE A TEORIA D A ETERNIDADE DO UNIVERSO (CAP. 13 A 3 1)
Não interessa a Maimônides comprovar sua teoria nem desmontar a
teoria de Aristóteles. E suficiente para ele demonstrar que a teoria da
Criação é uma possibilidade, de um ponto de vista filosófico, tão viável
quanto a teoria da Eternidade do Universo; a partir daí, buscará com
provar que a sua teoria é a mais provável.
Maimônides apresenta três teorias com respeito às origens do Uni
verso, a saber:
1) teoria bíblica judaica'. Deus criou o Universo a partir do nada;
2) teoria platônica e teoria islâmica (dos mutakálemim)-. Deus formou o
Universo — que é transitório — de uma substância eterna;
3) teoria aristotêlica-. Deus e o Universo são eternos e coexistentes.
INTRODUÇÃO
Na terceira teoria, a Eternidade do Universo está fundada em pro
priedades da Natureza e da Primeira Causa, segundo os aristotélicos, e
estas estão demonstradas em quatro e três métodos, respectivamente,
aqui apresentados. Além destes, Aristóteles reforça sua teoria, consi
derando o fato de existir uma crença popular geral na Eternidade do
Universo. Maimônides refuta os primeiros quatro métodos ao argu
mentar que estes não levam em conta que as leis, por meio das quais o
Universo está regulamentado, não precisariam vigorar antes de o Uni
verso existir, assim como é um equívoco considerar o funcionamento
do organismo de um feto a partir do funcionamento do organismo de
uma pessoa já nascida. De modo semelhante, quanto aos últimos três
métodos, refuta-os ao argumentar que as vontades e ações dos Seres
Puramente Espirituais não estão sujeitas às mesmas leis que as dos
seres terrenos: enquanto se necessita de uma alteração nos últimos ou
na vontade do homem, não é necessário produzir uma mudança nos
seres incorpóreos.
Maimônides segue adiante e explica que não precisaria da autorida
de da Bíblia para adotar a teoria da Criação. Seguem-se dois de vários
argumentos: 1) Ao admitir que a grande variedade de coisas no mundo
terreno está ligada àquelas leis imutáveis que regulamentam a influên
cia das esferas sobre estas mesmas coisas, a variedade de esferas so
mente pode ser explicada como resultado da Vontade Divina; 2) Se
gundo Aristóteles, é impossível que um ser simples possa, de acordo
com as leis da Natureza, ser a causa de seres compostos. Como Deus,
que é um ser simples, é a causa de seres compostos, Ele não segue as
leis da Natureza e, portanto, não precisa necessariamente ter uma cau
sa anterior, como é o caso do Universo. Logo, Deus é eterno, mas o
Universo é criado. O autor aderiu à teoria da Criação ao verificar que
os argumentos contrários eram insustentáveis. Surpreendeu-se com Rabi
Eliezer, sábio judeu que parece defender a teoria da Eternidade do
Universo, a ponto de advertir seu discípulo para que não se equivocas
se ao ler os Pirké (Capítulos) de Rabi Eliezer.
A teoria da Criação não envolve a crença de que o Universo será
destruído no futuro. Como não segue as leis da Natureza, o fato de
ter havido um início determinado para o Universo não implica ne
cessariamente que haverá um fim — esta é uma possibilidade que de
pende exclusivamente da Vontade Divina, não é uma propriedade
inerente ao Universo.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
O relato da Criação no livro do Gênesis e demais textos judaicos,
em especial no Talmud, é explicado pelo autor segundo as duas regras
seguintes:
1) Sua linguagem é simbólica.
2) Os termos empregados têm mais do que um significado.
As palavras érets, máim, rúach e chóshech são polivalentes e, em princí
pio, significam respectivamente os quatro elementos: terra, água, ar e
fogo; em outras instâncias, A rets é o Planeta Terra; Máim refere-se ou
ao firmamento (Céus Inferiores) ou aos Céus Superiores; Ritach signi
fica vento ou Sopro Divino (Espírito); e Chóshech pode ser ou escuri
dão ou noite. Segundo Maimônides, o Universo teve um início execu
tado pela Primeira Causa; esta não faz parte do Universo criado nem
coexiste com ele — deu início ao Universo, mas não é a primeira parte
deste. Após a Criação, a diversidade de seres foi criada sucessivamente,
sob influência do movimento das esferas celestes, bem como das di
versas combinações entre luz e escuridão. A partir do sétimo dia, Deus
descansou e o Universo passou a seguir as Leis da Natureza. Este dia —
o S habát— foi abençoado e santificado. Segundo o Talmud, os judeus
devem guardar o Shabát por dois motivos: para se lembrarem da Cria
ção do Universo (Êxodo 20:10-11);16 e em comemoração à saída do
Egito (Deuteronômio 5:15),ll pois durante o período da escravidão
no Egito, eles não sabiam o que era liberdade e bem-estar.
Na história bíblica, os casais — Adão e Eva; a serpente e Samael
(Satã) — são metáforas que representam, respectivamente: o intelecto
e o corpo; a imaginação e o desejo. A imaginação e o desejo formam o
par que influencia fortemente o aspecto físico do Homem. Enquan
to é dada maior atenção à imaginação e ao desejo, o intelecto se
enfraquece e o corpo se degrada. A imaginação, ao invés de ser guia
da e controlada pela razão, fica sujeita ao desejo, que enfraquece e
1617“E o sétimo dia é Shabát para YHYH teu Deus. Não farás nenhuma obra - tu,
teu filho, tua filha, teu servo, tua serva, teu animal e teu peregrino que estiver
em tuas cidades, porque em seis dias fez YHVH os Céus e a Terra, o mar e tudo
o que há neles, e repousou no sétimo dia. Portanto abençoou YHVH o dia do
S h a b á te santificou-o.” (Êxodo 20:10-11).
“E lembrarás que servo foste na Terra do Egito, e que de lá te tirou YHVH Teu
Deus, com mão forte e braço estendido; portanto te ordenou YHVH, Teu
Deus, para fazer o Dia do Shabát.” (Deuteronômio 5:15).
INTRODUÇÃO
31
degrada o corpo. Em seguida são estabelecidas outras metáforas, re
lativas aos filhos de Adão e Eva. Nos três filhos - Caim, Abel e Set -
Maimônides encontra uma alusão, respectivamente, às três proprie
dades do ser humano: vegetativa — vital; animal — instintiva; e intelec
tual — racional. Abel (vegetal-vital) é eliminado por Caim (animal-
instintiva); este é superado por Set (intelectual-racional) que sobrevive
e forma a base da condição humana daí em diante. Fica claro que o
fato de Maimônides considerar o texto bíblico como absolutamente
verdadeiro não significa que faça dele uma leitura literal. A verdade
do texto bíblico só pode ser extraída a partir de uma interpretação
correta de seus simbolismos.
SO BRE A PR O FE C IA (C A P . 3 2 A 4 8 )
Nesta seção Maimônides trata das características dos Profetas e
das Profecias. Inicia mencionando três opiniões correntes acerca da
Profecia:
1) Segundo a visão popular, qualquer pessoa, independente de suas
qualificações morais ou físicas, pode ser escolhida por Deus para
se tornar Profeta.
2) Segundo osfilósofos aristotélicos árabes, a Profecia, cumpridas as qua
lificações físicas e morais, certamente será atingida através de
muito estudo.
3) Segundo a tradiçãojudaica, além de perfeição física, retidão moral e
estudo, depende da vontade de Deus para ser revelada a alguém.
Maimônides define Profecia como uma Emanação que, através da
vontade de Deus, flui para o Intelecto Ativo; deste para a faculdade
racional e daí, finalmente, para a faculdade imaginativa das pessoas
qualificadas para a condição de Profetas, segundo a terceira opinião
apresentada. O Profeta é diferenciado dos filósofos — que somente
receberam esta influência sobre o seu intelecto — e dos políticos, adivi
nhos e sonhadores — que somente tiveram a sua imaginação influenci
ada pela emanação divina. Maimônides considera o Profeta como al
guém com capacidade maior do que o filósofo, pois acrescenta, à
capacidade intelectual de leitura racional da realidade, a captação de
idéias supra-sensíveis, transmitidas por Deus através dos anjos e re
transmitidas em linguagem simbólica.
32
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Tudo aquilo que evita ou dificulta o desenvolvimento mental, des
via a imaginação e prejudica a força física, impedindo o homem de
atingir a condição de Profeta. A ansiedade e a depressão também são
obstáculos, ainda que temporários, à capacidade de profetizar; por ou
tro lado, a alegria e a música favorecem esta condição.
Embora fosse considerada uma condição para o Profeta exibir ex
celente preparo físico, no momento da Profecia o corpo era adormeci
do com uma espécie de torpor. Em um estado extático de consciência,
o Profeta transmitia as idéias puras que lhe chegavam à faculdade ra
cional, fluíam para a imaginativa e finalmente eram reproduzidas em
uma linguagem simbólica, de modo que seria impossível compreendê-
las corretamente sem que houvesse uma interpretação das mesmas,
adequando-as ao contexto e ao modo de pensar das pessoas. Geral
mente, a transmissão destas idéias era intermediada por um anjo, tido
como o mensageiro que levava a palavra de Deus aos Profetas. Este
mensageiro tão especial podia aparecer nas formas mais diversas: como
uma pessoa, um animal ou até mesmo um fenômeno natural, como os
ventos. Todos os Profetas recebiam as Profecias por meio dos anjos,
através de sonhos ou de visões diurnas (com o corpo entorpecido), e
as transmitiam de forma simbólica — à exceção de Moisés, que se man
tinha consciente e com o corpo sob controle ao receber a emanação
divina. Para ele, a transmissão do conhecimento também não era sim
bólica, mas explícita e direta, pois a recebia de forma pura, sem a inter
mediação de um anjo, mas diretamente de Deus para sua faculdade
racional. Desta forma, Maimônides enfatiza que, ao chamar Moisés de
Profeta, o termo não tem o mesmo significado aplicado.aos demais
Profetas — são tão somente homônimos.
Maimônides também explica que os poderes dos Profetas não
eram todos iguais: variavam tanto segundo suas condições físicas,
morais e intelectuais, quanto com relação à freqüência, idade e hu
mor. Classificou as Profecias em onze graus, divididos em três gru
pos. O prim eiro grupo é composto dos dois primeiros graus, considera
dos uma preparação para a condição de Profeta. E formado por
pessoas que possuíam uma coragem ímpar, certas da presença de
Deus, para socorrer os oprimidos e realizar ações boas, grandes e
relevantes, bem como inspiradas para transmitir palavras de sabedo
ria e beleza. O segundo grupo abrange do terceiro ao sétimo grau: os
Profetas, durante o sono, percebiam parábolas transmitidas em so
nhos proféticos. O terceiro grupo abarca do oitavo .ao décimo primeiro
INTRODUÇÃO
grau: o Profeta - principalmente Abrahão - recebia as Profecias em
Visão Profética, ou seja, acordado, embora em estado de êxtase. Em
separado, considera um décimo segundo grau, para explicitar que
Moisés, como já mencionado, é considerado Profeta como os outros
apenas por homonímia, pois profetizava em estado normal de cons
ciência e não entrava em torpor físico. Moisés foi o único capaz de
ouvir e entender as palavras ditas por Deus no Monte Sinai, referen
tes aos oito últimos mandamentos — o enunciado moral destes teve
que ser retransmitido por Moisés ao restante do povo, que os ouvira,
porém não entendera. Na ocasião, as pessoas só ouviram claramente
os dois primeiros mandamentos, de caráter doutrinário, que defini
am a questão da Existência e Unicidade de Deus.
A teoria de que a linguagem metafórica é um elemento essencial na
Profecia é apoiada pelo fato de que o discurso simbólico é predomi
nante no discurso profético. Nem sempre, no entanto, os Profetas es
clareceram que seus relatos eram frutos de um sonho, de uma visão ou
de um fato concreto.
INTRODUÇÃO
35
Possível contribuição de Maimônides
para a filosofia social contemporânea
“A voz escatológica dominante hoje em dia é claramente re
volucionária - no Islã, em grupos cristãos fundamentalistas e
evangélicos americanos e entre certos grupos de judeus, em
Israel e ao redor do mundo. Nós entendemos os motivos
que impelem estas comunidades a aderirem a programas des
se tipo. Também estamos convencidos dos seus perigos: ex-
clusivismo, triunfalismo, ações políticas radicais e, no extre
mo, militarismo e até mesmo terrorismo.”18
Em 2004 completam-se oitocentos anos da morte de Maimônides.
Após oito séculos, alguns podem perguntar: “Conhecido como a maior
autoridade haláchica,19 bem como o filósofo mais profundo que o Judaís
mo já produziu, muitas gerações referem-se ao mestre pelo título de sua
grande obra — O Guia dos Perplexos. Embora este título seja ainda muito
popular, algumas pessoas têm problemas em estudá-lo: por um lado, de
fato, ele mesmo parece ser causador de perplexidade; por outro, muitos
o repelem antes mesmo de conhecerem-no, por sua forma e seus con
ceitos reconhecidamente medievais. Será que Maimônides tem algo a
nos dizer? (...) Será que este retrospecto medieval e aristotélico não
relega Maimônides inevitavelmente a nada mais do que uma impor
tância histórica, tornando seu pensamento irrelevante para o contexto
18
19
Declaração de Princípios (1988) —denominada Emêt Ve-Emuná, “Verdade e
Crença” —da corrente judaica Conservative Judaism. Extraído do capítulo “The
MessianicHope ” (“A Esperança Messiânica”), comrespeito ao fundamentalismo.
Autoridade haláchica'. versado em legislação judaica ( Halachá ), segundo a Tradi
ção Oral ou Talmud.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
da ciência moderna e da filosofia?;”20 ou ainda: “Será que há mensa
gens de relevância atual que possam ser obtidas dos escritos de um
filósofo que viveu há oito séculos? Será que as repreensões anti-autori
tárias de Maimônides fazem sentido para os nossos dias?”21 Será que
0 Guia dos Perplexos, particularmente quando se refere aos Profetas,
pode inspirar um modelo de crítica social do qual ainda podemos nos
beneficiar nos tempos atuais?
Para alguns, a filosofia de Maimônides teria sua contribuição unica
mente voltada ao aspecto ético e, mesmo assim, presa ao seu Zeitgeist, o
“espírito de sua época”. Particularmente entendo que, dada a geniali
dade, profundidade e profusão de temas e argumentos, é muito prová
vel que uma releitura da obra de Maimônides, incluído 0 Guia dos Per
plexos, à luz dos tempos contemporâneos, possa ser de grande valia.
Infelizmente, no Brasil são praticamente inexistentes as obras que dis
cutem esta possibilidade.
Inicialmente, para que possamos verificar esta possível contribui
ção, analisaremos o contexto histórico e geográfico em que viveu o
Rambám. Filho de uma família respeitada na comunidade judaica es
panhola do século XII, Maimônides, ao mesmo tempo em que teve a
oportunidade de se tornar um erudito em filosofia judaica, sofreu “na
pele” a perseguição dos fundamentalistas islâmicos almohades. Após
migrar com sua família por muitas terras espanholas, passando pelo
Marrocos e Israel, chegou finalmente ao Egito, onde passou boa parte
de sua vida. Tornou-se médico do Sultão Saladino e, segundo Soffer
(1993), Saladino também veio a se tornar, junto a seus súditos, um
fundamentalista islâmico. Amado e respeitado por judeus e muçulma
nos (que o chamavam de Abu Imran ou ibn Maimun), Maimônides
pode ter moldado sua visão crítica social ao lidar com dois mundos
entrelaçados: o judaico e o islâmico.
Embora radicalmente enraizado nas tradições judaicas e um pro
fundo conhecedor das leis rabínicas, Maimônides buscava harmonizá-
las à realidade dos judeus orientais de sua época. Foi neste contexto
20
21
Rabinovitch , in Rosner, F. & Kottek, S. S. ( org.). Moses Maimônides: Phjsician,
Scientist andPhilosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993,
p. 68.
Soffer, in Rosner, F. & Kottek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Pbjsician, Sríentist
and Philosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993, p. 207.
INTRODUÇÃO
37
que escreveu 0 Guia dos Perplexos-, para judeus que viviam não somente
de acordo com as leis e costumes judaicos, mas influenciados também
pelo Islamismo e pelo pensamento clássico grego, as culturas domi
nantes da época. Por outro lado, embrenhado tanto por motivos pro
fissionais quanto familiares (lembremo-nos que Maimônides casou-se
em 1165, após a morte de sua primeira esposa, com a irmã de um
influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos secretários do rei) na
cultura islâmica, deve ter exercitado como nunca sua capacidade de
amar como um respeitado líder da comunidade judaica do Egito, em
meio a um rigoroso controle de comportamentos e de pensamentos,
imposto pelo Sultão Saladino. Pode-se dizer que Maimônides convi
veu bem com a corte islâmica, ao mesmo tempo em que se desdobrou
para manter a liberdade religiosa e de identidade judaica. Este talento
para lidar com a cultura dominante e ser respeitado como líder de uma
minoria já serve, por si mesmo, como um modelo de convivência dig
no de ser estudado nos dias atuais, em que uma relação deste tipo
parece pouco provável em diversas partes do planeta.
Maimônides tinha um profundo senso da necessidade de se man
ter as leis básicas que regiam o povo judeu, a fim de garantir a sobre
vivência de sua identidade coletiva. Todavia, possuía clareza quanto
à necessidade de adaptá-las de acordo com a época e o local em que
viviam estes judeus. Como exemplos, podemos citar a posição de
Maimônides a respeito da possibilidade ou não de se navegar pelos
rios Tigre e Eufrates em pleno Shabát e quanto à questão da conver
são ao Judaísmo.
No primeiro exemplo, segundo as leis judaicas, o Shabát precisa ser
absolutamente respeitado como um dia em que se deve descansar e
não produzir qualquer forma de energia, a partir do conceito de Imita-
tio Dei — imitar as qualidades de Deus que, segundo a tradição bíblica
judaica, após ter trabalhado na criação do Universo por seis dias, des
cansou no sétimo, denominado Yom Shabát, o dia do descanso. Pois
bem, Maimônides determinou que os judeus poderiam viajar pelos
rios Tigre e Eufrates no Shabát, uma vez que eram demasiado largos e
esse era um precedente necessário em benefício das pessoas que por lá
moravam. A analogia às regras que regulamentam a circulação das pes
soas judias praticantes nos grandes centros urbanos dos dias atuais é
direta: caso Maimônides estivesse vivo, será que ele consideraria proi
bido viajar de automóvel no Shabát, por entre as avenidas demasiado
largas das grandes metrópoles modernas? Seria permitido, também,
38
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
viajar de avião, no Shabát, dadas as largas distâncias entre cidades ou
mesmo continentes?
O segundo exemplo diz respeito às precondiçÕes para que uma pes
soa se converta ao Judaísmo. Segundo Soffer (1993), de acordo com o
Talmud, se um homem vive com uma mulher não-judia, mesmo que
mais tarde ela se converta, está proibida de casar-se com um judeu.
Maimônides determinou, neste caso, que “em nossa época [século XII],
se ele não desposá-la, devemos assumir que continuará a viver com ela.
Por isso, deve casar-se com ela de acordo com a le i”. Também em seu
M ishnê Torá (.Issurê Biá 14:1), defende que o tribunal rabínico deveria
aceitar “imediatamente” uma conversão, após ouvir o desejo expresso
do candidato ou candidata de se identificar com o povo judeu, “confun
dido e envolvido pelo sofrimento inerente”. O candidato deve tornar-se
ciente dos princípios básicos do Judaísmo, ou seja, a unicidade de Deus
e a proibição da idolatria. Em seguida, ele é informado de alguns
mandamentos mais ou menos importantes, mas sem a necessidade de
se aprofundar demais neles, pois mais importante do que isso é colocá-
lo em um “bom caminho”, um caminho de justiça e misericórdia. Nes
tes casos, fica claro que Maimônides prioriza o bem-estar social às leis,
através do uso da razão como um antídoto ao autoritarismo e ao funda-
mentaüsmo. Em outras palavras, estas regulamentações mostram um
Maimônides que, por meio da crídca racional, relativiza a literalidade de
antigas leis, tomadas por alguns como pétreas, em benefício da vida das
pessoas no contexto das épocas e lugares em que vivem.
Por outro lado, há uma certa controvérsia sobre se Maimônides
tinha, de fato, uma boa relação com a corte islâmica de Saladino ou se
foi coagido a assumir determinadas posições, de ordem teológica, em
defesa de sua própria sobrevivência. Segundo Soffer (1993), Maimôni
des precisou lidar com uma situação dramática de intolerância que afe
tou sua vida e refletiu-se em seus escritos. Segundo ele, Maimônides
escreveu, em julho de 1191, seu Tratado sobre a Ressurreição, uma apolo
gia à ressurreição dos mortos — sob pressão. O renomado rabino hu
manista Abraham Joschua Heschel (1907-1972) escreveu a respeito
deste assunto em sua biografia de Maimônides: “Judeus chassidim
(piedosos) anti-filosóficos e muçulmanos acusaram O Guia dos Perple
xos] de desviar as pessoas para a perversidade, uma posição que pode
ria levar a efeitos sérios dentro desta área de religião reacionária. Ao
ignorar o dogma da ressurreição —enquanto este aponta, por suas
razões, para a idéia de imortalidade — Maimônides reforçou as suspeitas
INTRODUÇÃO
39
contra ele”.22 Conta-se também que, pouco antes de Maimônides es
crever seu Tratado sobre a Ressurreição, um árabe místico de nome
Suhraawardi fora morto a mando de Saladino, por haver expressado
“pontos de vista independentes”; Saladino, bem como a população
árabe egípcia, acreditava com fervor no dogma da ressurreição. Para
Maimônides, defender a ressurreição futura vinculada à condição de
imortalidade do ser humano — o que iria contra sua convicção de que
somente Deus é Eterno e Imortal —seria, segundo alguns, a única
forma de permanecer vivo naquela sociedade.
Todavia, esta versão é desmentida no prefácio à edição brasileira do
Tratado sobre a Ressurreição, de autoria do rabino David Weitman (1994).
Ele afirma que Maimônides já havia escrito brevemente sobre o tema
da ressurreição em seus livros Comentário da M ishná e M ishnê Torá. A
crença na ressurreição é asseverada também em seus famosos “Treze
Princípios da Fé Judaica”, cujo décimo terceiro princípio é: “Eu creio
com fé completa que haverá a ressurreição dos mortos quando for do
agrado do Criador (,..)”.23 Segundo o rabino Weitman (1994, p.10),
“(...) Maimônides sustenta que, após a ressurreição, com as almas rein
vestidas nos corpos, haverá um outro estágio final, o Mundo Vindou
ro, exclusivamente para as mesmas, num mundo isento de matéria”.24 •
De qualquer modo — quer tenha escrito este tratado convicto do
tema da ressurreição, quer tenha escrito sob coação —Maimônides
sabia muito bem da importância de manter boas relações com o poder
dominante, e o fez com maestria, conseguindo o feito de ser admirado
tanto por judeus quanto por muçulmanos. A medida deste modelo de
tolerância nas relações sociais pode se encontrar na seguinte frase atri
buída a Maimônides: “Deixe que o ignorante caia no erro de que qual
quer homem é responsável pelo estabelecimento de uma grande ver
dade. As leis religiosas são feitas não por indivíduos, mas pelo
julgamento em concerto de muitas gerações de pensadores”.25
22
232425Heschel, A. J. “Maimônides: A Biography”, in Rosner, F, & Kottek, S. S.
(i org.). Moses Maimônides: Physician, Scientist and Philosopher. Traduzido para o
inglês por J. Neugroschel. Nova York: Farrar Satraus Giroux, 1982, nota do
cap. 23, p. 269.
in Fridlin. J. (org.), Sidur Completo com Tradução e Transliteração, 1997, p. 120.
in Maimônides, Tratado sobre a Ressurreição.
Soffer, A. “Maimônides, an Enemy o f Authoritarianism”, in Rosner, F, & Kot
tek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Plysician, Scientist and Philosopher,: cap. 23, p. 211.
40
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Em outra crítica mordaz ao poder constituído, seja intelectual, reli
gioso ou político, Maimônides descreve a “doença dos intelectuais”:
“Se eles são aplaudidos, pensam que conhecem todos os ramos do
conhecimento e, de uma hora para outra, tornam-se autoridades. Nin
guém se opõe a eles e, então, cresce sua popularidade; é aí que sua
doença se agrava na mesma proporção”.26
Esta noção de que a verdade é construída por muitas pessoas, ao
longo de muitas gerações, de acordo com a época e o lugar e de forma
dinâmica, constitui, ao mesmo tempo, a crítica social e o antídoto de
Maimônides frente ao autoritarismo de um indivíduo ou grupo, tanto
em sua época como nos dias atuais.
O PROFETA CO M O MODELO DE LÍDER E CR ÍT ICO SO CIAL
No capítulo 32 de 0 Guia dos Perplexos, Maimônides defende seu con
ceito de Profeta: um “candidato a Profeta” deveria ser fisicamente apto,
irrepreensível do ponto de vista moral e um erudito do ponto de vista
intelectual. Além disso, porém, deveria ser escolhido por Deus para
que se capacitasse a receber, com seu intelecto e com a sua imaginação,
a emanação divina que lhe proporcionaria o dom da profecia.
Portanto, não é qualquer um que pode se denominar Profeta: deve
ser, obrigatoriamente, uma pessoa justa e piedosa. Mas não necessaria
mente um homem ou mulher justos e piedosos se tornarão profetas.
Tampouco é suficiente ser um filósofo dotado de grande sabedoria e
discernimento racional, se lhe falta capacidade de traduzir seu pensa
mento em uma linguagem acessível ao povo. Muito menos podem ser
vistos como pretensos Profetas os políticos, os adivinhos e os charla
tões, pois a sua imaginação, na visão de Maimônides, não é acompa
nhada de inteligência e probidade moral na mesma proporção.
Dito isto, ainda tomando por foco a pessoa, havia profetas e profe
tas. Todos põssuíam qualidades morais, intelectuais e imaginativas para
realizarem profecias, bem como foram escolhidos por Deus para exer
cerem suas atividades. Porém, a qualidade e a freqüência de suas profe
cias variavam de acordo com a maior ou menor excelência daqueles
atributos. Assim, alguns profetizavam somente uma vez na vida, inspi
rados por uma voz ou visão recebida através de sonhos. No outro
26
Idem , p. 212.
INTRODUÇÃO
41
extremo, o maior dos profetas (segundo Maimônides), Moisés, foi o
único a ser inspirado por Deus de forma consciente e sem intermedi
ários. Também foi o mais inteligente, justo e crítico social que já houve
na história do povo judeu, haja vista ter questionado e enfrentado,
segundo a tradição bíblica, o poder do Faraó do Egito que, em meio à
opulência das fortalezas egípcias, mantinha, como escravos, gerações e
gerações de judeus e de outros povos. Moisés ousou até mesmo en
frentar e criticar o “poder constituído desde sempre” de Deus em di
versos momentos, por ocasião da conhecida caminhada de quarenta
anospelo deserto, entre a “Terra da Escravidão” e a “Terra da Liber
dade”, o que mostra que a caminhada de um crítico social pode ser
longa, penosa e nem sempre reconhecida.
O conteúdo das profecias variava também de acordo com o grupo
ao qual os profetas se dirigiam. Para o importante pensador contem
porâneo norte-americano Michael Walzer,27 os Profetas — considera
dos por ele os mais antigos exemplos de crítico social — voltavam-se
ora para os hebreus, seu próprio povo, ora para os povos estrangeiros.
O motivo, porém, era o mesmo: a crítica ao modo de vida vigente de
seus governantes, juizes e sacerdotes. No primeiro caso a crítica era
mais contundente, pois os profetas sabiam para quem estavam falan
do e a quem estavam criticando — como é o caso do profeta Amós, ao
atacar fortemente a riqueza desmesurada do reino de Jeroboão II, rei
de Israel, entre os anos de 785 e 746 A.E.C.28, enquanto os pobres, os
trabalhadores e os agricultores estavam cada vez em condições mais
miseráveis. No último caso, os motivos ficam um tanto obscuros, como
não poderia deixar de ser quando se faz a crítica social de uma estru
tura política ou de uma realidade que se desconhece, ou que se conhe
ce muito pouco. Foi o caso do Profeta Jonas, designado por Deus para
destruir a população de Nínive, porque recebeu a informação de que
eram pessoas perversas. Aqui, nem o arrependimento daquela popu
lação por suas transgressões — desconhecidas de Jonas, diga-se a bem
da verdade — nem o perdão de Deus foram suficientes para Jonas. Ao
contrário, o profeta ficou muito contrariado com Deus por isso, após
tê-lo feito correr um alto risco de morrer, quer em meio a uma tem
pestade na viagem a Nínive, quer na simbólica passagem de três dias
27
28
Walzer, M. Interpretation and S ocial Critirísm. Cambridge, M assachusscts, USA:
Harvard University Press, 1987, 96p.
A.E.C. (Antes da Era Comum) e E.C. (Era Comum) são notações encontradas
em todos os textos judaicos. Correspondem respectivamente a A.C e D.C.
42
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
dentro de um peixe. Parece que, depois de tanto sofrimento pessoal,
ainda que a população de Nínive se redimisse, para Jonas deveria ser
destruída mesmo assim, a fim de que ele “não perdesse a viagem” —
não se sabe se mudou sua opinião após a repreensão divina. Afinal,
até mesmo Deus recuou da decisão de acabar com a cidade.
Em ambos os casos, era comum aos profetas preverem grandes
desgraças, que poderiam ser evitadas em caso de arrependimento, re
conhecimento dos erros e a lembrança dos valores comuns a todo um j
povo. Este arrependimento era freqüentemente exigido dos mais ricos
e privilegiados, graças às condições econômicas e políticas que goza
vam. A crítica, segundo Walzer, não era pelo fato de os ricos viverem
com fartura, mas porque esta existia em detrimento das condições dos
mais pobres. Deixar os mais necessitados de lado era, para os profetas,
quebrar o Pacto da Aliança, estabelecido entre Deus e o Povo de Israel e
confirmado com o recebimento das Leis no Monte Sinai, após o aban
dono da escravidão no Egito. Tais leis baseavam-se, sobretudo, na so
lidariedade e em relações justas entre as pessoas.
Em outras palavras, tomando-se o profeta como exemplo de críti
co social, pode-se compreender que a crítica social pressupõe o conhe
cimento do que é uma condição social justa, segundo os valores e a cultura
de uma dada sociedade. Não há como exportar “valores justos” de uma
sociedade para outra que os desconhece. O conceito de “arrependi
mento” — que, em hebraico, tem a mesma raiz que a palavra “retorno”
(teshuvá) — pressupõe conhecer para onde e para o quê se pretende
voltar. Segundo Walzer, as profecias de Amós, portanto, são críticas
sociais, “pois desafiam os líderes, as convenções, as práticas rituais de
uma dada sociedade. E porque faz isso em nome de valores reconheci
dos e que são parte daquela mesma sociedade”.29
Logo, seria um erro considerar que uma crítica social, a exemplo da
mensagem dos profetas, pode ser universal; ela só poderia ser total
mente compreendida dentro d<e um determinado contexto cultural,
temporal e local. Nas palavras de Walzer, “cada nação tem sua própria
profecia, tanto quanto sua própria história (...)”.30 No máximo, uma
crítica social pode ser semelhante em lugares diferentes, e caso venha a
se considerar a possibilidade de utilizá-la, devem ser feitas as devidas
adaptações referentes às questões contextuais já expostas acima.
29
30
op. cit. p. 89.
Ibid., p. 94.
INTRODUÇAO
A B R A H A M JO SC H U A H E SC H E L : OS PR O FE T A S C O M O M O D ELO
O pensador e estudante de rabinato brasileiro Alexandre G. Leone
descreve, em seu livro ^4 imagem divina e o p ó da terra — da crítica da
modernidade na obra do pensador A. J. Heschel — a visão deste huma
nista do pós-Segunda Guerra Mundial a respeito da figura do Profeta.
Segundo Heschel, o profeta “está profundamente ligado ao seu tem
po, participando geralmente de forma ‘crítica’ de sua sociedade, sen
tindo, por meio do encontro com a divindade, inclusive na dimensão
emocional desse encontro, a dor de sua época”.31 Para ele, o profeta,
tal como para Maimônides e Walzer, é um homem de seu tempo, sen
sibilizado pelopatbos (sofrimento) do seu povo através de sua conexão
com Deus, dadas as suas qualidades morais e intelectuais. Mas o profe
ta não denuncia somente as injustiças sociais nem apenas prevê des
graças; “a mensagem bíblica é endereçada ao ser humano, sensível tan
to às suas mazelas e mesquinharias quanto à possibilidade de realização
plena de sua semente de imagem divina (...) sendo o profeta um perso
nagem dotado de um tipo especial de sensibilidade ao sentido da exis
tência humana”.32
Segundo Leone (2002), ao tomar o profeta como modelo — tanto
em suas qualidades pessoais quanto na sua sensibilidade para captar
criticamente a realidade na qual está inserido — “Heschel assume para
si o encargo de levar o ‘apelo profético bíblico’ de reverência à pessoa
humana considerada como imagem divina”. Nos anos 50 e 60 do sé
culo XX, Heschel assumiu o papel de rabino militante de causas huma
nitárias, políticas e sociais. O “apelo profético hescheliano” manifes-
tou-se também “pela militância política e social a favor do diálogo
inter-religioso, dos direitos civis, em especial da população negra nor
te-americana, pela liberdade dos judeus na antiga União Soviética e
contra a Guerra do Vietnã.”33
Pode-se perceber, pelos campos de ativismo e de crítica social es
colhidos por Heschel, a veracidade das posições de Walzer quanto ao
caráter particular da profecia como crítica social. Como Maimônides,
todavia, Heschel era um homem com um pé em cada mundo: em um
deles, a sociedade norte-americana — pela qual lutou, adotou o partido
31
32
33
in Leone, A. Al Imagem Divina e o Pó da Terra, p. 31.
Idem, p. 32.
Ibid., p. 43.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
de Martin Luther King em defesa dos negros, contra a discriminação
violenta naquele país, criticou a guerra do Vietnã; no outro, lutava pelo
direito dos judeus de saírem da então União Soviética, onde - como
tantas outras populações religiosas — não tinham liberdade de expres
são e eram discriminados social, profissional e politicamente. Aparen
temente, o que Heschel tinha a ver com os judeus da antiga União
Soviética? Como podia compreender ou criticar a realidade em que
viviam? A identidade cultural, histórica e religiosa criava as bases sobre
as quais ele era capaz de compreender o sofrimento do seu povo em
terras tão distantes e lutar por eles.
Portanto, a figura do profeta como um modelo de liderança moral
e intelectualmente digna, conectado local e historicamente com o povo
a quem se dirige, tanto segundo o próprio Maimônides quanto segun
do pensadores contemporâneos, como Heschel, Rabinovitch, Soffer,
Walzer e mais recentemente Leone (2002), entre tantos outros, já justi
fica um estudo mais detalhado de O Guia dos Perplexos, bem como da
vasta obra filosófica de Maimônides, como um modo particular de
resgate de uma importante fonte de reflexão a respeito da crítica e da
justiça social.
0G u ia
dos
ParteP er plex o s
2
Introdução
V IN T E E SE IS PRO PO SIÇÕ E S DOS P E R IP A T E T IC O S P A R A DE
M O N S T R A R A E X IST Ê N C IA , U N IC ID A D E E IN C O RPO RE ID A D E
DE DEUS
“(...) em nome de YHVH,1 Deus de sempre”.2
Vinte e cinco das proposições que são utilizadas para a prova da
existência de Deus — ou dos argumentos que demonstram que Deus é
incorpóreo, não é uma força conectada a um ser material e que Ele é
Um —foram totalmente estabelecidas e sua correção está acima de
qualquer dúvida. Aristóteles e os Peripatéticos que o seguiram prova
ram cada uma destas proposições. Há, no entanto, outra proposição
que nós não aceitamos - qual seja, aquela que afirma a Eternidade do
Universo —, mas iremos admiti-la por ora, pois, ao agir assim, estare
mos claramente em condições de demonstrar nossa própria teoria.
Primeira proposição: A existência de uma magnitude infinita é impossível.
Segunda proposição: A coexistência de um número infinito de magnitu-
des finitas é impossível.
1
2
YHVH — Tetragrama Imprommàávek refere-se a Deus, cujo nome é, segundo a
tradição judaica, impronunciável (NT).
Em Gênesis 21:33: “E plantou [Abrahão] uma tamargucira (arbusto) em Beer-
Shéva, e lá invocou em nome de YHVH, Deus de sempre” . (Maimônides)
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Terceira proposição: A existência de um número infinito de causas e efei
tos é impossível, ainda que não sejam magnitudes. Se, por exemplo,
uma Inteligência fosse a causa de uma segunda, a segunda a causa de
uma terceira, a terceira a causa de uma quarta e assim por diante, as
séries não poderiam continuar ad infinitum.
Q uarta proposição: Quatro categorias estão sujeitas à mudança:
a) substância — mudanças que afetam a substância de uma coisa são
chamadas Gênese e Destruição',
b) quantidade — mudanças quanto à quantidade são o Aumento ou a
Diminuição',
c) qualidade — mudanças nas qualidades das coisas são Transformações',
d) lu g a r - Mudança de lugar é chamada de Movimento.
O termo “movimento” é aplicado para mudança de lugar, mas é
também usado no sentido geral de todo tipo de mudança.
Quinta proposição'. Todo movimento implica uma mudança e transição
da Potência ao Ato.
Sexta proposição: O movimento de uma coisa é ora essencial, ora aciden
tal; ou é devido a uma força externa ou devido à participação de uma
coisa no movimento de outra coisa. Este último tipo de movimento é
semelhante ao acidental. Uma instância do movimento essencial pode
ser encontrada na translação de algo de um lugar para outro. Afirma-se
que o acidente de uma coisa, como, por exemplo, sua cor negra, move-
se quando a própria coisa muda de lugar. O movimento de uma pedra
para cima, devido à força aplicada sobre ela naquela direção, é uma
instância de movimento causado por uma força externa. O movimen
to de um prego em um barco pode servir para ilustrar o movimento
causado pela participação de uma coisa no movimento de outra coisa,
pois, quando o barco se move, espera-se do prego que também se
mova do mesmo modo. É o mesmo caso com tudo o que é composto
de muitas partes, quando a própria coisa se move, todas as suas partes
movem-se do mesmo modo.
Sétima proposição'. Coisas mutáveis são, ao mesmo tempo, divisíveis. Por
tanto, tudo o que se move é divisível e, conseqüentemente, corpóreo.
Porém, aquilo que é indivisível não pode se mover e, por conseguinte,
é incorpóreo.
INTRODUÇÃO
Oitava proposição'. Todo aquele que se move por acidente necessaria
mente tem de descansar, porque não se move por sua própria ini
ciativa. Portanto, o movimento acidental não pode continuar perpe
tuamente.
Nona proposição: Uma coisa corpórea que coloca outra coisa corpórea
em movimento só pode fazer isto ao se colocar em movimento no
momento em que faz a outra coisa se movimentar.
Décima proposição: Uma coisa da qual se afirma que está em um corpo
deve satisfazer uma das duas condições seguintes: existir através desse
objeto, como é o caso dos acidentes ou ser a causa da existência do
objeto, como por exemplo, a forma física, sua propriedade essencial.
Em ambos os casos, trata-se de uma força existindo em um corpo.
Décima primeira proposição: Entre as coisas que existem através de um
objeto material, há algumas que participam na divisão daquele objeto e
são, portanto, acidentalmente divisíveis, como, por exemplo, as cores e
as demais qualidades distribuídas em todas as suas partes. Por outro
lado, entre as coisas que formam os elementos essenciais de um obje
to, há algumas que não podem ser divididas de modo algum, como a
alma e o intelecto.
Décima segunda proposição: Uma força que ocupa todas as partes de um
corpo é finita, porque o próprio objeto é finito.
Décima terceira proposição: Nenhum dos vários tipos de mudança pode
ser contínuo — exceto o movimento de um lugar para outro, desde que
este seja circular.
Décima quarta proposição: A locomoção é, na ordem natural dos diversos
tipos, o primeiro e o principal movimento. Isto porque a geração e a
destruição são precedidas por uma transformação que, por sua vez, é
precedida por uma aproximação do agente transformador ao objeto a
ser transformado. O crescimento e a diminuição também são impossí
veis sem prévio nascimento e corrupção.
Décima quinta proposição: O tempo é um acidente que acompanha e é
inerente ao movimento, de tal modo que nunca um é encontrado sem
50
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
o outro. O movimento somente é possível no tempo, e a idéia de
tempo não pode ser concebida senão em conexão com o movimento.
As coisas que não se movem não têm relação com o tempo.
Décima sexta proposição-, tudo aquilo que é incorpóreo somente pode
ser enumerado quando se trata de forças situadas em um corpo; as
muitas forças devem, então, ser contadas conjuntamente com as subs
tâncias ou objetos nos quais eles existam. Portanto, seres espirituais
puros, que não são nem corpóreos nem forças situadas em objetos
corpóreos, não podem ser contados, exceto quando consideradas as
causas e os efeitos.
Décima sétima proposição: Quando um objeto se move, deve haver algum
agente que o mova: seja de fora, como no caso de uma pedra colocada
em movimento por uma mão; seja de dentro, por exemplo, quando o
corpo de um ser vivo se move. Seres vivos possuem em si mesmos,
simultaneamente, o agente do movimento e o objeto movido. No en
tanto, quando o ser vivo morre e o agente do movimento — a alma —
perde o corpo — isto é, a coisa movida —, o corpo permanece por
algum tempo na mesma condição anterior e, todavia, não pode se mover
do modo como se movia antes. O agente do movimento, quando in
cluso no objeto movido, está oculto e imperceptível aos sentidos. Esta
circunstância levou à crença de que o corpo de um animal se move
sem a ajuda de um agente do movimento. Sendo assim, quando nós
afirmamos, com respeito à coisa em movimento, que este é o seu pró
prio agente de movimento ou, como é dito em geral, que este se move
por sua própria iniciativa, queremos dizer que a força que realmente
põe o corpo em movimento existe no próprio corpo.
Décima oitava proposição-, Tudo o que passa da potência ao ato é levado a
isso por algum agente externo. A razão é que se aquele agente existisse
na própria coisa e nenhum obstáculo impedisse a transição, a coisa
jamais teria estado em estado de potência, mas sempre 110 de existên
cia necessária. Por outro lado, se enquanto a própria coisa contivesse
um agente, houvesse algum obstáculo e, em um certo momento, o
obstáculo fosse removido, o que provocou a remoção do obstáculo
poderia, sem dúvida, ser descrito como a causa da transição da potên
cia ao ato (e não como uma força situada dentro do corpo). Preste
atenção nisso.
INTRODUÇÃO
51
Décima nona proposição-, Uma coisa que deve sua existência a certas cau
sas tem somente nelas a possibilidade de existência, pois somente se
estas causas existirem, a coisa existirá. Esta não existe se as causas
não existem, se deixaram de existir ou se houve uma mudança na
relação que permite a sua existência como uma conseqüência neces
sária daquelas causas.
Vigésima proposição-, Todo aquele que é de existência necessária não pode
ter, para existir, qualquer causa que seja.
Vigésimaprimeiraproposição-, Uma coisa composta de dois elementos tem
necessariamente esta composição como a causa de sua existência pre
sente. Sua existência não é, portanto, devida à sua própria essência;
esta depende da existência e da combinação destes dois componentes
parciais.
Vigésima segunda proposição-. Objetos materiais são sempre compostos
por dois elementos ao menos e são, sem exceção, sujeitos a acidentes.
Os dois elementos formadores de todos os corpos são: substância e
forma. Os acidentes atribuídos aos objetos materiais são: quantidade,
forma geométrica e posição.
Vigésima terceira proposição: Tudo o que existe em potência, e cuja essên
cia inclua um certo estado de possibilidade, pode não existir de fato
em um dado momento.
Vigésima quarta proposição-, Tudo o que é algo em potência é necessaria
mente material, pois o estado de possibilidade está sempre conectado
à matéria.
Vigésima quinta proposição-, Toda substância composta consiste de maté
ria e forma e requer um agente para a sua existência, ou seja, uma força
que coloque a substância em movimento e, então, permita predispô-la
a receber uma certa forma. A força que assim prepara a substância de
um determinado ser individual é chamada de Primeiro Motor.
Aqui a necessidade leva à investigação das propriedades do movi
mento, do agente do movimento e da coisa movida. Mas isto já foi
suficientemente explicado, e a opinião de Aristóteles pode ser expressa
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
na seguinte proposição: ^4 matéria não se move p o r sua própria iniàativa —
uma importante proposição que levou à investigação do Primeiro Mo
tor (o primeiro agente de movimento).
Destas vinte e cinco proposições apresentadas, algumas podem ser
verificadas por meio de pouca reflexão e da aplicação de algumas pro
posições passíveis de provas, ou de axiomas ou teoremas com pratica
mente a mesma força, assim como foi explicado por mim. Outras re
querem muitos argumentos e proposições. Todas elas, no entanto, foram
estabelecidas através de provas conclusivas, em parte na Física (no livro
Acroasis) e seus comentários e em parte no livro da Metafísica e seus
comentários. Já destaquei que, neste trabalho, minha intenção não é
copiar os livros dos filósofos ou explicar problemas difíceis, mas sim
plesmente mencionar aquelas proposições que estão mais proxima-
mente ligadas ao nosso assunto e são necessárias ao nosso propósito.
As proposições acima, é preciso acrescentar mais uma: a que enun
cia que o universo é eterno. Aristóteles sustenta que ela é verdadeira e
também mais aceitável do que qualquer outra teoria. No momento nós
vamos admiti-la, por hipótese, apenas com o propósito de demonstrar
nossa teoria. A proposição é a seguinte:
Vigésima sexta proposição'. O Tempo e o Movimento são eternos, cons
tantes e têm existência de fato.
De acordo com essa proposição, Aristóteles é compelido a assu
mir que existe, na verdade, um corpo com movimento constante, sem
pre em ato, que é o Quinto Elemento. Por esta razão, ele sustenta que o
Céu não está submetido à gênese ou à destruição, porque o seu movi
mento não pode ser gerado nem destruído. Também defende que
todo movimento deve ser precedido de outro movimento, ora do
mesmo tipo, ora diferente. A crença de que a locomoção do animal
não é precedida de outro movimento não é verdade, pois a causa para
que o animal se mova, após ter repousado, remonta à intenção de
obter as várias coisas que originam aquela locomoção: uma mudança
no estado de saúde, alguma imagem ou uma nova idéia que possa
produzir um desejo de buscar aquilo que conduza ao seu bem-estar
ou de evitar o que lhe contraria. Cada uma dessas três causas coloca o
ser vivo em movimento e cada uma delas é produzida por vários tipos
de movimento. Aristóteles, dessa forma, afirma que tudo o que é cria
do deve, antes de sua criação de fato, ter existido em estado potencial.
INTRODUÇÃO
Por inferências a partir dessa afirmativa, ele busca confirmar sua pro
posição — a coisa que se move é finita e o seu caminho é finito, mas
esta repete o movimento no seu caminho um número infinito de ve
zes. Isto somente pode ocorrer quando o movimento é circular, assim
como ficou demonstrado pela décima terceira proposição. Deduz-se, por
tanto, que um número infinito de coisas não pode coexistir, mas elas
podem suceder umas às outras infinitamente.
Aristóteles se esforça constantemente em confirmar esta proposi
ção, mas eu acredito que ele não considerou suas provas conclusivas.
Pareceu-lhe ser a proposição mais provável e aceitável. No entanto,
seus seguidores e os comentaristas de seus livros defendem que a pro
posição não contém somente uma prova corroborável, mas demons
trativa e que foi, de fato, totalmente estabelecida. Por outro lado, os
Mutakálemim tentam provar que a proposição não pode ser verdadeira,
assim como, na opinião deles, é impossível conceber como um núme
ro infinito de coisas poderia vir a existir mesmo de forma sucessiva.
Eles assumem esta impossibilidade como um axioma. Eu, no entanto,
penso que aquela proposição é admissível, mas não é demonstrativa
como os comentaristas de Aristóteles afirmam, nem, por outro lado,
impossível, como os Mutakálemim dizem. Nós não temos a intenção de
explicar aqui as provas fornecidas por Aristóteles, como tampouco
expor nossas dúvidas a respeito, nem enunciar nossas opiniões sobre a
Criação do Universo. Eu desejo simplesmente mencionar aquelas pro
posições de que iremos precisar para provar os três princípios expos
tos acima. Havendo, portanto, citado e admitido estas proposições, irei
agora tentar explicar o que pode ser inferido delas.
Provas filosóficas para a existência,
incorporeidade e unicidade da Primeira Causa
C A P ÍT U LO
1
OS AR G U M E N T O SFILOSÓFICOS
Primeiro argumento filosófico: De acordo com a vigésima quinta proposição,
deve existir um agente de movimento que move a substância de todas
as coisas transitórias existentes e que deu a elas as condições para rece
ber Forma. A causa do movimento deste agente é encontrada na exis
tência de outro motor, de sua espécie ou diferente, sendo o termo
mudança, em um senso geral, comum a quatro categorias (quarta proposi
ção). Esta série de mudanças não é infinita (terceira proposição). Acredita
mos que ela pode continuar até o Quinto Elemento, e então pára. O
movimento do Quinto Elemento é a fonte de toda força que move e
prepara qualquer substância na terra para sua combinação com uma
determinada forma, e é conectado com aquela força através de uma
corrente de movimentos intermediários. ^4 Esfera Celeste (ou o Quinto
Elemento) possui o movimento de locomoção, que é o primeiro de uma
série de tipos de movimentos {décima quarta proposição), e toda locomo
ção acaba sendo um efeito indireto do movimento desta esfera; por
exemplo, uma pedra é colocada em movimento por um bastão; o bas
tão, pela mão de um homem; a mão, pelos tendões; os tendões, pelos
músculos; os músculos, pelos nervos; os nervos, pelo calor natural do
corpo e o calor do corpo, por sua forma. Esta é, indubitavelmente, a
causa motivacional imediata, mas a ação desta causa imediata ocorre
de acordo com um certo projeto, por exemplo, o de jogar uma pedra
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
no buraco, atingindo-a com um bastão, para fechar a fenda, a fim de
que não penetre ali o vento que sopra. O movimento do ar que causa
o vento é feito do movimento da esfera celeste. Do mesmo modo,
pode ser demonstrado que a causa última de toda geração e destruição
pode ser traçada até o movimento da esfera celeste.
De forma semelhante, deve ser mostrado que a causa última de
toda gênese e destruição pode ser traçada pelo movimento da esfera.
Mas o movimento da esfera deve, igualmente, ser movido por um agente
(,décima sétima proposição) que resida fora da esfera ou dentro dela; um
terceiro caso é impossível. No primeiro caso, se o motor está fora da
esfera, este deve ser corpóreo ou incorpóreo. Se incorpóreo, não pode
ser dito que o agente está fora da esfera, somente pode ser descrito
como separado desta, pois um objeto incorpóreo só pode ser descrito
como residindo fora de um determinado corpo metaforicamente. Na
segunda condição, se o agente reside dentro da esfera, deve ser ou uma
força distribuída ao longo de toda a esfera, de modo que cada parte
dela inclua uma parte da força, como é o caso do calor do fogo, ou
uma força indivisível, como é a alma e o intelecto (décima e déáma p ri
meira proposições).
O agente que coloca a esfera em movimento deve ser, conseqüen
temente, um destes quatro casos-, 1) um corpo exterior à esfera; 2) um ser
incorpóreo, separado desta esfera; 3) uma força espalhada por toda a
esfera; 4) ou uma força indivisível (dentro da esfera).
O primeiro caso, que supõe um agente de movimento da esfera como
um corpo exterior a ela, é impossível, como será explicado. O agente
de movimento, sendo corpóreo, deve se mover ao colocar outro obje
to em movimento (nonaproposição). Assim que este sexto elemento igual
mente se mover ao transmitir movimento a outro corpo, será colocado
em movimento por um sétimo elemento, que também deve se mover.
Deduz-se daí que um número infinito de corpos iria ser necessário
antes que a esfera pudesse ser posta em movimento. Isto é contrário à
segunda proposição.
0 terceiro caso — o motor da esfera é uma força difundida por toda a
esfera — é do mesmo modo impossível. Sendo a esfera corporal e ne
cessariamente finita [primeiraproposição), sua força será igualmente fini
ta (décima segunda proposição), desde que cada parte da esfera contenha
parte da força (décima primeira proposição)-, a última não poderá, conse
qüentemente, produzir um movimento infinito, como afirmamos na
vigésima sexta proposição, que por ora admitimos.
PROVAS
FILOSÓFICAS.
0 quarto caso é igualmente impossível — a esfera é posta em movi
mento por uma força indivisível, que resida dentro da esfera assim
como a alma reside no corpo humano. Porque esta força, ainda que
indivisível, não pode ser, por si só, a causa do movimento infinito. Se
fosse esse o caso, o Primeiro Motor teria um movimento acidental
{sexta proposição). No entanto, o que se move acidentalmente deve
descansar {oitavaproposição), portanto quando algo é posto em movi
mento também descansa. O que se segue deve servir como uma ilus
tração da natureza do movimento acidental. Quando o homem (apre
sento como exemplo) é movido por sua alma — que é sua forma —
para subir a um aposento superior, seu corpo se move diretamente,
enquanto a alma — a causa realmente eficiente do movimento —, par
ticipa acidentalmente disso. Pois, pelo deslocamento do corpo do
centro da casa até o aposento superior, a alma também muda de
lugar. Então, o corpo, posto em movimento por este impulso, vai
descansar, e o movimento acidental da alma é descontinuado. Con
seqüentemente, o movimento daquele suposto Primeiro Motor deve
obedecer a alguma causa que não faz parte das coisas compostas por
dois elementos, ou seja, o agente de movimento e o objeto movido.
Se esta causa, o princípio do movimento, se encontra presente, o
Primeiro Motor, situado em tal complexo, colocará o outro elemento
em movimento; na falta desta causa, não haverá movimento. Os seres
vivos, portanto, não se movem continuamente, ainda que cada um te
nha um elemento motivacional indivisível. Isso porque seu motor não
move constantemente, o que aconteceria se este produzisse movimen
to por iniciativa própria. Ao contrário, as coisas às quais a ação está
ligada são separadas do motor. A ação é causada pelo desejo do agra
dável, por aversão àquilo que é desagradável, por alguma imagem ou
por uma idéia — quando o ser móvel tem a capacidade de concebê-la.
Quando alguma destas causas está presente então o motor ama; seu
movimento é acidental e necessariamente se encaminha para um fim
{oitava proposição). Se o motor da esfera celeste fosse desse tipo, não
poderia se movimentar ad injinitum. Nosso oponente,3 no entanto,
sustenta que as esferas se movimentam continuamente ad infinitim .
3
No sentido de antagonista, de opinião oposta, não precisamente adversário:
refere-se a Aristóteles, cuja opinião, acerca da eternidade do Universo, M aim ô
nides combate mais adiante (Maeso).
5»
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Se assim fosse, e isto é de fato possível (décima terceira proposição), a
causa eficiente do movimento da esfera deveria ser, de acordo com a
divisão acima, pertinente ao segundo caso, ou seja, um ser incorpóreo e
separado da esfera.
Fica, pois, demonstrado que a causa eficiente do movimento da
esfera celeste, se este é eterno e contínuo, não pode ser, de modo al
gum, corporal nem residir em um corpo; não pode se mover por inici
ativa própria ou por acidente; deve ser indivisível e imutável (sétima e
quinta proposições). Este Primeiro Motor da esfera celeste é Deus (Ben
dito seja o Seu Nome!).
A hipótese de que existam dois deuses é inadmissível, pois seres
absolutamente incorpóreos não podem ser contados (décima sexta p r o
posição), exceto por suas causas e efeitos. A relação de tempo não é
aplicável a Deus (décima quinta proposição), pois o movimento não pode
ser predicado a Ele.
Conseqüentemente, o resultado da argumentação acima é o se
guinte:
1) a esfera celeste não pode se mover ad infinitum por iniciativa
própria;
2) o Primeiro Motor não é corpóreo nem uma força residindo em
um corpo;
3) é Um, imutável, e sua existência independe do tempo.
Três dos nossos postulados estão, portanto, provados pelos princi
pais filósofos.
Segundo argumento filosófico: Os filósofos empregam outro argumen
to,-baseado na seguinte proposição de Aristóteles: “Caso se tenha
uma coisa composta de dois elementos, e um deles sabe-se que existe
por si mesmo, separado daquela coisa, então o outro deve igualmente
existir por si mesmo, separado daquele composto. Pois se a natureza
dos dois elementos fosse tal que eles apenas pudessem existir em
conjunto, como por exemplo a matéria e a forma, nenhum dos dois
poderia existir, de qualquer forma que fosse, sem o outro. Assim, o
fato de um dos elementos ter uma existência separada prova que os
dois elementos não estão indissoluvelmente ligados; portanto, o ou
tro elemento também pode ter uma existência separada. Concluímos,
então, quanto à existência do vinagre com mel e do mel sozinho, que
também o vinagre existe sozinho”. Logo após expor esta proposição,
PROVAS
FILOSÓFICAS.
Aristóteles continua: “...encontramos muitos objetos compostos de
um m otor e de um motum, ou seja, os objetos põem outras coisas em
movimento e, ao mesmo tempo em que fazem isto, eles mesmos são
postos em movimento por outras coisas. Isto está claro em todos os
elementos intermediários de uma série de coisas em movimento.
Mas também vemos uma coisa que é movida, sem que ela mesma
mova algo, ou seja, é o último membro da série. Conseqüentemente,
um m otor deve existir sem ser, ao mesmo tempo, um motum, e este é
o Primeiro Motor, o qual, não sendo sujeito ao movimento, é indivi
sível, incorpóreo e independente do tempo, como foi exposto no
argumento anterior.”
Terceiro argumento filosófico: Extraído das palavras de Aristóteles, em
bora este o tenha formulado de uma forma diferente. Sua argumenta
ção é a seguinte: não há dúvida que muitas coisas existem de fato, quais
sejam, aquelas percebidas pelos sentidos. Somente pode haver três
possibilidades:
1) nenhuma destas coisas tem início e fim;
2) todas elas têm início e fim;
3) algumas têm e outras não têm início e fim.
O primeiro caso é evidentemente inadmissível, pois percebemos
claramente objetos que vêm a existir e são subseqüentemente destruí
dos. O segundo também é inadmissível, pois se tudo tivesse somente
uma existência temporária, todas as coisas seriam destruídas, e aquilo
que representa toda uma classe de coisas é necessariamente perma
nente. Todas as coisas, portanto, deveriam caminhar para um fim, e
então nada poderia existir, porque não haveria ser algum para produzir
qualquer coisa. Conseqüentemente, nada existiria (se todos os seres
fossem transitórios). Mas como nós vemos as coisas existirem e perce
bemos a nós mesmos como seres existentes, concluímos o seguinte:
desde que há seres que, indubitavelmente, têm existência temporária,
deve existir também um ser eterno que não é sujeito à destruição e cuja
existência seja real, não somente possível.
Argumentou-se, posteriormente, que a existência deste ser é neces
sária, seja com relação a si mesmo ou a uma força externa. Em suma,
sua existência ou inexistência seria igualmente possível, devido às suas
próprias propriedades, mas sua existência seria necessária devido a uma
força externa. Aquela força seria, então, o ser que possui existência
6o
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
absoluta (décima nona proposição). Fica, pois, demonstrada a obrigatorie
dade de haver um ser, cuja existência seja absolutamente independente
e também a fonte da existência de todas as coisas, sejam elas transitó
rias ou permanentes, se, como defende Aristóteles, existe uma coisa
que é o efeito de uma causa eterna e, portanto, deve ser, ela mesma,
eterna. E uma demonstração cuja correção não admite dúvida, nem
discussão ou rejeição, exceto por aqueles que não têm conhecimento
do método demonstrativo. Depois disso, nós diremos que qualquer
coisa cuja existência é independente não deve sua existência a alguma
causa (décima proposição), e que um ser assim não inclui, de modo algum,
qualquer pluralidade (vigésima primeiraproposição). Do que se conclui que
não pode ser um corpo, nem uma força residindo em um corpo (vigési
ma segunda proposição). Fica agora claro que deve haver um ser com exis
tência absolutamente independente, um cuja existência não pode ser
atribuída a nenhuma causa externa e que não admite elementos dife
rentes. Ele não pode ser corpóreo nem uma força residindo em um
corpo. Este ser é Deus.
Pode ser facilmente demonstrada a impossibilidade de que a exis
tência absolutamente independente não pode ser atribuída a dois se
res. Pois se fosse este o caso, a existência absolutamente independente
seria uma propriedade adicionada à substância de ambos. Assim, ne
nhum deles seria absolutamente independente devido a sua essência,
mas somente devido a uma certa propriedade, ou seja, a da existência
independente, comum a ambos. Poderia se explicar de múltiplas ma
neiras que a existência independente não pode se conciliar com o prin
cípio do dualismo por uma série de motivos. Não faria diferença se
imaginássemos dois seres com propriedades semelhantes ou distintas.
A razão para tudo isso está, sobretudo, na absoluta simplicidade no
nível mais alto de perfeição da essência deste ser, que é o único mem
bro de sua espécie e nunca depende de causa alguma. Este ser, portan
to, não tem nada em comum com os outros seres.
Q uarto argumento filosófico: Este também é um conhecido argumento
filosófico. E sabido que estamos constantemente vendo coisas que, da
potência, passam ao ato, mas em todo caso há, para a transição de uma
coisa, um agente separado dela (décima oitava proposição). Está claro, ou-
trossim, que o agente também passou da potência para o ato. Ele foi
primeiro potencial, porque não poderia ser amante devido a alguns
PROVAS
FILOSÓFICAS.
obstáculos contidos nele ou devido à falta de uma certa relação entre
ele e o objeto de sua ação. Tornou-se um agente amante assim que a
relação tornou-se amai. Seja qual for o caso, um agente é novamente
necessário para remover o obstáculo ou criar a relação. O mesmo pode
ser argumentado com respeito ao agente antes mencionado, que cria a
relação ou remove o obstáculo. Esta série de causas não pode seguir ad
infinitum; nós devemos finalmente chegar a uma causa da transição de
um objeto de um estado de potência àquele de ato, que seja constante
e não admita potência de qualquer tipo. Nada existe de potencial na
essência desta causa, pois se a sua essência incluísse alguma possibili
dade de existência, não existiria de forma alguma (vigésima terceira propo
sição)-, esta não pode ser corpórea, mas deve ser espiritual (vigésima quar
ta proposição). E o ser imaterial que nunca inclui possibilidade, mas
existe em ato por sua própria essência, é Deus. Desde que Ele seja
incorpóreo, como tem sido demonstrado, segue-se que Ele é Um {déci
ma sexta proposição).
Mesmo que admitíssemos a Eternidade do Universo, nós podería
mos, por qualquer um destes métodos, provar: a existência de Deus,
que Ele é Um e Incorpóreo e não reside como uma força em um
corpo.
Além disso, há outro método correto para provar a Incorporeida
de e a Unicidade de Deus: se houvesse dois deuses, seria obrigatório
que possuíssem algo em comum, pelo fato de serem deuses, e outro
elemento pelo qual seriam diferenciados um do outro e exisdriam
como dois deuses. O elemento diferenciador poderia, em ambos, ser
diferente da propriedade comum aos dois — neste caso, ambos con-
sisdriam de elementos diferentes, e nenhum dos dois poderia ser a
Primeira Causa ou teriam existência absolutamente independente. Po
rém, a existência de ambos dependeria de certas causas (décima nona
proposição) ou, caso o elemento diferenciador estivesse somente em
um deles e fosse diferente do elemento comum a ambos, então o ser
não poderia ter independência absoluta. Outra prova da unicidade de Deus-,
Tem sido demonstrado que o Universo inteiro é um corpo orgânico,
cujas partes estão interligadas, e que as influências das esferas acima
impregnam toda a substância terrestre e a prepara para suas formas.
Estabelecido isto, é impossível considerar que uma deidade esteja
engajada na formação de uma parte e outra deidade, na formação de
outra parte deste corpo orgânico, cujas partes estão tão estreitamente
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
interligadas. Uma dualidade não pode ser imaginada desta forma, quer
uma deidade esteja ativa por um tempo e a outra por outro tempo;
quer ambas atuem simultaneamente, tudo sendo feito somente pelas
duas juntas. A primeira alternativa é absurda por vários motivos: se,
no tempo em que uma deidade esteja ativa, a outra pudesse também
estar ativa, não haveria razão por que uma poderia agir e a outra não;
se, por outro lado, for impossível para uma deidade agir enquanto a
outra está trabalhando, deve haver então outra causa (entre estas dei-
dades) que (por um certo tempo) permita a uma agir e não permita à
outra. Esta diferença não poderia ser causada pelo tempo, pois o tem
po é imutável e o objeto da ação, do mesmo modo, remonta a um e
ao mesmo todo orgânico. Além disso, cada uma das duas se incluiria
dentro do tempo, quando sua atuação estivesse conectada a ele. Cada
uma das duas passaria da potência ao ato, ao atuar, de maneira que
ambas necessitariam de um agente para esta transição. Enfim, have
ria na essência de cada uma das duas uma possibilidade (de existência).
Pois bem, supor que ambas, conjuntamente, operam sempre em tudo
quanto se realiza no Universo, de maneira que uma não atue sem a
outra, é absurdo. Com efeito, sempre que uma determinada ação só
pode se realizar por um conjunto de forças, nenhuma destas forças
age por iniciativa própria, como tampouco é a causa imediata de tal
ação — mas a união é a causa imediata. Já se demonstrou que a ação
do Absoluto não pode se dar devido a uma causa (externa). A união
é também um ato que pressupõe uma causa que leve a esta união. E
se há esta causa, ela é indubitavelmente Deus. Porém, se isto tam
bém consiste de um número de forças separadas, uma causa é neces
sária para a combinação destas forças, assim como no primeiro caso.
E assim se chegará necessariamente a um ser único, causa da existên
cia do Universo, que é um todo; não fará diferença se assumirmos
que a Primeira Causa produziu o Universo pela Creatio ex nihilo ou se o
Universo coexistiu com a Primeira Causa. Então fica claro como po
demos provar, do fato de que este Universo é um todo, a Unicidade
de Deus.
Outro argumento para estabelecer a incorporeidade de Deus:
1) todo corpo é composto de matéria e forma (vigésima segunda p r o
posição)-,
•2) toda composição destes dois elementos requer um agente para
efetuar a combinação.
PROVAS
FILOSÓFICAS.
Logo, é evidente que um corpo é divisível e tem dimensões. Um
corpo é, portanto, indubitavelmente sujeito a acidentes. Como con
seqüência, não pode ser uma unicidade, seja porque tudo o que é
corpóreo é divisível ou porque é uma composição. Portanto, pode
ser logicamente dividido em dois elementos, pois um corpo só pode
ser definido como um corpo determinado quando o elemento dife
renciador é acrescido ao substratum corpóreo e deve, assim, incluir
dois elementos. No entanto, já ficou demonstrado que o Absoluto
nunca admite dualismo.
Agora que já discutimos estas provas, iremos expor nosso próprio
método, como havíamos prometido.
Sobre as Esferas Celestes
e as Inteligências Puras ou Separadas
CA P ÍT U LO
2
SOBRE A EXISTÊNCIA D A S INTELIGÊNCIAS PU R A S OU SERES
PURAM ENTE ESPIRITUAIS
Este Quinto 'Elemento, a esfera celeste, tem que ser necessariamente
transitório, assim como o movimento, ou eterno, como afirma o opo
nente. Se as esferas são transitórias, então Deus é o seu Criador, pois
tudo quanto existe após a inexistência pressupõe um agente, sendo
absurdo considerar que a coisa gerou a si mesma. Todavia, se esta
esfera não cessou nem cessará de se mover, com movimento perpé
tuo e eterno, segue-se necessariamente, de acordo com as proposi
ções precedentes, que o agente deste movimento perdurável não é um
corpo, nem força em um corpo, é Deus (Bendito seja o Seu nome!).
Veja claramente que a existência de Deus — ser necessário, carente de
causa e cuja existência está por si isenta de toda possibilidade— demons
tra-se com provas diretas e certas, seja o mundo Creatio ex nihilo a
partir da inexistência ou não. Fica, desta forma, provado que Ele é um
e incorpóreo, como dissemos, pois a demonstração de sua unicidade e
incorporeidade é comprovada, mesmo sem qualquer referência à teo
ria da Criação ou à Eternidade do Universo, conforme expusemos no
terceiro argumento filosófico4 (sobre a existência de Deus) e, também, em
4
Vide capítulo 1 (NT).
66
O
GUIA
DOS
PERPLEXOS
nossa descrição subseqüente dos métodos dos filósofos em provar a
incorporeidade e unicidade de Deus.
Parece-me conveniente completar as teorias dos filósofos expondo
suas provas acerca da existência das Inteligências Separadas, de modo a
demonstrar explicitamente sua concordância com os princípios de nossa
religião. Refiro-me, aqui, à existência dos anjos. Terminado este assun
to, voltarei ã prometida argumentação sobre a Creatio ex nihilo, dado
que nossas provas mais sólidas a esse respeito somente serão válidas e
claras depois de bem entendida a teoria da existência das Inteligências
Separadas e de apresentadas suas provas. Mas, antes de tudo, mostrare
mos os segredos de todo este tema, tanto dos capítulos anteriores quanto
dos posteriores.
Observação prelim inar: É importante saber que não é meu propósito
neste Tratado ocupar-me das ciências naturais, nem elucidar as ques
tões da metafísica, segundo certos sistemas, ou demonstrar o que já
está demonstrado. Tampouco foi minha intenção resumir e compen-
diar a disposição das esferas celestes ou dar a conhecer o seu número,
já que os livros sobre esses assuntos são suficientes e, se não o foram
em alguma dessas matérias, o que eu poderia acrescentar não valeria
mais do que o já dito. Meu objetivo no presente Tratado é aquele indi
cado na Introdução, ou seja, esclarecer os pontos obscuros da Bíblia e
expor explicitamente o verdadeiro sentido de seus fundamentos, en
cobertos à inteligência do povo. Por isso, quando me referir à existên
cia e ao número de Inteligências Separadas ou das esferas, bem como
às causas de seus movimentos ou ao verdadeiro conceito da matéria e
da forma; ou então ao sentido da Manifestação Divina ou coisas seme
lhantes, não pense que eu abrigue o propósito de investigar acerca de
algum ponto filosófico, pois estas matérias têm sido expostas em nu
merosos livros e a maior parte comprovada. Minha única intenção é
trazer à memória o que possa elucidar certas obscuridades da Lei,'
para que algumas dificuldades sobre o conhecimento deste assunto
desapareçam. Você já sabe, pela introdução deste Tratado, que seu
objetivo aponta para a explanação do delato da Criação — M aassêBereshít
(Gênesis 1 a 3) e do delato da Carruagem Divina — M aassêM erkavá (Eze-
quiel 1) e, também, para a elucidação de questões a respeito da Profecia
5
A Lei: refere-se à Torá ou à Palavra de Deus descrita na Bíblia, segundo a
tradição judaica (NT).
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
e do conhecimento de Deus. Sempre que, em um capítulo, eu abordar
a explicação de um ponto já demonstrado, seja nas Ciências Naturais,
seja na Metafísica, ou apresentado simplesmente como o mais prová
vel ou, ainda, um assunto relacionado à Matemática, saiba que este
ponto é a chave imprescindível para se compreender algum aspecto
dos Livros dos Profetas, com respeito a sua interpretação esotérica.
Por isso, menciono, explico e demonstro o ponto em questão como
útil para a compreensão dos relatos da Carruagem Divina ou da Criação
ou para a exposição de algum princípio relacionado à Profecia ou à
crença em quaisquer das verdades ensinadas na Bíblia.
A partir desta observação prévia, voltaremos ao tema que começa
mos a tratar.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
6p
C A P ÍT U LO
3
SOBRE A HIPÓTESE DE ARISTÓ TELES A C E R C ADOS M O VIM EN TO S D A S ESFERAS CELESTES
D A S C A U S A S
A teoria formulada por Aristóteles acerca das causas dos movimentos
das esferas celestes levou-o a assumir a existência das Inteligências
Separadas. Ainda que se tratem de hipóteses indemonstráveis, são, não
obstante, entre as opiniões que podem ser enunciadas, as menos ex
postas a dúvida, como afirma Alexandre (de Afrodisia) no livro intitu
lado ^4 Origem do Universo,6 Inclui máximas idênticas àquelas ensinadas
na Bíblia, sobretudo segundo as interpretações midráshicas genuínas mais
famosas, conforme demonstrarei. Por este motivo exporei as ditas te
orias e provas, selecionando as coincidentes com a Torá e com a dou
trina dos nossos Sábios.
6
“O tratado de Alexandre de Afrodisia, não conservado em grego, parece ser o
mesmo que menciona Casiri com o título De rerum creatorum principiis e cuja
tradução árabe se encontra no manuscrito árabe DCCXCIC de El Escoriai.
Vide Casiri, Bibliotheca ar. Hisp., 1.1., p. 242” (Munk).
SOBRE
AS ESFERAS
CELESTES.
71
CAPÍTULO 4
AS ESFERAS CELESTES E AS CAUSAS DO SEU MOVIMENTO
A simples reflexão evidencia que a esfera celeste está dotada de alma.
Não obstante, há aqueles para quem, à primeira vista, isto seja consi
derado ininteligível, ou seja rechaçado de pronto, imaginando que
quando consideramos as esferas como dotadas de alma, trata-se de uma
alma como a do homem, do asno ou do touro. Não é este o sentido,
mas sim que sua locomoção indica que ela possui em si, indubitavel
mente, um princípio por meio do qual se move, e é, com toda segu
rança, uma alma. Seria absurdo considerar que o princípio do movi
mento circular das esferas fosse semelhante ao movimento retilíneo
de uma pedra, para baixo, ou do fogo, para cima, de tal maneira que
fosse uma propriedade natural e não uma alma. Pois aquilo que possui
tal impulsão natural somente é movido pelo princípio que possui em
si mesmo quando se encontra fora de seu lugar e tende a voltar a ele.
Assim que chega lá, passa a descansar.7 No entanto, a esfera celeste
move-se em círculos, dentro de sua órbita, e não é porque está dota
da de alma que tem de se mover assim, pois todo ser animado se põe
em movimento por instinto ou pela ra%ão. Por instinto, aqui, entendo
7
Vide Primeira Parte, cap. 72 (Maeso).
72.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
como a tendência ao conveniente ou a fuga ao repulsivo, não impor
tando se o agente motor é externo, como, por exemplo, quando o
animal foge do calor solar e, sedento, dirige-se ao local onde está a
água. Não faz diferença se o motivo realmente existe ou se é fruto de
sua imaginação, dado que o animal é impulsionado, desta forma, pela
repulsa ao nocivo e tendência ao conveniente. Pois bem, a esfera
celeste não se move porque seu propósito é fugir do prejudicial ou
aproximar-se do benéfico, já que o ponto para o qual converge é o da
partida, Além disso, caso seu movimento tivesse tal objetivo, ocorre
ria necessariamente que, ao chegar a sua meta, permaneceria em re
pouso, posto que, ao se mover para buscar ou para evitar algo, sem
jamais poder alcançá-lo, o movimento resultaria inútil. A ação circu
lar de uma esfera somente pode se efetuar em virtude de uma idéia
determinante para que se mova assim. Todavia, se uma idéia somen
te é factível em seres dotados de intelecto, então a esfera celeste é um
ser dotado de intelecto.
Pois bem, todo aquele que possui intelecto, por meio do qual con
ceba uma idéia, e uma alma, pela qual possa se mover, realiza isso por
obra da mera representação mental, dado que esta, por si só, não ne
cessita de movimento. Isto já foi exposto na Metafísica, de Aristóteles.
Você mesmo reconhecerá que concebe muitas coisas pelas quais pode
ria se mover e, sem dúvida, não se move de modo algum até que não
lhe sobrevenha um desejo impulsivo em direção ao objeto representa
do. Somente então se mobiliza para a consecução do planejado. Fica
claro, portanto, que nem a alma, fonte do movimento, nem o intelecto,
fonte das idéias, são suficientes para originar o movimento se não hou
ver o desejo pelo objeto.
Segue-se daqui, portanto, que a esfera celeste possui desejo por um
ideal tal como ela o compreende e que este ideal, pelo qual anseia, é
Deus (Bendito seja!). E neste sentido que se afirma que Deus move as
esferas celestes, pois as esferas desejam se tornar semelhantes ao com
preendido por elas como ideal. Este ideal é somente no sentido estrito
da palavra, não sujeito à mudança ou alteração de qualquer tipo, mas
constante na produção de tudo o que é bom. Para a esfera, como corpo,
isto é impossível, porque sua ação é o movimento circular e nada mais,
esta é a única ação de seres corpóreos que pode ser perpétua, é o movi
mento mais simples de um corpo e não permite nenhuma mudança na
essência da esfera nem nos resultados benéficos de seu movimento.
SOBRE
AS
ESFERAS
CELESTES.
Aristóteles, ao chegar a estes resultados, investigou o tema poste
riormente e descobriu, por inferência, que as esferas são muitas e que
todas se movimentam em círculos, mas diferem entre si em velocidade
e direção. Ele argumenta que o ideal compreendido por uma esfera
que completa seu circuito em um dia é diferente, naturalmente, do de
outra esfera que efetua seu circuito completo em trinta anos. Daí con
clui categoricamente que existem tantos ideais quantas são as esferas e
que cada esfera tem um desejo por aquele ideal, fonte de sua existên
cia, e o desejo é a causa de seu movimento individual. Portanto, de
fato, o ideal coloca a esfera em movimento. Nem Aristóteles nem qual
quer outro pensador decidiu se o número destes ideais é dez ou cem,
ele afirma somente que são tantas quantas são as esferas. Pois bem,
como alguns de seus contemporâneos sustentavam que o número de
esferas era cinqüenta, Aristóteles disse que, se isso fosse verdade, o
número de ideais seria igualmente de cinqüenta. Em seu tempo os
conhecimentos matemáticos eram escassos e, todavia, imperfeitos.
Acreditava-se que, para cada movimento, precisava-se de uma esfera
em separado, pois ignoravam que a inclinação de uma só esfera origina
muitos movimentos visíveis, como, por exemplo, o caso da mudança
na longitude de um astro, sua declinação e os lugares de seu nascimen
to e ocaso, vistos no círculo do horizonte. Mas como este não é nosso
objetivo no momento, voltemos ao tema.
Os filósofos modernos têm afirmado que as Inteligências Separa
das são dez, porque contaram as esferas que têm astros e a esfera cir
cundante, ainda que algumas delas contenham numerosas órbitas. Há
no total nove esferas: a esfera circundante universal, a dos astros fixos
e as dos sete planetas. Nove Inteligências Separadas correspondem às
nove esferas e a Décima Inteligência é o Intelecto Ativo, cuja existên
cia está demonstrada pela transição, por parte do nosso intelecto, da
potência ao ato; e pela mesma transição no caso das formas de todos
os seres transitórios. Pois tudo quanto passa da potência ao ato neces
sita de um agente externo do mesmo tipo. Com efeito, o artífice não
fabrica um cofre por ser um artífice, mas sim porque tem em sua men
te a forma do cofre, e é esta forma na mente do artífice que, ao traba
lhar na madeira, faz o cofre passar da forma potencial à existência. E o
que transmite forma à matéria deve ser forma pura; logo, a fonte do
intelecto deve ser Inteligência Pura, neste caso, o Intelecto Ativo. A
relação deste com os elementos e seus componentes é análoga à das
74
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Inteligências Separadas junto às respectivas esferas. E o nosso intelec
to em ação — originado no Intelecto Ativo e que nos permite compre
endê-lo — encontra paralelo nos intelectos de cada uma das esferas,
originados na Inteligência Separada correspondente a cada esfera ce
leste, e que, da mesma forma, possibilita à esfera compreender a sua
Inteligência Separada, formar uma idéia dela e se movimentar no sen
tido de se tornar semelhante a ela.
Aristóteles depois inferiu o que já foi explicado: Deus não ama por
contato direto. Assim, quando Ele destrói tudo pelo fogo, este é posto
em ação através do movimento das esferas, e estas, pelas Inteligências
Separadas. Estas são idênticas aos anjos, que estão em volta Dele, e
suas ações por influência direta são, conseqüentemente, cada uma na
sua vez, a causa do movimento das esferas. Pois bem, como os Seres
Puramente Espirituais não diferem em sua essência, nem são de modo
algum suscetíveis de numeração quanto a sua diversidade, deduz-se,
segundo ele (Aristóteles), que Deus criou a Primeira Inteligência, que é
o agente de movimento da primeira esfera. A Inteligência que mobili
zou a segunda esfera tem como causa e princípio a Primeira Inteligên
cia, e assim sucessivamente, de maneira que a inteligência que põe em
movimento a esfera mais próxima à Terra é a fonte e a origem do
Intelecto Ativo, o último na série de Seres Puramente Espirituais. A
série de corpos materiais começa, de forma semelhante, pela esfera
superior e termina pelos elementos e seus componentes. A Inteligên
cia que move a esfera superior não é o Ser Absoluto, pois há um ele
mento comum a todas as Inteligências, que é a propriedade de ser um
agente de movimento de uma esfera, e há outro elemento pelo qual
cada uma é distinta das demais. Cada uma das Dez Inteligências inclui,
portanto, dois elementos e, conseqüentemente, outro ser deve ser a
Primeira Causa.
Esta é a teoria e a opinião de Aristóteles, e seus argumentos a res
peito têm sido expostos, enquanto podem sê-lo, nas obras da Escola
Aristotéüca. Em suma, ele acredita que: as esferas são seres dotados de
alma e intelecto, capazes de compreender totalmente os princípios de
suas existências; existem Seres Puramente Espirituais (Inteligências
Separadas) incorpóreos, cuja existência é derivada de Deus, e estes
formam o elemento intermediador entre Ele e este mundo material.
Nos capítulos seguintes vou expor quanto os ensinamentos da Bí
blia estão em harmonia com estes pontos de vista e o quanto deles
diferem.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
CAPÍTULO 5
CONCORDÂNCIA DA TEORIA DE ARISTÓTELES COM OS
ENSINAMENTOS DA BÍBLIA
A Bíblia sustenta a teoria de que as esferas celestes são dotadas de
alma e intelecto, isto é, capazes de compreender as coisas. Não são,
como acreditam os ignorantes, corpos inanimados como o fogo e a
terra, mas sim —como asseguram os filósofos —dotados de vida,
obedientes a seu Senhor, Louvando-o e Elogiando-o em alto grau:
“Os Céus declaram a Glória de Deus” (Salmo 19:2). É um grande
erro pensar que esta é somente uma figura de linguagem, pois os
verbos higníd (declarar) e sipêr (narrar), quando usados juntos, em
hebraico, referem-se a seres dotados de inteligência, é isto o que o
Salmista realmente quer dizer ao descrever a própria ação celeste.
Em outras palavras, o que as esferas fazem de fato, e não o que o
Homem pensa sobre elas, pode ser inferido melhor das palavras: “Não
há fala e não há palavras, não são ouvidas suas vozes” (Salmo 19:4).
Assim, está claro e manifesto que se refere a elas mesmas, louvando
a Deus e anunciando Suas maravilhas, sem palavras de lábios ou lín
gua. Quando o ser humano louva a Deus com palavras pronuncia
das, descreve apenas as idéias que ele concebeu; mas são as idéias
que formam o verdadeiro louvor. A razão pela qual ele dá expressão
a estas idéias está no seu desejo em comunicá-las aos outros ou de se
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
certificar de que foi ele mesmo quem as concebeu. Por isso é dito a
este respeito: “Reflitam em seus corações quando estiverem em seus
leitos, e silenciem.” (Salmo 4:5), conforme expusemos.8 Somente
pessoas ignorantes ou obstinadas poderiam recusar-se a admitir esta
prova obtida da Bíblia.
De acordo com a opinião dos nossos Sábios, não vejo necessidade
de explicação nem de prova. Considere tão somente a forma que eles
deram à benção recitada ao se ver a Lua Nova9 e as idéias recorrentes
nas orações e comentários midráshicos, a propósito das seguintes pas
sagens: “E os exércitos dos Céus se prostram ante Ti” (Neemias 9:6)
e “Em um único clamor os astros da manhã e os aplausos de todos os
filhos de Deus” (Jó 38:7). E m BereshitKabá, sobre a passagem: “ Ve-há-
A ret^ haitáüòYm. va-Vôhu” — “E a Terra estava va^ja e sem form a” (Gê
nesis 1:2), nossos Sábios se expressam assim: “As palavras'Tôhu e Vôhu
significam lamentava-se e chorava; a Terra se lamentava e chorava por
sua má sorte, como se dissesse: ‘Eu e os Céus fomos criados junta
mente; e no entanto os seres acima vivem para sempre e nós somos
mortais’”. Nossos Sábios, por meio deste comentário, indicam sua
crença de que as esferas são seres dotados de alma e não de matéria
inanimada como os elementos.
A opinião de Aristóteles, de que as esferas são capazes de com
preensão e concepção, está de acordo com as palavras de nossos
profetas, teólogos ou Sábios. Os filósofos concordaram posterior
mente com o fato de que este mundo inferior é governado por influ
ências que emanam das esferas celestes,10 e que estas compreendem e
têm conhecimento das coisas que as influenciam. Esta teoria tam
bém é encontrada na Bíblia: [os astros — todo o exército dos Céus]
“(..,) que separou YHVH Teu Deus a eles, para todos os povos sob os
Céus” (Deuteronômio 4:19). O que quer dizer: Deus mostrou que os
astros existem para serem os intermediários no governo de Suas cri
aturas, não para serem objetos de adoração por parte do Homem.
Isto foi, portanto, deixado bem claro na passagem: “E para governar
(Limshól) de dia e de noite” (Gênesis 1:18). Aqui, o sentido do termo
8
9
10
Vide Primeira Parte, cap. 64.
Bênção da Lua: Bircát Há-Levaná (NT).
Vide Primeira Parte, cap. 72.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
Governo ('Memsbalá) refere-se ao poder que as esferas possuem de go
vernar a Terra, é uma idéia complementar à de oferecer lu^ e trevas —
estas últimas, causas diretas da geração e da destruição, tal como é
esclarecido nas palavras: “separar a luz das trevas” (Gênesis 1:18). É
impossível supor que quem governa algo seja ignorante das coisas
que governa, se tom -à im os governar n o seu sentido próprio. Acrescen
taremos outro capítulo a este assunto.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
79
CAPÍTULO
6
O QUE SE ENTENDE PELO TERMO MALÁCH (ANJO) E SUAS
ACEPÇÕES, ESPECIALMENTE A DE INTELIGÊNCIAS SEPARADAS
Com respeito à existência dos anjos, é desnecessário citar provas da
Bíblia, onde o fato é freqüentemente mencionado. O termo TLlohím
significa Juisn como em: “A causa de ambas as partes deve ser leva
da diante dos ju iz es” (Exodo 22:8). Aplica-se metaforicamente aos
anjos e também a Deus, como Juiz acima dos anjos. Quando está
escrito: “Eu sou YHVH, vosso Deus”, o pronome vosso se refere a
toda a Humanidade, mas a frase Hlohê há-TLlohím (Juiz dos Juizes)
refere-se ao Deus dos anjos e, em A donê há-Adoním (Senhor dos Se
nhores), ao Deus das esferas e dos astros, que são os senhores de todas
as demais criaturas corpóreas. Os nomes Hlohím (Juizes) tA doním (Se
nhores), nestas frases, não se referem a juizes humanos ou mestres,
pois estes estão em um nível inferior ao dos corpos celesdais; muito
menos se referem à Humanidade em geral, incluindo mestres e servos,
ou a objetos de pedra e madeira adorados por alguns como deuses,
pois não seria elogio ou honra a Deus fazê-lo superior por meio de
uma pedra, madeira ou pedaço de metal. Estas frases, portanto, não
11
Vide Primeira Parte, cap. 2.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
admitem outra interpretação além desta: Deus é o Juiz dos Juizes,
isto é, o Senhor dos anjos e o Senhor das esferas celestes.
Já dedicamos anteriormente um capítulo para demonstrar que os
anjos são incorpóreos, com o que também concorda Aristóteles. Há
apenas uma diferença nos nomes empregados: ele denomina Inteligên
cias Separadas ao que nós chamamos Anjos, Sua teoria é a de que as
Inteligências Separadas são seres intermediários entre a Primeira Causa e
as coisas existentes, e produzem o movimento das esferas, de cujo
movimento depende a existência de todas as coisas. Esta é a visão
também encontrada em toda a Bíblia, na qual toda ação de Deus é
descrita como tendo sido realizada por Malacbím (Anjos). Mas anjo sig
nifica mensageiro. Portanto, todo aquele que é imbuído de uma certa
missão é um anjo. Mesmo os movimentos do animal irracional são, às
vezes, semelhantes à ação de um anjo, quando estes movimentos ser
vem ao propósito de Deus, que nele pôs uma força executora de tal
movimento. Por exemplo, quando Daniel afirma: “Meu Deus enviou o
seu anjo, que fechou a boca dos leões, e não me atacaram” (Daniel
6:22). Outro exemplo está nos movimentos do asno de Bilám, descri
tos como causados por um anjo. Até mesmo os elementos recebem
igualmente a denominação de malachím (anjos ou mensageiros), como acon
tece em: “Que faz Seus anjos (malacháv) os ventos, Seus ministros o
fogo flamejante” (Salmo 104:4).
Não há dúvidas de que a palavra anjo é usada como:
1) um mensageiro entre os homens, por exemplo: “E Enviou Jacob
anjos/mensageiros ('malachímj à sua frente” (Gênesis 32:4);
2) um Profeta, por exemplo: “Subiu o anjo/Profeta de YHVH de Guilgál
a Bochínf' (Juizes 2:1), “e enviou um anjo/Profeta (malách), e nos
tirou do Egito” (Números 20:16);
3) ideais percebidos pelos Profetas em visões proféticas;
4) faculdades anímicas nos homens, conforme explicaremos mais
adiante.
Quando afirmamos que a Bíblia ensina que Deus governa este
mundo por meio dos anjos, queremos dizer que estes anjos são idênti
cos às Inteligências Separadas. Em algumas passagens, utiliza-se o plural
em referência a Deus, como em: “Façamos o Homem à Nossa Ima
gem” (Gênesis 1:26), ou “Vamos, desçamos e confundamos ali a sua
língua” (Gênesis 11:7). Nossos Sábios explicam isso do seguinte modo:
SOBRE
AS
ESFERAS
CELESTES.
Deus não faz nada antes de contemplara Família Superior. A expressão
contemplar é surpreendente, pois é a mesma utilizada por Platão ao dizer
que “Deus contemplou o Mundo das Idéias, e então produziu os seres
existentes”. Em certas passagens nossos Sábios declaram de forma
decidida: “Deus não faz nada sem consultar a Família Superior” (a
palavra fam ília significa exêráto em grego). Sobre as palavras: “o que
Eles já fizeram” (Eclesiastes 2:12), o seguinte comentário é feito no
Talmúd, no Beresblt Rxibá e no Midrásb Kohélet-. “Não se diz ‘O que Ele
tem feito’, mas sim ‘o que Eles têm feito’”, do que se conclui que Ele e
Seu tribunal deliberam com respeito a cada um dos membros da hu
manidade antes de colocar a cada um deles no seu lugar, conforme se
diz: “Ele, teu pai, te assumiu, Ele te fez e te preparou” (Deuteronômio
32:6). O Bereshít Rabá explica que, onde quer que o termo e (Deus)
ocorra na Bíblia, entenda-se E le e Seu tribunal.
Em todos estes textos não se insinua que Ele fale, delibere, exa
mine ou consulte com o propósito de se servir da opinião alheia,
como acreditam os ignorantes. Como Deus poderia ser ajudado por
aqueles a quem Ele criou! Tudo isto somente mostra que todas as
partes do Universo, mesmo os membros do Reino Animal em sua
forma atual, foram feitos por meio dos anjos, já que forças naturais e
anjos são idênticos. Quão ruim e injuriosa é a cegueira da ignorância!
Se você diz a uma destas pessoas, que afirma pertencer aos Sábios de
Israel, que Deus envia Seu anjo para formar o feto no útero da mu
lher, ele ficará satisfeito com o resultado, acreditará e até considerará
como uma manifestação do Poder e Sabedoria Divina. Ao mesmo
tempo, ele acredita que o anjo consiste de fogo ardente e que seu
tamanho se iguala a um terço do universo inteiro e considera isto
possível, como um milagre divino. Mas diga-lhe que Deus pôs no
sêmen uma força formativa que modela e estrutura os membros de
uma espécie, e que esta força é chamada de anjo, ou que esta força é o
resultado da influência do Intelecto A tivo e este é um anjo e o Príncipe
do Mundo, de quem tanto falam nossos Sábios, ele não acreditará,
porque é incapaz de compreender o sentido dessa autêntica grandeza
e poderio das forças criativas, amando em um corpo sem serem per
cebidas pelos sentidos. Os Sábios já esclareceram, para quem é inteli
gente, que cada uma das forças que residem em um corpo são forças
ativas no Universo — são anjos.
A teoria de que cada força ama somente de um determinado modo
é expressa no Bereshít Rabá (cap. 1), em que lemos: “Um anjo não faz
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
duas coisas, e dois anjos não fazem uma”. Esta é exatamente a proprie
dade destas forças. Podemos encontrar a confirmação de que as forças
naturais e psíquicas de um indivíduo denominam-se anjos, como fre
qüentemente dizem nossos Sábios, originalmente no Bereshít Rabá (cap.
78): “Todos os dias Deus cria uma legião de anjos; eles cantam para
Ele e desaparecem”. Quando, em objeção a esta posição, outras posi
ções afirmam que os anjos são eternos — e, com efeito, reiteradamente
tem-se explicado que eles vivem permanentemente — a resposta é que
uns são permanentes e outros, perecíveis. E esta é a realidade, pois as
forças individuais são transitórias, enquanto as das espécies correspon
dentes são permanentes e imperecíveis. Novamente, lemos (em Be-
reshitRabá, cap. 85), referindo-se à relação entre Judá e Tamar: “Rabi
Yochanán disse que Judá quis prosseguir (sem ver Tamar), mas Deus
colocou diante dele um anjo da cobiça, quer dizer, da disposição libidi
nosa, para apresentar-se a ele”. Esta disposição humana é chamada
aqui de anjo. Do mesmo modo, encontramos freqüentemente a frase:
“um anjo designado para isto ou aquilo”. No Midrásb Kohélet (sobre
Eclesiastes 10:7)12 está escrito: “Enquanto o homem dorme, sua alma
conversa com o anjo, e este com o querubim”. O leitor inteligente
encontrará aqui uma afirmação clara de que a faculdade imaginativa
também se chama anjo e o intelecto, querubim. Quão belo isto deve
parecer para aqueles que entendem e quão absurdo para os ignorantes!
Já fizemos constar que as formas com as quais os anjos aparecem
fazem parte da Visão Profética. Alguns Profetas vêem os anjos como se
fossem seres humanos, por exemplo: “E eis que três homens (anashím)
estavam parados à sua frente” (Gênesis 18:2). Outros percebem um
anjo como um ser temeroso e terrível, como em: “E o seu aspecto era
como o aspecto de um anjo (malách) de Deus muito terrível” (Juizes
13:6). Outros, ainda, os vêem como fogo, por exemplo: “Apareceu-lhe
o anjo (malách) de YHVH em uma chama de fogo” (Êxodo 3:2). Em
Bereshit Rabá (cap.l), há o seguinte comentário: “A Abrahão, cujo po
der profético era fantástico, os anjos apareceram na forma de homens;
para Lot, cujo poder era deficiente, apareceram como anjos”. Há aqui
um princípio importante da Profecia que será melhor discutido quan
do tratarmos do tema (cap. 32). Em outra passagem do Bereshit Rabá
12
Eclesiastes 10:7: “Vi escravos sobre cavalos e príncipes caminhando como
escravos sobre a nação” (NT).
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
(;ibid..) se afirma: “Antes de os anjos cumprirem suas missões, eram
chamados homens; depois de realizadas, eram anjos”. Considere como
eles dizem claramente que o termo anjo não significa mais do que uma
determinada ação, e que toda aparição de um anjo é parte de uma visão
Profética, dependendo da capacidade da pessoa que o percebe.
Naquilo que Aristóteles deixou dito sobre o particular, tampouco
há algo contraditório com a Bíblia. A grande diferença entre ele e nós
é que ele acredita que todas estas coisas são eternas, coexistentes com
a Primeira Causa como seu agente necessário, e nós acreditamos que
elas tiveram um início, que Deus criou as Inteligências Separadas e deu às
esferas celestes a capacidade de buscarem ser como elas. Ao criar as
Inteligênúas e as esferas, Ele as dotou de capacidade para governar. Neste
ponto discordamos dele.
No decurso deste Tratado iremos tratar de sua teoria, bem como da
teoria da Creatio ex nihilo, ensinada na Bíblia.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
C A P ÍT U L O 7
A POLIVALÊNCIA DO TERMO M ALÁCH(ANJO)
Já foi explicado que o termo Malácb é um termo polivalente que com
preende as Inteligências Separadas, as esferas e os elementos, pois
todos eles executam o Comando Divino. Mas não pense que as In
teligências e as esferas são como outras forças que residem nos
corpos e que atuam segundo as leis da natureza, inconscientes do
que fazem. As Inteligências Separadas e as esferas são conscientes
de suas ações e escolhem por livre arbítrio os objetos de sua in
fluência, embora não do mesmo modo como nós exercemos o livre
arbítrio e o governo sobre outras coisas que dizem respeito somen
te a seres temporários.
Adotei esta teoria devido a algumas passagens na Bíblia. Quando
um anjo diz a Lot: “porque não poderei fazer nada (...)” (Gênesis
19:22) e, ao liberá-lo, o anjo diz: “Veja, atenderei a teu pedido” (Gê
nesis 19:21). Novamente: “Guarda-te diante dele e escuta sua voz,
não te rebeles contra ele, porque não perdoará vossos delitos, por
que Meu Nome está nele.” (Êxodo 23:21). Todas estas passagens
demonstram que os anjos são conscientes do que fazem e têm livre
arbítrio na esfera da ação confiada a eles, assim como nós temos
livre arbítrio em nossa cidade, de acordo com o poder entregue a
nós em toda a nossa existência. A diferença é que o que fazemos é o
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
mais baixo estágio de excelência, e nossa influência e o que fazemos
são precedidos da ausência de ação. Já com as Inteligências e esferas
ocorre sempre o que é bom; nelas está contido o que é bom e perfei
to, como será mostrado adiante, e têm sido continuamente ativas
desde o início.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
C A P ÍT U LO 8
SOBRE A MÚSICA DAS ESFERAS CELESTES
Uma das antigas opiniões, muito difundida entre os filósofos e as
pessoas em geral, é a de que o movimento das esferas celestes origina
sons formidáveis e violentos. Eles observaram como pequenos obje
tos produziam, por meio de um movimento rápido, um ruído alto,
estrépito e retumbante, e concluíram que este deve ser o caso, em um
nível muito mais alto, dos corpos solar, lunar e estelar, dado seu ta
manho e velocidade. Os Pitagóricos acreditavam que estes corpos
emitem sons harmoniosos e que, mesmo altos, mantêm as mesmas
proporções entre eles que as notas musicais mantêm entre si. Expli
caram também o motivo pelo qual não ouvimos estes sons tão fortes
e tremendos. Esta crença também se espalhou por nossa nação. Nos
sos Sábios descrevem a grandeza do som produzido pelo Sol no ci
clo diário de sua órbita. A mesma descrição é dada para todos os
corpos celestes. Aristóteles, no entanto, rejeita esta idéia e sustenta
que eles não produzem sons. Esta opinião pode ser encontrada no
livro Os Céus e o Mundo (De Coeló). Não se deve achar estranho que
Aristóteles discorde aqui da opinião dos nossos Sábios. A teoria da
Música das Esferas está ligada à teoria do movimento dos astros fi
xos em uma esfera, e nossos Sábios, nesta questão astronômica, aban
donaram sua própria teoria em favor da teoria de outros. Logo, é
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
confirmada a afirmação de que os Sábios das outras nações venceram os
Sábios de Israel. E verdade que nossos Sábios abandonaram a sua pró
pria teoria, pois todos tratam os problemas especulativos de acordo
com os resultados de seus próprios estudos e aceitam o que lhes é
estabelecido através de demonstração.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
CAPÍTULO
9
SOBRE O NÚMERO DE ESFERAS CELESTES
Já lhe expusemos que o número das esferas não foi determinado no
tempo de Aristóteles, e aqueles que atualmente contam nove esferas
consideram que uma esfera com várias órbitas é uma, segundo é notó
rio para quem tem conhecimento de Astronomia. Por isso, não deve
mos rejeitar a opinião daqueles que assumem a existência de duas esfe
ras, de acordo com as palavras da Bíblia: “Pertencem a YHVH Teu
Deus os Céus e os Céus dos Céus.” (Deuteronômio 10:14). Eles calcu
lam todas as esferas com os astros, ou seja, todas as órbitas nas quais
os astros se movem, como uma; e a Esfera Circundante, na qual não há
astros, é considerada por eles como a segunda. Por isso, eles susten
tam que há duas esferas.
Apresentarei, aqui, uma explanação necessária para a compreensão
do nosso ponto de vista sobre este assunto. Há discrepância de opini
ões entre os antigos astrônomos se as duas esferas de Vênus e Mercú
rio estão acima ou abaixo do Sol, pois não está demonstrada a posição
destas duas esferas. A opinião de todos os antigos era a de que elas
estavam acima do Sol. Veja bem, depois veio Ptolomeu, afirmando
que se encontram abaixo do Sol, pois acreditava que, desta maneira, o
arranjo das esferas seria mais razoável. O Sol estaria no meio, com três
planetas acima e três abaixo. Mais recentemente, alguns estudiosos
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
andaluzes13 concluíram, segundo alguns princípios deixados por Pto-
lomeu, que Vênus e Mercúrio se encontravam acima do Sol. Chabir
ibn Aflá, de Sevilha, com cujo filho me relacionei, escreveu um livro
famoso sobre o tema, como também o excelente filósofo Abu Bakr
ibn Al-Saíg, de um de seus discípulos recebi aulas, que examinou a
questão e formulou alguns argumentos — que dele copiamos — sobre a
improbabilidade de Vênus e Mercúrio estarem acima do Sol. As pro
vas oferecidas por Abu Bakr mostram somente a improbabilidade, não
a impossibilidade. Em suma, de qualquer forma, todos os antigos situ
avam Vênus e Mercúrio acima do Sol e, por este motivo, contavam
cinco esferas: a da Lua, indubitavelmente a mais próxima de nós, a do
Sol, necessariamente por cima dela, a dos outros cinco planetas, a dos
astros fixos e a esfera que a tudo circunda, na qual não há astro algum.
Conseqüentemente, o número de esferas que c o n t e m figuras — ou
seja, astros, chamados de figuras pelos antigos em seus famosos tra
balhos — são quatro: a esfera dos astros fixos, a dos cinco planetas, a
do Sol, a da Lua e, por cima de todas, uma esfera vazia, sem astro
algum. Este número é muito importante para mim, por causa de uma
idéia que nenhum dos filósofos esclareceu e à qual fui levado por
diversas declarações dos filósofos e dos nossos Sábios. Agora vou
descrevê-la e explicá-la.
13
Nova referência de M aimônides a sua terra natal, o que demonstra que estava
muito atento ao movimento cultural em A ndaluzia nesta época (Maeso).
S O BR E AS
ESFERAS
CELESTES.
C A P ÍT U LO
1 0
A INFLUÊNCIA DAS ESFERAS CELESTES SOBRE A TERRA SE
MANIFESTA DE QUATRO MODOS DIFERENTES
E conhecido e difundido em todas as obras filosóficas sobre a Ordem
do Universo que o regime no mundo sublunar dos seres transitórios
depende das forças procedentes das esferas, Temos afirmado isso rei-
teradamente e do mesmo modo nossos Sábios dizem : “Não há abai
xo nem a mais insignificante erva sem o seu M a^ál (Astro) que a im
pulsiona e a ordena crescer, pois está dito: ‘J á aprendeu as leis dos
Céus, se estas policiam a Terra?”’ (Jó 38:33). O termo Ma^ál, literal
mente uma constelação do Zodíaco, é usado também para todo astro,
como pode ser inferido da seguinte passagem no inicio do Beresbít
Kabá (cap. 10), em que se afirma: “Enquanto u m M «^ / completa sua
órbita em trinta dias, outro completa em trinta anos”. Portanto, indi
ca-se claramente nesta passagem que todo ser individual no mundo
tem seu astro correspondente. Embora as influências das esferas se
estendam sobre todos os seres, o indivíduo está sob a influência de
terminada de um astro específico dirigido a cada espécie em particu
lar. Este fato também é percebido com referência a diversas forças em
um único organismo, pois todo o Universo é como um único organis
mo, conforme já dissemos. Por este motivo, os filósofos falam da
influência peculiar da Lua sobre o elemento particular da água. Este
92
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
caso é comprovado pelo aumento e diminuição da água dos mares e
rios, de acordo com o crescimento e a diminuição da Lua, também
pela subida e descida das marés conforme o avanço ou o retorno da
Lua, isto é, sua ascensão e descenso nos diversos quadrantes de sua
órbita, como é claro a quem já tenha observado este fenômeno.14 A
influência dos raios solares sobre o fogo pode ser facilmente verifica
da pelo aquecimento ou resfriamento da Terra, de acordo com a apro
ximação ou o afastamento solar. Isto é tão claro que não precisa de
mais explicações.
Ocorreu-me que as quatro esferas que contêm astros exercem in
fluência sobre todos os seres terrestres que vêm a existir e, de fato,
são a causa da existência dos mesmos, mas cada uma das quatro esfe
ras é fonte exclusiva das propriedades de apenas um dos quatro ele
mentos, e se torna, a partir de seus movimentos, a causa do movi
mento e das mudanças daquele elemento. Assim, a água é posta em
movimento pela esfera lunar; o fogo, pela esfera solar; o ar, pela esfe
ra dos outros planetas, que se movem em cursos variados e diferen
tes, com retrocessos, progressos e paradas, e então produzem as vári
as formas de ar com suas freqüentes m udanças, contrações e
expansões; e a esfera dos outros astros, ou seja, os astros fixos, que
colocam a terra em movimento. Razão pela qual, talvez devido ao
movimento lento dos astros fixos, a terra se movimente tão lenta
mente e se combine com os outros elementos. A influência particular
que os astros fixos exercem sobre a terra está implícita na declaração
dos nossos Sábios de que o número das espécies de plantas corres
ponde ao das individualidades incluídas no termo geral astros. A or
dem do Universo, portanto, pode ser assumida da seguinte forma:
quatro esferas, quatro elementos postos em movimento por elas e,
também, quatro propriedades principais das quais os seres terrestres
derivam, como já expusemos. Além disso, as causas do movimento
de cada esfera são quatro, a saber, os seguintes elementos essenciais
da esfera:
14
“O que o autor declara aqui, a respeito do influxo da Lua não somente sobre
os mares, mas também sobre o caudal dos rios, é uma hipótese que se encontra
já em alguns autores antigos. Sem dúvida, nos escritos que nos restam de A ris
tóteles, apenas se faz alguma alusão ao fluxo e refluxo do mar.” (Munk).
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
1)
seu formato esférico;
2)
sua alma;
3)
seu intelecto, através do qual a esfera é capaz de formar idéias;
4)
a Inteligência Separada, que a esfera deseja imitar.
Veja, a explicação para o que eu disse é a seguinte: a esfera não
poderia estar continuamente em movimento se não tivesse esta forma
peculiar, e a continuidade do movimento só é possível quando o movi
mento é circular. O movimento retilíneo, mesmo que se repita freqüen
temente , não pode ser contínuo, pois, quando um corpo se movimenta
sucessivamente em duas direções opostas, passará necessariamente por
um momento de descanso, como foi demonstrado no lugar apropria
do. A necessidade de um movimento contínuo, repetido constante
mente no mesmo local, implica a necessidade de uma forma circular.
As esferas devem ter uma alma, pois somente seres animados podem
se mover livremente. Deve haver uma causa para o movimento e,
desde que isto não consista no temor de algo que seja injurioso- ou no
desejo de algo que seja agradável, deve ser encontrada na noção for
mada pelas esferas de um determinado ser e no desejo de se aproximar
deste ser. A formação desta noção exige, em primeiro lugar, que as
esferas possuam intelecto e, depois, que exista algo correspondente
àquela noção , da qual as esferas desejam se aproximar. Estas são as
quatro causas do movimento das esferas celestes. Em seguida temos as
quatro principais forças derivadas diretamente das esferas:
1)
a natureza dos minerais;
2)
as propriedades particulares das plantas (vegetativas);
3)
as faculdades animais (anímicas);
4)
o intelecto.
Um exame destas forças nos mostra que elas possuem duas fun
ções, a saber:
1) Produzir coisas.
2) Perpetuá-las.
Ou seja, preservar perpetuamente as espécies e os indivíduos de cada
espécie por um certo tempo. Estas são também as funções da Natureza,
da qual se diz que é sábia para governar o Universo, preocupar-se em
94
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
planejar a produção de seres vivos e se preocupar também com a sua
preservação e perpetuação. A Natureza cria faculdades formativas, que
são a causa da produção de seres vivos, e faculdades nutritivas como
fonte de sua existência temporal e preservação. Deve ser por meio da
Natureza que o Desejo Divino, que é a origem daqueles dois tipos de
faculdade por meio da mediação das esferas celestes, é cumprido.
O número quatro é estranho e merecedor de nossa atenção. No
M/í/m^Ta^huma15 se diz: “Quantos degraus tinha a Escada dejacob?
—Q uatro”. Trata-se da passagem: “(...) e eis uma escada apoiada sobre a
Terra” (Gênesis 28:12). Em todos os Midrashím se constata que havia
quatro legiões de anjos, afirmação repetida com freqüência.16 Em al
guns escritos se pode ler: “Quantos degraus havia na escada? — Sete”;
mas todos os escritos e todos os Midrashím expressam unanimemente
que os anjos, vistos por Jacob subindo e descendo a escada, eram so
mente quatro, dois que subiam e dois que desciam. Estes quatro anjos
— os dois que subiram e os dois que desceram— ocuparam, alinhados,
um degrau da escada. Daí se inferiu que a extensão da escada, na visão
Profética, era equivalente a quatro terços do Universo, pois o tamanho
de um anjo na visão Profética era igual a um terço do Universo. Em
conformidade com este outro texto: “E o seu tamanho era como dois
sextos” (Daniel 10:6), os quatro anjos, portanto, ocupavam quatro ter
ços do Universo. Zacarias, ao descrever a seguinte visão metafórica:
“Quatro carruagens saem do meio de duas montanhas; e as monta
nhas são montanhas de cobre” (Zacarias 6:1), acrescenta a explicação:
“Eis quatro ventos dos Céus saindo para se apresentar diante do Se
nhor de toda a Terra” (Zacarias 6:5), que são a causa de todas as mu
danças no Universo. A palavra cobre aqui empregada, assim como a
frase “cobre polido”, utilizada por Ezequiel (Ezequiel 1:7),17 são ter
mos em certa medida homônimos, o que será discutido mais adiante.
15
16
17
M idrásh Tan’huma : Comentário talmúdico de Rav (Mestre, Rabino, Sábio)
Tan’huma (NT).
“ Vide, por exemplo, P irk ê (Capítulos) de Rav E liézer, cap. 4, em que se afir
ma que o Trono de Deus está circundado por quatro legiões de arcanjos:
M iguel, G abriel, Uriel e Rafael.” (Munk). Sobre este tem a em geral, veja ^4
A.ngelologia na L iteratura R abínica e Sefaradí, por C. Gonzalo Rubio (Barcelona,
1977). (Maeso).
Ezequiel 1:7: “E seus pés — pé reto, e a sola dos seus pés — como a sola do pé
de um bezerro, como não há cobre polido”. (NT)
SOBRE
AS
ESFERAS
CELESTES.
Quanto à afirmação dos nossos Sábios de que um anjo é igual a um
terço do Universo ou, nas palavras do Bereshít Rabá (cap. 10), que o
anjo é uma terça parte do mundo, isto está totalmente claro, nós já o
explicamos em nossa grande obra sobre a Santa Lei.18 A Criação, em
sua totalidade, consiste de três partes:
1) as Inteligências Puras, ou anjos;
2) os corpos das esferas celestes;
3) a matéria-prima ou os corpos sob as esferas celestes, sujeitos a
mudanças constantes.
Desta forma irão entender os ditos obscuros dos Profetas aqueles
que desejarem entendê-los, aqueles que despertarem do sonho do es
quecimento, salvando-se do mar da ignorância e elevando-se para mais
próximo dos seres superiores. Mas aqueles que preferirem nadar nas
águas da sua ignorância — e “você descerá muito baixo” (Deuteronô-
rnio 28:43) — não precisam cansar o corpo nem o coração. Precisam
apenas parar de se movimentar e, então, descerão segundo a lei da
natureza. Pense nisso e reflita bem sobre tudo o que eu lhe disse.
18
M aimônides refere-se aqui à sua grande obra de sistematização das leis judai
cas, o M ishnê Torá (NT).
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
CA P ÍT U L O
1 1
A TEORIA
DA
EXCENTRICIDADE
PREFERÍVEL
À
DOS
EPICICLOS
Deve-se levar em conta, com respeito às questões astronômicas trata
das, que se um simples matemático as lê e compreende, pensará que a
forma e o número das esferas são fatos comprovados. Este não é o
caso, pois nem é isso o que busca a ciência astronômica, embora inclua
temas que podem ser provados, como por exemplo, a comprovação da
inclinação indubitável da órbita solar até o Equador. Mas ainda não se
decidiu se a esfera solar é excêntrica ou contém um epiciclo giratório.
O astrônomo não pára a fim de pensar nisso, dado que a finalidade
desta ciência é simplesmente formular uma hipótese que leve a um
movimento circular e uniforme dos astros, sem aceleração, retarda
mento ou mudança, e cujo resultado esteja de acordo com a observa
ção. Ele também buscará uma hipótese que exigirá o movimento mais
simples e o menor número de esferas. Irá, portanto, preferir uma hipó
tese que explique todo o fenômeno dos astros por meio de três esferas
a outra que requeira quatro esferas. Por esta razão, tratando-se da órbi
ta do Sol, optamos pela Teoria da Excentricidade e rejeitamos a Teoria
dos Epiciclos, assumida por Ptolomeu. Quando então percebemos que
todo o movimento dos astros fixos ocorre de maneira uniforme e na
mesma direção, sem a menor diferença, concluímos que estão todos
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
em uma mesma esfera. É possível que os astros tenham, cada um, a
sua própria esfera, com um centro em separado, e, mesmo assim, mo-
vam-se na mesma direção. Se esta teoria for aceita, um certo número
de Inteligências Separadas deve ser admitido, igual ao dos astros, con
forme o afirmado na Bíblia: “Há número para suas divisões milita
res?” (Jó 25:3), pois as Inteligências Separadas, os corpos celestes e as
forças naturais são chamados de Exércitos de Deus. Todavia, suas es
pécies não podem ser numeradas e, não obstante, ainda poderíamos
justificar a contagem das esferas dos astros fixos coletivamente, como
uma só esfera. Assim como as cinco esferas dos planetas, as numero
sas esferas que estas contêm são tomadas por nós como uma só. Nos
so propósito em adotar este número é, como você já sabe, dividir as
influências que podemos perceber no Universo de acordo com o cará
ter geral destas, sem nos preocuparmos em fixar o número das Inteli
gências e das esferas celestes.
Nosso objetivo, em suma, tem sido provar que:
1) Toda a Criação está dividida em três partes, a saber:
a) as Inteligências Separadas;
b) os corpos das esferas celestes, dotados de formas permanen
tes (as formas destes corpos não se transferem de um subs
trato a outro, nem o seu substrato sofre qualquer mudança,
qualquer que seja);
c) todos os seres terrestres transitórios, que consistem da mes
ma matéria.
2) O governo emana do Criador e é recebido pelas Inteligências
Separadas conforme o seu tipo. Parte daquilo que é Bom e da
Lu% outorgada às Inteligências Separadas é comunicada às esfe
ras celestes que, de posse da abundância por elas extraída, trans
mitem forças e benefícios sobre os seres do mundo transitório.
Devemos acrescentar que a parte que beneficia a outra do modo
descrito não tem, como objetivo de sua existência, somente a pro
dução daquele benefício, pois, se fosse este o caso, levaria ao para
doxo de que as coisas mais elevadas, melhores e mais nobres existi
riam pelo bem das coisas inferiores, quando, na realidade, o objetivo
deve ser mais importante do que os significados utilizados para defini-
lo. Nenhuma pessoa inteligente poderia admitir esta possibilidade.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
99
A natureza da influência que uma parte da Criação exerce sobre a
outra deve ser explicada da seguinte forma: uma coisa de certo modo
perfeita ou é perfeita em si mesma, sem que tenha condições de co
municar esta perfeição a outro ser, ou é tão perfeita que é capaz de
aperfeiçoar outro ser. Uma pessoa pode possuir riqueza suficiente
para suas próprias necessidades e nada lhe sobrar para beneficiar al
guém, ou pode ter riqueza suficiente para beneficiar também a outras
pessoas, até mesmo enriquecê-las bastante, e ainda doar parte de suas
propriedades a outros. Da mesma forma, a ação criativa do Altíssi
mo, ao dar existência às Inteligências Separadas, dota estas primeiras
de força para dar existência a outros, e assim sucessivamente até o
Intelecto Ativo, o nível mais baixo dos Seres Espirituais Puros. Pela
produção de outras Inteligências, cada Inteligência dá existência a
uma das esferas celestes, da mais elevada à mais baixa, que é a esfera
da Lua. Após esta última, segue-se o mundo transitório, ou seja, a
matéria e tudo o que é composto dela. Assim, os (quatro) elementos
recebem certas propriedades de cada esfera e, então, uma sucessão
de geração e destruição é produzida.
Já mencionamos que estas teorias não se opõem ao que foi ensina
do pelos nossos Profetas ou pelos nossos Sábios. Nossa nação é sábia
e perfeita, conforme foi declarado pelo Altíssimo por meio de Moi
sés, que nos aperfeiçoou: “Somente um povo sábio e prudente é esta
grande nação” (Deuteronômio 4:6). Mas quando os malvados bárba
ros aniquilaram nossas boas qualidades, destruíram nossa ciência e
literatura e assassinaram nossos Sábios, tornamo-nos ignorantes. Isto
foi previsto pelos Profetas, quando pronunciaram a punição por nos
sos pecados: “E se perderá a sabedoria de seus Sábios, e o conheci
mento de seus prudentes se eclipsará” (Isaías 29:14). Nós nos mistu
ramos a outras nações, aprendemos as suas opiniões e seguimos seus
caminhos e atos. O Salmista, deplorando a imitação das ações de ou
tras nações, diz: “E se misturaram às nações e aprenderam seus atos”
(Salmo 106:35). Do mesmo modo, Isaías se queixa de que os israelitas
adotaram as opiniões de seus vizinhos, e declara: “E com os filhos
dos estrangeiros pactuaram” (Isaías 2:6) ou, de acordo com o Tar-
gum 19 — a versão aramaica de Yonatán ben Uziel: “E eles andam pelos
caminhos das nações”. Assim, pois, ao nos habituarmos às opiniões
19
Targum: tradução do texto b íb lico do hebraico p ara o aram aico (NT).
100
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
das pessoas ignorantes em Filosofia, inclinamo-nos a considerar estas
opiniões filosóficas como estranhas à nossa religião, do mesmo modo
que as pessoas não-educadas consideram-nas estranhas às suas pró
prias concepções. Mas, na verdade, não é assim.
Dado que temos falado repetidamente da influência que emana de
Deus e das Inteligências Separadas, passaremos agora a explicar qual é
o significado verdadeiro desta influência e, depois disso, discutirei a
teoria da Criação.
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
101
C A P ÍT U L O
1 2
SOBRE A NATUREZA DA INFLUÊNCIA (EMANAÇÃO) DIVINA E
A DAS ESFERAS CELESTES
E evidente que sempre que uma coisa é produzida, uma causa eficiente,
que não existia anteriormente, deve existir para sua produção. A causa
eficiente imediata pode ser tanto corpórea quanto incorpórea. Se cor-
pórea, não é uma causa eficiente devido a sua corporeidade, mas sim
por ser um corpo individual, ou seja, devido a sua forma. Falarei sobre
isto depois. A causa eficiente imediata de uma coisa pode ser também e
novamente de outras causas, e assim por diante, porém, não adinfinitum.
A série de causas para um determinado produto deve necessariamente
ser concluída com a Vrimeira Causa, que é a verdadeira causa daquele
produto e cuja existência não depende de nenhuma outra causa. Surge
então a questão: por que esta coisa foi produzida agora e não muito
antes, posto que a causa sempre existiu? A resposta é que, se a causa
fosse corpórea, faltaria uma determinada relação entre causa e produto;
ou, se fosse incorpórea, a substância não estaria suficientemente prepa
rada. Tudo isso está de acordo com os ensinamentos das Ciências Na
turais. Ignoraremos por ora a questão se consideramos a Eternidade do
Universo ou a Creatio ex nihilo. Não pretendemos discutir isto aqui.
Já foi exposto na Física que um corpo que ame sobre outro corpo
deve estar em contato direto com este ou, indiretamente, através da
102.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
mediação de outros corpos. Assim, por exemplo, um corpo que está
sendo aquecido está em contato com o fogo, ou o ar que envolve o
corpo está sendo aquecido pelo fogo e transmitiu o calor ao corpo: a
causa imediata do aquecimento deste corpo é a substância corpórea do
ar aquecido. A pedra-ímã atrai o ferro à distância por meio de uma
certa força transmitida ao ar que envolve o ferro. O magneto não exer
ce esta atração a qualquer distância, assim como o fogo não aquece a
qualquer alcance, mas na proporção em que o ar entre o fogo e o
objeto seja afetado pelo primeiro. Quando o ar não é mais afetado
pelo fogo que está sob um pedaço de cera, a última não derrete. E o
mesmo caso do magnetismo. Quando um objeto, não aquecido previ
amente, fica quente, a causa para o seu aquecimento, então, foi criada
agora: ou algum fogo foi produzido ou a distância entre o fogo e o
objeto foi modificada. A causa criada nesse momento é a relação alte
rada entre ambos. Analogamente, descobrimos as causas de todas as
mudanças do Universo como alterações na combinação dos elemen
tos que atuam sobre os outros, quando um corpo se aproxima ou se
separa de outro.
Há, no entanto, mudanças que não estão ligadas à combinação de
elementos, mas dizem respeito somente à forma das coisas. Estas
precisam, do mesmo modo, de uma causa eficiente, assim deve exis
tir uma força que produza as diversas formas. Esta causa é incorpó-
rea, pois aquela que produz forma deve ter, ela mesma, uma forma
abstrata, como ficou demonstrado anteriormente. A comprovação
deste teorema também foi exposta em capítulos anteriores. Os pró
ximos poderão servir para ilustrar o seguinte: todas as combinações
de elementos estão sujeitas a aumento ou redução, e esta mudança
ocorre gradualmente. No entanto, com as formas é diferente: elas
não se modificam gradualmente e, portanto, são imóveis; aparecem e
desaparecem instantaneamente e, conseqüentemente, não resultam
da combinação de elementos corpóreos. Esta combinação somente
prepara a matéria para receber uma determinada forma. A causa efi
ciente que produz a forma é indivisível, pois é do mesmo tipo que a
coisa produzida. Logo, conclui-se que este agente que produziu uma
determinada forma, ou deu a ela uma determinada substância, deve
ser, ele mesmo, uma forma abstrata. A ação deste agente incorpóreo
independe de uma determinada relação com o produto corpóreo.
Sendo incorpóreo, não pode se aproximar de um corpo ou afastar-se
dele, assim como nem um corpo poderia se aproximar ou se afastar
SOBRE AS
ESFERAS
CELESTES.
de um agente incorpóreo, pois não há relação de distância entre seres
corpóreos e incorpóreos. A razão pela qual a ação não ocorreu antes
deve ser vista com base no fato de que a substância não estava prepa
rada para a atuação da forma abstrata.
Fica claro que a ação recíproca exercida pelos corpos, de acordo
com suas formas, prepara a substância para receber a ação de um ser
incorpóreo, ou Vorma. Portanto, a existência de ações de Seres Pura
mente Espirituais, em todos os casos de mudança que não se originem
da mera combinação de elementos, está agora firmemente estabeleci
da. Estas ações independem de contato ou de uma determinada dis
tância. São denominadas influências ou emanações, por analogia com a
semelhança da aspersão de água. Este ato espalha água em todas as
direções, sem um local determinado para receber ou gastar seu con
teúdo; a água é aspergida para todos os lados e molha continuamente
tanto os lugares vizinhos quanto os distantes. Igualmente, os seres in
corpóreos, ao receberem força e distribuí-la aos outros, não estão lim i
tados a um lugar, distância ou tempo particulares. Sua ação é constante
e, sempre que um objeto está suficientemente preparado, ele recebe o
efeito desta ação contínua, denominada Shéfa (influência ou emana
ção). Sendo Deus incorpóreo e tudo aquilo que é obra Dele é causa
eficiente, afirmamos que o Universo foi criado por Influência Divina e
que todas as mudanças no Universo emanam Dele. Do mesmo modo
se diz que Ele é a causa da Sabedoria que emana de Si mesmo e se
dirige aos Profetas. Em todos estes casos nós queremos apenas dizer
que um Ser Incorpóreo, cuja ação denominamos influência, produziu
um determinado efeito. O termo influência é considerado aplicável ao
Criador devido à similaridade entre Suas ações e aquelas da aspersão
de água. Esta analogia é o melhor caminho para descrever a ação de
um ser incorpóreo, já que não pode ser encontrado qualquer termo
que possa descrevê-la de forma precisa. Por isso é tão difícil formar
uma idéia desta ação quanto formar uma idéia do próprio ser incorpó
reo. Assim como imaginamos somente corpos ou forças residindo em
corpos, imaginamos, do mesmo modo, ações possíveis somente quan
do o agente está próximo, a uma determinada distância e em um deter
minado lado. Há, portanto, pessoas que, ao estudarem que Deus é
incorpóreo ou que Ele não se aproxima do objeto da Sua ação, acredi
tam que Ele comanda os anjos e estes cumprem os atos mediante
aproximação ou contato direto — assim como quando nós produzimos
algo. Estas pessoas então imaginam que os anjos também são corpos.
104
°
GUIA
DOS
PERPLEXOS
Há aqueles que acreditam que Deus comanda uma ação com palavras
que consistem, como as nossas, de letras e som, e que a ação é feita
desta forma. Tudo isso é puro processo imaginativo, o que é, na verda
de, semelhante a uma má inclinação. Pois todos os nossos defeitos de
expressão ou de caráter se devem à ação direta ou indireta da imagina
ção. Este não é o tema deste capítulo, em que pretendemos explicar o
termo influênáa assim como é aplicado a seres incorpóreos, ou seja, a
Deus e às Inteligências Separadas (ou Anjos). Mas o termo também se
aplica às forças das esferas celestes em seus efeitos sobre a Terra. E
aqui nos referimos à influênáa das esferas, mesmo que estas sejam cor-
póreas — e os astros, sendo corpóreos, atuam somente a determinadas
distâncias, ou seja, conforme se coloquem mais ou menos distantes do
centro da ação ou a uma distância definida uns dos outros. Esta cir
cunstância levou à Astrologia.
Quanto ao mencionado por nós, que a Bíblia aplica a noção de
influência a Deus, compare: “Abandonaram-me as fontes de águas vi
vas” (Jeremias 2:13), ou seja, a Influência Divina que dá Vida ou
Existência — pois Vida e Existência são indubitavelmente idênticas.
Mais adiante se diz: “Porque Contigo está a fonte da Vida” (Salmo
36:10), ou seja, a Influência Divina que fornece a Existência. As pa
lavras finais deste Salmo, “Em Tua luz veremos luz” (Salmo 36:10),
expressam exatamente o que afirmamos: por meio da influência do
Intelecto Ativo que emana de Deus, tornamo-nos sábios e assim so
mos guiados e postos em condições de compreender o Intelecto Ativo.
Entenda bem isso.
Sobre a teoria da Eternidade do Universo
CAPÍTULO
1 3
TRÊS TEORIAS DIFERENTES SOBRE A ORIGEM DO UNIVERSO
Entre aqueles que acreditam na existência de Deus, sào três as teorias
que discutem se o Universo é eterno ou não:
Primeira Teoria: Aqueles que seguem a Lei de M oshé Kabênir susten
tam que o Universo inteiro, à exceção de Deus, foi por Ele trazido à
existência a partir da nào-existência. No início somente Deus havia, e
mais nada; nem anjos, nem esferas celestes, nem o quanto nelas existi
ria. Ele então produziu do nada todas as coisas existentes, tais como
são, por Sua vontade e desejo. Mesmo o tempo pertence às coisas
criadas, pois o tempo depende do movimento, isto é, de um acidente
sobre as coisas que se movem. E as coisas de cujo movimento o tempo
depende são, elas mesmas, seres criados, que passaram da inexistência
à existência. Afirmamos que Deus existe antes da Criação do Universo,
embora o verbo existir implique a noção de tempo. Acreditamos tam
bém que Ele existe por um espaço de tempo infinito antes da Criação
do Universo, mas, neste caso, não queremos dizer tempo no seu sentido
concreto. Utilizamos o termo para significar algo análogo ou seme
lhante ao tempo, pois este é, indubitavelmente, um acidente e, de acor
do com a nossa consideração, um dos acidentes criados — tais como a
1
M oshé Rabêmt - Moisés Nosso Mestre: modo pelo qual os judeus costumeira-
mente se referem a Moisés, em hebraico (NT).
10
6
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
negrura ou a brancura — não é uma qualidade, mas um acidente ligado
ao movimento. Isto deve ser claro para quem compreendeu o que Aris
tóteles afirmou sobre o tempo e sua real existência.
Vamos expor aqui uma idéia que, ainda que marginal à nossa aborda
gem, poderá ser útil no decurso de nossa discussão. Muitos cientistas
não sabem realmente o que é o tempo, e homens como Galeno ficaram
tão perplexos acerca deste assunto que questionaram se o tempo é real
ou não. A razão para esta dúvida pode ser encontrada no fato de o tem
po ser um acidente de um acidente. Acidentes que estão diretamente
ligados a corpos materiais, como as cores e os sabores, são facilmente
compreendidos e formam-se noções corretas a respeito deles. No en
tanto, há acidentes ligados a outros acidentes, como o brilho da cor, a
inclinação ou a curvatura de uma linha; destes é muito difícil formar
uma noção correta, principalmente quando o acidente que forma o subs
trato para outro acidente não é constante, mas variável. Ambas as difi
culdades estão presentes na noção de tempo: ele é um acidente do mo
vimento, que, por sua vez, é um acidente do objeto movido. Além disso,
não é uma propriedade fixa. Ao contrário, sua condição verdadeira e
essencial é não permanecer no mesmo estado nem por dois momentos
consecutivos. Esta é a fonte da ignorância acerca da natureza do tempo.
Consideramos o tempo uma coisa criada: vem à existência assim como
os demais acidentes e as substâncias que formam os substratos para os
acidentes. Por esta razão, pelo fato de o tempo pertencer às coisas
criadas, não se pode dizer que Deus produziu o Universo no iníáo. Veja
bem: este argumento serve para quem não compreende sua incapaci
dade de refutar as fortes objeções levantadas contra a teoria da Creatio
ex nihilo. Se você admitir a existência do tempo antes da Criação, será
compelido a aceitar a teoria da Eternidade do Universo — pelo fato de
o tempo se tratar de um acidente que requeira um substrato. Então
terá que admitir que algo (junto a Deus) existiu antes da Criação do
Universo, posição à qual é seu dever se opor.
Esta é a primeira teoria e é, indubitavelmente, um princípio funda
mental da Lei de Moisés; a mais importante depois do princípio da Uni
cidade de Deus. Não siga nenhuma outra teoria. Avraham A vinu (o Patri
arca Abrahão)2 foi o primeiro a ensinar isto depois de tê-la estabelecido
2
A vraham A vinu: A brahão N osso Pai.Trata-se do modo como os judeus costu-
meiramente se referem ao Patriarca Abrahão em hebraico (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
por meio de pesquisa especulativa. Ele então proclamou: “Em nome de
YHVH, Deus de Sempre” (Gênesis 21:33). E declarou publicamente esta
crença ao dizer: “Criador dos Céus e da Terra” (Gênesis 14:22).
Segunda Teoria: A teoria de todos os filósofos, cujas opiniões e traba
lhos nos são conhecidos, é a seguinte: é impossível que Deus produza
tudo do nada ou que reduza tudo a nada. Em outras palavras, é impos
sível que um objeto consistente de matéria e forma pudesse ser produ
zido quando a matéria era absolutamente inexistente ou que pudesse
ser destruído de tal modo que a matéria passasse a não existir mais.
Dizer que Deus pode produzir uma coisa do nada ou reduzir uma
coisa a nada é, de acordo com a opinião destes filósofos, o mesmo que
afirmar que Ele poderia levar uma substância a ter, simultaneamente,
duas propriedades opostas, ou de criar outro ser semelhante a Ele, ou se
transformar em corpo, ou, ainda, produzir um quadrado cuja diagonal
fosse igual a um de seus lados, ou coisas igualmente inviáveis. Os filó
sofos, portanto, acreditam que não é um defeito no Ser Supremo a não-
criação de coisas impossíveis, pois a natureza do que é impossível é
constante — independe da ação de um agente e, por esta razão, não pode
ser modificada;3 do mesmo modo que, segundo eles, não há defeito na
grandeza de Deus por Ele ser incapaz de produzir uma coisa do nada,
pois eles consideram isto uma das impossibilidades. Conseqüentemen
te, admitem que uma determinada substância coexiste com Deus pela
Eternidade, de tal forma que nem Deus possa existir sem ela, nem ela
sem Deus. No entanto, não defendem que a existência desta substância
seja equivalente à de Deus, pois Deus é a causa de sua existência. A
substância está para Deus assim como a argila está para o ceramista ou
o ferro, para o forjador, Deus pode fazer com isto o que lhe agrade: ora
forma Céus e Terra, ora, qualquer outra coisa. Aqueles que sustentam
esta visão assumem também que os Céus são transitórios, que vieram à
existência — mas não do nada — e podem deixar de existir, embora não
possam ser reduzidos a nada. Os Céus são transitórios do mesmo modo
que os indivíduos, entre os seres vivos: são produzidos de uma mesma
substância existente e são novamente reduzidos à mesma parte da subs
tância, esta permanece existindo. O processo de gênese e destruição é,
no caso dos Céus, o mesmo que em qualquer ser terrestre.
3
Veja Terceira Parte, cap. 15 (Maeso).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Os adeptos desta teoria se subdividem em várias escolas, cujas opi
niões e princípios é desnecessário discutirmos aqui, mas o que menci
onei é comum a todos eles. Também Platão sustenta a mesma opinião.
Aristóteles conta, em sua obra Física (Acroasis), que, de acordo com
Platão, os Céus são transitórios. Esta visão é tratada também em seu
livro Timaeus. Sua opinião, sem dúvida, é discordante da nossa crença.
Somente pessoas superficiais e descuidadas admitem, de forma equi
vocada, que Platão acredita no mesmo que nós. Enquanto sustenta
mos que os Céus são criados do Nada Absoluto, Platão acredita que os
Céus foram formados de algo.4 Esta é a segunda teoria.
Terceira Teoria'. E a de Aristóteles, seus discípulos e comentaristas.
Aristóteles argumenta, assim como os adeptos da segunda teoria, que
um corpo não pode ser produzido sem uma substância corpórea. To
davia, ele vai mais longe e defende que o Céu é indestrutível. Ele afir
ma que o Universo, em sua totalidade, nunca foi diferente e nunca se
modificará: os Céus, que são um elemento permanente do Universo e
não estão sujeitos à gênese nem à destruição, têm sido sempre assim.
O tempo e o movimento são eternos, permanentes e não possuem
princípio nem fim. O mundo sublunar, que inclui os elementos transi
tórios, tem sido sempre o mesmo, porque a matéria-prima é eterna e
simplesmente se combina sucessivamente de diferentes formas; quan
do uma forma é removida, outra é assumida. Portanto, toda esta orga
nização, tanto lá em cima quanto aqui embaixo, nunca é perturbada ou
interrompida, e nada é produzido fora das leis ou do curso normal da
Natureza. Ele ainda diz — embora não nestes termos — que considera
impossível para Deus modificar Sua Vontade ou conceber um novo
desejo, que Deus produziu este Universo em sua totalidade por Sua
Vontade, mas não do nada. Aristóteles considera impossível admitir
que Deus mude Sua Vontade ou conceba um novo desejo, seria como
4
“Como se pode ver, de acordo com M aim ônides, a diferença entre Platão e
Aristóteles é a seguinte: este admite não somente a eternidade da m atéria, mas
também a do movimento e do tempo, enquanto que Platão, ainda aceitando a
eternidade da matéria e do Caos, acredita, não obstante, que o mundo, tal
como é, teve um princípio; e que os Céus, como todo complexo sublunar, são
produto do Caos; por conseguinte, o movimento e o tempo tiveram um prin
cípio. A opinião de Platão tem sido interpretada neste sentido geralm ente pe
los árabes e os escolásticos (...)” (Munk). Esta nota de M unk se prolonga em
um total de 76 linhas (Maeso).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
109
acreditar que Ele é inexistente ou que Sua Essência é mutável. Conse
qüentemente, conclui-se que este Universo tem sido sempre o mesmo
desde o passado e será o mesmo eternamente.
Esta é uma mostra completa das opiniões daqueles que consideram
que a existência de Deus, a Primeira Causa do Universo, foi estabeleci
da por meio de demonstração. Mas seria desnecessário mencionar as
opiniões daqueles que não reconhecem a existência de Deus, porém
acreditam que o estado de existência das coisas é resultado da combi
nação acidental e separação dos elementos e que o Universo não tem
um Legislador ou Governador. Esta é a teoria de Epicuro e sua escola,
e de filósofos semelhantes, segundo Alexandre (de Afrodisia). Seria
supérfluo repetir seus pontos de vista, já que a existência de Deus já
ficou demonstrada, enquanto a sua teoria é construída sobre uma base
comprovadamente insustentável. E igualmente inútil corroborar a cor
reção dos seguidores da segunda teoria quando afirmam que os Céus
são transitórios, pois, ao mesmo tempo em que acreditam na Eternida
de do Universo, adotam aquela teoria. Assim, é indiferente para nós se
acreditam que os Céus são transitórios e que somente sua substância é
eterna ou que os Céus são tidos como indestrutíveis, de acordo com a
visão de Aristóteles. Aqueles que seguem a Lei de Moisés e do Patriar
ca Abrahão — e todos aqueles que partilham de teorias semelhantes —
assumem que nada é eterno exceto Deus e a teoria da Creatio ex nihilo
não inclui qualquer coisa que seja impossível, enquanto alguns pensa
dores ainda consideram isto uma verdade estabelecida.
Descritas estas diferentes concepções, mostraremos como Aris
tóteles provou sua teoria e o que o induziu a adotá-la.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
III
CA P ÍT U L O
1 4
SETE MÉTODOS POR MEIO DOS QUAIS OS FILÓSOFOS BUSCA
RAM PROVAR A ETERNIDADE DO UNIVERSO
Não necessito repetir, em cada capítulo, que lhe escrevi este Tratado
unicamente porque conheço sua formação e, conseqüentemente, é
desnecessário que cite textualmente, em cada passagem, as palavras
dos filósofos; basta resumir suas concepções. No entanto, apontarei os
métodos a que recorriam, assim como fiz em relação às teorias dos-
Mutakálemim? Não abordarei a opinião de qualquer outro filósofo, além
da de Aristóteles, pois suas teorias são as únicas merecedoras de consi
deração. Caso nossas objeções ou dúvidas com respeito a qualquer
coisa forem bem fundamentadas, isto acontecerá em um nível muito
mais elevado do que seria se comparado a todos os outros oponentes
de nossos princípios fundamentais.
Agora passarei a descrever os métodos dos filósofos:
'Primeiro Método: Segundo Aristóteles, o movimento é eterno, ou seja, o
movimento por excelência. Pois se o movimento tivesse um início, en
tão já teria havido algum movimento anterior quando surgiu, pois a tran
sição da potência ao ato e da inexistência à existência sempre implicam
5
Na Primeira Parte do livro (NT).
12
O
GUIA
DOS
PERPLEXOS
movimento. Logo, este movimento anterior, causa do movimento se
guinte, deve ser eterno, senão haveria uma série ad infmitum. De confor
midade com este mesmo princípio, Aristóteles sustenta que o tempo é
eterno, porque está relacionado e ligado ao movimento. Não há movi
mento exceto no tempo, e o tempo somente pode ser percebido através
do movimento, como ficou demonstrado. Com base neste argumento,
Aristóteles prova a Eternidade do Universo.
Segundo Método-, A. Primeira Substância comum aos quatro elementos é eter
na. Pois, para que tivesse um início, teria vindo à existência a partir de
outra substância; seria posteriormente dotada de uma forma, pois pas
sar a existir é nada mais do que receber uma Forma. Mas, por Primeira
Substância nós entendemos uma substância sem forma; se esta, portan
to, não passou a existir a partir de outra substância, então não deve ter
início nem fim. Assim, conclui-se que o Universo é eterno.
Terceiro Método: ^4 substância das esferas não contém elementos opostos, pois o
movimento circular não possui direções opostas como acontece no movimento retilí-
neo. Tudo o que é destruído deve a sua destruição aos elementos con
trários que contém. As esferas não contêm elementos opostos. São,
portanto, indestrutíveis e, pelo fato de serem indestrutíveis, também
não têm início. Aristóteles, assim, assume a seguinte máxima: tudo o
que tem um início é destrutível e tudo o que é destrutível teve um
início; as coisas sem início são indestrutíveis e as coisas indestrutíveis
não têm início. Dessa forma, atinge-se a Eternidade do Universo.
Q uarto Método: ^4 produção corrente de algo éprecedida, no tempo, p o r sua
possibilidade. A mudança corrente de algo é, do mesmo modo, precedida, no
tempo, p o r sua possibilidade. A partir daí Aristóteles conclui pela eterni
dade do movimento circular das esferas. Os aristotélicos, em tempos
mais recentes, empregaram este método para demonstrar a Eternida
de do Universo, Eles argumentam: quando o Universo ainda não exis
tia, sua existência era possível, necessária ou impossível. Sc era neces
sária, o Universo sempre existiu; se impossível, o Universo nunca
existiria; se possível, a questão que se levanta é: qual é o substrato
desta possibilidade? Porque deveria necessariamente existir algo que
fosse o substrato desta possibilidade. Este é um forte argumento a
favor da Eternidade do Universo. Alguns dos mais recentes pensado
res M utakâlemim imaginaram que poderiam resolver a dificuldade ao
afirmar que a possibilidade está com o agente, e não com a produção.
Mas esta objeção não tem qualquer força, pois há duas possibilidades
distintas, quais sejam:
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
1) a coisa criada teve a possibilidade de ser produzida antes do seu
nascimento; 2) o agente teve a possibilidade de produzir, antes de tê-lo
feito realmente. Há, desta forma, duas possibilidades — uma, de a subs
tância receber determinada forma e a outra, de o agente realizar uma
determinada ação.
Estes são os principais métodos, baseados nas propriedades do
Universo, através dos quais Aristóteles prova a Eternidade do Univer
so. Mas há também outros métodos para prová-la. São fundamentados
nas noções formadas de Deus e derivados da Filosofia de Aristóteles,
por filósofos posteriores a ele. Alguns deles utilizaram-se dos seguin
tes argumentos:
Q uinto M étodo: Se Deus produziu o Universo do nada, antes de ser
um agente de fato, Ele deve ter sido um agente potencial que teria
passado da potência ao ato — já que a potência é simplesmente uma
possibilidade e requer um agente para realizá-la. Este argumento é, da
mesma forma, fonte de grandes dúvidas e qualquer pessoa inteligente
deve examiná-lo com a intenção de refutá-lo, bem como de expor o
seu caráter.
Sexto M étodo: Um agente é ativo em um momento e inativo em
outro, de acordo com as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis
que porventura surjam. As circunstâncias desfavoráveis causam o aban
dono de uma ação pretendida; as favoráveis, por outro lado, permitem
que seja criado o desejo, que não havia anteriormente, para determina
da ação. Como Deus não é sujeito a acidentes que permitam mudanças
em Sua Vontade e não é afetado por obstáculos e impedimentos que
venham a aparecer ou desaparecer, é impossível, argumentam, imagi
nar que Deus seja ativo em um momento e inativo em outro. Ao con
trário, Ele está sempre ativo, do mesmo modo como Sua existência é
constante.
Sétimo M étodo: As ações de Deus são perfeitas. Elas jamais podem
ser defeituosas ou conter algo de inútil ou supérfluo. Em termos se
melhantes, Aristóteles freqüentemente louva a Deus quando afirma
que a Natureza é sábia e nada ocorre em vão, porém ela faz tudo da
forma a mais perfeita possível. Os filósofos então afirmam que este
Universo existente é tão perfeito que não pode ser melhorado e, por
tanto, deve ser permanente, pois é resultado da Sabedoria Divina, que
não somente é sempre presente em Sua essência, mas é idêntica a ela.
Todos os argumentos a favor da Eternidade do Universo funda
mentam-se nos métodos acima e poderiam se reduzir a um ou a outro
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
deles. A seguinte objeção é também levantada contra a Creatio ex nihilo:
Como Deus poderia ficar inativo, sem produzir ou criar nada, no pas
sado infinito? Como poderia passar o longo período infinito prece
dente ã Criação sem produzir nada, como se a Criação do Universo
acontecera ontem? Mesmo que você dissesse, por exemplo, que Deus
criou anteriormente tantos mundos sucessivos quanto a mais longín
qua esfera poderia conter grãos de mostarda e que cada um destes
mundos existiria por muitos anos. Considerando a existência infinita
de Deus, seria o mesmo que afirmar que Ele iniciou a Criação ontem.
Desde que admitamos o início da existência das coisas após sua não-
existência, é indiferente se milhares de séculos passaram-se desde o
início ou apenas um curto espaço de tempo. Aqueles que defendem a
Eternidade do Universo consideram ambas as posições igualmente
improváveis.
Oitavo M étodo: Este método está baseado na circunstância de que a
teoria implica uma crença muito comum a todos os povos e épocas —
universal portanto — que parece expressar um fato real e não simples
mente uma hipótese. Aristóteles afirma que todas as pessoas acredi
tam evidentemente na permanência e na estabilidade dos Céus e, ao
pensarem que estes são eternos, declaram-nos como sendo a habita
ção de Deus e dos Seres Espirituais ou Anjos. Por isso, ao atribuírem
os Céus a Deus, expressam sua crença de que os Céus são indestrutí
veis. Muitos outros argumentos do mesmo tipo são empregados por
Aristóteles ao tratar este tema, de forma a reforçar os resultados de sua
especulação filosófica por meio do senso comum.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CA P ÍT U L O
1 5
ARISTÓTELES NÃO PROVA SUA TEORIA
Neste capítulo pretendo mostrar que Aristóteles estava bem ciente de
que não provara a Eternidade do Universo e não se equivocara a este
respeito. Ele sabia que não poderia provar sua teoria e que seus argu
mentos e provas eram apenas aparentes e plausíveis. Estas eram, no
mínimo, questionáveis, de acordo com Alexandre. Mas, de acordo com
a mesma autoridade, Aristóteles não poderia considerá-las conclusi
vas, após ele mesmo nos ensinar as regras da lógica e os meios pelos
quais os argumentos podem ser refutados ou confirmados.
A razão pela qual expus este tema foi a seguinte: filósofos mais
recentes, discípulos de Aristóteles, afirmam que ele provou a Eterni
dade do Universo, e a maioria daqueles que acreditam que são filóso
fos seguem-no cegamente neste ponto e aceitam todos os seus argu
mentos como provas conclusivas e absolutas. Consideram errado
discordar de Aristóteles ou pensar que ele ignorava ou se equivocava
em alguma coisa. Por este motivo, partindo do ponto de vista deles,
mostrarei que o próprio Aristóteles não pretendeu haver provado a
Eternidade do Universo. Ele diz em sua obra Física ÇAcroasis) (8, cap.
1): “Todos os físicos anteriores a nós acreditaram que o movimento é
eterno, exceto Platão, que sustenta que o movimento é transitório; se
gundo sua concepção, os Céus são, igualmente, transitórios”. Pois bem,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
se Aristóteles tivesse provas conclusivas para sua teoria, não conside
raria necessário reforçá-la citando as considerações dos físicos prece
dentes, nem apontar a loucura e a posição absurda de seus oponentes.
Pois uma verdade, uma vez estabelecida a prova, não ganha força nem
certeza devido ao consentimento de todos os cientistas, nem perde
pela discordância geral.
Nós descobriremos, posteriormente, que Aristóteles, no livro Os Céus
e o Mundo, apresenta sua teoria sobre a Eternidade do Universo do se
guinte modo; Investiguemos a natureza dos Céus e vejamos se é ou não produto de
algo. Exposto o problema, segue citando os pontos de vista daqueles
que defendem que os Céus tiveram um início, nos seguintes termos:
Se assim procedêssemos, nossa teoria seria mais plausível e aceitável
aos grandes pensadores. Sobretudo quando, como propomos, os ar
gumentos dos nossos oponentes são ouvidos antes. Pois se colocásse
mos nossa opinião e nossos argumentos sem mencionar os dos nos
sos oponentes, nossas palavras seriam recebidas de forma menos
favorável. Aquele que deseja ser justo não deve se mostrar hostil ao
seu oponente; melhor, deve ser simpático com ele e aceitar pronta
mente toda verdade contida em suas palavras. Deve admitir a corre
ção dos argumentos do seu oponente, assim como admitiria se estes
fossem a seu favor.
Este é o conteúdo das palavras de Aristóteles.
Agora eu lhe pergunto, homem inteligente: poderemos reclamar
dele depois dessa afirmação tão franca? Ou alguém pode imaginar que
uma prova real possa ser dada para a Eternidade do Universo? Ou
pode Aristóteles ou qualquer outro acreditar que um teorema, mesmo
que totalmente demonstrado, seria inaceitável, a menos que os argu
mentos dos oponentes fossem totalmente refutados? Devemos tam
bém levar em consideração que Aristóteles descreve sua teoria como
sua opinião e suas provas, como argumentos. Será que Aristóteles ignora
va a diferença entre argumento e prova? Entre as opiniões, qual deve
ria ser recebida mais ou menos favoravelmente? E as verdades passí
veis de demonstração? Ou, se houvesse uma prova real, seria feito um
apelo retórico à imparcialidade com relação aos oponentes a fim de
reforçar sua teoria? Certamente que não.
Aristóteles desejava tão somente mostrar que sua teoria era melhor
que as dos seus oponentes, tanto os que sustentavam que a especula
ção filosófica leva à convicção de que os Céus são transitórios, mas
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
II7
nunca foram totalmente inexistentes, quanto os que defendiam que os
Céus tiveram um início, mas são indestrutíveis ou, ainda, aqueles que
apoiavam qualquer um dos outros pontos de vista mencionados por
ele. Nisso ele está indubitavelmente certo, porque sua teoria se mostra
mais próxima da verdade do que as de seus adversários, tanto quanto
uma prova pode ser obtida da natureza das coisas existentes. Nós dis
cordamos dele, conforme será explicado. A Paixão, que exerce grande
influência em todas as seitas, deve ter influenciado até mesmo os filó
sofos que desejavam afirmar que Aristóteles demonstrou sua teoria
fundamentado em provas. Talvez eles realmente acreditem nisso, argu
mentando que o próprio Aristóteles não estava ciente disso, pois só foi
descoberto após a sua morte! Estou convicto de que a afirmação de
Aristóteles sobre a Eternidade do Universo —a causa dos diversos
movimentos das esferas e da ordem das Inteligências — não pode ser
corroborada e Aristóteles nunca pretendeu provar estas coisas. Con
cordo com ele que os caminhos para se provar sua teoria têm seus
portões fechados diante de nós, e não há fundamento sobre o qual ela
possa ser construída. Suas palavras sobre este tema são bem conheci
das. Ele declara: “Há coisas sobre as quais somos incapazes de racioci
nar ou que consideramos muito difíceis para nós. Dizer por que estas
coisas têm uma determinada propriedade é tão difícil quanto decidir se
o Universo é eterno ou não”. São palavras textuais de Aristóteles. A
interpretação oferecida por Abu Nasr (Al Farabi) é bem conhecida.
Ele nega que Aristóteles tenha qualquer dúvida acerca da Eternidade
do Universo e é muito severo com Galeno, que considera esta teoria
ainda passível de dúvida, da qual se desconhece qualquer prova. Se
gundo Abu Nasr, é claro e demonstrável que os Céus são eternos, mas
tudo o que está envolvido pelos Céus é transitório. Nós sustentamos
que nenhuma teoria pode ser estabelecida, refutada ou equilibrada se
gundo os métodos citados neste capítulo.
Somente mencionamos estas coisas porque sabemos que a maioria
daqueles que se consideram sábios, ainda que nada conheçam de filo
sofia, aceitam a teoria da Eternidade do Universo apoiando-se na au
toridade de filósofos famosos. Eles rejeitam as palavras dos Profetas,
já que estes não empregam qualquer método filosófico capaz de ins
truir somente às poucas pessoas intelectualmente bem preparadas, mas
simplesmente comunicam a verdade tal como é recebida por meio da
Inspiração Divina.
Nos próximos capítulos demonstraremos a teoria da Criação se
gundo os ensinamentos da Bíblia.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CA P ÍT U L O
1 6
A TEORIA DA CREATIO EX N IH ILO , MAIS PROVÁVEL QUE A
DA ETERNIDADE DO UNIVERSO
Apresentar-lhe-ei, no presente capítulo, minha consideração a res
peito desta matéria e, em seguida, sustentá-la-ei por meio da argu
mentação —não com argumentos como os dos M utakálemim, que
acreditam haver demonstrado a Creatio ex nihilo. Não me enganarei,
considerando métodos dialéticos como provas, e o fato de uma de
terminada proposição haver sido provada através de argumentos di
aléticos nunca me levará a aceitá-la. Ao contrário, enfraquecerá m i
nha crença e me levará a duvidar dela, pois quando compreendemos
a falácia de uma prova, nossa crença na própria proposição fica aba
lada. E preferível que, sendo esta indemonstrável, seja recebida como
uma máxima, ou que uma de duas soluções possíveis do problema
seja aceita como autoridade. Os métodos estabelecidos pelos M u
takálemim em prol da Creatio ex nihilo já foram por mim descritos e os
seus pontos fracos expostos. Assim como as provas de Aristóteles e
seus seguidores para a Eternidade do Universo, eles são, na minha
opinião, inconclusivos e sujeitos a fortes objeções, como será expli
cado. Pretendo mostrar que a teoria da Criação, conforme ensinada
na Bíblia, não contém nada impossível, e todos aqueles argumentos
filosóficos que aparentemente reprovam nosso ponto de vista apre
sentam pontos fracos que os tornam vulneráveis e os ataques de seus
12.0
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
defensores, insustentáveis. Estando eu convencido da correção do
meu método, e considerando possíveis qualquer uma das duas teo
rias — a da Eternidade do Universo e a da Criação —, aceito a última,
apoiado na autoridade da Profecia, que pode ensinar coisas além do
alcance da filosofia especulativa. Pois, como será mostrado no de
correr deste Tratado, a crença na Profecia é consistente até mesmo
com a crença na Eternidade do Universo. Quando estabelecer a pos
sibilidade da nossa teoria, tratarei de demonstrar, por raciocínio filo
sófico, que a teoria da Criação é mais aceitável do que a da Eternida
de do Universo e que, mesmo que ela inclua pontos abertos à crítica,
mostrarei que há razões muito mais fortes para a rejeição da teoria
dos nossos oponentes.
Passarei a expor agora o método por meio do qual as provas dadas
a favor da Eternidade do Universo podem ser refutadas.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
121
C A P ÍT U L O
1 7
AS LEIS DA NATUREZA SE APLICAM ÀS COISAS CRIADAS, MAS
NÃO REGULAM O ATO CRIATIVO QUE AS PRODUZ. REFUTA
ÇÃO DAS QUATRO PRIMEIRAS PROVAS DOS ARISTOTÉLICOS
Tudo o que é produzido nasce a partir da inexistência. Mesmo que a
substância de uma coisa já existisse e tivesse somente mudado sua for
ma, a própria coisa, que passou a existir por meio do processo de gêne
se e desenvolvimento, ao concluir sua transformação, tem propriedades
diferentes daquelas que possuía no início da transição da potência à
realidade, ou mesmo antes disso. Assim, tomemos o exemplo do óvulo
humano quando se encontra no sangue feminino, ainda contido em
seus vasos. Nesse momento, sua natureza difere daquela que lhe era
própria ao se efetuar a concepção, ou seja, quando foi encontrado pelo
sêmen masculino e começou a se desenvolver. As propriedades do sê
men, naquele momento, são diferentes daquelas do ser vivo após o seu
nascimento, já totalmente desenvolvido. É, portanto, praticamente im
possível inferir, com base na natureza que uma coisa possui após passar
por todos os estágios do seu desenvolvimento, qual era o estado dela no
momento do início do processo. Tampouco, partindo do mesmo esta
do, pode-se saber qual era a sua condição anterior. Se você se equivocar
a respeito e se empenhar em provar a natureza de algo em estado de
potência baseado nas propriedades agora efetivamente existentes, ficará
muito confuso, rejeitará verdades evidentes e admitirá falsas opiniões.
12.2.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Suponha, no exemplo apresentado, que um indivíduo nascido perfeito
foi cuidado por sua mãe durante poucos meses e que, quando ela mor
reu, o seu pai levou-o para viver sozinho em uma ilha deserta, até crescer,
tornar-se inteligente e adquirir conhecimento. Suponha, ainda, que este
homem, que nunca viu uma mulher, nem mesmo um animal fêmea, per
gunte a alguém como um homem nasce e se desenvolve, e então receba
a seguinte resposta: “O homem inicia sua existência no ventre de uma
pessoa de nossa espécie, ou seja, no ventre de uma mulher, que tem uma
determinada forma. Quando está no ventre, ele é muito pequeno, mas
tem vida, move-se, alimenta-se e cresce pouco a pouco, até que chega a
um certo estágio de desenvolvimento. Ele então deixa o ventre e conti
nua a crescer até que esteja em condições de ser notado por você. O
órfao naturalmente perguntará: E este indivíduo, quando estava dentro
do ventre, vivo, movendo-se e crescendo, comia e bebia? Respirava pelo
nariz e pela boca? Excretava alguma coisa?” A resposta será: Não. Indu
bitavelmente ele se recusaria a acreditar e se apressaria em demonstrar a
impossibilidade de todas essas coisas, baseando-se no ser totalmente de
senvolvido. Diria: “Se qualquer um de nós fosse privado de respirar por
um breve tempo, morreria e cairia inerte. Como imaginar que alguém
possa permanecer durante meses dentro de um saco, e este saco, dentro
de um corpo, e permanecer vivo e em movimento? Se alguém devorasse
um pássaro vivo, este morreria instantaneamente ao chegar ao estômago
e, por um motivo maior, quando chegasse no baixo ventre. Caso alguém
não comesse nem bebesse, morreria, sem dúvida alguma, em poucos
dias. Como, pois, poderia alguém ficar durante meses sem comer nem
beber? Qualquer um que, tendo se alimentado, não evacuasse, sofreria
dores terríveis e a morte chegaria em poucos dias. Como eu acreditaria
que aquele homem viveu por meses sem esta função? Suponha que, por
acidente, um buraco se formasse na barriga de uma pessoa — seria fatal.
No entanto, temos que acreditar que o umbigo do feto ficou aberto!
Como o feto não abre os olhos, nem estende suas mãos, nem estira suas
pernas, como você acredita que seus membros estejam inteiros e em
perfeito estado?” Este tipo de raciocínio leva à conclusão de que o ho
mem não pode nascer e se desenvolver do modo descrito.
Se os filósofos considerassem este exemplo e refletissem sobre ele,
descobririam que representa exatamente a disputa entre Aristóteles e
nós. Porque nós, os seguidores de M oshé Kabênu e dty4.vrahamA.vinu,
acreditamos que o mundo foi produzido de uma determinada maneira
e criado em uma determinada seqüência. Os aristotélicos, por sua vez,
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
opõem-se a nós argumentando com provas baseadas na existência do
ser de fato, totalmente desenvolvido. Nós admitimos a existência des
tas propriedades, mas afirmamos que em nada se parecem com o ser
no momento em que foi gerado. Sustentamos, ainda, que estas propri
edades vieram à existência a partir da absoluta inexistência. Portanto,
os argumentos deles não se constituem em objeções à nossa teoria. E
Eles somente possuem força demonstrativa contra aqueles que susten
tam que a natureza das coisas, como existem no presente, provam a
Criação. Mas esta não é a minha opinião.
Volto agora ao nosso tema — a descrição das principais provas de
Aristóteles — demonstrando que nada provam contra nós, que afirma
mos que Deus, do nada absoluto, levou o Universo inteiro à existência,
e que Ele foi a causa do desenvolvimento até o estado presente. Aris
tóteles declara que a matéria-prima é eterna e, baseando-se nas coisas
transitórias, tenta provar sua premissa. Assim, mostra que a matéria-
prima não poderia ser produzida, e ele está certo. Nós não sustenta
mos que a matéria-prima foi produzida do mesmo modo como o ho
mem é produzido do ovo, nem que possa ser destruída da mesma
maneira como o homem é reduzido a pó. Mas acreditamos que Deus
criou-a do nada e que, desde então, ela tem suas próprias propriedades,
ou seja, todas as coisas se formam a partir dela e são novamente redu
zidas a ela quando deixam de existir. Pois a matéria-prima não existe
sem forma e ela é a fonte de toda a gênese e destruição. Sua gênese não
é igual à das coisas produzidas a partir dela, nem a sua destruição, pois
ela foi criada do nada e, se agradasse ao Criador, Ele poderia reduzi-la
a absolutamente nada.
O mesmo argumento se aplica ao movimento. Aristóteles funda
menta algumas de suas provas no fato de o movimento não estar sujeito
à gênese ou à destruição. Isto é verdade. Se considerarmos o movimen
to como este que existe no momento, não imaginaríamos, em sua tota
lidade, que ele estaria sujeito, como movimentos individuais, à gênese e
à destruição. De um certo modo Aristóteles estava correto ao conside
rar que o movimento circular não tem começo, levando-se em conta
que, ao observarmos a rotação do corpo esférico na presente existên
cia, não concebemos a idéia de que esta rotação tenha jamais faltado.
Empregamos o mesmo argumento em relação à lei que preconiza
que a potência precede todas as gêneses correntes. Esta lei se aplica ao
Universo tal como existe no presente, quando tudo o que é gerado
origina-se de alguma outra coisa. No entanto, nada percebido por meio
1 2 .4
°
GUIA
d o s
p e r p l e x o s
de nossos sentidos ou compreendido por nossa mente é capaz de pro
var que algo criado do nada esteve, anteriormente, em um estado po
tencial. Novamente, com respeito à teoria de que os Céus não contêm
opostos (e são, portanto, indestrutíveis), admitimos sua correção, mas
não que os Céus foram formados como o cavalo ou o jumento, nem,
por fim, que sejam como as plantas e os animais, destrutíveis devido à
presença dos elementos opostos em seu interior. Em suma, as propri
edades das coisas, quando plenamente desenvolvidas, nada têm a ver
com as propriedades existentes antes de seu aperfeiçoamento. Nós
não consideramos impossível a opinião daqueles que afirmam que os
Céus foram produzidos antes da Terra ou o contrário, que os Céus já
existiam sem os astros ou, ainda, que certas espécies de animais exis
tiam e outras, não. Pois o estado de todo o Universo quando veio à
existência é comparável àquele dos animais quando nasceram. O cora
ção evidentemente aparece antes dos testículos, e as veias, antes dos
ossos. Todavia, quando o animal está plenamente desenvolvido, ne
nhuma das partes essenciais à sua existência está faltando. Esta obser
vação não é supérflua, se a descrição bíblica da Criação for tomada
literalmente. Na verdade, pode não se considerá-la no sentido literal,
como será mostrado quando tratarmos deste tema.
O princípio desenvolvido a seguir deve ser bem compreendido,
porque é uma grande muralha construída em torno da Lei, capaz de
resistir contra tudo o que for atirado contra ela. Aristóteles — quero
dizer, seus seguidores — talvez nos perguntasse como sabemos que o
Universo foi criado e quais as outras forças, além das existentes no
presente, atuaram na sua Criação, já que sustentamos que suas proprie
dades, tal como existem no presente, nada provam a respeito de sua
Criação? Respondemos que, segundo nosso plano, não há necessidade
disso, pois não desejamos provar a Criação, mas tão somente a sua
possibilidade. E não se refuta esta possibilidade por meio de argumen
tos baseados na natureza do Universo presente, que não questionamos.
Quando estabelecermos a possibilidade da nossa teoria, demonstrare
mos então a sua superioridade. Quanto a provar a impossibilidade da
Creatio ex nihilo, os aristotélicos podem não obter qualquer apoio da
natureza do Universo e, então, terão que recorrer à noção de Deus
formada pela nossa mente. Suas provas incluem os três métodos ante
riormente citados por mim, baseados na noção concebida de Deus.
No próximo capítulo apresentarei os pontos fracos destes argumentos
e mostrarei que nada provam absolutamente.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
C A P ÍT U L O
1 8
REFUTAÇÃO
DOS
ARISTOTÉLICOS
TRÊS
ÚLTIMOS
MÉTODOS
DOS
No primeiro método criado pelos filósofos, assume-se que houve uma
transição da potência ao ato com a própria Deidade, caso Ela tenha
produzido algo somente em um determinado tempo.6A refutação deste
argumento é muito fácil. Ele se aplica somente a corpos compostos de
substância, que é o elemento que contém a possibilidade (de mudança)
de forma. Se um corpo deste tipo, durante um certo tempo, não agia e,
em virtude de sua forma, agora age é porque indubitavelmente pos
suía algo em potência que ora se tornou corrente, e a transição somen
te foi efetuada por meio de algum agente externo. Como os corpos
materiais são assim considerados, isto já foi plenamente comprovado.
Mas aquilo que é incorpóreo e imaterial não admite coisa alguma que
seja simplesmente possível. Tudo o que ele contém existe sempre. Não
cabe, portanto, aplicar-lhe o argumento acima, nem é impossível a um
ser deste tipo atuar em um momento e não atuar em outro. Isto não
implica qualquer mudança para o próprio ser incorpóreo, sequer uma
transição da potência ao ato. O Intelecto Ativo pode ser ilustrativo
6 Veja cap. 14, Quinto método (Maeso).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
dessa questão: de acordo com Aristóteles e sua escola, o Intelecto Ati
vo, um ser incorpóreo, ora atua, ora não, como indicou Abu Nasr (Al
Farabi) em seu tratado Sobre o Intelecto. Ele praticamente afirma o se
guinte: “É um fato evidente que o Intelecto Ativo não age continua
mente, mas apenas às vezes”. E, no entanto, ele não diz que o Intelecto
Ativo é mutável ou que passa do estado de potência para o de ato,
embora em um momento produza algo não produzido antes. Por isso,
não há, jamais, relação ou comparação entre seres corpóreos e incor-
póreos, nem no momento da ação nem no da abstenção. Somente por
homonímia que o termo ação é utilizado com referência às formas re
sidentes nos corpos e também se refere aos Seres Puramente Espiri
tuais. A circunstância na qual um Ser Puramente Espiritual não atua
em um momento e atua em outro não necessita de uma transição da
potência ao ato, que é necessária no caso de forças ligadas aos corpos.
Pode-se objetar, talvez, que nosso argumento é, até determinado pon
to, uma falácia, pois não se relaciona a nada contido no próprio Inte
lecto Ativo. Porém, na ausência de substâncias suficientemente prepa
radas para a sua ação, ele às vezes não atua. O Intelecto Ativo age
sempre que as substâncias suficientemente preparadas estão presentes
e, quando a ação se interrompe, é porque faltam estas substâncias e
não porque aconteceu qualquer mudança no Intelecto. Respondo que
não é nossa intenção expücar a razão por que Deus criou neste ou
naquele momento, nem fazer um paralelo com o Intelecto Ativo, afir
mando que Deus atua em uma hora e não em outra, do mesmo modo
intermitente que age o Intelecto Ativo, um Ser Puramente Espiritual.
Não declaramos isso e, se o fizéssemos, a conclusão seria falaciosa. O
que nós inferimos — e estamos certos em inferir — é que o Intelecto
Ativo nem é um corpo nem uma força residente em um corpo. Atua
de modo intermitente e, qualquer que seja a causa de não atuar sem
pre, não afirmaremos que o Intelecto Ativo passou da potência ao ato
que permita uma possibilidade de mudança ou, ainda, que exista um
agente causador da transição da potência ao ato. Deste modo refuta
mos a forte objeção levantada por aqueles que defendem a Eternidade
do Universo. Desde que acreditemos que Deus não é um corpo mate
rial nem uma força residente em um corpo, não devemos assumir que
a Criação, após um período de inatividade, provoque uma mudança no
próprio Criador.
O segundo método empregado para provar a Eternidade do Univer
so é baseado na teoria de que tudo demanda, muda e os obstácld&s-
SO BR E A T E O R IA
DA
E T E R N ID A D E
DO
U N IV ER SO
não estão preenchidos com a essência de Deus. A nossa difícil e
profunda refutação a esta proposição, é a seguinte: todo ser, dotado
de livre arbítrio e que realiza determinados atos para com outro ser,
necessariamente interrompe estas ações em um momento ou outro,
devido a determinados obstáculos ou mudanças. Por exemplo: al
guém deseja ter uma casa, mas não a constrói por causa de alguns
obstáculos, como não dispor dos materiais necessários ou, tendo-os,
não estar preparado caso falte os instrumentos apropriados ou, ain
da, tem o material e os instrumentos, mas não deseja mais construí-
la, pois não sente necessidade de um refúgio. No entanto, quando as
circunstâncias se alteram, com o aumento do calor ou do frio, ele é
obrigado a procurar refúgio, então passa a desejar construir uma casa.
Está claro, pois, que as circunstâncias modificam sua vontade, e a
vontade, quando encontra obstáculos, não é levada adiante. Este caso
é válido somente quando as causas das ações são externas, porém,
quando a ação não tem outro objetivo senão o de satisfazer a vonta
de, então ela não depende da existência de circunstâncias favoráveis
ou desfavoráveis. Na falta total de obstáculos, o ser dotado desta
vontade não precisará atuar continuamente, pois sua ação segue sim
plesmente a vontade. Assim, para ele, na ausência de obstáculos, não
existe qualquer motivo que o obrigasse a atuar.
Alguém pode perguntar: “Admitindo que isto esteja correto, que
rer a ação em um momento e não em outro não implica mudança?”
Responderemos que a verdadeira essência da vontade de um ser é
simplesmente a faculdade de conceber um desejo em uma hora e não
concebê-lo em outra. Se esta vontade pertence a um ser material, ela
se dirige a um objetivo externo e muda de acordo com os obstáculos
e circunstâncias. Mas a vontade de um Ser Puramente Espiritual, que
independe de causas externas, é imutável, e o fato de desejar uma
coisa em um dia e outra diferente em outro dia não implica uma mu
dança na essência deste ser, nem requer uma causa externa. Do mes
mo modo, demonstramos que o fato de um ser agir em uma hora e
não agirem outra não envolve uma mudança em seu próprio ser. Está
claro agora que o termo vontade é utilizado de forma homônima para
a vontade humana e a vontade de Deus, porém, nunca poderia haver
comparações entre a vontade de Deus e a do ser humano. Esta obje
ção está refutada e nossa teoria não foi abalada por ela. Isto era tudo
o que desejávamos estabelecer.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
O terceiro método empregado para provar a Eternidade do Universo é
este: quando a Sabedoria de Deus decide produzir algo, é produzido,
mas como a Essência desta Sabedoria é eterna, o que resulta da Sua
Sabedoria também deve ser eterno. Este argumento é muito fraco. Assim
como ignoramos porque a Sabedoria de Deus produziu nove esferas -
nem mais nem menos - ou porque Ele fixou o número e a medida dos
astros exatamente como são, também não podemos entender porque
Sua Sabedoria, em um dado momento, levou o Universo a existir, en
quanto um pouco tempo antes ele não existia. Tudo é conforme a sua
Sabedoria Eterna e Constante, mas ignoramos os caminhos e métodos
desta Sabedoria, desde que, segundo a nossa opinião (de que Deus não
tem atributos), Sua Vontade é idêntica à Sua Sabedoria e todos os Seus
Atributos são uma e a mesma coisa, ou seja, Sua Providência,7 Portan
to, esta objeção à nossa teoria cai por terra. Não há evidências da teoria
da Eternidade do Universo, nem do fato citado por Aristóteles acerca
do consenso geral dos povos antigos, quando descreviam os Céus como
a habitação dos anjos e de Deus, nem da aparente concordância dos
textos bíblicos com esta crença. Estes fatos somente provam que os
Céus nos inspiram a acreditar na existência das Inteligências Separa
das, isto é, ideais e anjos, e que estes, por sua vez, levam-nos a acreditar
na existência de Deus, pois Ele os coloca em movimento e os governa.
Explicaremos e demonstraremos que não há melhor evidência da exis
tência de um Criador, tal como acreditamos, do que aquela fornecida
pelos Céus. Mas também, segundo a opinião dos filósofos, como já
mencionamos, os Céus evidenciam a existência de um Ser que os colo
ca em movimento e este Ser não é nem um corpo material nem uma
força residente em um corpo.
Demonstrada a nossa teoria, e que esta não é impossível como
afirmam os defensores da Eternidade do Universo, mostrarei nos ca
pítulos seguintes que ela é preferível à do ponto de vista dos filósofos
e exporei os absurdos concernentes à teoria de Aristóteles.
7
Veja Terceira Parte, cap. 13 e 17; item, Prim eira Parte, cap. 69. (Maeso)
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
1 9
PLANO DA NATUREZA. PROVAS EM FAVOR DA C REATI O EX
NIHILO. REFUTAM-SE ALGUMAS FALHAS DA TEORIA
ARISTOTÉLICA
Do sistema de Aristóteles e de quantos professam a Eternidade do
Universo, deduz-se claramente que o Universo é inseparável de Deus.
Ele é a causa e o Universo é o efeito, e este efeito é necessário. Assim
como não se explica porque ou como Deus existe de determinado
modo — ou seja, Uno e Incorpóreo — do mesmo modo não há como
quesdonar sobre o Universo inteiro, por que ou como ele existe de um
modo particular. Para isso é necessário que o todo, causa e efeito, exis
tam de modos particulares, pois é impossível não existirem ou serem
diferentes do que de fato são. Conclui-se que a natureza de tudo perma
nece constante, nada muda de forma alguma a sua essência e uma mu
dança deste tipo é impossível em qualquer ser existente. Também é dito
que o Universo não é resultado de projeto, mudança ou desejo, pois se
este fosse o caso, ele não existiria antes de o projeto ser concebido.
Por outro lado, segundo nossa opinião, é evidente que tudo quan
to existe é resultado de um projeto e não somente de uma necessida
de, pois Ele, que planejou tudo, pode modificá-lo quando muda Seu
projeto. Mas nem todo projeto está sujeito a mudanças, há coisas que
são impossíveis de alterar, pois sua natureza é imutável, como expli
caremos. Meu propósito neste capítulo é lhe explanar, por meio de
130
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
argumentos muito próximos à demonstração, que o Universo nos dá
evidências de um projeto. No entanto, não cairei no erro dos M utaká
lemim-. ignorar a natureza existente das coisas, admitir a existência de
átomos ou a criação sucessiva de acidentes, ou, ainda, quaisquer das
suas proposições que tentei explicar e que pretendiam estabelecer o
princípio da Seleção Divina. Não se deve pensar que eles compreende
ram o princípio do mesmo modo que nós, mas sim que, indubitavel
mente, o objetivo era o mesmo e abordaram os temas de que vou
tratar, quando refletiram sobre a Seleção Divina. No entanto, eles não
distinguem entre seleção, quando se trata de uma planta ser vermelha e
não branca ou doce e não amarga, e determinação, como no caso dos
Céus, que lhes deu o formato geométrico peculiar e não uma forma
triangular ou quadrilátera. Os Mutakálemim estabeleceram o Princípio da
Determinação mediante suas proposições, enumeradas anteriormente.8
Estabelecerei este princípio somente quando necessário e apenas por
meio de proposições filosóficas baseadas na natureza das coisas. Mas
antes de iniciar meu argumento apresentarei os seguintes fatos: a Ma
téria é comum a diferentes coisas. Então, deve haver uma causa exter
na que dote esta matéria parcialmente de uma propriedade e parcial
mente de outra, ou deve haver tantas causas diferentes quantas são
diferentes as formas da matéria comum a todas as coisas. Estes pressu
postos são aceitos por aqueles que defendem a Eternidade do Univer
so. Assentada esta proposição, seguirei com a discussão do nosso tema
de um ponto de vista aristotéüco, na forma de um diálogo.
Nós: Você provou que todas as coisas no mundo sublunar têm
uma substância comum. Por que então as espécies das coisas variam?
Por que os indivíduos dentro de cada espécie são diferentes uns dos
outros?
Aristotélicos-. Porque a substância das coisas formadas daquela subs
tância varia. Pois a substância comum, em princípio, recebeu quatro
formas, cada forma foi dotada de duas qualidades e, mediante estas
quatro formas, a substância se transforma nos elementos a partir dos
quais todas as coisas são formadas. A composição dos elementos
ocorre do seguinte modo: primeiro são misturados como conseqü
ência do movimento das esferas celestes e, então, se combinam. A
causa da variação depende da gradação do calor, do frio, da umidade
8
Veja na Primeira Parte, cap. 73.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
e secura dos elementos que formam as partes constituintes das coi
sas. Por meio destas diferentes combinações, as coisas são dispostas
de modos variados a fim de receberem diferentes formas, as quais,
por sua vez, são novamente preparadas para receberem novas for
mas e, assim, sucessivamente. Cada forma genérica encontra uma
grande esfera em sua substância, tanto em relação à qualidade quan
to à quantidade, e os indivíduos da espécie variam de acordo com
esta relação. Tudo isto está plenamente explicado pelas Ciências
Naturais. E certo e claro para qualquer um que conheça corretamen
te a verdade, e não deseja se enganar.
Nós: Dado que a combinação de elementos prepara e permite às
substâncias receberem diferentes formas, o que preparou a Primeira
Substância para que uma parte recebesse a forma de fogo, outra a de
terra, e as intermediárias entre elas recebessem as formas de água e a
de ar, se há uma substância comum a todas? O que fez a substância da
terra mais apropriada para a forma de terra e a do fogo para o fogo?
Aristotélicos: O fator determinante é a diferença de posições, pois os
diferentes lugares prepararam a mesma substância de formas diferen
tes, ou seja, a parte mais próxima da esfera circundante tornou-se mais
rarefeita e com movimento mais suave, aproximando-se da natureza
daquela esfera, e recebeu por meio desta preparação a forma de fogo.
Quanto mais longe a substância está da esfera circundante, em direção
ao centro, mais densa, mais sólida e menos luminosa ela é, tornando-se
terra, o mesmo princípio serve para a formação da água e do ar. É
necessariamente assim, pois seria absurdo negar que cada parte da subs
tância está em um determinado lugar ou afirmar que a superfície é
idêntica ao centro, ou vice-versa. A diferença de localização determi
nou as diferentes formas, isto é, predispôs a substância a receber dife
rentes formas.
Nós: A substância da esfera circundante, ou seja, os Céus, é a mes
ma daquela dos elementos?
Aristotélicos: Não. A substância é diferente e as formas são diferen
tes. O termo corpo é utilizado de modo homônimo para os corpos de
baixo e os dos Céus, como foi demonstrado pelos filósofos modernos.
Tudo isso está demonstrado. Escute agora, você, leitor deste Tratado.
Aristóteles demonstrou que a diferença de formas torna-se evidente
pela diferença das ações. Sendo retilíneo o movimento dos elementos
e circular o das esferas, inferimos que as substâncias são diferentes.
Esta inferência é apoiada pelas Ciências Naturais. Quando, mais à frente,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
mostrarmos que as substâncias com movimento retilíneo diferem quan
to às suas direções, umas se movem para cima, outras para baixo; e
que as substâncias que se movem na mesma direção têm velocidades
diferentes, concluiremos que suas formas são diferentes.
Portanto, aprendemos que há quatro elementos. Por argumentação
análoga segue-se necessariamente que todas as esferas celestes cons
tam da mesma matéria, porque todas elas se movem de modo circular.
Entretanto, no tocante à forma, diferem entre si, pois uma se move de
Leste para Oeste e a outra, de Oeste para Leste, seus movimentos
diferem também em velocidade. Podemos perguntar para Aristóteles:
dado que todas as esferas têm matéria idêntica e cada qual tem uma
forma particular, quem então determinou e predispôs estas esferas a
receberem formas diferentes? Há por trás das esferas algum ser capaz
de determinar isto, além de Deus?
Devo chamar sua atenção para a profundidade e a perspicácia
extraordinária de Aristóteles quando esta questão o perturbou. Ele
se esforçou muito para lidar com esta objeção por meio de argumen
tos que, no entanto, não corroboraram os fatos. Ainda que ele não
mencione explicitamente a objeção, depreende-se de suas palavras o
desejo de nos apresentar sistematicamente a existência das esferas,
assim como mostrou a natureza das coisas do mundo terreno. Tudo
é, segundo ele, resultado das leis da Natureza e não do projeto de um
Ser que o idealiza como quer, ou da determinação de um Ser que
decide como lhe agrada. Mas seu argumento não se sustenta- nem
isso é possível — empenhado em encontrar o motivo pelo qual a esfe
ra se move do Leste e não do Oeste. Pelo fato de algumas esferas se
moverem mais rapidamente e outras mais lentamente, ele considera
como causa destas diferenças suas posições distintas em relação à
Esfera Circundante. Mais adiante tenta mostrar porque há esferas
para cada um dos sete planetas, enquanto há uma só esfera para o
número enorme de astros fixos. Esforça-se para indicar as causas de
tudo isso com o objetivo de nos mostrar que o todo ordenado é
resultado das leis da Natureza. Ele não foi bem sucedido em seu
objetivo, pois tudo quanto nos expõe com respeito ao mundo terre
no está de acordo com os fatos. Assim, a relação entre causa e efeito
é claramente demonstrada, e pode-se afirmar que tudo ocorre em
virtude do movimento e das influências das esferas celestes, mas,
quando trata das propriedades das esferas, não demonstra claramen
te a relação causai, nem explica o fenômeno de modo sistemático
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
133
como a hipótese das leis naturais demandaria. Portanto, em relação às
esferas, observamos que uma esfera dotada de movimento mais rápido
se coloca atrás de uma esfera mais lenta e. em outro caso, observamos
o inverso. Em um terceiro caso, há duas esferas com velocidades iguais,
uma atrás da outra. Há também outros fenômenos que vão fortemente
contra a hipótese de que tudo é regulado pelas leis da Natureza. Dedi
carei um capítulo especial deste Tratado a eles.
Em suma, com certeza Aristóteles sabia da fraqueza de seus argu
mentos ao traçar e descrever a causa de todas estas coisas, por isso
prefaciou suas pesquisas assim:
Queremos agora investigar detidamente duas questões, que é nosso
dever analisar e discutir de acordo com a nossa capacidade, sabedoria
e opinião. Mas nada deverá ser atribuído à presunção e ao orgulho,
mas ao nosso zelo no estudo da filosofia, pois quando examinamos
questões elevadas e transcendentais nos esforçamos para oferecer
uma solução apropriada. Qualquer um que ouça isto deverá se regozi
jar e ficar satisfeito.
São suas palavras literais. E evidente que reconhecia a insuficiência
de sua teoria, que parece ainda mais fraca quando nos lembramos que
a Astronomia não estava plenamente desenvolvida e que, nos dias de
Aristóteles, os movimentos das esferas não eram tão bem conhecidos
como são atualmente. Penso que o objetivo de Aristóteles, ao atribuir
em sua obra Metafísica uma Inteligência Separada para cada esfera ce
leste, era o de assumir a existência de algo capaz de determinar o curso
peculiar de cada esfera. Mais adiante demonstrarei que ele nada conse
gue com isto. Mas agora explicarei as palavras “segundo nossa capaci
dade, conhecimento e opinião”, inscritas na passagem citada, pois não
as vi esclarecidas por nenhum dos comentaristas. Ao dizer “nossa opi
nião”, ele se refere ao princípio de que tudo é resultado das leis natu
rais ou à teoria da Eternidade do Universo. A expressão “nosso conhe
cimento” indica o conhecimento daquilo que é claramente e geralmente
aceito, a saber, que a existência de cada uma destas coisas se deve a
uma determinada causa e não a uma possibilidade. Por nossa capacidade,
entenda-se nossa incapacidade para descobrir as causas de todas estas
coisas. Ele somente quis traçar as causas para algumas delas, e assim o
fez, pois dá uma excelente razão para o fato de a esfera dos astros fixos
se mover lentamente, enquanto as demais esferas se movem com maior
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
velocidade, qual seja, porque o seu movimento ocorre em direção oposta
(do da Esfera Circundante). Afirma posteriormente que, quanto mais
afastada se encontra uma esfera da oitava, maior é a sua velocidade.
Porém, esta regra não parece boa a nenhum dos casos, como já expli
quei. Mais grave ainda é a seguinte objeção: há esferas abaixo da oitava
esfera que se movem do Leste para o Oeste. De acordo com esta regra,
cada esfera de cima deveria ser mais rápida que aquela abaixo dela, mas
a velocidade destas esferas seria praticamente a mesma que a da nona
esfera. A Astronomia, à época de Aristóteles, não estava tão desenvol
vida como hoje.
Segundo a nossa teoria da Criação, tudo isso é facilmente explica
do. Afirmamos que existe um Ser que determina a direção e a veloci
dade do movimento de cada esfera — ainda que ignoremos o modo
como a Sabedoria deste Ser deu, a cada esfera, sua propriedade pecu
liar. Se Aristóteles fosse capaz de explicar a diversidade de movimen
tos nas esferas e de mostrar que estão de acordo com suas respecti
vas posições, teria sido excelente. A variedade daqueles movimentos
seria explicada do mesmo modo que a variedade de elementos, por
sua posição relativa ao centro e à superfície, mas não é este o caso,
còmo já disse.
Há um fenômeno ligado às esferas celestes que mostra claramente
a existência de uma determinação voluntária. Ele não pode ser explica
do de outra forma a não ser assumindo que algum ser o projetou. Este
fenômeno é a existência dos astros. O fato de se encontrarem as esfe
ras constantemente em movimento e os astros estarem sempre fixos
demonstra que a substância dos astros é diferente da substância das
esferas. Já Abu Nasr (Al Farabi), em seus comentários sobre a Física
(Acroasis) de Aristóteles, afirmou que: “Entre as esferas e os astros
existe uma diferença: as esferas são transparentes, os astros são opa
cos. A razão disto é que há uma diferença, por menor que seja, entre
suas substâncias e formas”. Estas são suas palavras textuais. Eu não
diria que a diferença é pequena, mas enorme, pois não o deduzo da
transparência das esferas, mas sim dos seus movimentos. Estou con
vencido de que há três tipos diferentes de substâncias, com três tipos
diferentes de formas, a saber:
1) Corpos que nunca se movem por vontade própria, como os
astros;
2) Corpos que estão sempre em movimento, como as esferas;
3) Corpos ora em movimento, ora em repouso, como os elementos.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Pergunto agora: o que juntou estas duas matérias — entre as quais
há, na minha opinião, uma diversidade extrema ou, conforme o juízo
de Abu Nasr, uma pequena diferença — e quem preparou estes corpos
para esta união? Em suma, seria estranho que, sem a existência de um
projeto, dois corpos diferentes se unissem um ao outro de modo a se
fixarem em um determinado lugar, que não combinasse com um de
les. É ainda mais difícil explicar a existência de muitos astros na oitava
esfera. Todos são esféricos, uns grandes, outros pequenos; há dois as
tros aparentemente a uma distância de um cúbito um do outro; em
determinado local há um grupo de dez aglomerados, enquanto, em
outro lugar, há um grande espaço vazio. O que determinou que aquela
pequena parte tenha dez astros e esta outra, nenhum? E, sendo o cor
po da esfera uniforme, por que um astro em particular ocupa um lugar
e não outro? É muito difícil responder a estas questões e a outras se
melhantes, se assumirmos que tudo emana de Deus como resultado
necessário de determinadas leis permanentes, como sustenta Aristóte
les. Mas se admitimos que tudo isso é resultado de um projeto, nada há
de estranho ou improvável, e a única questão é esta: qual é a causa
deste projeto? A resposta é que tudo foi feito com um propósito deter
minado, que não conhecemos, mas nada foi feito em vão ou por acaso.
E sabido que as veias e nervos de um cão ou de um asno não são
produto do acaso, nem são suas proporções pura casualidade, tampou
co uma veia é grossa e a outra é fina por acaso, mas por um propósito
determinado. Da mesma forma, um nervo se ramifica e outro não, um
desce em direção reta e outro se enrola sobre si, e sabemos que tudo
isto deve ser assim como é. Como, portanto, uma pessoa inteligente
imaginaria que as posições desses astros, suas dimensões, as quantida
des e os movimentos de suas diversas esferas carecem de objetivo e
são produtos do acaso? Não há dúvida de que todas estas coisas são
necessárias e seguem um determinado projeto, é extremamente im
provável que sejam o resultado necessário das leis naturais.
Encontro a melhor prova para o projeto do Universo nos diferen
tes movimentos das esferas celestes e na posição fixa dos astros nas
esferas. Por este motivo você descobrirá que os Profetas utilizaram os
astros e as esferas como provas da existência necessária da Divindade.
Assim, Abrahão refletiu sobre os astros, como é sabido.9 Isaías (40:26)
9
Segundo o Talmud, Abrahão possuía grandes conhecim entos astronômicos e
todos os reis do O riente e do Ocidente o consultavam (Maeso).
136
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
exorta-nos a aprender com eles sobre a existência de Deus: “Levante
ao alto vosso olhos e veja: Quem criou estas coisas?”. Jeremias [cha
ma Deus] de “O Criador dos Céus” (Jeremias 32:17; 10:12; 51:15).
Abrahão O chama de: “Deus dos Céus” (Gênesis 24:7), e Moisés, o
Príncipe dos Profetas, usa a frase por nós explicada na Primeira Parte,
cap. 70: “Ele que cavalga nos Céus” (Deuteronômio 33:26). A com
provação acerca dos Céus é convincente, pois a variedade de coisas
no mundo terreno, embora sua substância seja uma e a mesma, pode
ser explicada como obra das influências das esferas ou como resulta
do da variedade na posição da substância em relação às esferas, como
foi demonstrado por Aristóteles. Mas quem determinou a variedade
de esferas e astros, senão a Vontade de Deus? Dizer que foram as
Inteligências Separadas é totalmente inútil, pois elas são incorpóreas
e não têm relação direta com as esferas. Então por que uma esfera faz
o movimento de atração até sua Inteligência Separada, o Leste, e ou
tra até o Oeste? Você acredita que esta Inteligência se encontra no
Leste e a outra no Oeste? E por que uma se movimenta com grande
velocidade e a outra lentamente? Esta diferença não tem relação com
as distâncias entre elas, como se sabe. Devemos então afirmar que a
natureza e essência de cada esfera necessita ter seu movimento em
determinada direção e de uma determinada maneira, como conseqü
ência do seu desejo em se aproximar de sua Inteligência. Aristóteles
expressou claramente sua opinião.
Assim, retornamos ao nosso ponto de partida e declaramos que
todas as esferas estão constituídas por uma só e idêntica matéria. O
que faz a natureza de uma porção ser diferente da outra? Por que
uma esfera tem um desejo que produz um movimento diferente da
quele produzido pelo desejo de outra esfera? Isto deve ser realizado
por um agente apto a determinar estas coisas. Temos então que exa
minar duas questões:
1) E ou não necessário admitir que a variedade das coisas no Uni
verso é resultado de um Projeto e não de leis fixas da Natureza?
2) Supondo que tudo isso seja resultado de um Projeto, então se
deve concluir que [o Universo] foi criado a partir de sua inexistência
ou a Creatio ex nihilo não é a explicação adequada e foi o Ser quem
determinou que tudo fosse sempre assim?
Alguns que acreditam na Eternidade do Universo defendem a últi
ma consideração. Nos capítulos seguintes abordarei estas duas ques
tões, expondo o procedente a esse respeito.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
IJJ
CAPÍTULO
20
OBJECÕES À TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO
Aristóteles demonstra que nada na Natureza se origina por acaso e
formula sua hipótese nestes termos: o acaso não reaparece continua
mente nem freqüentemente, mas todos os produtos da Natureza rea
parecem ou constantemente ou freqüentemente, Quanto aos Céus, com
tudo o que encerram, permanecem constantes e são imutáveis, como
já foi explicado, tanto em relação à sua essência, quanto ao seu lugar.
Mas no mundo terreno encontramos tanto coisas constantes quanto
coisas que reaparecem freqüentemente (embora não constantemente).
Por exemplo, o calor do fogo ou a tendência de uma pedra à queda são
propriedades constantes, assim como a forma e o modo de vida dos
indivíduos em cada espécie, na maioria dos casos, são os mesmos. Tudo
isto está claro. Se as partes do Universo não são acidentais, como o
Universo, na sua totalidade, pode ser considerado resultado do acaso?
Logo, a existência do Universo não é casual. Eis aqui a objeção
que Aristóteles levanta contra um dos antigos filósofos que admiti
ram que o Universo é fruto do acaso e passou a existir por si mesmo,
sem causa alguma: Alguns assumem que os Céus e todo o Universo
passaram a existir espontaneamente, bem como a rotação e o m ovi
mento das esferas, que produziu a variedade de coisas e estabeleceu a
organização atual. Esta opinião implica um grande absurdo. Eles
138
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
admitem que animais e plantas não surgiram nem nasceram por aca
so, mas por uma causa determinada, seja esta a Natureza, a razão ou
o que for . Eles não admitem que tudo possa ter se criado ao acaso,
de uma semente ou sêmen, mas de uma determinada semente da
qual somente uma oliveira é produzida e de um determinado sêmen
do qual somente um ser humano se desenvolve. Por outro lado, afir
mam que os Céus e os corpos celestes são, entre todos os corpos,
divinos e que passaram a existir espontaneamente, sem a ação de qual
quer causa ao contrário do que acontece com as plantas e os animais.
Aristóteles examinou esta teoria e, então, rejeitou-a fortemente.
Fica patente que Aristóteles argumenta e prova que todos estes
seres não existem por mero acaso, não são acidentais, pois são essenci
ais, isto é, há uma causa que justifica esta condição e, por esta causa,
são exatamente como são. Esta é a opinião e a argumentação de Aris
tóteles. Mas não penso que, segundo ele, a rejeição da origem espontâ
nea das coisas implica a admissão do Projeto e da Vontade. Como é
impossível conciliar dois opostos, é também impossível conciliar estas
duas teorias: a da origem espontânea das coisas com a da Criação pelo
desejo e vontade de um Criador. Pois a existência necessária, assumida
por Aristóteles, deve ser compreendida no sentido de que, para tudo
que não é produto do trabalho, há uma determinada causa, com pro
priedades próprias, que o produz e, ainda, para esta causa há outra
causa, e para a segunda, uma terceira e assim por diante. A série de
causas termina com a Primeira Causa, da qual deriva tudo o que existe,
pois é impossível que a série continue até o infinito. Ele, contudo, não
quer dizer que a existência do Universo é necessariamente produto de
um Criador, ou seja, da Primeira Causa, do mesmo modo como a som
bra se origina do corpo, o calor, do fogo ou a luz, do Sol. Somente
aqueles que não compreendem suas palavras atribuem estas idéias a
Aristóteles. Ele usa o termo necessário aqui com o mesmo sentido de
quando afirmamos que o inteligível necessariamente deriva do intelec
to, o qual é agente do inteligível10. Mesmo Aristóteles sustenta que a
10
“Aristóteles, ainda que considere a existência do mundo como um a coisa ne
cessária, sem dúvida não acredita que, por isso, o mundo seja obra de uma
fatalidade cega e que tenha surgido de uma causa que opera sem consciência
de sua obra, como o corpo que origina a sombra, mas sim que, ao contrário,
Deus é a causa do inteligível, o qual, enquanto isso, é necessariam ente pensado
e compreendido pelo intelecto” (Munk).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Primeira Causa é o intelecto mais elevado e mais perfeito. Ele ainda
afirma que a Primeira Causa é agradecida, satisfeita e se compraz com
aquilo que necessàriamente se origina dela, e é impossível que Seu
desejo fosse diferente.
Mas não chamaremos isso de Projeto, pois não há nada em comum
com um projeto. Por exemplo: um homem está agradecido, satisfeito,
tem prazer em ser dotado de olhos e mãos e é impossível que desejasse
outra coisa. Apesar disso, os olhos e as mãos de um homem não são
resultados de seu projeto, não é devido a sua própria determinação que
ele adquiriu estas propriedades e é capaz de realizar certas ações. A
noção de projeto e determinação se aplica somente às coisas que ainda
não existem, quando há apenas a possibilidade de existirem ou não,
segundo este projeto. Não sei se os modernos aristotélicos entende
ram as implicações das palavras de Aristóteles de que a existência do
Universo pressupõe alguma causa, na forma de um projeto, e determina
ção, ou se, em oposição a ele, admitiram os conceitos de projeto e determi
nação, acreditando que não entram em conflito com a teoria da Eterni
dade do Universo.
A partir do exposto, abordarei as opiniões destes filósofos modernos.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
2
1
A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL À DA
ETERNIDADE DO UNIVERSO
Alguns filósofos modernos, partidários da Eternidade do Universo,
defendem a idéia de que Deus produz o Universo e que Ele, por Sua
Vontade, projeta e determina sua existência e forma. Rejeitam, no
entanto, a teoria de que isto ocorreu em um momento determinado e
admitem que sempre foi assim e sempre será. O motivo pelo qual não
podemos imaginar um agente a não ser que exista precedente ao re
sultado de sua ação é explicado, por eles, pelo fato de que isto é exa
tamente assim em tudo o que nós produzimos, pois em todo agente,
como nós, há momentos de inatividade e, em virtude disso, somos
somente agentes em potência, ou seja, tornamo-nos agentes ao agirmos.
Mas com relação a Deus não há momentos de inatividade ou de po
tencialidade em nenhum sentido, Ele não se coloca antes da Sua obra,
Ele é sempre um agente atuante. E assim como há uma diferença
abismai entre Sua essência e a nossa, do mesmo modo a relação entre
Ele e Sua obra difere da existente entre nós e nossas obras. Eles apli
cam o mesmo argumento à vontade e determinação, pois não há dis
tinção entre dizer: Ele atua, quer, projeta ou determina. Admitem ainda
que uma mudança em Sua ação ou vontade é impossível. Fica então
claro que estes filósofos abandonaram o termo resultado necessário, mas
I/J-A
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
mantiveram a sua teoria. Procuraram talvez usar uma expressão me
lhor ou remover um termo questionável. Mas é a mesma coisa se dis
sermos, segundo o ponto de vista de Aristóteles, que o Universo é
resultado da Primeira Causa e deve ser eterno, assim como a causa é
eterna ou, segundo estes filósofos, que o Universo é resultado da ação,
projeto, vontade, seleção e determinação de Deus, mas sempre foi as
sim e sempre será. Do mesmo modo como, sem dúvida alguma, o
nascer do Sol produz o dia sem que necessariamente o preceda. No
entanto, este não é o nosso conceito de Projeto. Por isso, queremos
explicar que o Universo não é o resultado necessário da existência de Deus,
assim como o efeito é o resultado necessário da causa eficiente. No
último caso, o efeito não pode ser separado de sua causa, a menos que
esta mude totalmente ou em parte. Entendido isto, compreenderemos
facilmente quão absurdo é dizer que o Universo está para Deus assim
como o efeito está para a causa eficiente e considerar, ao mesmo tem
po, que o Universo é resultado da ação e determinação de Deus.
Exposto o tema, discutiremos se a causa, admitida pela variedade
de propriedades percebidas nos seres celestes, é somente uma causa
eficiente que deve necessariamente produzir aquela variedade e seu
efeito, ou se aquela variedade se deve a um agente determinante, como
acreditamos, segundo a teoria de M oshé Rabênu. Antes de discutir isto,
explicarei exatamente o que Aristóteles quer dizer com resultado necessá
rio', em seguida lhe explanarei, por meio de argumentos filosóficos li
vres de qualquer falácia, porque eu prefiro a teoria da Creatio ex nihilo.
Quando Aristóteles declara que a Primeira Inteligência resulta ne
cessariamente da existência de Deus, e a Segunda Inteligência é resul
tado da existência da Primeira, a Terceira, da Segunda e assim por
diante, e que as esferas são o resultado necessário da existência das
Inteligênáas Separadas, na ordem das passagens relacionadas a isso, co
nhecida e estudada por você, a qual resumimos no capítulo 4, fica
claro que ele não pretende afirmar que uma coisa preexistiu e que dela
tenha se originado a segunda como seu resultado necessário, pois ele
nega que um destes seres teve um início. Por resultado necessário expressa
simplesmente a relação causai, significando que a Primeira Inteligência
é a causa da existência da segunda, e esta, da terceira, e assim sucessiva
mente até a última das Inteligências. O mesmo se afirma do concer
nente às esferas e à matéria-prima, dado que estas coisas não antece
dem umas às outras, nem existem, segundo ele, umas sem as outras.
Nós dizemos, por exemplo, que o resultado necessário das qualidades
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
143
primárias são a aspereza e a maciez, a dureza e a moleza, a porosidade e
a solidez, pois ninguém duvida que calor, frio, umidade e secura sejam
as causas da aspereza e maciez, dureza e moleza, porosidade e solidez
e qualidades similares, nem que estas últimas sejam resultado necessá
rio das quatro primeiras qualidades. Também é impossível que exista
um corpo que, possuindo as primeiras, careça das segundas, pois a
relação entre os dois tipos de qualidade é o de causalidade, não o de
agente e seu produto. Exatamente deste modo que o termo resultado
necessário é usado por Aristóteles quando, ao se referir ao Universo como
um todo, afirma que uma porção é resultado de outra e continua a
série até a Primeira Causa — assim denominada por ele — ou Primeiro
Intelecto, se preferir este termo. Para nós, ambos significam a mesma
coisa, com uma diferença: para Aristóteles, tudo além daquele Ser é
resultado necessário deste, como já mencionei, enquanto que, para nós,
aquele Ser criou o Universo como um todo com projeto e vontade, de
modo que o Universo, inexistente anteriormente, passou a existir de
vido a Sua Vontade.
Nos capítulos seguintes, exporei as minhas provas a favor da supe
rioridade da nossa teoria, a da Creatio ex nihilo.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
22
A S DIFICULDADES DE COM PREENSÃO D A N AT U R EZA E DO
M O V IM E N TO D A S ESFERAS DE A C O R D O CO M A TEO RIA DE
ARISTÓ TELES D ESAPARECEM DIANTE D A IDEIA DO U N IVE R
SO C R IA D O POR DEUS
Umaproposição aceita por Aristóteles e por todos os filósofos é que uma
coisa simples somente produz outra coisa simples, enquanto um com
posto pode produzir tantas coisas quantos forem os elementos sim
ples nele contidos. Por exemplo, o fogo contém duas qualidades -
calor e secura —, aquece mediante o calor e seca em virtude desta secu
ra. Uma coisa composta de matéria e forma produz determinadas coi
sas de acordo com a sua matéria e outras de acordo com a sua forma,
se tanto matéria quanto forma consistirem de vários elementos. Se
gundo este axioma, Aristóteles sustenta que a emanação direta de Deus
deve ser uma Inteligência Simples, não mais do que isso.
Segunda proposição: Uma coisa não é produzida aleatoriamente por
outras coisas, há alguma relação de causa e efeito. Portanto, acidentes
não são produzidos aleatoriamente por acidentes, qualidade não é ca
paz de originar quantidade ou vice-versa. Uma forma não se origina da
matéria nem vice-versa.
Terceira proposição: Um agente único que age com projeto e vontade,
e não somente por força das leis da Natureza, é capaz de produzir
diferentes objetos.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Q uarta proposição-, Um todo, integrado por vários elementos justa
postos, é mais um composto do que um objeto cujos diferentes elemen
tos estão inteiramente combinados. Exemplo: ossos, carne, veias e
nervos são mais simples que a mão ou o pé, que são uma combinação
de ossos, carne, veias e nervos. Tudo isto está claro e não precisa de
maior explicação.
A partir da apresentação destas proposições, faço a seguinte ques
tão: Aristóteles sustenta que a Primeira Inteligência é a causa da Se
gunda e esta, da terceira, e assim por diante, até milhares de graus, se
admitirmos uma série desse tipo. Agora, o Primeiro Intelecto é, sem
dúvida alguma, simples. Como uma forma composta de coisas exis
tentes viria de um Intelecto deste tipo segundo as leis fixas da Natu
reza, como sustenta Aristóteles? Concordamos com ele quando afir
ma que, quanto mais as Inteligências se afastam (do Prim eiro
Intelecto), maior a multiplicidade do seu composto, devido ao gran
de número de objetos compreensíveis pelas Inteligências. Mas, ainda
que se admita isto, permanece a questão: por meio de qual lei da
Natureza as esferas celestes emanaram das Inteligências? Que rela
ção existe entre seres materiais e imateriais? Ainda supondo que acei
temos que cada esfera tenha emanado de uma Inteligência na forma
enunciada, que a Inteligência, do modo como se compreende — era
composta de dois elementos —produz a próxima Inteligência por
meio de um elemento e uma esfera por meio do outro, então como
um elemento simples produziria a esfera, que contém duas substân
cias e duas formas — quais sejam, a substância e a forma da esfera e
ainda a substância e a forma do astro fixo naquela esfera — se, de
acordo com as leis da Natureza, um composto somente deriva de um
composto? Deve haver, portanto, um elemento, do qual deriva o cor
po da esfera e outro elemento, do qual deriva o corpo do astro. Isto
seria necessário mesmo que a substância de todos os astros fosse a
mesma, mas é possível que os astros luminosos não tenham a mesma
substância que os astros não-luminosos. Além disso, é sabido que todo
corpo tem sua própria matéria e sua própria forma. Fica, pois, paten
te que esta emanação não pode ocorrer por força das leis da Nature
za, como defende Aristóteles. Nem a diferença de movimento das
esferas segue a ordem destas posições e, portanto, não podemos afir
mar que esta diferença é resultado de determinadas leis da Natureza.
Já mencionamos isto (cap. 19).
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Há, nas propriedades das esferas celestes, outra circunstância
oposta às leis da Natureza. Se a substância de todas as esferas é a
mesma, por que razão a forma desta esfera não combina com a
substância de outra, como ocorre com as coisas na Terra? Simples
mente porque suas substâncias são aptas a tais mudanças? Se a subs
tância de todas as esferas é a mesma, se não se admite que cada uma
delas tem a sua substância peculiar e se, contrariando todos os prin
cípios, o movimento peculiar de cada esfera não é devido ao caráter
especial de sua substância, por que então uma determinada forma
permaneceria constantemente unida a uma determinada substância?
Novamente, se todos os astros têm a mesma substância, o que os
distingue uns dos outros? As formas? Ou os acidentes? Qualquer
que seja o caso, as formas e os acidentes trocariam de lugar, de modo
a se unir sucessivamente a cada um dos astros, desde que sua subs
tância (sendo a mesma) admita essas combinações (com qualquer
uma das formas ou acidentes).
Isto mostra que o termo substância, quando usado para as esferas
ou para os astros, não tem o mesmo significado que ao ser usado para
as coisas terrestres, mas é aplicado para os dois casos como homôni
mos. Isto indica também que qualquer um dos corpos das esferas tem
sua forma peculiar de existência, diferente de todos os demais seres.
Por que, então, o movimento circular é comum a todas as esferas e
por que a posição fixa dos astros em suas respectivas esferas é comum
a todos os astros? Se admitirmos o projeto e determinação de um
Criador, segundo Sua Sabedoria incompreensível, todas estas dificul
dades desaparecem. Elas surgem quando consideramos todo o Uni
verso não como resultado do Livre Arbítrio, mas como resultado das
leis fixas da Natureza. Essa é uma teoria que, por um lado, não está
em harmonia com a ordem existente das coisas e não oferece, para
isto, razão ou argumento suficiente; e, por outro lado, implica muitas
e grandes improbabilidades, pois, segundo ela, Deus, cuja perfeição
em todos os níveis é reconhecida por toda pessoa inteligente, está em
tal relação com o Universo que nada pode mudar. Assim, se Ele dese
jasse aumentar a asa de uma mosca ou reduzir o número de pernas de
um verme, não poderia. Segundo Aristóteles, Ele nem pode tentar
fazer isto e é totalmente impossível, para Ele, desejar qualquer mu
dança na ordem existente das coisas. Caso Ele pudesse, isto não au
mentaria Sua perfeição, ao contrário, segundo alguns pontos de vista,
poderia até diminuí-la.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Ainda que certos críticos parciais me reprovem, considerando mi
nha opinião acerca da teoria de Aristóteles conseqüência de uma com
preensão insuficiente ou oposição intencional, não deixarei, por isso,
de expor os resultados das minhas pesquisas, por mais pobres que
sejam as minhas capacidades. Sustento que a teoria de Aristóteles é
absolutamente correta com respeito às coisas que existem entre a esfe
ra lunar e o centro da Terra. Somente um ignorante rejeita isso — ou
uma pessoa com opiniões preconcebidas, que deseja mantê-las ou de-
fendê-las, o que a leva a ignorar fatos claros. Mas o que Aristóteles
expõe da esfera lunar para cima é, com algumas exceções, simples ima
ginação e opinião, em um nível mais extenso no que se refere à ordem
das Inteligências, assim como em algumas das suas teorias metafísicas
— estas incluem enormes improbabilidades, promovem idéias que to
das as nações consideram como evidentemente corrompidas e causa a
propagação de pontos de vista que não podem ser comprovados.
Talvez me perguntem porque enumerei todas as dúvidas que pos
sam existir contra a teoria de Aristóteles. E possível refutar uma teo
ria por meio de dúvidas ou estabelecer uma teoria contrária a ela?
Certamente não, mas nossa atitude diante deste filósofo é aquela que
seus seguidores nos induzem a adotar. Com efeito, Alexandre deixou
bem claro que, quando uma coisa não é suscetível de demonstração,
devem ser propostas as duas hipóteses mais opostas, a fim de ressal
tar as dúvidas Inerentes a cada uma delas e aceitar a mais verossímil.
Alexandre acrescenta que esta regra se aplica a todas aquelas opi
niões de Aristóteles na M etafísica que não são demonstráveis, pois
todos quantos seguiram Aristóteles acreditaram que suas opiniões
eram, de longe, as menos sujeitas a dúvida. É o que fazemos, con
vencidos de que a questão —se os Céus são eternos ou não — não
pode ser demonstrada, nem afirmativamente nem negativamente.
Enumeramos as objeções levantadas contra cada ponto de vista e
mostramos como a teoria da Eternidade do Universo é sujeita a for
tes objeções, sendo mais apta a corromper as noções a respeito de
Deus (do que outras). Acrescentamos que a teoria da Criação foi de
fendida por A.vraham A vinu e M oshé Rabênu.
Ao mencionar o método de teste das duas teorias por meio das
objeções erguidas contra elas, considero necessário esclarecer algo
sobre o tema.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
23
A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL ÀQUELA
DA ETERNIDADE DO UNIVERSO
Ao comparar as dúvidas levantadas contra uma opinião àquelas con
trárias à sua, para decidir a favor da menos questionável, não se deve
considerar o número de objeções, mas o nível de improbabilidade e de
desvio dos fatos reais (apontados pelas objeções), pois uma só objeção
pode ter mais peso do que mil outras. A comparação somente será
proveitosa para quem conceda paridade às duas hipóteses opostas. Se
você está predisposto a aceitar uma delas, seja devido a sua educação
ou a um interesse qualquer, está cego demais para enxergar a verdade.
Pois aquilo que pode ser demonstrado não deve ser rejeitado, não im
porta o quanto esteja inclinado a fazê-lo. No entanto, nas questões
semelhantes às consideradas, você estará apto a debater (devido à sua
inclinação). Em certas ocasiões, será capaz de decidir a questão se esti
ver livre de paixões, ignorar costumes e seguir somente a sua razão.
Mas, para isso, determinados requisitos devem ser preenchidos:
Primeiro: Levar em conta a sua capacidade mental e seus talentos
naturais, os quais você obterá por meio do estudo da Matemática e da
familiarização com a Lógica.
Segundo: Adquirir um bom conhecimento de Ciências Naturais, para
estar apto a entender a Natureza e suas objeções.
Terceiro: Ser moralmente bom. Se uma pessoa é voluptuosa ou pas
sional e, ao perder as rédeas, permite que a sua raiva passe dos limites,
150
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
não importa se esta atitude faz parte de sua natureza ou é um hábito,
ela resvalará, tropeçará pelo caminho e seguirá a teoria que estiver de
acordo com as suas inclinações.
Chamo-lhe a atenção para que não se deixe seduzir; porque é pos
sível que qualquer dia alguém, por meio de objeções levantadas, balan
ce sua crença na teoria da Criação e facilmente lhe desoriente. Você
então adotaria a teoria [da Eternidade do Universo], contrária aos prin
cípios fundamentais da nossa religião, e daria seu assentimento a here
sias acerca de Deus. Sempre suspeite da própria razão e aceite a teoria
ensinada pelos dois Profetas [Abrahão e Moisés] que são o pilar da
ordem existente nas relações sociais e religiosas da Humanidade. So
mente uma prova demonstrativa seria capaz de fazer você abandonar a
teoria da Criação, mas esta prova não existe na Natureza.
Não se admire porque eu apresento, nesta discussão, uma questão
histórica como apoio à teoria da Criação, pois o maior dos filósofos,
Aristóteles, empregou, em seus principais trabalhos, recursos históri
cos para defender sua teoria da Eternidade do Universo. A respeito
disso podemos muito bem afirmar: Será que a nossa Lei Perfeita não é tão
boa quanto os mexericos deles}11 Se ele sustenta o seu ponto de vista citan
do lendas do Povo de Sabá,12por que não apoiaríamos nossos pontos de
vista naquilo que Moisés e Abrahão declararam e naquilo que se segue
de suas palavras?
Prometi anteriormente descrever, em um capítulo à parte,13 as for
tes objeções que ocorrem àquele que pensa que a sabedoria humana
entende totalmente a natureza das esferas celestes e seus movimentos,
e que estes estão sujeitos a leis fixas e podem ser compreendidos quan
do sua ordem e inter-relações são observadas. Explicarei isso agora.
11
12
13
Veja no Talmud da Babilônia, Baba Batra, 115b. (Friedlander, citado por M aeso).
Sabá ou Shéba: nome bíblico de um a região do sul da A rábia, que corresponde
hoje, em parte, à região do Iêmen. Seus habitantes são denominados sabeanos.
Segundo algumas passagens do Gênesis e das Primeiras Crônicas, Sheba, tata-
raneto de Noé, era o ancestral do Povo de Sabá. Segundo outras passagens,
todavia, era descendente de Abrahão. Sheba colonizou a E tiópia há aproxima
damente três mil anos. N aquele tempo, a Rainha de Sabá fez sua famosa visita
ao Rei Salomão. Situada ao longo da rota comercial entre a ín d ia e a África,
Sheba era conhecida como uma região muito próspera. Foi conquistada pela
Etiópia em 525. Em 572 tornou-se um a província persa e, com o surgimento
de M aomé, caiu sob controle islâmico e perdeu a sua identidade (fonte: site
http://www.newadvent.org/cathen/13285c.htm , em 12/11/2002).
Veja cap. 19 (Maeso).
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
2 4
AS DIFICULDADES DE COMPREENSÃO DA NATUREZA E DO
MOVIMENTO DAS ESFERAS DE ACORDO COM A TEORIA DE
ARISTÓTELES DESAPARECEM DIANTE DA IDEIA DO UNIVER
SO CRIADO POR DEUS
Você já conhece, em Astronomia, o que estudou e aprendeu, sob a.
minha orientação, no A lm agesto^ mas não houve tempo para lhe ini
ciar em ponderações ulteriores.15
1415
A lm agesto: Mais conhecido como Sjntaxis, A lm agesto (S êfer há-M aguestê, em he
braico) é o título da tradução árabe (ano 827) do livro de Astronom ia de Pto-
lom eu (século II E.C.) - astrólogo, astrônomo, m atem ático e geógrafo, que
viveu em Alexandria. E m A lmagesto, Ptolom eu expõe o sistem a geocêntrico
que leva o seu nome, e supõe a Terra como o centro ao redor do qual giram os
demais corpos celestes. Esta hipótese perdurou por toda a Idade M édia e foi
substituída pelo sistema heliocêntrico de Copérnico (1473-1543) (Maeso).
Neste capítulo, M aimônides se dirige particularm ente ao seu discípulo, Rav
Y ossef ibn Aknin. Sabemos que este em igrou do M agreb (região de aproxima
damente 4 mil km 2, situada no noroeste do continente africano. Atualm ente
compreende a Argélia, a Tunísia e o M arrocos, países localizados no extremo
oeste do mundo árabe. E lim itada pelo M ar M editerrâneo, ao N orte; Deserto
do Saara, ao Sul; Oceano Atlântico, a Oeste; e Deserto da Líbia, ao Leste).
Estabeleceu-se depois na cidade de Alepo (localizada na atual Síria), esteve
com M aimônides e residiu na antiga cidade do Cairo, por algum tempo, dedi
cando-se a estudos astronômicos (NT).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
A teoria de que as esferas celestes se movem regularmente e que os
cursos reconhecidos dos astros estão em harmonia com a observação,
dependem, como você sabe, de duas hipóteses: aceitarmos os epici-
clos, ou as esferas excêntricas, ou uma combinação de ambos. Mas
agora vou lhe mostrar que ambas as hipóteses são irregulares e total
mente contrárias aos resultados das Ciências Naturais. Levaremos em
conta, primeiro, um epiciclo, tal como se admite nas esferas da Lua e
dos Cinco Planetas: rodando sobre certa esfera, mas não ao redor do
centro da esfera que o carrega. Este arranjo produziria necessaria
mente um movimento de rotação, ou seja, o epiciclo giraria e mudaria
completamente de lugar. No entanto, Aristóteles considera impossí
vel que qualquer coisa nas esferas mude de lugar. Por isso, Abu Bakr
ibn Al-Sa’ig, em seu Tratado sobre Astronomia, rejeitou a existência de
epiciclos. Ao lado desta impossibilidade, ele menciona outras, demons
trando que a teoria dos epiciclos implica diversas noções absurdas.
Explicá-las-ei aqui:
1) E absurdo admitir que a revolução de um ciclo não tenha o
Universo como centro, pois há um princípio fundamental quanto à
ordem do Universo de que os movimentos são somente três: a p a r
tir do centro,p a ra o centro e ao redor do centro. Mas um epiciclo não
se move a partir do centro, nem em direção ao centro e nem ao
redor dele.
2) Segundo aquilo que Aristóteles explica nas Ciências Naturais, é
absolutamente necessário algo fixo ao redor do qual se efetue o movi
mento. Esta é a razão pela qual a Terra permanece estacionária. Mas o
epiciclo se moveria ao redor de um centro não-estacionário.
Soube que Abu Bakr descobriu um sistema em que não há epici
clos, mas não se excluíam as esferas excêntricas. Não soube disso
pelos seus pupilos, mas, mesmo que fosse verdade, ele não ganharia
muito com isso, pois a excentricidade é completamente contrária aos
princípios assinalados por Aristóteles. Parece-me que uma esfera ex
cêntrica não se move em torno do centro do Universo, mas ao redor
de um ponto imaginário distante do centro e, portanto, em torno de
um ponto que não é fixo. Um ignorante em Astronomia pensaria que
o movimento das esferas excêntricas poderia, ainda assim, ocorrer
ao redor de algo fixo, pois seus centros estão aparentemente dentro
da esfera lunar. Mesmo que a esfera estivesse situada na região do
fogo ou do ar, as esferas não se moveriam ao redor de um ponto
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
estável. Mas devo lhe mostrar que os módulos das excentricidades
foram descritos, de alguma forma, no Almagesto. Os estudiosos mo
dernos calcularam a quantidade exata de excentricidade em relação
ao semidiâmetro da Terra e comprovaram os resultados. A mesma
medida foi utilizada, na Astronomia, para descrever todas as distân
cias e magnitudes. Conseqüentemente, ficou claro que o ponto ao
redor do qual o Sol se move está, sem dúvida alguma, fora da esfera
lunar e abaixo da superfície da esfera de Mercúrio. O centro para o
circuito de Marte — quero dizer, o centro da esfera excêntrica de Marte —
está fora da esfera de Mercúrio e dentro da esfera de Vênus. O centro
de Júpiter se encontra eqüidistante, a saber, entre as esferas de Vênus
e Mercúrio, enquanto o centro de Saturno localiza-se entre as esferas
de Marte e Júpiter. Considere, contudo, como tudo isso parece im
provável segundo as leis das Ciências Naturais. Você compreenderá
isto quando considerar as distâncias e magnitudes conhecidas de cada
esfera e de cada astro, expressos em relação ao semidiâmetro terres
tre. Há uma medida uniforme para todos, e a excentricidade de cada
esfera não está determinada por unidades proporcionais às suas pró
prias magnitudes.
E ainda mais improvável e questionável assumir que há duas esfe
ras, uma dentro da outra, e que elas estão interligadas por todos os
lados, mas seus centros são diferentes, de tal forma que a menor se
move, enquanto a maior está parada. No entanto, quando a maior se
move, a menor não pode ficar parada e deve se mover, junto com a
maior, na mesma proporção em que esta última gira ao redor de qual
quer outro eixo, além daquele que passa pelos dois centros. Assim,
temos esta proposição que pode ser comprovada, a teoria estabeleci
da de que não há vácuo, bem como a teoria da excentricidade das
esferas. Segue-se necessariamente que, em ambas as esferas, o movi
mento da esfera maior fará com que a menor se mova do mesmo jeito
e ao redor do mesmo centro. Todavia, não é o que acontece. As esfe
ras externa e interna não se movem do mesmo modo, nem ao redor
do mesmo centro ou do mesmo eixo, cada uma tem seu movimento
peculiar. Daí a necessidade de se admitir que, entre cada duas esferas,
há substâncias diferentes daquelas que compõem estas esferas. Se este
for o caso, é uma afirmativa muito duvidosa, pois onde se localizariam
os centros destas substâncias intermediárias? Seus movimentos se
riam também peculiares? Thabit ibn Kurra16 expôs isto em um tratado,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
demonstrando que devemos admitir uma substância de uma forma
esférica intermediária entre uma esfera e outra. Não lhe expliquei tudo
isso quando você acompanhou minhas aulas, porque não queria des
viá-lo do meu objetivo principal, o de lhe ensinar. Quanto à inclinação
e obliqüidade relativas às latitudes de Vênus e Mercúrio, já lhe expliquei
de viva voz que é impossível imaginar seres materiais sob estas condi
ções. Você deve ter notado que Ptolomeu já apontara esta dificuldade,
quando disse literalmente:
Ninguém acredita que estes princípios e outros semelhantes sejam
improváveis. Se alguém considera o que expusemos aqui do mesmo
modo como considera coisas produzidas com ponderações artificiais
e sutilezas rebuscadas, considerará improvável. Porém, não é certo
comparar coisas humanas a coisas divinas.
Já lhe indiquei as passagens nas quais pode comprovar tudo o que
lhe disse, à exceção do exposto sobre a posição dos centros das esferas
excêntricas, pois nunca soube que alguém tivesse se interessado por
esta questão. Mas você compreenderá isso quando conhecer a medida
do diâmetro de cada esfera e a extensão de sua excentricidade em rela
ção ao semidiâmetro da Terra, segundo os fatos que Alchabitius17 esta
beleceu em seu tratado sobre distâncias. Quando examiná-las, confir
mará minhas palavras.
16
17Thabit ibn Kurra (826-901 E.C.) nasceu na Mesopotâmia (atual Turquia) e
faleceu em Bagdá (no atual Iraque). Era membro da seita dos Sabianos, que
idolatravam os astros e produziram muitos bons astrônomos e matemáticos.
Thabit era fluente em grego, devido à influência da cultura grega, e também
em árabe e siríaco, dialeto aramaico ocidental falado na Mesopotâmia. Após
ter abandonado Harrán, acusado de heresia devido às suas filosofias liberais,
tornou-se o astrônomo da corte de Bagdá, sob a proteção do Califa Al-Muta-
did. Foi tradutor e revisor de traduções de muitas obras gregas para o árabe.
Além disso, foi um brilhante pesquisador e fez muitas descobertas importan
tes no campo da Matemática. Na Astronomia, foi um dos reformadores do
sistema ptolomaico e um dos descobridores do conceito de Estática (NT, a
partir de pesquisa em http://www-gap.dcs.st-and.ac.uk/~history/Mathema-
ticians/Thabit.html, em 22/11/2002).
Abdilazi Alchabitius: astrólogo e astrônomo árabe medieval, cuja Introductio-
rium adsáentiamjudirialem astronomia foi publicada somente em 1473 E.C. (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Previna-se, pois, das grandes dificuldades que advêm de tudo isso.
Se o que Aristóteles afirma nas Ciências Naturais é certo, não há epici
clos nem esferas excêntricas e tudo gira ao redor da Terra! Mas, neste
caso, como são explicados os diversos cursos dos astros? Como é pos
sível assumir uma rotação uniforme perfeita e que responda aos fenô
menos visíveis, senão admitindo uma das duas hipóteses, ou ambas? A
dificuldade fica mais explícita quando vemos que, ao acatar o que Pto-
lomeu explica com respeito ao epiciclo da Lua e a sua inclinação até
um ponto exterior, tanto do centro do Universo quanto do seu pró
prio centro, os cálculos realizados segundo estas hipóteses estão per
feitamente corretos, e a sua veracidade é comprovada pelo mais apu
rado cálculo do tempo, duração e extensão dos eclipses, sempre baseados
nestas hipóteses. Além disso, sem admitir a existência dos epiciclos,
como podemos conciliar a aparente retroação de um astro com seus
outros movimentos? Como a rotação, ou movimento, ocorre ao redor
de um ponto que não seja fixo? Estas são as grandes dificuldades.
Já lhe expliquei de viva voz que estas dificuldades não cabem ao
astrônomo, pois não é sua função ilustrar-nos a respeito da proprieda
de das esferas, mas sim sugerir se uma teoria, em que se preconiza que
o movimento dos astros seja circular e uniforme, está certa ou não e,
ainda, se está de acordo com a nossa consideração ou adequada ao que
é perceptível pela visão, quer a realidade seja ou não assim. Você sabe
que Abu Bakr ibn Al Sa’ig, falando da Física, questiona se Aristóteles
teve conhecimento da excentricidade do Sol e se calou sobre isso, pre-
ocupando-se unicamente com a resultante da inclinação, pois viu que
o efeito da excentricidade era idêntico ao da inclinação. O certo é que
[Aristóteles] a ignorava e jamais ouvira falar dela, pois a ciência não era
perfeita naquela época. Se soubesse de sua existência, se oporia forte
mente a ela e, se estivesse convencido de sua correção, ficaria cons
trangido quanto a tudo o que discorreu sobre o tema. Repetirei o
mencionado anteriormente (cap. 22): a teoria de Aristóteles, referente
ao mundo terreno, está de acordo com a inferência lógica — em que
conhecemos a relação causai entre um fenômeno e outro, percebemos
como a ciência pode investigá-la e a ordenação da Natureza é clara e
inteligível. Com respeito ao mundo celeste, o Homem tudo ignora,
salvo alguns cálculos matemáticos. Direi em termos poéticos: “Os Céus
são Céus para YHVH, e a Terra deu para os seres humanos” (Salmo
115:16), ou seja, somente Deus conhece a verdadeira natureza dos Céus,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
sua essência, forma, movimentos e causas. Entretanto, Ele deu ao
Homem o poder de conhecer as coisas sob os Céus, aqui é o mundo
do Homem, esta é a casa que lhe pertence, na qual foi colocado e da
qual ele mesmo faz parte. É por isso que os fatos de que necessitamos
para provar a existência dos seres celestiais nos são inacessíveis. Os
Céus estão muito longe de nós, tanto por sua localização quanto por
sua natureza. As faculdades humanas são muito deficientes para com
preender até mesmo a prova geral, contida nos Céus, da existência
Daquele que os coloca em movimento. É, de fato, ignorância ou uma
espécie de loucura fatigar nossas mentes com questões que estão fora
do nosso alcance, sem a posse dos meios para nos aproximarmos de
las. Devemos nos contentar com aquilo que está ao nosso alcance e
abandonarmos o que não pode ser alcançado pela inferência lógica,
conforme aconselha aqueles dotados de grande influência divina, ex
pressa nestas palavras: “Boca a boca falarei com ele”. (Números 12:8).18
isto é tudo o que posso explanar sobre este tema. Quem sabe outro
encontre uma demonstração que evidencie a verdade do que, para mim,
parece obscuro. Demonstro constrangimento nestes temas devido ao
meu grande amor à verdade, e desconheço se alguma destas teorias foi
estabelecida por demonstração.
18
M aimônides se refere aqui aos Profetas (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO 2 5
A TEORIA DA CRIAÇÃO É ADOTADA DEVIDO À SUA SUPERIO
RIDADE PRÓPRIA, MESMO QUE AS PROVAS BASEADAS NA BÍ
BLIA SEJAM INCONCLUSIVAS
Não rejeitamos a Eternidade do Universo porque os textos bíblicos
confirmam a Criação, já que as passagens que afirmam a Criação não
são mais numerosas do que as alusões à corporeidade de Deus, nem é
difícil ou impossível encontrar para estas uma interpretação conve
niente — poderíamos explicá-la da mesma maneira que fizemos com
respeito à Incorporeidade de Deus. Talvez fosse até muito mais fácil, e
certamente muito produtivo, mostrar os textos bíblicos que visariam
estabelecer a Eternidade do Universo, se a aceitássemos. Poderíamos,
então, explicar os antropomorfismos da Bíblia, mas, ao invés disso,
rejeitamos a idéia da corporeidade de Deus. Duas razões nos movem a
proceder assim:
1)
A Incorporeidade de Deus foi demonstrada. Aquelas passagens
bíblicas que, em seu sentido literal, contêm premissas passíveis de se
refutar por demonstração, podem e devem, todavia, ser interpretadas.
Mas a Eternidade do Universo não foi demonstrada. Um simples ar
gumento a favor de uma determinada teoria não é razão suficiente
para rejeitar o sentido literal de um texto bíblico e explicá-lo de modo
figurado, quando uma teoria oposta poderia ser sustentada por um
argumento equivalente.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
2)
Nossa crença na Incorporeidade de Deus não contraria nenhum
princípio fundamental de nossa religião, nem desmente nenhum texto
dos Profetas. Somente os ignorantes acreditam que isto contraria os
ensinamentos bíblicos. Demonstramos que não é este o caso, ao con
trário, a Bíblia ensina a Incorporeidade de Deus. Admitir a Eternidade
do Universo tal como ensina Aristóteles, ou seja, que todo no Univer
so é resultado de leis fixas, que a Natore2 a não muda e que não existe
nada sobrenatural, seria se opor necessariamente à base de nossa reli
gião, desmentir todos os milagres e sinais, rejeitar todas as esperanças
e temores derivados da Bíblia, a menos que se pretenda interpretar os
milagres de modo figurado. Os Batinies (os Metafóricos) muçulmanos
fizeram isso e chegaram a conclusões absurdas. De todo modo, caso se
admitisse a Eternidade do Universo conforme a segunda das teorias
que expusemos — a de Platão, segundo a qual os Céus também são
transitórios —, não nos oporíamos aos princípios fundamentais de nos
sa religião, pois esta teoria não implica a rejeição de milagres, mas ad
mite a possibilidade. Se o texto bíblico fosse explicado de acordo com
esta teoria, muitas expressões seriam encontradas na Bíblia e em ou
tros escritos que a confirmariam e a sustentariam. Mas não necessita
mos deste expediente, porque esta teoria ainda não foi demonstrada.
Como não há provas suficientes para nos convencer, nem ela, nem a
outra precisam consideradas. Preferimos interpretar os textos bíblicos
em seu sentido literal e afirmar que estes nos ensinam uma verdade
que não pode ser comprovada. Os milagres são evidências da correção
do nosso ponto de vista.
Admitida a Criação do Universo, todos os milagres são possíveis,
bem como a Profecia, e se desvanecem todas as dificuldades. Caso se
pergunte: “Por que Deus inspirou uma determinada pessoa e não ou
tra? Por que Deus revelou a Lei a uma certa pessoa e em uma época
específica? Por que permitiu algumas coisas e proibiu outras? Por que
mostrou por meio de um Profeta determinados milagres particulares?
Qual é o propósito dessas leis? Por que Ele não fez os mandamentos e
proibições como parte da nossa natureza, se era Seu objetivo que vi
vêssemos segundo estas leis?”
Respondamos a todas estas questões: Ele quis assim ou Sua Sabedo
ria decidiu assim. Ele criou o Universo segundo a Sua Vontade, em um
determinado momento e de uma determinada forma, e assim como nós
não compreendemos porque Sua Vontade ou Sua Sabedoria decidiu esta
forma e este momento peculiares, também não podemos compreender
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
porque Sua Vontade ou Sabedoria determinou quaisquer das coisas men
cionadas nas questões precedentes. Mas se admitirmos que o Universo
tem a sua forma atual como resultado de leis fixas, então surge a neces
sidade das questões acima, que somente poderiam ser respondidas de
forma equivocada, implicando a negação e a rejeição dos textos bíblicos,
de cuja correção nenhuma pessoa inteligente duvida.
Logo, rejeitamos a teoria da Eternidade do Universo por falta de
provas. É por estas várias razões que as mentes mais nobres despende
ram e ainda despenderão seus dias pesquisando sobre esta matéria,
pois se a teoria da Criação do Universo for comprovada, nem que seja
tão somente segundo a hipótese de Platão, todos os argumentos dos
filósofos contra nós perdem o valor. Se, por outro lado, Aristóteles
tivesse uma prova para sua teoria, todo o ensinamento da Bíblia seria
rejeitado, e seriamos obrigados a seguir outras opiniões. Com isso, lhe
expus tudo sobre esta questão. Preste atenção nisso.
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPITULO
26
EXAME DE UMA PASSAGEM DE PIRICE DI-RAB1 ELIEZERl<)
COM RELAÇÃO À CRIAÇÃO
Nos celebrados Capítulos de Rubi Elie^er, o Grande, intitulados Pirkê di-
Rabi Elier, li uma passagem tão estranha como jamais lera entre os
seguidores da Lei de Moisés. Refiro-me à seguinte passagem:
De onde foram criados os Céus? Ele tomou parte da luz de Sua vesti
menta, estendeu-a como um manto e assim os Céus se estendem con
tinuamente, conforme está dito: “Envolvido em luz como um manto,
estendendo os Céus como uma cortina” (Salmo 104:2). De onde foi
criada a Terra? Ele tomou da neve sob o seu Trono de Glória e a espa
lhou, segundo o dito: “Disse à neve: Seja terra” Qó 37:6).
Estes são os termos da passagem em questão. Eu, surpreso, per
gunto: em que acreditava este Sábio? Será que ele pensava que nada
pode ser produzido do nada e que as coisas foram formadas a partir de
uma substância? Será que, por esta razão, ele pergunta de onde os Céus
e a Terra foram criados? O que ele obtém com a resposta? Poderíamos
19
Pirkê di-RabiElie^er. Capítulos de Rabi Eliézet (NT).
l6 l
O
GUIA
DOS
PERPLEXOS
lhe perguntar: De onde vem a luz que forma a Sua vestimenta? E a
neve sob o seu Trono de Glória? E o próprio Trono de Glória? Se as ex
pressões /«£ da Sua vestimenta e Trono de Glória significam algo eterno,
devem ser rejeitadas, pois implicaria admitir a Eternidade do Universo,
ao menos segundo a teoria de Platão. A criação do Trono de Glória é
mencionada por nossos Sábios de uma forma estranha. Eles dizem
que este Trono foi forjado antes da Criação do Universo.20A Bíblia, no
entanto, não menciona a criação do Trono, salvo nas palavras de David:
“Y H V H nos Céus preparou Seu Trono” (Salmo 103:19). Mas este é um
texto bastante suscetível a interpretação metafórica. No entanto, a Eter
nidade do Trono é descrita expressamente: “Tu, Y H V H , para sempre
sentarás em Teu Trono, de geração em geração” (Lamentações 5:19).
Agora, se Rabi Eliézer admitisse que o Trono era eterno, então a pala
vra trono expressaria um atributo de Deus e não algo criado. Como
algo seria criado de um simples atributo? Mais estranho ainda é sua
expressão da lu% da Sua vestimenta.
Em suma, esta passagem confunde sobremaneira as noções de qual
quer pessoa inteligente e religiosa. Sou incapaz de explicá-la a conten
to e tão somente a recordei para que você não seja induzido a erro por
isso. Uma coisa importante que Rabi Eliézer nos ensinou aqui é que a
substância dos Céus é diferente daquela da Terra. Há duas substâncias
diferentes: uma é descrita, pela sua posição superior, como pertencen
te a Deus: a lu^ da Sua vestimenta-, e a outra, distante do Seu esplendor e
luz — a substância terrestre, portanto — é descrita como a neve sob o seu
Trono de Glória, o queo me levou a interpretar as palavras “E sob Seus
pés como obra de construção de safira (...)” (Êxodo 24:10) no sentido
de que os nobres do Povo de Israel compreenderam, em visão Profé
tica, a natureza da matéria-prima terrestre, pois, segundo Onkelos,21 o
pronome da frase Seusp és refere-se ao Trono, como já lhe expliquei. Isto
indica que a brancura sob o trono significa a substância terrestre. Rabi
Eliézer reproduziu isto e esclareceu que existem duas matérias, uma
superior e outra inferior, e que não há substância comum entre elas.
Este é um tema importante e não devemos menosprezar a opinião dos
maiores Sábios de Israel a respeito, dado que se trata de um ponto
20
21
“Os antigos rabinos enumeram sete coisas criadas antes da Criação do Mundo,
entre as quais figura o Trono de Glória.” (Munk).
Onkelos: tradutor e intérprete da Bíblia, do hebraico para o aramaico (NT).
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
importante na explicação da existência do Universo e um dos segredos
da Lei. No Bereshit Rabá (cap. 12) se lê: “Rabi Eliézer afirma: as coisas
dos Céus foram criadas nos Céus. As coisas da Terra, na Terra”. Ob
serve como o Sábio concluiu, de forma engenhosa, que todas as coisas
da Terra têm uma substância comum e os Céus, e tudo o que ele con
tém, têm outra matéria, diferente daquela. Além dessas coisas prece
dentes, ele ainda explica, em seus Capítulos, a superioridade da substân
cia celeste e sua proximidade de Deus e, por outro lado, a inferioridade
da substância terrestre e sua posição. Preste atenção nisso.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO 2 7
A TEORIA DE UMA FUTURA DESTRUIÇÃO DO UNIVERSO NÃO
FAZ PARTE DA CRENÇA RELIGIOSA ENSINADA NA BÍBLIA
Já lhe expus que a crença na Criação do Universo é, necessariamente, o
fundamento de toda religião, No entanto, não consideramos, como
um princípio de nossa fé, que o Universo será novamente reduzido a
nada. Assumimos que o Universo continuará a existir para sempre.
Talvez você pergunte: Não fo i demonstrado que tudo quanto nasce éperecível e,
portanto, se fo i gerado, perecerá? Este axioma, segundo o nosso ponto de
vista, não se aplica neste caso. Não defendemos que o Universo pas
sou a existir do mesmo modo que as demais coisas da Natureza, como
resultado das leis naturais, pois tudo o que deve sua existência à ação
das leis naturais é, segundo estas mesmas leis, perecível. A lei que cau
sou a existência de um ser a partir da inexistência é também a causa da
sua existência transitória, assim como a inexistência anterior prova que
a natureza de uma coisa não necessita de uma existência permanente.
Segundo nossa teoria, ensinada na Bíblia, a existência ou inexistência
das coisas depende tão somente da vontade de Deus e não das leis
fixas. Todavia, disso não se deduz que Deus deve destruir o Universo
após tê-lo criado do nada. Depende da Sua vontade. Dependerá da
Sua vontade ou do decreto da Sua Sabedoria destruí-lo ou conservá-lo.
Portanto, é possível que o conserve perpetuamente e lhe outorgue uma
1 66
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
permanência semelhante à Dele. Você sabe que os Sábios nunca disse
ram que o Trono da Glória perecerá, todavia admitem que é algo criado.
Nenhum Profeta nem Sábio disse que o Trono da Glória será destruído
ou aniquilado, ao contrário, as passagens bíblicas falam da sua perpe-
tuidade. Acreditamos que as almas dos piedosos, que foram criadas,
são imortais.22 Conforme as teorias daqueles que se prendem ao senti
do literal dos Midrashím, seus corpos gozarão também de eterna felici
dade. Esta noção é semelhante à conhecida crença de determinadas
pessoas, de que há prazeres físicos no Paraíso.
Em suma, a razão nos leva à conclusão de que a destruição do
Universo não é uma certeza. Esta questão deve ser examinada à luz das
palavras dos Profetas e dos Sábios, com o intuito de verificar se eles
afirmam que o mundo chegará, com certeza, ao fim ou não. O povo,
em geral, acredita que este ensinamento foi dado e que todo o Mundo
será destruído. Demonstrarei o contrário. Muitas passagens na Bíblia
falam da existência permanente do Universo. Aquelas passagens que,
no sentido literal, indicariam a sua destruição sem dúvida alguma de
vem ser entendidas no sentido figurado, como será demonstrado. Se,
no entanto, os seguidores do sentido literal da Bíblia rejeitam nosso
ponto de vista e assumem que a destruição final do Universo é parte
de sua fé, eles têm liberdade para assim pensar. Mas nós devemos lhes
explicar que a crença na destruição não está necessariamente relacio
nada à crença na Criação. Nisso eles acreditarão, pois confiam no E s
critor-- que usou a expressão figurada, cujas palavras eles tomaram lite
ralmente. Sua fé, no final das contas, não será prejudicada por isso.
22
“Já se tem visto, em outro lugar, que nosso autor atribui a im ortalidade som en
te às almas dos justos, ou seja, aos que nesta vida chegaram ao grau de intelecto
adquirido, enquanto as almas dos ímpios, ou daqueles que não buscaram neste
mundo a perfeição pela virtude ou pela ciência, estão condenadas à destrui
ção.” (Munk). Alusão a Provérbios 25:2 (“A Glória de Deus é encobrir as coi
sas, e a honra do rei, esquadrinhá-las”), que os antigos rabinos aplicam aos
segredos contidos no primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
28
O ENSINAMENTO BÍBLICO ESTÁ A FAVOR DA INDESTRUTIBI-
LIDADE DO UNIVERSO. A DOUTRINA DE SALOMÃO - LIVROS
SAPIENCIAIS A ELE ATRIBUÍDOS - COM RELAÇÃO À ETERNI
DADE DO UNIVERSO E SUA PERMANÊNCIA
Muitos de nossos correligionários pensaram que o Rei Salomão acre
ditava na Eternidade do Universo. Isto é muito estranho. Como pode
mos supor que qualquer um que adote a Lei de M osbé Rabênu aceitaria
aquela teoria? Se alguém suspeitasse que Salomão, neste ponto, tivesse
se desviado das Leis de Moisés (Deus nos livre!), por que a maioria dos
Profetas e Sábios aceitaria isso? E como não haveria oposição ou recri-
minação por ele sustentar esta opinião, assim como foi reprimido por
se casar com mulheres estrangeiras e por outras coisas? O que me
induziu a refletir sobre isto foram as afirmações dos Sábios: Eles quise
ram suprimir o livro de Kobélel (Eclesiastes), pois suas palavras podem levar ao
ceticismo. Assim é, sem dúvida. Quero dizer que neste livro, se tomado
literalmente, há conceitos estranhos aos ditados pela Lei, que reque
rem interpretação. Mas, no tocante à Eternidade do Universo, não há
versículo algum que a afirme, nem se encontra absolutamente qual
quer passagem que leve explicitamente a esta teoria. No entanto, apa
recem algumas passagens que implicam a indestrutibilidade do Uni
verso, uma doutrina verdadeira, e, pelo fato de ser ensinada neste livro,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
algumas pessoas inferiram erroneamente que o autor acreditava na
Eternidade do Universo, O texto referente à indestrutibilidade do
Universo declara: “Geração vem, geração vai e a Terra para sempre
(le-Olám) permanece”. (Eclesiastes 1:4), Aqueles que discordam de mim
com respeito à distinção acima (entre a indestrutibilidade e a Eterni
dade do Universo) são induzidos a explicar o termo lê-Olám como o
tempo fixado para a existência da Terra. Do mesmo modo esclarecem que
as palavras de Deus, “(...) em todos os dias da Terra” (Gênesis 8:22),
significam que seus dias estão fixados. Mas eu queria saber o que se
entende por estas palavras de David: “Estabeleceu a Terra sobre suas
fundações, para que não se movesse para todo o sempre (lê-Olám vaêa) ”
(Salmo 104:5). Porque se a expressão Olám vaêd não significasse, tam
pouco, a perpetuidade, concluiriam que também Deus teria perm a
nência limitada, dado o que a Bíblia afirma acerca de sua perpetuida
de: “YHVH reinará para todo o sempre (lê-Olám vaêd)” (Êxodo 15:18 e
Salmo 10:16). Devemos ter em mente que Olám somente significa
sempre quando combinado com ad. Não faz diferença se vem em se
guida, como em Olám váêd, ou na frente, como em ád Olám. As pala
vras de Salomão, que somente contêm o termo lê-Olám, têm menos
força que as palavras de David, que usa o termo Olám vaêd. David
também expôs em outras passagens a incorruptibilidade dos Céus, a
perpetuidade e a imutabilidade de suas leis e de todos os seres celes
tes. Ele afirmou: “Louva a YHVH desde os Céus (...) porque Ele orde
nou e foram criados. E os ergueu para todo o sempre, deu-lhes um
estatuto e não passará” (Salmo 148:1-6), o que significa que as leis
ditadas por Ele jamais se alterarão, ou as fontes das propriedades dos
Céus e da Terra, mencionadas pelo Salmista anteriormente, pois ele
ensina: Ele ordenou eforam criados.
[O Profeta] jerem ias expressa-se desta forma: “Assim falou Deus:
Dei o Sol para a luz dos seus dias; as Leis; a Lua e os astros para a luz
da noite (.,.). Se deixarem de reger estas Leis diante de Mim, oráculo de
YHVH, também a descendência de Israel cessará de ser uma nação
diante de Mim por todos os dias.” (Jeremias 31:34-35), Ele declara,
portanto, que estes decretos nunca serão removidos, embora possuam
um início.
Prosseguindo a investigação, estas afirmações serão confirmadas
em outros textos, além dos de Salomão. Ele também afirmou que estas
obras de Deus, a saber, o Universo e o que ele encerra, perdurarão
com suas propriedades para sempre, apesar de terem sido criadas: “Tudo
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
quanto faz Deus é para sempre, a isto nada a acrescentar, e disso nada
a piorar” (Eclesiastes 3:14). Declara neste versículo que o mundo é
obra de Deus e é permanente. Quando afirma “a isto nada a acrescen
tar, e disso nada a piorar”, está incluindo a razão da perpetuidade. É
como dizer que as coisas mudam para suprir aquilo que se espera ou
para se livrar daquilo que é supérfluo. As obras de Deus, sendo perfei
tas, sem possibilidade de adição ou subtração, permanecem necessari
amente tais como são para sempre. É impossível que qualquer coisa
que existe pudesse modificá-las. Ao final deste versículo, Salomão, como
se quisesse descrever o propósito das exceções nas leis da Natureza ou
justificar suas mudanças, declara: E D eusfempara que o vejam defrente. Sua
vontade era afirmar: “Que se renovem as maravilhas”. Em seguida,
suas palavras são “O que será já é; e o que foi, será. E Deus requisitou
o que é seguido” (Eclesiastes 3:15). Elas significam que Ele deseja a
perpetuidade do Universo e que cada pequena parte está encadeada a
outra pequena parte.
O fato de que as obras de Deus são perfeitas e não admitem adição
nem subtração já foi mencionado por Moisés, o maior dos Sábios: “A
Rocha:23 Perfeitas são Suas obras” (Deuteronômio 32:4), ou seja, que
todas as suas obras, a saber, as suas criaturas, são absolutamente perfei
tas, e qualquer acréscimo seria supérfluo ou desnecessário. Tudo quan
to Deus decreta para e por aquelas criaturas é inteiramente justo e
conforme o ditame de Sua Sabedoria, como se explanará em alguns
capítulos do presente Tratado.
23
A Rocba a palavra hebraica Tsúr, que significa rocha, é uma das form as utiliza
das na Bíblia para se referir a Deus (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
29
EXPLICAÇÃO DAS FRASES BÍBLICAS QUE IMPLICAM A DES
TRUIÇÃO DOS CÉUS E DA TERRA
Quando ouvimos uma pessoa falando uma língua incompreensível para
nós, sabemos sem dúvida que ela fala, mas não sabemos o que suas
palavras significam. Todavia, mais grave é perceber, nesta fala, vocábu
los que no idioma do falante têm determinado sentido e, em nossa lín
gua, significam exatamente o contrário. Além disso, se interpretarmos as
palavras no sentido que assumem em nossa língua, imaginamos que o
falante as utilizou no sentido por nós conhecido. Como um homem
árabe que, ouvindo um homem hebreu falar: Atvá,24 pensa que o hebreu
recusa alguma coisa, enquanto, na verdade, ele diz que está agradecido e
satisfeito. Exatamente o mesmo acontece com o leitor leigo dos Profe
tas, que não entende algumas palavras em absoluto, como disse um dos
Profetas: “E será para vocês toda a Profecia como palavras de um livro
selado” (Tsaías 29:11). Em outras passagens entende o oposto ou o
inverso daquilo que o Profeta quis dizer, conforme disse outro Profe
ta: “E inverteram as palavras do Deus Vivo” (Jeremias 23:36). Leve em
consideração que cada Profeta emprega sua linguagem peculiar, como
24 Avá se escrita com as letras hebraicas Alef, V ête Hê, significa “desejo” (NT).
i7 ±
O
GUIA
DOS
PERPLEXOS
se fosse sua própria língua, ao par que sua revelação Profética particular
lhe faz expressar assim a quem a entende.
A partir desta introdução, você deve entender a linguagem metafó
rica freqüentemente utilizada por Isaías (a paz esteja com ele) e, em
menor grau, por outros Profetas. Quando se refere à queda de um
povo ou à destruição de uma grande nação, serve-se de expressões tais
como: os astros caíram, os Céus se moveram, o S ol obscureceu, a Terra ficou
devastada e treme, e metáforas similares. Entre os árabes se diz: Os Céus
viraram sobre sua Terra, a propósito daquele que foi vítima de uma gran
de desgraça.. Quando descrevem a prosperidade de uma nação afir
mam que A. lu%do S ol e da Tua aumentou, Um novo Céu e uma nova Terra
foram criados, e outras afirmações semelhantes. Assim também os Pro
fetas, referindo-se à ruína de uma pessoa, nação ou estado, atribuem a
Deus estados de cólera e de extrema indignação contra eles e quanto à
prosperidade de uma nação, atribuem-na à satisfação e ao prazer de
Deus. Em relação a um estado de cólera contra eles, usam as palavras:
saiu, baixou, 7'ugiu, trovejou, fe^ retum bara sua vo% etc., como também: man
dou, disse, operou, fe%, e outras que exporei. Algumas vezes os Profetas
usam o termo Humanidade, em vez de um povo de um. determinado lugar,
cuja destruição prevêem. Por exemplo, Isaías, ao falar da destruição de
Israel, afirma: “E afastou YHVH o Homem” (Isaías 6:12), O Profeta
Sofonias2^ afirmou no mesmo sentido: “Exterminarei o Homem da
face da Terra (...) e empunharei minha mão sobre Yehudá” (Sofonias
1:3-4). Saiba bem disso!
Depois de falar sobre a linguagem dos Profetas em geral, demons
trarei sua exatidão e comprovação, Quando Isaías (A paz esteja sobre
ele!) recebeu a missão divina de profetizar a destruição do Império
Babilônico e as mortes de Senaqueribe26 e de Nabucodonosor2, (que
surgiu depois da queda de Senaqueribe), ele descreveu do seguinte
modo a queda e o fim dos seus domínios, suas derrotas e todo o mal
que atinge a quem, derrotado, vai ruindo pela espada do vencedor:
“Pois os astros dos Céus e seus luzeiros não darão suas luzes; escure
cerá o Sol ao nascer e a Lua não fará brilhar sua luz” (Isaías 13:10). E
novamente: “Aos Céus estremecerei, e tremerá a Terra desde o seu
25
26
27
Sofonias: em hebraico, Tsefánia. (NT).
Senaqueribe: em hebraico, Sancheriv. (NT).
Nabucodonosor :em hebraico, N evuchadnétsar. (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
17 3
lugar - diante da indignação de YHVH dos Exércitos, e no dia do furor
de sua ira” (Isaías 13:13). Não acredito que exista alguém tão estúpido,
cego e preso ao sentido literal das metáforas e expressões retóricas a
ponto de achar que, com a queda do Império da Babilônia, haveria
uma mudança na natureza dos astros dos Céus ou na luz do Sol e da
Lua, ou, ainda, que a Terra sairia do seu centro. Pois tudo isso é a
descrição de uma nação que foi derrotada, seus habitantes sem dúvida
alguma consideraram toda luz escurecida e todo doce, amargo. Toda a
terra lhes pareceu por demais estreita e os Céus viraram-se sobre eles.
Do mesmo modo, ao começar sua descrição sobre a situação extre
ma de prostração e servidão a que Israel ficaria reduzido no tempo do
malvado Senaqueribe, quando este se apoderaria “de todas as cidades
fortificadas d eju d á” (Isaías 36:1) e o povo ficaria cativo e derrotado,
acumulando-se sobre este todos os desastres por obra de Senaqueribe,
e toda a Terra de Israel pereceria sob sua mão, Isaías expressa-se assim:
Medo e cova, e rede sobre ti, habitante de Israel! E será daquele que
ouvir da voz do medo que cairá na cova e aquele que subir do meio da
cova se enredará na rede, porque cachoeiras se abrirão do alto e tre
merão os fundamentos de Israel! Pior, piorará Israel, em migalhas se
esmigalhará a terra, desmoronará Israel; cambaleante, cambaleará a
terra como um bêbado (...)2S (Isaías 24:17-20).
Ao final desta passagem, quando Isaías descreve como Deus puni
rá Senaqueribe, a destruição de seu domínio orgulhoso sobre Jerusa
lém e sua redução à desgraça, anuncia metaforicamente: “E se rubori
zará a Lua e se envergonhará o Sol, porque reinará YHVH dos Exércitos
(...)”. Yonatán ben U ^ iêl (A paz esteja sobre ele!) interpretou estas pala
vras acertadamente: quando ocorrer a Senaqueribe o que lhe está re
servado em Jerusalém, saberão os idólatras dos astros que é obra de
Deus, ficando atônitos e confusos. “Os adoradores da Lua” — afirma —
28
Note-se nesta passagem bíblica, além do conteúdo do texto, sua forma na
utilização de palavras com sonoridade próxim a, possivelm ente para reforçar a
intensidade do que é dito e que buscou-se reproduzir em parte na tradução:
“P á ch a d 'vz-pácbat va-fách alêicha, ioshêv há-Arets! Vê-haiá há-nás m i-kól há-
p á ch a d ipól el há-páchat, vê-há-olê mitóch há-páchat ilachêd bapách, ki arubót mi-
maróm niftachú, va-irashú mosdêi Arets! Roa hitroaá há-Arets,p ó r hitporerá érets,
m ót hitm oietã Arets, nôa tanúa érets ka-shikór (...)” (NT).
174
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
“se enrubescerào; os que se prostram diante do Sol se verão humilha
dos, porque o reino de Deus se revelará
Em seguida, quando Isaías descreve a tranqüilidade que Israel des
frutará a partir da morte de Senaqueribe, a fertilidade e o cultivo de
suas terras, a prosperidade do reino sob Ezequias, afirma por metáfo
ras que a luz do Sol e da Lua ficarão mais fortes, porque assim como,
para o vencido, a luz desapareceria, substituída pela escuridão, da mes
ma forma ela aumentaria para o vencedor. Sempre que sobrevem, a
alguma pessoa, uma grande desgraça, seus olhos se obscurecem e de
saparece o brilho de sua vista, porque o espírito da visão, devido à abun
dância de vapores, ao mesmo tempo perturba-se, debilita-se e se reduz
, pela grande angústia e tristeza da alma. Ao contrário, na alegria, ao
dilatar-se a alma, o espírito torna-se mais claro, o homem parece sentir
a luz mais luminosa do que antes. Depois de explicar “Porque o povo
em Sion, morador dejerusalém , chorar não chorará (...)” (Isaías 30:19),
acrescenta ao final da passagem: “E será a luz da Lua como a luz do
Sol; e a luz do Sol será sétupla como a luz de sete dias, no dia em que
fechará Y H V H a ferida de seu povo e curará a chaga de seus açoites”
(Isaías 30:19-26). A sua intenção é afirmar que levantará o povo de sua
prostração, causada pelo malvado Senaqueribe. Quanto à expressão
como a lu^ de sete dias, os comentaristas explicaram que significa a abun
dância, porque, entre os hebreus, o número sete denota multiplicidade.
Na minha opinião, ele faz referência aos sete dias da dedicação ao
Templo, realizada nos tempos de Salomão, pois nunca o país desfru
tou de tanta prosperidade e júbilo geral como naqueles dias. Por isso se
diz que o auge e a felicidade de Israel serão como naqueles dias.
Quando descreve a ruína do maldoso Edom, declara: “Seus mortos
ficarão abandonados, seus cadáveres exalarão um odor fétido; e derre
terão montanhas pelo sangue deles; e se dissolverão todas as milícias
dos Céus; e os Céus serão enrolados como um livro; e todo o seu
exército cairá como caem as folhas da videira e como as folhas da
figueira. Porque se encharcou nos Céus a Minha espada, eis que desce
rá sobre Edom (...)” (Isaías 34:3-5).
Aqueles que têm olhos para ver devem reparar se há, nesses tex
tos, algo obscuro ou que induza a pensar que esteja descrevendo al
gum fenômeno que realmente acontecerá nos Céus, algo que não seja
metáfora destinada a fazer entender que seu reino será aniquilado, que
lhes será retirada a proteção divina e que a sua boa sorte e a dignidade
de seus maiorais se desvanecerão com presteza e rapidez. É como se
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
comparasse as pessoas aos astros que, por serem fixos, altos e afasta
dos das mudanças, cairão rapidamente, como cai a folha da videira, etc.
Está muitíssimo claro e nem precisa se mencionar e muito menos se
estender a respeito disso em um Tratado como este. Mas a necessidade
nos compeliu a isso, porque o povo e até pessoas tão reputadas quanto
eminentes explicam este versículo - sem refletir sobre o que o antece
de, sobre o que se segue a ele e nem sobre o seu contexto — como se
fosse um relato por meio do qual a Bíblia quisesse nos anunciar os
últimos dias dos Céus, assim como nos relatou as suas origens.
Deste modo, ao prenunciar Isaías a Israel a destruição de Senaqueri
be, dos povos e reis que com ele se relacionavam, como é sabido, e a
vitória com o auxílio de Deus e de ninguém mais, declara metaforica
mente: “Veja como estes Céus se desvanecem e morrem aqueles que o
habitam, mas vocês recebem ajuda”. E como se dissesse que aqueles
que se espalharam por toda a Terra e que, hiperbolicamente, eram fir
mes como os Céus, perecerão rapidamente, diluir-se-ão como a fumaça
e seus monumentos visíveis, tão fkmes quanto o solo, desaparecerão
do mesmo modo que uma roupa gasta. No início desta passagem afir
mou: “Porque se compadecerá YHVH de Sion, se compadecerá de to
das as suas ruínas (...)”; “Prestem atenção em Mim, meu povo (...)”;
“Próxima a Minha justiça se aproxima, saiu Minha salvação (...)”; “Le
vantem aos Céus vossos olhos e olhem para a terra embaixo! Porque os
Céus se dissiparão como fumaça, a terra se consumirá como uma roupa
gasta e seus habitantes como as moscas morrerão — e Minha salvação
para todo o sempre será e Minha justiça não terá fim.” (Isaías 51:3-6).
Quando relata a restauração do Reino de Israel, sua estabilidade e
permanência, afirma que Deus renovará Céus e Terra porque, em sua
linguagem, refere-se sempre ao reino de um monarca, como se fosse um
mundo especialmente dele, ou seja, Céus e Terra. E ao iniciar as conso
lações declarando: “Eu, Eu sou o Vosso Consolador” (Isaías 51:12), em
seguida expressa-se assim: “Eu colocarei Minhas palavras em toa boca e
à sombra de minha mão te esconderei, ao estender os Céus e fundar a
Terra, e dizer a Sion: Tu és Meu povo!” (Isaías 51:16). Para fixar a perma
nência da realeza de Israel e seu afastamento dos famosos potentados,
afirma: “Que os montes sejam retirados” (Isaías 54:10). Com respeito à
perpetuidade do Reino do Messias e à indestrutibilidade da monarquia
de Israel, acrescenta: “Não se porá mais o Teu Sol (...)” (Isaías 60:20).
Em suma, para quem compreende o sentido destas palavras, Isaías
emprega constantemente metáforas em sua linguagem. Do mesmo
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
modo, ao descobrir as circunstâncias e pormenores do Exílio, bem como
a restauração do poderio e o desaparecimento de toda dor, exprime-se
por metáforas: “Eu criarei outros Céus e outra Terra; os amais cairão em.
esquecimento e sua memória será apagada”. Depois explica, ao longo de
sua fala: “Entendo por ‘Eu criarei’ a instauração, para vocês, de um esta
do de gozo e de alegria constantes, no lugar desta dor e aflição, e não se
recordarão mais dos pesares anteriores”.
Ao abordar esta passagem, note a ordenação das idéias e compre
enda os versículos correspondentes: “Da misericórdia de YHVH lem
brarei, os louvores de YHVH (...)” (Isaías 63:7). Em seguida, primeiro
descreve as bondades de Deus (Exaltado SejaS) para conosco, nestes
termos: “E os resgatou e os apoiou por todos os dias da Antiguidade
(..,)” (Isaías 63:9), e depois relata nossa rebelião: “Mas eles se rebela
ram e entristeceram seu Santo Espírito (.,.)” (Isaías 63:10). Mais adian
te, conta como o inimigo nos subjugou: “...nossos inimigos têm humi
lhado Teu Santuário (...)” (Isaías 63:18). A partir disto, intercede por
nós pedindo: “Não te irrites, YHVH, demais (...)” (Isaías 64:8), Lem
bra-se logo como merecemos o acúmulo de males sobrevindos por
não darmos ouvidos à verdade: “Deixei-me consultar pelos que não
me interrogavam (...)” (Isaías 65:1) e, em seguida, Deus promete o
perdão e misericórdia nestes termos: “Assim disse YHVH: Como quando
há sumo em um cacho (...)” (Isaías 65:8).
A seguir, ameaça com o castigo àqueles que não foram oprimidos:
“Eis aqui o que meus servos comerão, e vós tereis fome (...)” (Isaías
65:13). Acrescenta, finalmente, que as crenças desta nação se retifica
rão. Ela será objeto de bênção sobre a Terra e escapará das vicissitu-
des passadas: “E para seus servos será chamado por outro nome: Todo
aquele que abençoar na Terra, será abençoado por Deus — Amen;29 e
o que jurar na Terra deverá jurar por Deus - Amen; pois serão esque
cidas as primeiras angústias, estas sumirão dos meus olhos; porque
aqui vou criar novos Céus e uma nova Terra, e já não recordará o
passado nem virá mais ao coração, senão que se regozijará ern gozo e
alegria eterna do que Eu vou criar, porque é aqui que vou criar, para
Jerusalém, alegria e para meu povo, gozo. E será Jerusalém minha
alegria (...)” (Isaías 65:15-19).
29
A mem em tradução literal, significa “acreditarei”. Também é considerado um
acrônimo da expressão hebraica JElM élech tieem á n — E m Deus A creditaremos (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Aqui você tem a elucidação de toda esta matéria, porque, logo em
seguida, ele afirma: “E aqui que vou criar novos Céus e uma nova Terra;
e esclarece imediatamente: Porque é aqui que vou criar, para Jerusalém,
alegria e para meu povo, gozo”. Após este preâmbulo, acrescenta: as
sim como estas circunstâncias da fé e da alegria inerente, que prometi
que se difundirão sobre a terra, subsistirão para sempre - porque a fé
em Deus e a alegria que disto advém são duas circunstâncias que jamais
cessam ou se alteram naqueles que a conseguiram — também a sua des
cendência e seu nome perdurarão. A determinação é a seguinte: “Por
que assim como os Céus novos e a Terra nova que Eu criarei permane
cerão diante de Mim —disse YHVH — assim permanecerão suas sementes
e seus nomes” (Isaías 66:22). Porque ocorre, às vezes, que a estirpe
continua, mas o nome se extingue. Assim, você encontra numerosos
povos que indubitavelmente descendem da semente da Pérsia ou da
Grécia e, todavia, não são conhecidos por um nome especial, pois foram
absorvidos por outra nação. A meu ver, há aí uma alusão à perpetuida
de da Lei, graças à qual nós temos um nome especial.
Como estas metáforas são freqüentes em Isaías, tive que examinar
todas, porém, elas ocorrem do mesmo modo nos textos de outros
Profetas:
Jeremias, ao descrever a destruição de Jerusalém, por causa das pre
varicações de nossos antepassados, afirma: “Vi a Terra, e eis que era
vazio e confusão (.,.)” (Jeremias 4:23).
E^equiel, narrando a ruína do reino do Egito e a queda do Faraó
por obra de Nabucodonosor, declara: “Ao apagar tua luz, velarei os
Céus e obscurecerei seus astros. Cobriremos o Sol com nuvens e a
Lua não resplandecerá; todos os astros que brilham nos Céus, irei
vesti-los de luto por ti, e cobrirei de trevas tua terra, disse o Senhor,
YH VH ” (Ezequiel 32:7-8).
Joel, filho de Petuel' referindo-se à praga de gafanhotos que sobreveio
em seu tempo, assim se expressa: “Diante deles tremerá a terra, trove-
jarão os Céus. O Sol e a Lua se obscurecerão, e os astros extinguirão
seu brilho!” (Joel 2:10).
A mós, em seu relato da destruição de Samária, afirma: “Trarei o Sol
ao Meio-Dia, Escurecerei a Terra em pleno dia e Inverterei suas sole-
nidades (...)” (Amós 8:9-10).
Miquéias, a propósito da destruição de Samária, recorre às conheci
das expressões retóricas: ‘Tois eis que YHVH sairá de seu lugar, descerá
e caminhará sobre os cumes da Terra, e se fundirão os montes (...)”
(Miquéias 1:3-4).
1
78
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
A geu declara, a respeito do aniquilamento do reino dos Persas e dos
Medos: “Farei tremer os Céus e a terra e o mar e o seco, e estremecerei
todas as nações (...)” (Ageu 2:6-7).
Os Salmos de David descrevem a expedição de Joáb contra Arám,
a debilidade anterior e o rebaixamento desta nação, e, ainda, como os
israelitas foram derrotados e postos em fuga. Para que agora saiam
vitoriosos, ora nestes termos: “Fizeste estremecer a terra e a fendes-
te; restaura esta brecha antes que desmorone” (Salmos 60:4). Analo
gamente, para nos avisar que não devemos temer quando os povos
são destruídos até sua aniquilação, posto que nosso apoio está em
Sua ajuda (Exaltado seja!), e não em nossa luta e em nossa força,
afirma: “Povo salvo por YHVH” (Deuteronômio 33:29) e proclama:
“Por isso nós temos que temer [a Deus], ainda que trema a terra,
ainda que se movam os montes na enseada do mar” (Salmo 46:3). Na
referência à submersão dos egípcios, encontramos: “Asa águas Te
perceberam,, ó Deus, elas Te viram e tremeram. Até os abismos
fremiram (...) Propagou-se o som do Teu trovão, relâmpagos ilum i
naram o mundo, abalou-se e estremeceu a terra” (Salmos 77:17-19);
“Acaso, YHVH, acende-se Tua ira contra os rios?” (Habacuc 3:8); “de
Suas narinas subiu uma fumaça (...)” (Salmos 18:9). Igualmente no
cântico de Débora há a referência: “A terra tremeu (...)” (Juizes 5:4).
Como estas, há muitas passagens. Compare aquelas de que não me
lembrei com estas que recordei.
Com respeito às palavras de Joel: “E farei prodígios nos Céus e na
Terra: sangue e fogo e colunas de fumaça! E o Sol se converterá em
trevas e a Lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia de
YHVH. E todo aquele que invocar o nome de YHVH será salvo; por
que no monte de Sion e em jerusalém será a Salvação (...)” (Joel 3:3-5),
eu estaria inclinado a acreditar que se referem ao desastre de Sena
queribe diante de Jerusalém ou, se isto não lhe agrada, talvez à des
crição de G og10 diante de Jerusalém , nos dias do Rei M essias, ainda que
30
Gog. nome de um suposto reino, ao lado de outro — M agog — mencionado
muitas vezes nos capítulos 38 e 39 do Livro de Ezequiel. Segundo alguns escri
tores, Gog é uma designação geral utilizada por Ezequiel para designar os po
vos inim igos de Israel. Outros acreditam que Gog teria sido o rei de Lídia,
chamado de Gig pelos gregos ou de Gu-gu em inscrições assírias (fonte: site
http://www.newadvent.org/cathen/06628a.htm , em 13/11/2002).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
esta passagem cite unicamente a grande mortandade, a devastação do
fogo e o eclipse de todos os astros. Talvez você questione por que se
chama o dia do desastre de Senaqueribe de o grande e terrível dia de YHVH,
segundo nossa explicação? Você sabe que qualquer dia em que aconte
ça uma vitória ou uma grande calamidade é chamado de o grande e
terrível dia de YHVH. Assim, Joel, referindo-se ao dia em que os gafa
nhotos sobrevieram contra eles, declarou: “Grande é o dia de YHVH,
sobremaneira terrível; quem poderá suportá-lo?” (Joel 2:11).
O nosso objetivo está claro. A destruição deste mundo ou a mu
dança do seu estado amai, ou de qualquer outro,, carece de fundamen
to nos textos proféticos ou dos Sábios, pois ainda que estes afirmem
que o mundo durará seis mil anos e que será devastado durante um
milênio, isso não significa que todo ser existente retornará ao nada, já
que as palavras e durante um milênio ficará devastado indicam, por si mes
mas, que o tempo perdura. Além disso, trata-se de uma opinião individu
al e uma maneira pessoal de ver as coisas. O que você encontrará,
constantemente, como o princípio básico de que todos os Sábios da
M ishnát do Talmuddeduzem seus argumentos, é que a expressão: “Não
se faz nada de novo sob o Sol” (Eclesiastes 1:9) significa que não será
produzida renovação alguma, de qualquer tipo que seja, nem por causa
alguma . Neste extremo, até quem tome as palavras Céus novos e Terra
nova no sentido erroneamente admitido, reconhece, não obstante, que
mesmo os Céus e a Terra que serão criados nofuturo, j á estão lá e subsistem, pois
está dito: subsistem diante de Mim. Não subsistirão, mas sim subsistem, e
assim se deduz o argumento destas palavras: Não se fa% nada de novo sob
o Sol. Não pense que isto contradiz o que expliquei. Ao contrário, pois
é possível que se queira sugerir que o estado físico necessário para
produzir as circunstâncias prometidas é subjacente aos Seis Dias da
Criação, o que é verdade.
Se eu lhe disse que nada alterará sua natureza de maneira que per
dure neste estado, foi unicamente como precaução com relação aos
milagres, pois ainda que a vara tenha se transformado em serpente, a
água em sangue e a mão pura e honrada em esbranquiçada, sem inter
venção de causa natural, estes fenômenos e outros semelhantes não
foram duradouros, nem implicaram outra natureza, mas sim que, como
afirmam os Sábios (Benditas sejam suas memórias!): 0 Mundo anda
como de costume. Esta é minha opinião e o que entendo como aquilo em
que se deve acreditar. Certamente os Sábios exprimiram-se, no tocante
aos milagres, em termos surpreendentes, em uma passagem que você
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
poderá ler no Bereshit Rabá e no Midrásh Kohélet?x A idéia é de que os
milagres se fundamentam, de certo modo, na natureza, pois afirmam
que, quando Deus (Exaltado Seja!) criou este mundo e pôs nele estas
disposições físicas, nelas imprimiu também a possibilidade de todos os
milagres que ocorrerão no momento certo. A marca do Profeta con
siste, pois, em antecipar o que Deus lhe revelou quanto ao momento
dos milagres, marcado em sua natureza desde as suas origens,.
Sendo assim, isso realmente demonstra a grandeza de visão do au
tor desta passagem, que achava difícil a possibilidade de se transfor
mar uma natureza física a partir da obra da Criação ou de advir outra
aspiração, depois de estabelecida a natureza, com sua chancela particu
lar. Dir-se-ia que considerava, por exemplo, que na natureza da água se
fundamentava a sua continuidade e fluidez, sempre de cima para bai
xo, exceto quando os egípcios foram submersos. Somente neste caso,
então, a água deveria se dividir.
Já lhe adverti a respeito do verdadeiro sentido desta passagem, e que
tudo isso é para evitar a necessidade de admitir a inovação de qualquer
coisa. A passagem tem o seguinte teor: Rabi Yonatán disse: 0 Santíssimo,
bendito seja, impôs condições ao m ar para que se rendesse diante dos israelitas,
conforme está escrito: “ao despontar o dia, o mar recobrou seu estado ordi
nário.” (Exodo 14:27). Rabi Jeremias, filho de Eleazar, afirmou:
O Santíssimo fixou condições, não somente ao mar, mas sim a tudo o
que foi criado nos Seis Dias da Criação, segundo se indica: “Minhas
mãos estenderam os Céus, e Eu mando em todo o seu exército (Isaías
45:12)”. Eu ordenei ao mar para se dividir; ao fogo para não causar
danos a Ananias, Misael e Azarias; aos leões para não machucarem
Daniel; ao peixe para vomitar Jonas”.
E analogamente nos demais casos.
O assunto, pois, fica esclarecido e a doutrina elucidada, ou seja, con
cordamos parcialmente com a teoria de Aristóteles, admitindo que o
Universo é eterno e que perdurará com a natureza que Ele (Exaltado
Seja!) queira, e nada se modificará de forma alguma, salvo em detalhes
ou talvez por um milagre, ainda que Ele (Exaltado Seja!) tenha o poder
de transformar totalmente o Universo, reduzi-lo a nada ou, ainda, de
31
M idrásh Kohélet-. Comentário de Eclesiastes (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
l8l
eliminar algumas destas disposições naturais. No entanto, o universo
teve um início e nada existia no Início, senão Deus. Sua Sabedoria exigiu
que desse existência à Criação no momento de sua realização e que
aquilo que foi criado não fosse aniquilado, nem sua natureza modifica
da, exceto nestes detalhes que a Ele cabe mudar, porém, outros porme
nores nos são desconhecidos e pertencem ao futuro. Esta é a nossa
consideração e o princípio fundamental da nossa Lei. Aristóteles, por
outro lado, estima que, assim como é permanente e imperecível, o Uni
verso é também eterno e não foi criado. Pois bem, já dissemos que isso
somente pode ser classificado segundo a h e i da Necessidade e a necessi
dade implica uma heresia com relação a Deus, conforme expusemos.
Neste ponto de nossa consideração, inseriremos um capítulo com
diversas observações atinentes aos textos do M aassê Bereshít (0 Relato
da Criação), já que o primeiro objetivo do presente Tratado era esclare
cer o que fosse possível sobre o Relato da Criação e o Relato da Carruagem
Divina. Mas anteciparemos duas proposições gerais.
Uma delas é a seguinte: tudo quanto é lembrado no Relato da Criação,
na Torá, não deve ser interpretado em seu sentido literal, como o
povo imagina, posto que, neste caso, os homens de ciência não seriam
tão reservados a respeito, nem os Sábios teriam recomendado tanto
sigilo e circunspeção diante do povo, já que estes textos, ao pé da letra,
induzem a uma grande confusão de idéias e acarretam opiniões ruins
sobre a Lei de Deus ou a clara negação e heresia acerca dos fundamen
tos da Lei. O certo é evitar examiná-los através da simples imaginação,
vazia de ciência, e proceder como estes pobres predicadores e comen
taristas que pensam que a ciência consiste no conhecimento semântico
das palavras, convencidos de que a perfeição se baseia na verbosidade
e prolixidade da expressão. O certo é meditar com determinada inteli
gência, depois de se impor o estudo das ciências demonstrativas e a
investigação dos mistérios proféticos. Não obstante, ninguém que te
nha alcançado esta matéria deve divulgá-la, como expus reiteradamen-
te em meu Comentário àM ishná. Proclama-se expressamente: “Desde o
princípio do livro (Gênesis) até aqui, a honra de Deus encobrirá a coisd’?2
Foi dito isso (no Midrásh) ao final do relato do Sexto Dia.
32Alusão a Provérbios 25:2: “A Glória de Deus é encobrir as coisas, e a honra do
rei, esquadrinhá-las”, que os antigos rabinos aplicam aos mistérios contidos no
primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Fica, pois, esclarecido o que dissemos. Todavia, como o preceito
divino obriga, necessariamente, àquele que tenha logrado alguma per
feição, a difundi-la entre os demais, como explanaremos nos capítulos
referentes à Profecia, todo Sábio um tanto conhecedor destes mistéri
os, seja por sua própria especulação, seja pela doutrinação de algum
mestre, deverá dizer algo a respeito. Mas, como está proibido de ser
explícito, deve se limitar a meras alusões. Estas, assim como algumas
observações e indicações, encontram-se nas ponderações de nossos
Mestres (Benditas sejam suas memórias!), embora mescladas com as
palavras de outros e com temas diferentes. Por este motivo, você per
ceberá que, em se tratando destes mistérios, sempre me limito ao que
constitui o fundo básico da questão, reservando o resto àqueles que
sejam dignos do que lhes seja ensinado.
A segunda proposição é: os Profetas, conforme temos indicado, ser
vem-se, em suas locuções, de termos com múltiplos significados e
vocábulos que não correspondem, em sua intenção, a seu sentido pri
mário, mas são empregados por alguma relação semântica. Assim, por
exemplo, a expressão M akêlShakêd (bastão de amêndoa/perseverante)
dever ser interpretada com o sentido de perseverante, como se pode
deduzir pela sua semelhança com Shokéd aní (sou perseverante) (...),
conforme explicarei, nos capítulos referentes à Profecia, no Relato da
Carruagem Divina, o termo Chashmál33 (Ezequiel 1:4); Reguei E gu el(pata
de bezerro) (Ezequiel 1:7); a declaração de Zacarias (6:1): “Os montes
eram de cobre”, e outras expressões similares.
Com base nessas duas proposições, segue o capítulo prometido.
33
Chashmál. em hebraico moderno, significa eletricidade (NT).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
30
INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DE GÊNESIS 1-4
Você deve considerar a diferença existente entre os termos Techilá (o
princípio) e Be-reshít (No.início). A expressão o início é empregada para
designar sua função no ser ao qual se refere o conjuntamente com ele,
ainda que não lhe preceda no tempo. Assim, por exemplo, afirma-se
que o coração é o início do animal — o elemento é o iníáo daquilo que é
a base. O termo o princípio também se aplica, às vezes, nesta acepção,
em outras designa simplesmente a anterioridade no tempo, sem que se
pressuponha que seja a causa do que vem depois. Dizemos, por exem
plo, que Fulano foi em princípio quem habitou tal casa e, depois, Ci-
crano, mas não se diz que Fulano é a causa de Cicrano habitar a casa. O
termo que, em hebraico, indica o princípio é Techilá, como em: “Em
princípio (Techilái) fala de YHVH a Oséias” (Oséias 1:2); e o que desig
na o iníáo é Keshít, derivado de Rósh (cabeça), que é o iníáo do animal,
por sua posição.
Pois bem, o Universo não foi criado por algo que o precedesse no
tempo, dado que o tempo pertence ao conjunto das coisas criadas,
por isso se afirmou: Be-Reshít (Gênesis 1:1), em que a partícula Be
tem o sentido de no. A verdadeira tradução deste versículo é, portan
to: No início criou Deus os Superiores (Céus) e os Inferiores (Terra) cujo
significado está de acordo com a Criação do Mundo. Quanto ao que
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
você encontrará escrito, por certos Sábios, com relação à existência do
tempo antes da Criação do Universo, verá que é extremamente obscu
ro, Esta seria, conforme já lhe expus, a opinião de Aristóteles, o qual
pensa que não cabe conceber um início para o tempo, o que é incon
gruente. Sem dúvida, o que os induziu a professar essa teoria foi en
contrar, no texto bíblico, os termos Dia Primeiro (Gênesis 1:5) e Dia
Segundo (Gênesis 1:8). Considerar dessa forma é ater-se ao sentido lite
ral, desprezando o fato de que, se ainda não existia esfera que girasse,
nem Sol, com o que se poderia medir o Primeiro Dia? A Bíblia usa o
termo Primeiro Dia, conclui-se então, diz Rabi Yehudá ben Shimón,
que a divisão do tempo já existia anteriormente. Rabi Abahu deduz que
Deus, Há-Kadósh Barúch Hú (O Santíssimo, bendito seja) havia criado e
destruído mundos.34 Esta segunda opinião é, todavia, mais inaceitável
do que a primeira. Você compreenderá que o difícil é conceber a exis
tência do tempo antes da existência do Sol, mas já lhe será esclarecida
a solução daquilo que, para eles, era nebuloso, a menos que (por Deus!)
quisessem sustentar que a divisão do tempo existiu antes da criação do
Sol. Mas isso eqüivaleria a admitir a Eternidade do Universo, coisa a
que todo aquele que respeita a Lei deve ser contra. Esta passagem é, na
minha opinião, semelhante à de Rabi Eliezer: De onde foram criados os
Céus (...)? Em suma, não se deve levar em conta opiniões particulares
em tais referências. Já lhe ensinei que o princípio fundamental de toda
a Bíblia é que Deus criou o Universo do nada; que o tempo não pree-
xistiu, mas foi criado, pois depende do movimento da esfera celeste; e
a própria esfera também foi criada.
Convém saber, deste modo, com respeito à partícula ét em é t há-
Shamáim vê-ét há-Arets —“ [com] os Céus e [com] a Terra” (Gênesis
1:1), que os Sábios, em numerosas passagens, declaram que tem a
acepção de com, significando assim que Ele criou, junto e com os Céus,
tudo o que neles há e com a Terra, tudo quanto está contido nela. Você
já conhece a afirmação explícita de que os Céus e a Terra foram cria
dos ao mesmo tempo, conforme o texto: “Chamei-os, e logo aparece
ram” (Isaías 48:13). Assim, pois, tudo foi criado simultaneamente e,
depois, as coisas foram se diferenciando gradualmente umas das outras.
34
Segundo alguns talmudistas (baseando-se em B ereshít R abá 83), cada mundo tem
uma duração de seis mil anos, seguidos de um sétimo milênio de Caos, depois
do qual, cria-se um novo mundo (Maeso).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
18 5
Compararam-No ao lavrador que semeou a terra ao mesmo tempo
com diversas sementes, das quais umas brotaram ao cabo de um dia;
outras, de dois; e ainda outras, de três, apesar de se ter realizado a
sementeira ao mesmo tempo. De acordo com esta concepção, indubi
tavelmente verdadeira, desvanece-se a dúvida que induziu o Rabi Yehudá
ben Shimon à sua afirmação, já que lhe era difícil compreender como
foram mensurados o Primeiro, o Segundo e o Terceiro Dias. Os Sá
bios formularam, no Bereshit Rabá, um juízo explícito acerca da L,u%
criada no Primeiro Dia, segundo a Torá: “Os astros foram criados no
Primeiro Dia, mas não foram suspensos até o Quarto Dia”. Fica, por
tanto, explicada a intenção desta explanação.
Entre outras coisas necessárias, deve-se saber que érets (terra) é um
termo de múltiplos significados. Com sentido mais amplo, é emprega
do na forma A rets e, com sentido particular, na forma Erets. Aplica-se
comumente A rets — Terra — a tudo o que há sob a esfera lunar, a saber:
os quatro elementos, e, especialmente, o último deles, érets —terra.
Demonstra-o este texto: “E a Terra {Arets) estava confusa e vazia, e as
trevas cobriam a face do abismo, mas o espírito de Deus (...)” (Gênesis
1:2). Chama-se a tudo de Terra e, em seguida, acrescenta-se: “E ao seco
chamou Deus terra {érets)” (Gênesis 1:10). Este, entre os segredos, é
um grande segredo, pois sempre que você encontrar E Deus chamou a
isto assim, o objetivo é separar determinada idéia de outra, geral, quan
do o termo é comum a ambas. Por isso interpretei o primeiro versículo
como: No iníáo criou Deus os Superiores e os Inferiores, assim o vocábulo
érets indica pela primeira vez o mundo inferior, ou seja, um dos quatro
elementos. Tanto que ao afirmar: E ao seco Deus chamou terra, esta ten a é
somente terra. Isso fica, portanto, claro.
Daquilo que é necessário conhecer - os quatro elementos - afirma
mos que o termo érets é o primeiro mencionado depois dos Céus. Lem
brando: érets (terra), máim (água), rúach (sopro) e chóshech (trevas/fogo).
Quanto a este último termo, designa o fogo fundamental, não se engane.
Assim, depois de se declarar: “E do meio do fogo tens ouvido suas
palavras” (Deuteronômio 4:36), acrescenta-se: “Quando ouvistes sua voz
em meio às trevas” (Deuteronômio 5:20-23). E em outro lugar: “Toda
sorte de trevas lhe está reservada, lhe devorará um fogo não aceso (pelo
homem)” (Jó 20:26). A designação para fogo fundamental, utilizando-se
este termo, refere-se ao que não é luminoso, mas simplesmente transpa
rente. Se fosse luminoso, veríamos todo o ar flamejando à noite.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Sua enumeração corresponde às suas posições naturais: a terra, so
bre ela, a água; o ar, unido à água; e o fogo, por cima do ar, pois a locali
zação do ar “sobre a superfície das águas” (Gênesis 1:2) se dá porque
as trevas, situadas sobre a fa ce do abismo (ibid.), colocam-se indubitavel
mente acima do ar. Quanto à razão da expressão Rúach Elohím (o So
pro/Espírito de Deus), é certo se afirmar: m erachéfet(movimenta-se), e
o movimento é sempre atribuído a Deus. Por isso: “Veio um sopro de
YH VH ” (Números 11:31); “Enviaste teu sopro” (Êxodo 15:10); “E
YHVH fez dar volta ao sopro” (Êxodo 10:19); além de muitas outras
passagens. A primeira vez em que se emprega a palavra chóshech para
indicar escuridão (Gênesis 1:2) é diferente da segunda, o que se explica e
se diferencia na afirmação: “E às trevas chamou noite” (Gênesis 1:5),
conforme expusemos. Assim, isto também fica esclarecido.
Convém então saber que, nas palavras “separando águas de águas
(...)” (Gênesis 1:7), não se diferença na localização, seja acima ou abai
xo, e a sua natureza é a mesma. No entanto, o significado é de que elas
se dissociaram umas das outras por meio de uma diferenciação física,
ou seja, pela forma. Daquilo que primeiramente havia sido designado
com o nome de águas, fez-se uma coisa à parte, graças à forma física
que a revestiu, e as outras águas foram dotadas de formas distintas, que
são as águas autênticas, das quais o texto afirma: “E à agregação das
águas chamou mares” (Gênesis 1:10). Assim, fica claro que as águas,
primeiramente designadas pela expressão “sobre a superfície das águas”
(Gênesis 1:2), não são as dos mares, mas sim a parte situada sob o ar,
que se distinguiu por meio de determinada forma; e as outras são cha
madas de águas simples. Logo, a passagem “Estabeleceu separação
entre as águas que estavam debaixo do firmamento (...)” (Gênesis 1:7)
é análoga à outra: “E Deus separou a luz das trevas” (Gênesis 1:4), em
que se estabelece a distinção de forma.
O próprio firmamento foi formado de água, segundo dizem os
Sábios: “a gota (ou grupo de gotas) do meio se consolidou”. A expres
são “Chamou Deus ao firmamento Céus”(Gênesis 1:8), conforme lhe
expliquei, destaca o uso associado do nome, e não se trata dos mesmos
Céus anteriormente citados na frase: “os Céus e a Terra” (Gênesis 1:1).
Não é assim como nós denominamos, o que é corroborado pelas pala
vras “sob o firmamento dos Céus” (Gênesis 1:20), dando a entender
que firmamento não se identifica com Céus. Por homonímia, os Céus
também são chamados de firmamento, como em: “E os colocou no fir
mamento dos Céus” (Gênesis 1:17).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
1
87
Está claro, portanto, a partir desse versículo, que todos os astros, o
Sol e a Lua não estão sobre a superfície das esferas, como acredita o
povo, mas estão fixos dentro das esferas, e não há vazio no Universo,
pois foi declarado: “no firmamento dos Céus”, e não “sobre o firma
mento dos Céus.
Portanto, está manifesto que, no início, existiu uma matéria comum
chamada água, que posteriormente se distinguiu em suas três formas:
uma constituiu os mares-, outra, ofirmamento e a terceira se colocou sobre
este, totalmente fora da Terra (os Céus). Neste assunto, então, seguiu-se
um método diferente para indicar alguns segredos: designar pelo nome
de água o situado sobre o firmamento, não sendo esta água defato, como
disseram os Sábios (Benditas sejam suas memórias!): “Quatro entraram
no Paraíso (...)”. Rabi Akiva afirmou: “Quando virem pedras de már
more puro não digam: Agua! Agua!, porque está escrito: Não habitará
em minha casa o que cometa fraude’ (Salmo 101:7). Reflita, pois, se você
é dos que pensam, o que se pode entender desta passagem, revelando
todo o seu conteúdo, se a examinou com toda a exatidão e compreen
deu todo o demonstrado (por Aristóteles) no livro Sobre Meteorologia, e
preste atenção em tudo o que foi dito sobre este assunto.
Você também deve saber e considerar a razão pela qual não se
declarou, a respeito do Segundo Dia, que estava bom. Você já conhece a
esse respeito o afirmado pelos Sábios (Benditas sejam suas memó
rias!), segundo o método interpretativo do Derásh. O mais provável é
que a cnação das águas não havia sido concluída. Na minha opinião, tam
bém, a razão está perfeitamente clara: sempre que se menciona algu
ma das obras da Criação, cuja existência se prolonga, perpetua-se e
chega ao seu estado definitivo, afirma-se “que estava bom. Mas o
firmamento e o que se coloca acima dele, denominados de águas, es
tão, como você vê, envoltos em obscuridade. Com efeito, caso se tome
ao pé da letra e de um modo superficial, é coisa inexistente, posto que
não há nada entre nós e os Céus inferiores senão os elementos, nem
água sobre o ar. Isto se aplica necessariamente a quem também imagi
na que este firmamento e o que há sobre ele estão por cima dos Céus,
pois, neste caso, seria ainda mais impossível e inexeqüível. Por outro
lado, o significado desta afirmação fica extremamente obscuro, caso
se interprete em seu sentido esotérico e segundo o que realmente se
quis expressar, porque a intenção era de que isto fosse parte dos segre
dos selados, inacessíveis ao povo. Como, pois, poderia se afirmar so
bre isso que estava bom? O sentido destas palavras é que o objeto em
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
questão é de utilidade óbvia e evidente para a existência e prolonga
mento deste Universo. Mas se aquilo cujo sentido genuíno deve per
manecer encoberto e sua essência não se fazer visível tal como é, qual
a utilidade de se contar aos homens? Só para poder declarar que está
bom? Devo lhe dar ainda outra explicação: como isto constitui parte
importante da Criação, não é com relação à subsistência do Universo
que não se diz que estava bom, mas sim por uma necessidade compulsó
ria de que a terra ficasse descoberta. Entenda isso!
Preste atenção, pois, segundo a explicação formulada pelos Sábios,
Deus só fez brotar da terra as ervas e as árvores depois de ter feito
chover sobre ela, de maneira que a frase “E vapor aquoso que subiu da
terra” (Gênesis 2:6) alude a uma circunstância anterior, que precedeu a
ordem: “Faça brotar da terra erva verde” (Gênesis 1:11). Por este mo
tivo, a tradução de Onqelos “E um vapor havia surgido da terra” resul
ta do contexto: “E toda erva do campo, antes que tivesse na terra”
(Gênesis 2:5). Está, portanto, bem explícito.
Você já sabe, leitor, que'as causas principais da geração e corrupção,
depois das atividades das esferas celestes,35 são a luz e as trevas, devido
ao calor e ao frio que provocam. Em virtude do movimento da esfera
celeste, os elementos se mesclam e sua combinação varia por obra da
luz e das trevas. A resultante disso consiste de duas exalações-, a primeira
é a causa geradora de todos os fenômenos superiores, entre eles a chu
va e os minerais; e a segunda gera respectivamente a composição dos
vegetais, dos animais e, finalmente, do ser humano. As trevas são pro
priedade natural de todos os seres da Terra, e a luz lhes vem como um
acidente, de uma causa externa. Você não percebe que, quando falta a
luz, tudo fica imobilizado? O texto bíblico, no relato da Criação, segue
a mesma ordem, sem se afastar um ponto.
Outrossim, é preciso saber, como está escrito, que: Todas as obras da
Criação foram criadas em seu tamanho próprio, foram criadas em sua inteligênáa,
foram criadas em sua bele^a^ ou seja, tudo isso foi concebido em sua
perfeição quantitativa, com sua forma perfeita e suas mais belas quali
dades. E o que indica o termo lê-tsivionám (na beleza deles), da expres
são: “A mais bela de todas as terras” (Ezequiel 20:6). Fique bastante
atento também a isso, porque é uma chave importante, já explicada.
35
36
Veja cap. 10 (Maeso).
Em Talmud, Rosh Hashaná 11.
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Outra das coisas sobre as quais você deve meditar atentamente é
que, após falar da Criação do Homem nos Seis Dias da Criação, afirman
do: “e os criou Macho e Fêmea” (Gênesis 1:27), o relato é finalizado
nestes termos: “Assim foram acabados os Céus e a Terra e todo o seu
cortejo” (Gênesis 2:1). Então, abre-se um novo capítulo sobre como
Eva foi formada de Adão. Menciona-se a Êts Chaím (Arvore da Vida),
a Êts Biná (Arvore do Conhecimento) e o episódio da serpente, apre
sentando tudo isso como acontecimentos posteriores à presença de
Adão no Jardim do Éden. Todos os Sábios concordam que estes fatos
aconteceram no Sexto Dia, e absolutamente nada mudou depois dos
Seis Dias da Criação. Conseqüentemente não se pode ver nenhuma in
congruência nestas coisas, porque, como explicamos, não havia ainda
uma natureza estável.
Além disso, os Sábios disseram outras coisas, tomadas de diversos
lugares, que tenho que lhe expor, despertando sua atenção para elas da
mesma forma como eles (Benditas sejam suas memórias!) desperta
ram a nossa. Leve em conta que as palavras subseqüentes dos ditos
Sábios são de suma perfeição, de interpretação lúcida a seus destinatá
rios e de notável precisão. Por este motivo não me estenderei em sua
exposição, nem serei prolixo em seu desenvolvimento, a fim de não
descobrir um segredo?1 Para um homem como você, bastará citá-las com
certa ordem e rápida indicação.
Assim, quanto a este assunto em particular, dizem que Adão e Eva
foram criados juntos, unidos ombro a ombro e, ao dividir este ser,
Deus tomou a metade (Eva) e deu-a à outra (Adão) como companhei
ra. As palavras achátmi-tsalotáiv (Gênesis 2:21) significam: “uma de suas
costelas”; e o texto acrescenta: “no outro lado da morada (...)” (Êxodo
26:20), que o Targúnf^ traduz por “lado do Tabernáculo”. Assim, afir
mam os Sábios, é dessa forma que se deve interpretar a expressão uma
de suas costelas. Veja como ficou claro que Adão e Eva eram dois em
algumas coisas e, ao mesmo tempo, eram um, como foi dito: “Osso
dos meus ossos e carne de minha carne” (Gênesis 2:23), confirmando
deste modo sua união ao designá-los com um só nome: “Mulher (Isbk),
porque do Homem (Isb) foi tomada” (Ibid.) e, para reforçar ainda mais
sua união, foi declarado: “E se juntará à sua mulher, e virão a ser os
37
38
Referência a Provérbios 11:13: “Vem o mentiroso e descobre o segredo (...)”
(NT).
Targúm - tradução para o aramaico (NT).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
dois uma só carne” (Gênesis 2:24-25). Quanta é a ignorância daqueles
que não compreendem que, necessariamente, em tudo isto há uma idéia
determinada! Aí você tem explicado.
Outra questão que você deve conhecer, e que foi esclarecida no
Midrásh. a serpente, do tamanho de um camelo, era montada pelo ca
valeiro que seduziu Eva, cujo nome era Samael,39 nome aplicado a
Satã. Você dirá que, em muitas passagens, afirmam que Satã pretendia
tentar o Patriarca Abrahão para que não consentisse em sacrificar Isaac
e, da mesma forma, a Isaac, para que não obedecesse a seu pai. Neste
assunto, o Sacrifício de Isaac (Akedá), asseguram que Samael se dirigiu
ao Patriarca Abrahão e lhe disse: “O quê! Vovô, está louco? (...)”.40 Não há
dúvida, pois, que Samael é Satã. Este nome, assim como o de Nachásh
(Serpente), tem um sentido. Ao contar como foi a sedução de Eva,
afirma-se: “O cavaleiro ia sobre a serpente, e Deus —o Santíssimo,
bendito seja — divertia-se com o camelo e seu cavaleiro”.
Você deve notar, deste modo, que a serpente não teve nenhuma rela
ção com Adão, nem falou com ele. Ela conversou e tratou unicamente
com Eva e, por intermédio desta, sobreveio o dano a Adão, e a serpente
o levou à perdição. A enorme inimizade surgiu tão somente entre a ser
pente e Eva e entre a descendência de uma e de outra —que é, sem
dúvida, também a descendência do Homem. Todavia, mais surpreenden
te é a ligação entre a serpente e Eva — o destino de uma está na outra: são
a cabeça e o calcanhar ,41 de forma que Eva a domina pela cabeça e a serpente,
por sua vez, domina Eva pelo calcanhar. Isto também está claro.
Outra das passagens surpreendentes, cujo sentido literal se torna ex
tremamente absurdo, mas cuja sábia metáfora e congruência com a reali
dade você irá admirar quando se aprofundar perfeitamente nos capítulos
do presente Tratado, é a seguinte: Ao se aproximar a Serpente de Eva —
dizem — contaminou-a. Ao comparecer o Povo de Israel ao Monte Sinai,
a contaminação terminou; mas, às nações que estavam ausentes do Mon
te Sinai — a contaminação permaneceu.42 Reflita também sobre isso.
39
40
41
42
Em Capítulos de Rabi E lier (Maimônides).
Em B ereshit R abá (Maimônides).
Em Gênesis 3:15 (Maimônides).
O sentido desta passagem parece ser o seguinte: a faculdade imaginativa, ao
despertar as paixões, prejudica o Homem; os israelitas, ao receberem uma Lei
m oral que dominou suas paixões, ficaram protegidos; os povos que não têm
um a lei moral continuariam sujeitos ao domínio das paixões (Munk).
SOBRE
A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
Outra passagem que você deve entender é a seguinte: ^4 Á rvore da
Vida alcança quinhentos anos de idade, e todas as águas da Criação se derramam
sobre ela ,43 Esta idade, esclareceram, refere-se à grossura de seu tronco
e não à extensão de suas folhagens. 0 objeto destas afirmações— explicam —
não é sua folhagem, mas sim seu tronco, de quinhentos anos de idade. Por esse
termo, entende-se seu madeiramento ereto, e esta expressão comple
mentar foi acrescentada para valorizar o sentido da explicação e lhe
dar maior clareza. Fica, pois, totalmente explicitado.
Esta é outra questão, cujas explicações você deve conhecer: “Quanto
à Arvore do Conhecimento, o Santíssimo não a revelou a ninguém,
nem a revelará jamais”, 44 o que é verdade, pois a natureza do existente
assim o requer.
Não menos digna de se conhecer é a seguinte passagem: “E YHVH
Deus tomou o homem” — ou seja, elevou-o — “e o colocou no jardim
do Éden” (Gênesis 2:15), ou seja, deu-lhe descanso. Não se entende,
por este texto, que Ele lhe tomou de um lugar e situou-o em outro,
mas sim que elevou a qualidade de seu ser, entre os seres que nascem e
perecem, e situou-o em determinado estado.
Mais um ponto em que você deve refletir é o acerto com que foram
designados Caim e A bel, porque foi Caim quem matou Abel no campo
(Gênesis 4:8). Ambos pereceram, embora o agressor tenha sido trata
do com piedade, e somente a Set se outorgou uma existência longeva:
“Deu-me YHVH outro descendente” (Gênesis 4:25). Tudo isto já ficou
claramente demonstrado.45
Outrossim, a seguinte passagem merece sua atenção: “E chamou o
Homem nomes (...)” (Gênesis 2:20), o que nos ensina que as línguas
são convencionadas, e não naturais, como se pensava.
Finalmente, você deve meditar sobre os quatro termos empregados
para a relação entre Deus e os Céus, a saber: Bará (criar); A ssá (fazer);
43
44
45
Em B ereshit Rabá.
Em Bereshit Rabá.
“Veja nota explicativa de Munk, aqui resumida: O autor se lim ita a propor à
meditação do discípulo o sentido dos nomes de Caim, A bel e Set, e as alegori
as encerradas no texto bíblico. O silêncio que o autor guarda sobre seu verda
deiro pensamento tem dado lugar a diversas explicações: os comentaristas con
cordam geralm ente em ver, nos três filhos de Adão nomeados no texto bíblico,
os símbolos de diferentes faculdades da alma racional. Caim representa a fa
culdade das artes práticas; Abel, a reflexão e Set, a inteligência, único entre os m en
cionados filhos de Adão que se assemelhava ao pai, “criado à imagem de D eus”,
como adverte o autor na Primeira Parte, cap. 7". (Maeso).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Kaná (possuir)46 e ÊL (Deus). Foi dito, por exemplo: “Deus criou os
Céus e a Terra” (Gênesis 1:1); “(...) Ao tempo de fazer YHVH Deus a
Terra e os Céus” (Gênesis 2:4); “(...) Possuidor de Céus e Terra” (Gê
nesis 14:19 e 22); “Deus do Universo” (Gênesis 21:33); “Deus dos
Céus e Deus da Terra” (Gênesis 24:3). Quanto às expressões: “A Lua e
os astros que Tu estabelecestes” (Salmo 8:4); “Minha destra estendeu
os Céus” (Isaías 48:13); “Estendas os Céus” (Salmo 104:2), estão todas
incluídas no verbo A ssá (fazer). Quanto ao verbo Yatsár (formar),47 não
se apresenta esta acepção, por isso acredito que se aplica à estruturação
e à configuração, ou a outros acidentes, dado que estes também são
acidentes. Por isso se afirmou: “Ele queform ou a l u porque esta é um
acidente. “Ele que formou os montes” (Amós 4:13) significa que for
ma sua figura, o mesmo em “Modelou YHVH Deus (...)” (Gênesis 2:7-9).
Mas, referindo-se a estas entidades que abarcam o conjunto do Uni
verso, a saber, os Céus e a Terra, emprega-se o verbo Bará (criar) que,
na nossa opinião, significa produzir do nada. Também se usa A ssá (fazer)
aplicado às formas específicas que lhe foram dadas, ou seja, a seus
caracteres físicos. Caso os designe com o verbo Kaná (possuir), Ele
(Exaltado Seja!) os domina, assim como o dono a seus servos. Por este
motivo Lhe chamam de “O Dono de toda a Terra” (Josué 3:11-13) ou,
simplesmente, Há-Adón, O Senhor (Êxodo 23:17; 34:23), Pois bem,
dado que não há senhor sem que exista possessão, o que implicaria uma
matéria preexistente, empregam-se os verbos Bará e Assá. Quando se
afirma: Deus dos Céus e Senhor do Universo, é em relação à Sua perfeição
(Exaltado seja!) e à destes elementos. Ele é Elohím (Deus), ou seja, o
que governa, e eles — os Céus — os governados; não o são no sentido de
domínio, pois esta é a significação de Konê (possuidor). Elohím se refere
a Sua qualidade (Exaltado Seja!), em seu ser e em relação a eles, posto
que Ele é Deus, e os Céus não o são. Entenda bem isso.
Estas lições, juntamente com o que já foi dito e o que se dirá sobre
o tema, bastam para o propósito do presente Tratado e para quem se
interessar por ele.
46
47
Bará: criar, Assá:fa%er, Kaná: adquirir. Os verbos em hebraico, citados no texto,
correspondem às suas raízes. No infinitivo, os verbos são, respectivamente,
'Livro: criar; Laassóí:fa^ere. Liknót. possuir (NT).
Yatsár. formar. O verbo em hebraico citado no texto corresponde à sua raiz.
No infinitivo é L/daisér (NT).
SOBRE A TEORIA
DA
ETERNIDADE
DO
UNIVERSO
CAPÍTULO
3 1
A INSTITUIÇÃO DO SHABÁT SERVE PARA ENSINAR A TEORIA
DA CRIAÇÃO E PARA PROMOVER O BEM-ESTAR DO HOMEM
Talvez você já conheça a razão por que a Lei do Shabát48 é tão severa, a
ponto de sua transgressão ser punida com a morte por apedrejamento -
até o Profeta dos Profetas (Moisés) matou por ela. A Lei do Shabát
ocupa o terceiro lugar em importância, depois da existência de Deus e
da negação do dualismo, pois a proibição à idolatria vem depois de
assentada a Unicidade. Você já sabe, por minhas palavras, que as idéias
não se fixam se não são acompanhadas de ações que as sustentem,
divulguem e perpetuem, entre a multidão, para sempre. Por isto a Lei
nos apresenta a exaltação desse dia, a fim de que o princípio da Criação
do Mundo seja estabelecido e universalizado, com o descanso de todos
os homens no mesmo dia; e se perguntassem a causa, a resposta seria:
“Porque em seis dias fez Deus (...)” (Êxodo 20:11).
48
Shabát — Sábado: segundo a tradição judaica, o Sétimo Dia da Criação, dia em
que Deus descansou da obra que realizou. Deriva do verbo hebraico Lashévet—
sentar ou descansar. A Lei do Shabát refere-se às normas contidas no Talmúd
quanto ao modo como se deve guardar este feriado semanal (NT).
194
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Mas são dadas a estaM itsvám duas causas distintas,50 com duas con
seqüências diferentes. No primeiro Decálogo (Êxodo 20), assim se
justifica a glorificação do Shabát (Sábado): “Porque em seis dias fez
Deus (...)”, enquanto que no M ishnêT ora’1 (Deuteronômio 5:15) adver
te-se: “Recorda-te de que escravo foste na Terra do Egito (...) e por
isso YHVH Teu Deus te manda guardar o Shabát”. Isto é verdade! A
conseqüência resultante do primeiro versículo é a honra e a exaltação
deste dia, como está escrito: “Pois abençoou YHVH o dia do Shabát e o
santificou” (Exodo 20:11); e a causa para isso é “porque em seis dias
(...)” (Exodo 20:11). Mas, a imposição da Lei do Shabát, ordenando-nos
que a observemos, é conseqüência de outra causa — a de que fom os escra
vos no Egito, onde não trabalhávamos por nossa vontade, nem na hora
em que quiséssemos e nem podíamos descansar.
E nos foi ordenado o descanso e o repouso para unir ambas as
coisas: primeiro, a crença em um conhecimento verdadeiro, qual seja,
a Criação do Mundo, que, de imediato e pela mais elevada reflexão,
ensina-nos sobre a existência de Deus; e segundo, recordar-nos de
Sua benignidade, outorgando-nos o descanso “do sofrimento do Egi
to” (Exodo 6:6-7). De certo modo, é um favor que serve tanto para
confirmar uma consideração especulativa, quanto para recuperar52 o
bem-estar físico.
49
50
51
52
M itsvá: segundo a tradição judaica, preceito ou ordem divina, para ser cum pri
da pelas pessoas (NT).
A prim eira versão do D ecálogo encontra-se no livro do Exodo e a segunda, no
Livro de Deuteronômio (NT).
M ishnê Torá: o Deuteronômio, quinto livro da Torá (Pentateuco) é conhecido
também como a Segunda Torá ou a Outra Torá, por ser uma espécie de rememo-
raçâo de todo o relato bíblico. O termo também é utilizado, como homônimo,
para denominar o Talmud, e também é o nome de uma das principais obras de
Maimônides, cujo propósito é justamente a organizar, de forma sistemática, o
conteúdo do Talniúd (NT).
Recuperar: tradução contextualizada para a palavra T ik un— conserto (NT).
Sobre a Profecia
CAPÍTULO
32
TRÊS TEORIAS A RESPEITO DA PROFECIA
As opiniões das pessoas sobre a Profecia se assemelham às considera
ções sobre a Eternidade ou a Criação do Universo. Quero dizer com
isto que, assim como entre aqueles que acreditam firmemente na exis
tência de Deus há três teorias sobre a origem e a criação do Universo,
como explicamos, do mesmo modo as opiniões que circulam com
respeito à Profecia são três. Não me ocuparei da teoria de Epicuro,1
porque se não crê na existência de Deus, menos crédito ainda dará à
Profecia. Meu propósito é somente me referir às posições sobre a Pro
fecia daqueles que acreditam em Deus.
Primeira Opinião: É pertinente àquelas pessoas pagãs que admitem a
Profecia, o que coincide com a de certos setores dentro do povo de
nossa religião. Deus (Exaltado Seja!), dizem, elege a quem lhe agrada
entre os homens, faz dele Profeta e lhe confere uma missão. Não há
1
Epicuro (341-270 A .E.C.): filósofo grego nascido em Samos, favorável ao ato-
mismo, doutrina desenvolvida originalm ente por Leucipo e Demócrito. O de
sejo precisa ser controlado, para que a serenidade nos ajude a suportar a dor.
A vida se torna agradável com o sábio raciocínio, que investiga a causa. Por
ser um defensor do prazer, quiseram fazer de Epicuro e dos Epicuristas de
fensores da volúpia, mas o próprio se declara contra isso ao afirm ar que o
prazer não é sensual (fonte: http://www.consciencia.org/antiga/epicuro.shtml,
14 de novembro de 2002).
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
diferença, segundo eles, se este é sábio ou ignorante, velho ou jovem.
Todavia, é condição que seja homem de bem e de bons costumes, pois
ninguém até agora afirmou, que Deus tenha outorgado o dom proféti
co a um homem perverso, a menos que, antes, o tenha transformado
em um homem bom.
Segunda Opinião: E a dos filósofos.2 A Profecia implica certa perfei
ção na natureza da pessoa, mas nenhum homem pode alcançá-la senão
por meio do estudo, transformando em ato o que está em potência,3 salvo
apareça um obstáculo proveniente do temperamento ou de alguma
causa exterior — como ocorre em toda perfeição possível em determi
nada espécie, mas não de maneira uniforme para todos os indivíduos
desta espécie, até sua conclusão e último grau. E se para que esta per
feição se realize é necessário algo que só pode ser produzido por um
agente, logo este agente deve existir. De acordo com esta concepção, é
impossível que um ignorante chegue a Profeta ou que um homem
durma sem ser Profeta e acorde Profeta, como alguém que descobris
se algo. A realidade, então, é que se um homem íntegro, perfeito em
suas qualidades racionais e proprietário de faculdade imaginativa em
seu grau mais perfeito se preparar na forma que se lhe dirá, necessari
amente chegará a Profeta, por se tratar de uma perfeição que possuí
mos naturalmente. Segundo esta perspectiva, é impossível que um indi
víduo apto e devidamente preparado para a Profecia não consiga ser
Profeta, assim como é impossível que um homem de temperamento
saudável e nutrido de excelente alimento não gere um ser de sangue
bom e características compatíveis com essas.
Terceira Opinião: Pertence à Nossa Lei e é fundamento de nossa reli
gião. É idêntica à opinião filosófica, exceto em um ponto: nós acredi
tamos que o indivíduo, ainda que seja apto e tenha se preparado para a
Profecia, pode, todavia, não chegar a ser Profeta, pois isso depende da
Vontade Divina. No meu parecer, é exatamente igual ao que acontece
2
3“Neste caso, o autor se refere aos filósofos aristotélicos árabes, que conside
ram o dom de Profecia como o mais alto grau do desenvolvimento das facul
dades racionais e morais da alma, aonde o homem chega tanto pelo estudo
como pela purificação espiritual, desligando-se completamente das coisas des
te mundo e preparando-se, assim, para a união mais íntima com o Intelecto
Ativo, que faz passar ao ato as faculdades que nossa alma possui em potência.”
(Munk, in Maeso).
Veja Primeira Parte, cap. 14, Segunda Causa (Maeso).
SOBRE
A
PROFECIA
197
em todos os milagres, e no mesmo grau. É natural que qualquer ho
mem apto e preparado, por sua educação e estudo, possa ser Profeta,
se lhe for recusado, está, nesse caso, impossibilitado de mover sua mão,
como ocorreu ao Rei Jeroboão (I Reis 13:4), ou ao exército do rei de
Aram (Síria), em busca de Eliseu (II Reis 6:18),
Quanto ao nosso princípio fundamental — é preciso se preparar e
se aperfeiçoar nas qualidades morais e racionais - , ele é expresso (pe
los Sábios) nestas palavras: “A Profecia somente se dá no homem sá
bio, corajoso e rico”. Já explanamos, em nossa obra Comentário à M ish
ná e em nosso grande compêndio M ishnê Torá, que os discípulos dos
Profetas se ocupavam constantemente dessa preparação. Não obstan
te, pode ocorrer, a quem se preparou, não chegar a Profeta devido a
algum impedimento, como pode ser comprovado no caso de Baruch
ben Neria, seguidor de Jeremias, o qual lhe ensinou e preparou, contu
do, seu desejo de ser Profeta não lhe foi satisfeito, conforme ele mes
mo confessa: “Canso-me de gemer e não tenho repouso” (Jeremias
45:3). Então lhe foi respondido por intermédio daquele: “Assim lhe
dirás: Isto disse YHVH (...) Tu pedes para ti grandes coisas. Não as
solicites” (Jeremias 45:4-5). Certamente é possível se afirmar que a
intenção foi declarar, com isto, que a Profecia era demasiada grandeza
para Baruch, assim como na passagem: “E tampouco seus Profetas
recebem visão de YHVH” (Lamentações 2:9), poderia ser entendido
que a razão para isso era o fato de se encontrar no Exílio, como expli
caremos. Mas citamos muitos textos, tanto bíblicos quanto dos Sábios,
em que unanimemente se insiste neste princípio fundamental: Deus
faz Profeta a quem e quando quer, contanto que seja um homem deci
didamente íntegro e sábio. Aos ignorantes, parece uma coisa tão im
possível que Deus constitua algum deles Profeta quanto seria para um
asno ou para uma rã. Este é o nosso princípio: o treinamento e o
aperfeiçoamento são indispensáveis, e somente aí se fundamenta a p o s
sibilidade, desde que venha unida à Vontade Divina,
Que o seguinte texto não lhe induza a erro: “Antes que te formas
se no ventre te conheci, antes que tu saísses do seio materno te con
sagrei” (Jeremias 1:5), pois este é o caso de todo Profeta: o que o
estimula é a necessidade advinda de uma predisposição natural, como
será exposto. Quanto às palavras “Eu sou um jovem (náar)” (Jeremias
1:6), você já sabe que José, o Tsadík (o Justo), que tinha trinta anos, é
qualificado assim no texto hebraico. E o mesmo foi dito, inclusive,
de Josué, beirando os sessenta anos - por ocasião do Bezerro de Ouro:
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
“O jovem
áai Josué, filho de Nun (Yehoshúa ben Nún) não se afastava
da tenda” (Êxodo 33:11). Moisés tinha, na época, oitenta e um anos
e chegou aos cento e vinte. Deduz-se, portanto, que a idade de Josué
era então, ao menos, de cinqüenta e sete anos e, apesar disso, era
chamado de Náarí
Tampouco você irá se deixar ofuscar pelo dito nas promessas divi
nas, por exemplo: “Derramarei meu espírito sobre toda carne, e profe
tizarão vossos filhos e vossas filhas” (Joel 2:28), pois isto se explica ao
se revelar o caráter da Profecia, nestes termos: “Vossos anciãos terão
sonhos, e vossos moços verão visões” (Ibid.). Com efeito, todo aquele que
prediz algo secreto, ora através da magia ou da adivinhação, ora por
um pensamento justo, é chamado de Profeta-, por este motivo eram
chamados assim “os Profetas de Baál” e “os Profetas de Asherá”. Você
não vê como Deus (Exaltado Seja!) disse: “Se alçará no meio de ti um
Profeta ou um sonhador” (Deuteronômio 13:2)?
Quanto à cena do Monte Sinai, ainda que todos contemplaram, por
meio de milagre, o Grande Fogo e ouviram os estrondos terríveis e re
tumbantes, não chegaram, todavia, à categoria de Profetas, senão aqueles
que estavam em condições para isso e, mesmo assim, em graus dife
rentes. Isso já pode ser constatado na seguinte passagem: “Sobe a YHVH
tu e Aarão, Nadáv e Avíhu, com setenta dos anciãos de Israel” (Êxodo
24:1). Ele (Moisés, a Paz esteja com ele!) ocupa o grau supremo, con
forme o declarado: “Somente Moisés se aproximará de YHVH, mas
eles não se aproximarão” (Êxodo 24:2). Aarão segue abaixo dele; Na
dáv e Avíhu, abaixo deste; os setenta anciãos, abaixo deles e, em grau
inferior a estes, os demais, conforme o seu nível de perfeição. Um
texto dos Sábios afirma: “Moisés — uma parte em si mesmo; e Aarão -
outra parte em si mesmo”.
Já que ocasionalmente falamos da cena do Monte Sinai, daremos,
em capítulo à parte, os esclarecimentos que os textos bíblicos — bem
examinados — e a exposição dos Sábios nos oferecem a respeito.
SOBRE A
PROFECIA
199
CAPÍTULO
33
A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS ISRAELITAS COM
RESPEITO À REVELAÇÃO NO MONTE SINAI
Para mim está claro que, na cena do Monte Sinai, nem tudo o que valia
para Moisés valia para todo [o povo de] Israel, pois a Palavra se dirigiu
unicamente a este. Por isso se emprega a segunda pessoa do singular
no Decálogo, e ele (A Paz esteja com ele!) desceu ao pé da montanha
para comunicar às pessoas o que havia ouvido. O texto da Torá diz:
“Eu estava então entre YFIVH e vocês, para trazer-lhes a palavra de
YHVH” (Deuteronômio 5:5). E deste modo: “Moisés falava, e YHVH
lhe respondia através do trovão” (Êxodo 19:19). Na M echiltá4 se afir
ma expressamente que ele lhes repetiu cada mandamento tal como
havia ouvido. Outra passagem da Torá esclarece: “Para que o povo
veja que Eu falo contigo (...)” (Êxodo 19:9), o que demonstra que a
locução se dirigia a ele, e as pessoas perceberam aquela voz, sem dis
tinguir as palavras. Dela se disse: “Quando ouvistes sua voz” (Deute
ronômio 5:20-23), e também: “E ouvistes bem uma voz de palavras,
mas não vistes figura alguma, mas sim somente uma voz” (Deuteronô
mio 4:12), mas não se disse: “vocês ouviram as palavras”. Portanto,
4
Mechiltá de Êxodo: texto talmúdico (NT).
200
O GUIA DOS PERPLEXOS
sempre que há referência a palavras ouvidas, entende-se ^4 Vo%, e quem
as ouvia e transmitia era Moisés. Este é o sentido do texto bíblico e de
muitas afirmações dos Sábios.
Todavia, há outra afirmativa formulada em numerosos lugares nas
M idrashót e também no Talmud, a saber: “EU [Deus]” e “Não será
para você”, “ouviram da boca da Onipotência”, que permitem inter
pretar que as palavras chegaram a eles da mesma forma como a M oshé
Rabênu (A Paz esteja sobre ele!), e não foi este quem as transmitiu ao
povo. Estes dois princípios — refiro-me à existência de Deus e Sua
unicidade — são exeqüíveis à especulação humana e todo o cognoscí-
vel por demonstração o é do mesmo modo ao Profeta ou a quem
quer que seja, sem nenhuma preferência. Portanto, estes dois princí
pios não são conhecidos unicamente por meio da Profecia, de acor
do com o seguinte texto da Torá: “A ti se te fizeram ver para que
conhecesses(...)” (Deuteronômio 4:35). Quanto aos mandamentos
restantes, pertencem à categoria das opiniões prováveis e admitidas por
tradição, não das inteligíveis,5
Seja como for, os textos bíblicos e as afirmações dos Sábios deixam
entrever como inadmissível que todo Israel tenha ouvido aquela cena a
não ser apenas como uma 1 '/o% uma ve^ e esta é a Vo^ que atingiu Moi
sés e todo Israel: “EU (Deus)” e “Não será para você”, repetida por
Moisés ao povo, em sua própria linguagem, pronunciando distinta
mente as palavras que escutaram. Os Sábios (Bendita seja sua memó
ria!) se basearam, ao afirmar isto, nas palavras: “Uma vez falou Deus e
duas lições escutei” (Salmo 62:12) e no princípio do Midrásh Cha^ita
em que se destaca que aqueles não ouviram outra fala emanada Dele
(Exaltado Seja!), como afirmado, do mesmo modo, na Torá: “Com
fala forte, e não acrescentou mais” (Deuteronômio 5:19 ou 22). Logo
após ter ouvido a primeira fala, ocorreram, como se conta, o terror, o
pânico e as suas exclamações: “E me dissestes: YHVH, Nosso Deus
nos fez ver (...) Por que, pois, morrer? (...) Aproxima-te e escuta (...)”
5
“Os oito mandamentos restantes são concernentes a coisas que não são do
domínio da inteligência, e não poderiam ser objeto de um silogismo demonstra
tivo. Refere-se às virtudes e aos vícios, o Bem e o Mal, que se encontram entre
as opiniões prováveis e são, inclusive, coisas puramente tradicionais, como é, p.
ex. o Quarto Mandamento, relativo ao Shabát [Sábado]” (Munk). “Note-se que
o Quarto Mandamento do Decálogo hebreu-bíblico corresponde ao Terceiro
Mandamento cristão (Maeso).
SOBRE
A
PROFECIA
201
(Deuteronômio 5:21-24 e 24-27). Então o mais ilustre dos mortais
avançou pela segunda vez, recebeu os mandamentos restantes um a
um, desceu ao pé da montanha e lhes retransmitiu, em meio àquele
espetáculo grandioso. Eles contemplavam o fogo e ouviam as pala
vras, quero dizer, as denominadas fa la s e relâmpagos (Êxodo 19:16), que
soavam como o trovão e o toque imponente da trombeta. E sempre
que se faz referência às várias fa la s que se ouviam, por exemplo em
Êxodo 20:15, trata-se do som da trombeta, do raio, etc. Mas a palavra
do Eterno — quero dizer, a Fala C iiada6, através da qual foi comunica
da a Palavra Divina — somente foi percebida uma vez, como afirma
textualmente a Torá e a exposição dos Sábios nos lugares que lhe indi
quei. A partir dela, Exalaram sua alma ao ouvi-la e, por sua mediação,
entenderam os dois primeiros Mandamentos. Observe que o grau de
percepção de Israel a respeito não era igual ao de M oshé Rabênu (A Paz
esteja sobre ele!). Devo insistir com você sobre este segredo e lhe rei
terar que isto é tradicionalmente admitido em nossa nação e conheci
do de seus Sábios. Assim, em todas as passagens em que se encontra:
“E YHVH Falou a Moisés dizendo”, Onqelos traduz (literalmente):
YHJ^H Falou, e do mesmo modo: “E YHVH pronunciou todas estas
palavras” (Êxodo 20:1). Por outro lado, as dirigidas pelos israelitas a
Moisés: “E que não nos fale Deus” (Êxodo 20:16-19), ele as traduz
assim: “Não se nos fale da parte de Deus”. Assim Onqelos (A Paz
esteja sobre ele!) marcou a distinção que indicamos. Você já sabe que
ele, como é dito expressamente, aprendeu todas estas coisas maravi
lhosas e notáveis da boca de Rabi Eliezer e Rabi Josué, Sábios de Israel
por excelência.
Que todos saibam e lembrem-se! Porque é impossível se aprofun
dar na cena do M onte Sinai — um dos fundamentos da Bíblia — mais a
fundo do que o exposto por eles. Esta percepção e suas circunstânci
as são reais, porque nem houve antes nem haverá no futuro nada
comparável. Saibam!
6
Veja Primeira Parte, cap. 46 (Maeso).
SOBRE
A
PROFECIA
2.0'3
CAPÍTULO
34
E X P L IC A Ç Ã O DEÊXODO2 3 :2 0
O sentido do texto da Torá, “Eis que Eu mandarei um anjo diante de
d (...)” (Êxodo 23:20), é explicado no MishnêTorá [Deuteronômio] 23:18
quando Deus falou a Moisés na cena do Monte Sinai-, “Um Profeta levan
tarei para eles (...)”. Prova disso é o que se disse deste anjo: “Acata-lhe
e ouça sua voz (...)” (Êxodo 23:21), ordem dirigida indubitavelmente à
multidão. Porém, o anjo não se fez visível a esta, nem lhe fez alguma
prescrição ou proibição direta, para que não se sentisse repreendida,
de maneira a não se rebelar contra ele. Por conseguinte, o sentido deste
texio é que Deus (Exaltado Seja!) preveniu ao povo de Israel que have
ria, entre eles, um Profeta, a quem um anjo se manifestaria e lhe falaria,
comunicando-lhe ordens e interdições. Assim, Deus nos proíbe de
desobedecer a este anjo, cuja palavra nos transmitirá o Profeta, como
se afirma em Deuteronômio 18:15: “A ele ouvirás”; e também: “A
quem não escutar as palavras que ele dirá em Meu Nome (...)” (Deute
ronômio 18:19), e se explica o motivo: “porque ele leva Meu Nome”
(Êxodo 23:21).
T udo isso foi so m ente p ara lh es ch am ar a aten ção : este esp etáculo
g ran d io so que tem sido co ntem plado , a saber, a cena do M on te S in a i não
é algo que p erd u rará en tre vocês. N ão h averá n ad a sem elh an te no
2.04
°
GUIA
d o s
p e r p l e x o s
futuro, nem fogo ou nuvem permanentes, como há agora sobre o Taber-
náculo Eterno. Um anjo que Eu enviarei aos seus Profetas conquistará
por vocês as suas cidades, tornará disponível a sua terra natal e lhes
indicará o que é preciso empreender ou evitar.
Aí está também o princípio fundamental que insisto em lhe expli
car, a saber: a qualquer Profeta, exceto M oshé Rabênu, chegava-lhe a
Profecia pelas mãos de um anjo. Saibam!
SOBRE
A PROFECIA
2.05
CAPÍTULO 3 5
A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS PROFETAS COM
RESPEITO AOS MILAGRES PERPETRADOS POR ELES
Já esclareci a todas as pessoas as quatro diferenças entre a Profecia de
Moisés e a dos demais Profetas, transmiti minha consideração e desco
bertas a respeito disso no Comentário à M ishná e no M ishnéTorá. Não há
necessidade de se voltar ao assunto nem interessa ao propósito deste
Tratado.
Devo esclarecer que todo quanto tenho dito acerca da Profecia nos
capítulos deste Tratado se refere unicamente à qualidade Profética de
todos os Profetas anteriores e posteriores a Moisés. Quanto à Profecia
de M oshé Rabênu, não direi uma só palavra, nem explicitamente nem
por alusão. O motivo: para mim, o termo Profeta somente se refere a
Moisés e aos outros por homonímia, o que se aplica também às suas
maravilhas e às maravilhas dos outros, pois suas demonstrações não
são da mesma categoria que as dos demais Profetas.
A prova, tomada da Lei, de que sua Profecia era diferente da de
todos os seus predecessores, aparece nas seguintes palavras: “Eu me
mostrei a Abrahão (...) e meu nome YHVH não fiz conhecido para
eles” (Exodo 6:3). Essa passagem nos ensina que a percepção de Moi
sés não foi como a dos Patriarcas, mas sim maior. Ele superou a todos
os que vieram antes. Com respeito à diferença entre sua Profecia e a de
2.06
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
seus sucessores, está dito por parte àa.A.gadá.1 “Não há possibilidade
de surgir, em Israel, Profeta semelhante a Moisés, que conheceu YHVH
face a face” (Deuteronômio 34:10). Fica, portanto, patente que sua
percepção diferia das de quantos haveriam de sucedê-lo em Israel,
“Reino de Sacerdotes e Nação Santa” (Êxodo 19:6 e Números 16:3),
“entre eles YHVH” (Números 16:3) e com maior motivo entre as de
mais nações. Quanto à diferença entre seus milagres e os de todos os
Profetas em geral, perceba que todas as maravilhas realizadas por eles,
ou para eles, eram contadas para uns poucos entre as pessoas, como as
demonstrações dos Profetas Elias e Eliseu. Observe como o Rei de
Israel inquire a respeito e solicita informação de Guiezi (Guecha^i, em
hebraico) nestes termos: “Anda e conta-me todas estas grandes coisas
que Eliseu reaüzou; e enquanto estava contando (...)” e Guiezi disse:
“Meu Senhor Rei! Esta é a mulher e este é seu filho, que Eliseu ressus
citou” (II Reis 8:4-5). E assim são os prodígios dos demais Profetas, à
exceção de M oshé Rabênu, de quem a Bíblia declara que jamais surgirá
um Profeta que realize maravilhas publicamente, diante de admirado
res ou desconfiados, como as maravilhas que fez Moisés: “Não há
possibilidade de surgir — foi dito — Profeta (...) nem quanto às maravi
lhas e portentos (...) aos olhos de todo Israel” (Deuteronômio 34:10-
12). Aqui se unem as duas coisas: que não aparecerá jamais quem al
cance a mesma percepção que ele, nem quem realize o mesmo que ele.
Em seguida acrescentam-se os prodígios efetuados diante de seus ini
migos — “o Faraó, seus servidores e seu país” (Deuteronômio 34:10-
12) — como também na presença de todo o povo de Israel, seus adep
tos: “aos olhos de todo o Povo de Israel”, coisa que nunca havia ocorrido
a qualquer Profeta anterior a ele. E então se confirma a história verda
deira, de que não haverá outro comparável a ele.
Não se equivoque quanto ao que foi dito para Josué a propósito da
luz do Sol mantida naquelas horas: “E disse aos olhos de Israel” (Josué
10:12), posto que não diz “a todo Israel”, como no caso de Moisés.
Veja também que o milagre de Elias no Monte Carmel foi testemunha
do por poucas pessoas. Quando afirmei, anteriormente, que o sol se
7Agadá'. forma de interpretação que compõe o Talmud e tem como foco o texto
bíblico. Busca extrair da Bíblia, de forma criativa e menos rigorosa que as
regras da Halachá, uma história de moral, um consolo, uma lenda, uma fábula
ou um provérbio que sirvam ao momento, ao contexto (NT).
SOBRE
A
PROFECIA
2 .0 7
mantinha naquelas horas, explico a expressão ke-ióm tamím (um dia intei
ro), em Josué 10:13, como: “o dia mais longo possível”, dado que
tamím quer dizer “completo”, e é como se dissesse que aquele dia em
Guivón fora tão longo quanto são os dias de verão naquela região.
E preciso compreender a distinção das Profecias e milagres de
Moisés e entender que a grandeza de sua percepção Profética era idên
tica à sua capacidade de produzir milagres. Se você então acreditar que
somos incapazes de compreender totalmente a natureza de sua gran
deza, entenderá que quando eu falo, nos capítulos seguintes, sobre Pro
fecia e os diferentes níveis de Profecia, refiro-me aos Profetas que não
atingiram o nível máximo, somente atingido por Moisés. Este era o
propósito do presente capítulo.
SOBRE
A
PROFECIA
209
CAPÍTULO 3 6
SOBRE AS FACULDADES MENTAIS, FÍSICAS E MORAIS DOS
PROFETAS
Saiba que, na realidade, a Profecia é uma emanação de Deus (Exaltado
Seja!) através do Intelecto Ativo, de início sobre a faculdade racional e
daí para a faculdade imaginativa. Ela se constitui no mais alto grau do
homem e o ápice da percepção exeqüível à sua espécie, e este estado é
a culminação da faculdade imaginativa, ao alcance de qualquer homem.
Contudo, não é acessível pelo mero aperfeiçoamento na filosofia nem
pela melhora na conduta, por mais perfeitas e belas que possam ser,
sem que a elas se junte a máxima perfeição possível da faculdade ima
ginativa em sua formação inicial. Você já sabe que a excelência destas
faculdades corporais — entre as quais figura a faculdade imaginativa —
depende da melhor compleição possível do órgão em que se funda
menta esta faculdade, da excelência de sua proporção e maior pureza
de sua matéria. É algo cuja perda torna-se irreparável e seu defeito é
insubstituível mediante um regime. Com efeito, o órgão cuja complei
ção é originalmente defeituosa poderá, no máximo, ser conservado em
um certo grau de sanidade pelo regime adequado, ainda que sem poder
lhe reduzir à máxima constituição factível. Mas se esta deficiência pro
vém de sua desproporção, posição ou substância, quero dizer, da ma
téria de que é formado, não existe remédio viável. Você conhece tudo
isso perfeitamente e não há por que insistir em explicações.
2.10
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Assim, saiba que as operações da faculdade imaginativa são as de
conservar a lembrança das coisas sensíveis e combiná-las, conforme a
característica específica de sua natureza: reproduzir. E sua mais alta e
nobre atividade se realiza quando os sentidos cessam suas funções:
então sobrevêm uma espécie de inspiração, conforme a sua disposição,
que é a causa dos sonhos verdadeiros e da Profecia — entre os quais
não há diferença específica, mas de intensidade somente, para mais ou
para menos. Você conhece o que os Sábios afirmaram inúmeras vezes:
“O sonho é 1/60 partes da Profecia” (T alm udBerachót 57). Sem dúvi
da, não cabe proporção entre duas coisas especificamente distintas,
nem seria correto dizer, por exemplo, que a perfeição do homem é
tantas ou quantas vezes a do cavalo. A mesma idéia foi sublinhada no
BereshitRabá, nestes termos: O sonho é ofru to imaturo da Profecia, compa
ração excelente, dado que se trata do mesmo fruto, mas que caiu preco-
cemente, antes de sua maturação. Do mesmo modo, a atividade da
faculdade imaginativa durante o sono é idêntica à atividade no mo
mento da Profecia, exceto pela sua insuficiência e por não alcançar sua
perfeição. Mas por que ensiná-lo com as palavras dos Sábios (Benditas
sejam suas memórias!), deixando de lado os textos da Torá? Por exem
plo: “(...) Se houver profeta entre vós, Eu, o Eterno, em visão, a ele Me
faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números 12:6). Aqui Deus
nos conta qual é a verdadeira essência da Profecia: uma perfeição ad
quirida em um Sonho ou através de uma Visão. A faculdade imaginativa
adquire uma tal eficiência em sua atividade que vê a coisa como se
tivesse vindo de fora e a apreende como se fosse através dos órgãos
dos sentidos físicos. Estas são as duas partes — a saber, Visão e Sonho —
de todos os graus de Profecia, como será explicado.8 Sabe-se que aqui
lo do que o Homem se ocupa em estado de vigília, servindo-se de seus
sentidos, e ao que tende o seu desejo, é o objeto da imaginação durante
o sonho, quando o Intelecto Ativo se derrama sobre ela, de conformi
dade com sua preparação. Seria supérfluo acrescentar exemplos e in
sistir, dado que é Coisa notória, conhecida de todos, contra a qual nin
guém objeta, como no caso da percepção dos sentidos.
A partir destes preâmbulos, deve-se recordar que se trata aqui de
um indivíduo humano, cuja substância cerebral, principalmente a ori
gem dela — pela pureza da sua matéria e da compleição particular de
8
Veja na Segunda Parte, cap. 41 (Maeso).
SOBRE
A
PROFECIA
211
cada uma de suas partes, em quantidade e posição — foi feita de forma
sumamente bem proporcional, sem desajustes em sua compleição por
obra de outro órgão. Por outro lado, este indivíduo teria adquirido
conhecimento e sabedoria para passar da potência ao ato e estaria de
posse de uma inteligência humana perfeita e cabal, assim como os
costumes humanos puros e equânimes, e todas as suas inclinações ten
deriam ao conhecimento deste mundo e aprofundamento de seus mis
térios e causas. Precisaria, então, que seu pensamento se orientasse
sempre para as coisas nobres, ocupado somente do conhecimento de
Deus, da contemplação de Suas obras e do que se deve acreditar a esse
respeito, e que seu pensamento e desejo estivessem desembaraçados
de tudo o que é animal, a saber: a busca dos prazeres inerentes à comi
da, bebida, coabitação, em suma, o sentido do tato, do qual Aristóteles
afirmou expressamente na Etica — e com muita razão — que este senti
do é uma desgraça para o Homem, dado que o possuímos unicamente
em razão de nossa animalidade, assim como os irracionais, sem que
haja nele nada de especificamente humano. Quanto aos demais praze
res sensuais — como o olfato, a audição, a visão — ainda que corporais,
não deixa de haver neles, às vezes, um deleite para o ser humano como
tal, segundo o mesmo Aristóteles expõe. Temos nos estendido com
certa proüxidade à margem de nosso tema, mas era necessário, dado
que, com freqüência, os Sábios se ocupam dos prazeres de um deter
minado sentido, logo se surpreendendo por não alcançarem o grau de
Profetas, convencidos de que a Profecia é algo inerente à condição
humana. Seria preciso, deste modo, que o pensamento e o desejo deste
indivíduo estivessem desligados de ambições vãs — quero dizer, o de
sejo de Eternidade, do engrandecimento dele pelo povo e de ser hon
rado continuamente por ele e suas obras, sem outra finalidade. Mas
veria as pessoas de acordo com seus respectivos interesses: uns certa
mente semelhantes às bestas do campo, outros, às feras, as quais o
homem íntegro e retraído não presta atenção, qual não seja para se
preservar de seu possível dano, se tiver algo a ver com elas, ou para
obter eventuais proveitos que possam lhe conceder. Por conseguinte,
se a um indivíduo, tal como descrito — com a imaginação em alto grau
e em plena atividade, e derramando-se sobre ela o Intelecto Ativo,
conforme a perfeição especulativa deste sujeito — fosse dado perceber
coisas divinas, maravilhosas, não veria mais do que Deus e Seus anjos,
e a ciência que lhe seria exeqüível somente se polarizaria em opiniões
verdadeiras e normas de conduta, voltadas à melhora dos seres huma
nos nas relações uns com os outros.
112
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Descrevemos três tipos de perfeição: perfeição da faculdade racional
por meio do estudo, da faculdade imaginativa em sua constituição natural
e da faculdade moral derivada do banimento, no pensamento, de todos
os prazeres corporais e do apaziguamento do desejo de grandezas vãs
e ruins. Os homens sábios possuem estas qualidades, como se sabe,
em diferentes níveis, e os níveis da faculdade Profética variam de acor
do com essas diferenças.
Você bem sabe que toda faculdade corpórea se enfraquece, debili
ta-se ou se deteriora em um dado momento, ou se fortalece em outro;
e a faculdade imaginativa é sem dúvida uma faculdade corpórea. Por
este motivo, perceberá que os Profetas, em momentos de tristeza, có
lera ou de outras paixões semelhantes, não conseguem profetizar. Des
te modo, entende-se o que os Sábios afirmam: “A Profecia não advém
durante a tristeza e a depressão”, assim como o Patriarca Jacob se viu
privado de Profecia durante seu luto, porque sua mente estava absorvi
da pela perda de seu filho José. O mesmo ocorreu a Moisés (A Paz
esteja sobre ele) a quem a Profecia não veio como antes, depois do
episódio dos espiões,9 até que morreu toda a Geração do Deserfo,10 por
que se encontrava envolvida pela enormidade de seus crimes. Ainda
que, em seu caso, a faculdade imaginativa em nada interferia em sua
Profecia, já que o Intelecto Ativo se derramava sobre ele sem interven
ção daquela, pois, como temos dito reiteradamente, Moisés não profe
tizava através de metáforas, ao modo dos demais Profetas — conforme
se exporá, dado que este capítulo não é o lugar próprio para isso.
Do mesmo modo você observará que certos Profetas, após profe
tizarem durante algum tempo, perderam esta capacidade devido a al
gum acontecimento e não puderam continuar. Esta foi, sem dúvida, a
9
10
Quando o povo de Israel, após ter sido libertado por Moisés da escravidão no
Egito, seguiu em sua caminhada pelo deserto, espiões — príncipes representan
tes das tribos que formavam o povo — foram enviados para verificar como era
a Terra Prometida por Deus a Israel. Voltaram com uma boa notícia: que da
quela terra “emanava o leite e o mel”, mas também com uma notícia ruim:
acovardaram-se perante os povos que lá viviam e atemorizaram o restante do
povo (NT).
Geração do Deserto: refere-se aos integrantes do Povo de Israel que foram escra
vos no Egito. Segundo a Tradição, somente entraram em Israel aqueles nasci
dos no deserto, pois não carregavam a cultura e o medo adquiridos durante os
anos de escravidão (NT).
SOBRE
A
PROFECIA
XV,
causa essencial e imediata do por quê cessou a Profecia no tempo do
Exílio, posto que não há motivo maior de abatimento ou tristeza do
que ser um servo comprado, escravizado por ignorantes pervertidos
que misturam a fala verdadeira e corajosa a toda a devassidão das bes
tas, e nada poderfa^ er contra isso. Esta ameaça pesa sobre nós, e é o que se
quer dizer com: “Navegarão pedindo a palavra de YHVH e não encon
trarão” (Amós 8:12); como também: “Seu rei e seus ministros estão
entre as nações; não há Lei, e seus Profetas não recebem visão de
YH VH ” (Lamentações 2:9). Isto é certo e manifesta é a causa, porque o
instrumento da Profecia foi suspenso. E este é também o motivo da
volta da Profecia para nós, segundo o costume: “Vinda do Messias —
rapidamente se revelará!” — como nos foi prometido (Joel 3:1).
SOBRE A
PROFECIA
2 .I 5
CAPÍTULO 3 7
A EMANAÇÃO DIVINA SOBRE AS FACULDADES IMAGINATI
VAS E MENTAIS DO HOMEM ATRAVÉS DO INTELECTO ATIVO
Cumpre-me chamar sua atenção sobre a natureza essencial desta ema
nação divina projetada sobre nós, por meio da qual pensamos, e que
marca a vantagem de nossas inteligências. Esta influência pode atingir
uma pessoa em uma pequena medida, exatamente na mesma propor
ção que sua condição intelectual, enquanto pode atingir outra pessoa
em tal medida que, além de aperfeiçoá-la, pode também significar o
aperfeiçoamento para outros. O mesmo ocorre em relação a todos os
seres, entre os quais alguns têm perfeição suficiente para governar ou
tros, enquanto há outros com capacidade somente para cuidarem de si
próprios e não do próximo, como ficou demonstrado.
Portanto, saiba que se tal emanação do Intelecto A tivo se derrama
unicamente sobre a faculdade racional, excluindo-se a imaginativa —
seja por insuficiência da emanação, seja por defeito da faculdade ima
ginativa em sua formação inicial, que a incapacite para a recepção —
esta é a casta dos sábios especulativos. Ao contrário, se esta emanação
se difunde conjuntamente sobre ambas as faculdades, a racional e a
imaginativa, como explicado por nós e também por alguns filósofos, e
esta última foi criada originalmente em toda a sua perfeição, então é a
casta dos Profetas. Enfim, se a emanação recai exclusivamente sobre a
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
faculdade imaginativa, sem intervenção da racional, seja por razão de
sua formação inicial ou por falta de estudo, teremos a casta dos gover
nantes, legisladores, adivinhos, agoureiros e donos de sonhos verda
deiros. Também os milagreiros, por meio de artifícios estranhos e ar
tes ocultas, todos incultos, pertencem a esta terceira casta.
Você deve verificar, assim, que alguns desta terceira casta, inclusive
em estado de vigília, têm visões maravilhosas, sonhos e agitações se
melhantes às aparições Proféticas, ao extremo de acreditarem que são
Profetas, regozijando-se muito de tais visões quiméricas, convencidos
de que adquiriram conhecimento sem estudo, introduzindo grandes
confusões em assuntos de ampla transcendência dentro da especula
ção, embaralhando de um modo surpreendente o verdadeiro com o
ilusório. Tudo isso acontece devido ao predomínio da faculdade ima
ginativa, junto com o enfraquecimento da racional, carente de tudo, a
qual, em outras palavras, não passou ao ato.
E notório que nestas três castas há numerosas gradações. Cada uma
das duas primeiras se subdivide em duas partes, quais sejam: a daqueles
que recebem a Influência apenas na medida da necessidade para o seu
próprio aperfeiçoamento, e a daqueles que recebem a Influência em tal
medida que é suficiente para o seu próprio aperfeiçoamento e para o de
outros. Com respeito à primeira casta, a dos Sábios, há duas situações:
aquilo que se derrama sobre a faculdade racional do sujeito é suficiente
para fazer dele um homem estudioso e intelectual, dotado de conheci
mentos e critérios, porém, sem propensão a instruir aos demais nem a
compor obras, carente de gosto e capacidade para isso; ou pode ser
influenciado o bastante para se sentir estimulado, de modo positivo, a
elaborar obras e ensinar. O mesmo ocorre com a segunda casta: é pos
sível que recebam da Profecia o que aperfeiçoe os Profetas e é possível
que venha, daquela, algo que os obrigue a se interessar pelas pessoas,
instruindo-os e emanando sobre eles sua própria perfeição.
É evidente que, sem esta perfeição a mais, os livros não seriam
escritos, nem os Profetas teriam imbuído os homens do conhecimen
to da verdade. Porque o sábio não escreve nada para si mesmo com a
finalidade de se doutrinar no que já sabe, mas sim porque, na natureza
de seu intelecto, existe o ato de emanar continuamente e irradiar suces
sivamente esta emanação de um indivíduo a outro, até encontrar aque
le que pode se aperfeiçoar através desta 'Emanação, sem, no entanto, ser
capaz de transmiti-la a outros, conforme explicamos em alguns capítu
los do presente Tratado (cap. 11).
SOBRE A
PROFECIA
A natureza dessa matéria obriga, a quem recebeu esta emanação a
mais, a comunicá-la necessariamente aos homens, aceitem estes ou não,
inclusive com o risco de ser ferido por eles. Por isso, encontramos
Profetas que pregaram aos homens até morrer, movidos por esta ins
piração divina que não lhes deixava descansar nem repousar, e até pas
saram por grandes males. E esse o motivo de Jeremias (A paz esteja
sobre ele) proclamar que, como conseqüência do menosprezo por par
te dos rebeldes e incrédulos de seu tempo, sentia-se tentado a inter
romper sua missão Profética e não chamá-los à verdade, por eles re
chaçada, mas isto se mostrava impossível. E disse assim: “E todo o dia
a palavra de YH VH é áspera e motivo de zombaria para mim. E eu
disse: ‘Não me recordarei Dele, não voltarei a falar em Seu nome, é
dentro de mim como fogo abrasador, encerrado dentro de meus os
sos, e me cansei de suportá-lo — mas não posso’” (Jeremias 20:8-9). O
mesmo sentido encerra outro texto profético: “ O Senhor, YH VH , fa
lou — quem não profetizará?” (Amós 3:8). Conheça isso!
SOBRE
A
PROFECIA
1IÇ
CAPÍTULO 3 8
A CORAGEM E A INTUIÇÃO ATINGEM O GRAU MAIS ALTO DA
PERFEIÇÃO NOS PROFETAS
É preciso saber que todo homem possui necessariamente a faculdade da
coragem, sem a qual não se sentiria impulsionado mentalmente a evitar
o que lhe possa prejudicar, e semelhante faculdade é, entre as forças da
alma, o que a faculdade repulsiva é entre as forças naturais. A faculda
de da coragem varia em intensidade ou debilidade, assim como ocorre
nas demais faculdades. Isso pode ser comprovado pelo fato de que há
quem se lança contra um leão, enquanto outro foge de um rato; há
quem irrompa contra um exército para lhe combater, ao passo que
outro teme e treme quando uma mulher grita com ele. E necessário
que, desde a formação inicial, exista certa predisposição na complei
ção, e que essa faculdade seja estimulada, segundo determinado crité
rio, de maneira que a força aflore; e diminuirá devido ao exercício
escasso, caso siga um critério diferente. Lembramos da nossa própria
juventude, que há diferentes níveis de energia entre os jovens.
Analogamente, a faculdade intuitiva se dá em todos os homens, mas
varia para mais ou para menos, especialmente nas coisas às quais se
dispende maior atenção e reflexão. Assim, você observará que Fulano
falou e agiu de determinada maneira com respeito a Cicrano, numa dada
situação. E encontrará, entre as pessoas, aquela em quem a imaginação e
2 .2 .0
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
a intuição são muito fortes e certas, de forma que é até possível que
imagine algo como real e isto ocorra conforme imaginou, ou perto
disso. Suas causas são muitas, pois é produto de uma série de numero
sas circunstâncias: anteriores, posteriores e amais. Mas, em virtude desta
faculdade de intuição, o intelecto recorre a todas estas circunstâncias e
deduz as conclusões em tempo tão curto que parecem instantâneas.
Por isso, certos homens prognosticam eventos futuros importantes.
Ambos os dotes — coragem e intuição — devem ser, necessariamen
te, muito fortes e, quando o intelecto ativo se derrama sobre eles, al
cançam uma pujança extraordinária, até aquele grau que você já co
nhece : quando um homem é capaz de se apresentar de forma corajosa,
somente com seu cajado, diante de um grande rei, para libertar uma
nação da escravidão por ele imposta, sem medo nem temor, somente
por que se lhe havia dito: “Porque Estarei contigo” (Exodo 3:12), Este
estado é variável entre esses homens, mas indispensável. Como se dis
se a Jeremias: “Não temas diante deles (...) eis que aqui te ponho, desde
hoje, como cidade fortificada (...)” (Jeremias 1:8,17-18). E deste modo
a Ezequiel: “Não os temas nem tenhas medo de suas palavras” (Eze
quiel 2:6). Assim, vê-se a todos (A paz esteja com eles!) dotados de
grande coragem. Igualmente, em virtude do extraordinário desenvol
vimento de suas faculdades intuitivas, predizem sem demora o futuro,
ainda que, também nisto, existam diferentes graus entre eles, como
você sabe.
E preciso saber que os Profetas Autênticos concebem idéias que re
sultam de premissas que a razão humana, por si só, não poderia com
preender, como quando contam coisas que o homem, somente através
da razão ou da simples imaginação, não é capaz de contar. Esta mesma
inspiração — que se difunde sobre a imaginação e a aperfeiçoa até o
ponto em que sua ação chega a predizer o futuro e percebê-lo como se
fosse resultado dos sentidos, exeqüível à imaginação por intermédio
destes — aquilata também a operação da faculdade racional, até chegar,
por meio desta, a conhecer a realidade das coisas e lograr sua percep
ção, como se a houvesse alcançado através de proposições especulati
vas. Esta verdade deve ser admitida por todo aquele que aspira a um
juízo imparcial, pois também as coisas atestam e provam umas às ou
tras. Isto se aplica forçosamente à faculdade racional, dado que, de
fato, o Intelecto A tivo derrama-se verdadeiramente sobre ela e a conver
te em ato. Assim, pela faculdade racional a emanação advém à faculda
de imaginativa. Como, então, a faculdade imaginativa se aperfeiçoa até
SOBRE A
PROFECIA
111
o ponto de representar coisas não percebidas anteriormente pelos sen
tidos, se o mesmo nível de perfeição é atingido pelo intelecto e este
não pode compreender as coisas a não ser pelo modo convencional,
ou seja, através de premissas, conclusão e inferência? Esta é a verda
deira característica da Profecia e das disciplinas às quais a Profecia deve
estar totalmente voltada.
Se dissertei a respeito dos Profetas A utênticos foi para diferenciá-los
das pessoas da terceira casta, que não possuem pensamento claro nem
sabedoria, mas somente imaginação e pensamentos desconexos. Tal
vez o que atinja estas pessoas sejam vestígios de pensamentos que se
tornaram quimeras, juntamente com todo o que há em sua imaginação.
E à medida que esqueceram essas coisas imaginadas e esses sonhos, os
vestígios de pensamentos desconexos que restaram lhes parecem um
novo pensamento e algo vindo de fora. Eu as compararia a um ho
mem que, havendo tido em sua casa mil animais e tendo sido todos
retirados, exceto um somente, aquele homem, em companhia apenas
deste animal, acredita que acaba de entrar em casa com este animal — o
que não é verdade! Ao contrário, este é aquele que não saiu.
Este é, entre todos, o terreno mais perigoso, e quantos aqui morre
ram, entre aqueles que se consideravam sábios! Por esse motivo, en
contram-se pessoas cujos pensamentos conceberam em seus sonhos,
mas acredita que a visão acontecida durante o sono nada mais é do que
a consideração que fizeram ou que ouviram no estado de vigília. Por
isso, não se deve outorgar crédito àqueles que não tenham uma facul
dade racional perfeita ou que não tenham alcançado alto nível especu
lativo, pois somente quem a logrou é capaz de extrair conhecimentos
ulteriores quando o Intelecto Divino se infunde sobre ele, e este é o Pro
feta autêntico. O que expressa o texto: “E venhamos11 a ter um cora
ção sábio” (Salmo 90:12), é que o verdadeiro Profeta é aquele que tem
um coração sábio. Também isto você precisa e deve saber.
11
“E venhamos”: curiosamente, é utilizada a mesma palavra para este verbo que,
em hebraico, é usada para se referir a “Profeta” — N a ví(NT).
SOBRE A
PROFECIA
2.2.%
CAPÍTULO
39
M O ISÉ S FOI O P R O FE T A M A IS A P R O P R IA D O P A R A R E C E B E R E
P R O M U L G A R A LEI IM U T Á V E L . OS P R O FE T A S Q U E O SU C ED E
R A M A P E N A S A E N S IN A R A M E E X P L IC A R A M
Após explicarmos o bastante sobre Profecia, conhecermos a sua ver
dade e demonstrarmos em que a Profecia de M oshé Kabênu se distin
gue da dos demais, afirmamos que esta percepção, por si só, obriga-
nos ã leitura da Bíblia. Não houve, desde Adão até Moisés (A Paz
esteja sobre ele!), algo semelhante em nenhum Profeta conhecido.
Dessa forma, é princípio fundamental de nossa Lei que jamais haverá
outro. Por isso, é nossa crença que nunca houve nem haverá alguma
outra Lei senão a de Moisés. Eis aqui a explicação, conforme expresso
nos Livros dos Profetas e transmitido pela Kabalá (Tradição).12 E um
fato que, entre todos os Profetas que precederam a M oshé JLabênu,
como os patriarcas Sem, Éver, Noé, Matusalém e Enoque, jamais al
gum disse a um grupo de homens: “Deus me enviou a vocês e orde
nou que lhes dissessem isso ou aquilo, proíbe-os de fazer tal ou qual
coisa e os prescreve esta outra”. Isto é coisa que não se encontrará em
12
Kabalá-, aqui, no sentido estrito de tradição passada de geração em geração, e
não no conhecido sentido esotérico (NT).
2 .2 .4
°
GUIA
d o s
p e r p l e x o s
qualquer escrito da Torá e não haverá sobre isso qualquer história ver
dadeira, ainda que, como explicamos, estes patriarcas receberam a Pro
fecia divina. E quem recebeu uma emanação maior, como Abrahão,
reunia os homens e os dirigia pelo caminho do estudo e na direção reta
à verdade por ele recebida. Assim, Abrahão ensinava as pessoas, de-
monstrando-lhes, por meio de provas especulativas, que no mundo há
somente um Deus e Ele criou tudo quanto existe fora dele; portanto,
não se deve idolatrar as formas celestes, nem coisa alguma criada. In-
culcava isto nos homens, atraindo-os com belas palavras e benevolên
cia, mas jamais lhes disse: “Deus me enviou até vocês e me mandou ou
proibiu (isto ou aquilo)”. Quando lhe foi ordenada a circuncisão — a
ele, a seus filhos e servos — circuncidou-os, mas não conclamou ou
tros, por meio de um apelo profético, a fazerem o mesmo. Fixe-se no
texto bíblico: “Porque o conheci (...)” (Gênesis 18:19). Está claro que
somente se cumpria uma mitsvá (mandamento): Isaac, Jacob, Levi, Kehát
e Amram fazem um apelo semelhante aos homens. Do mesmo modo,
nota-se que os Sábios, com relação aos Profetas anteriores a Moisés,
referem-se a: “o tribunal de Ever”, “o [tribunal] de Matusalém”, “a
Academia de Matusalém”, porque todos eram Profetas que instruíam
as pessoas por meio de comentaristas, professores e guias, mas nunca
se afirmava: “Disse-me YHVH: Fala aos descendentes de Fulano”.
Assim foi antes de Moisés. Quanto a este, já se sabe o que foi dito
dele e o que o povo disse dele “(...) Neste dia vimos que Deus fala com
o homem (...)” (Deuteronômio 5:21). Com respeito a todos os Profe
tas posteriores a Moisés, já se sabe como se expressam em todas as
suas relações com os homens: apresentam-se como predicadores, con
vidando-os a observar a Lei de Moisés, ameaçando aqueles que se
mostram rebeldes e formulando promessas aos que se esforcem em
segui-la. Acreditamos que sempre será assim, conforme o afirmado:
“Não está nos Céus (...)” (Deuteronômio 30:12); “(...) a nós e a nossos
filhos, para sempre (...)” (Deuteronômio 29:28). E assim deve ser, por
que quando uma coisa se apresenta como a mais perfeita de sua espé
cie, qualquer outra da mesma espécie pode, quando muito, resultar
inferior em perfeição — ora por excesso, ora por falta. Se uma mesma
medida implica a máxima igualdade possível de uma espécie, qualquer
outro ser dessa espécie que se desviasse dessa medida pecaria por ex
cesso ou por falta. O mesmo ocorre com esta Lei, declarada igual (eqüi-
tativa, justa), ao se dizer: “estatutos e mandamentos justos” (Deutero
nômio 4:8), pois, como sabe, Tsadikim (Justos) significa iguais ou eqüitativos.
SOBRE
A
PROFECIA
São práticas (espirituais) em que não há carência nem excesso, como
ocorre na prática dos ermitões nas montanhas, que se privam da carne
e do vinho e de diversas necessidades do corpo, bem como do movi
mento prático. Também não há vício que conduza à voracidade ou à
leviandade, que minam a perfeição do homem em sua conduta e nos
estudos, como é o caso das prescrições dos povos andgos.
Quando nos referimos, neste Tratado, aos motivos passíveis de se
alegar para as M itsvót (Mandamentos), a sua igualdade e sabedoria tor-
nar-se-ão totalmente claras para você, por isso: “A Lei de YHVH é
perfeita” (Salmos 19:8). Porém, quem acredita que esta imponha car
gas grandes e pesadas, causadoras de angústias, incorre em um erro de
julgamento. Eu demonstrarei que, para as pessoas íntegras, seus man
damentos são fáceis, na verdade. Daí a declaração: “Qual é a coisa que
pede YHVH, teu Deus, de ti? (...)” (Deuteronômio 10:12); e também:
“Porventura sou Eu para Israel um deserto? (...)” (Jeremias 2:31). Tudo
isto se refere aos íntegros. Pois bem, quanto aos ímpios, violentos e
despóticos, para estes, o mais difícil e nocivo é considerar que haja um
juiz que evite o despotismo, assim como, para os dominados por pai
xões não nobres, o pior é a repressão à sua conduta de entrega desen
freada à lascívia, pois, agindo assim, atraem para si o castigo da Lei.
Assim, todo homem vicioso considera uma carga pesada a restrição ao
mal com que se compraz, como conseqüência de sua depravação mo
ral. Não se deve medir, portanto, a facilidade ou dificuldade da Lei
com base na paixão do homem malvado, vil e de costumes corrompi
dos, mas deve-se, sim, avaliá-la conforme a conduta do homem ínte
gro, pois a finalidade da Lei é de que todos sejam como este. Denomi
nemos somente a esta Lei de L ei Divina. Todo o resto, externo a ela —
como os governantes nacionais, as leis dos gregos e as loucuras dos
Sabianos e seus semelhantes — é obra de políticos, não de Profetas,
como já expliquei diversas vezes.
SOBRE A
PROFECIA
Q_±J
CAPÍTULO 4 0
O TESTE DA PROFECIA VERDADEIRA
Proclama-se claramente que o ser humano é político13 por natureza, e
esta condição lhe impõe viver em comunidade; não é como os demais
animais, cuja reunião em comunidade não representa uma necessida
de. Devido à complexidade da nossa espécie — pois, como você sabe, é
a última —seus indivíduos apresentam diferenças tão pronunciadas
que não se encontrarão dois concordantes em um costume qualquer,
como tampouco se vêem rostos iguais. A causa se fundamenta na exis
tência de diferentes seres complexos que origina uma distinção nas
matérias, como também nos acidentes anexos à forma, pois cada uma
das formas naturais tem seus acidentes peculiares que a acompanham,
à parte da matéria. Uma variação tão grande entre indivíduos não ocorre
em qualquer outra espécie animal — ao contrário, a diferença individual
em cada uma delas é pouco definida, enquanto , na humana, é possível
se encontrar duas pessoas tão distintas em qualidades morais que se
diria que pertencem a espécies diferentes. Assim, poderia ocorrer o
caso de um indivíduo tão impiedoso que degolasse seu filhinho no
13
Político: em hebraico, mediní. Nas versões respectivamente em língua inglesa e
espanhola, foi traduzido como ser social (NT).
22.8
O
GUIA
DOS
PERPLEXOS
auge da cólera, enquanto outro, por sua sensibilidade delicada, se im
pressionaria diante da idéia de matar um mosquito ou um réptil, o
mesmo se aplica à maioria das eventuais características.
Portanto, posto que a natureza humana implica esta variedade de
indivíduos e a natureza política lhe é inerente, por sua própria índole,
segue-se que é absolutamente impossível que a sociedade seja perfeita
sem um guia que coordene os esforços individuais, suprindo o escasso
e moderando o excessivo E que ele possa prescrever ações e normas
éticas obrigatórias a todos, conforme um mesmo modelo, de modo
que a variedade natural fique atenuada mediante uma grande harmonia
convencionada e a sociedade se mantenha em ordem.
Por isso insisto que a Lei, ainda que não seja natural, não é total
mente estranha à questão natural. Ela vem da Sabedoria Divina que,
para conservar a nossa espécie, cuja existência pré-ordenou, fez com
que seus indivíduos tivessem uma faculdade de governar. Alguns foram
inspirados com teorias de legislação, como os Profetas e os legisla
dores; outros possuem o poder de impor o cumprimento da lei pres
crita por eles, tornando-a realidade: são os reis que adotam as leis
dos legisladores e legisladores cujo desejo é ser Profetas e aceitam
total ou parcialmente os ensinamentos dos Profetas. Quando acei
tam uma parte e deixam a outra é porque lhes é mais conveniente, ou
porque, por ambição, buscam convencer as pessoas de que recebe
ram estas coisas por meio de Revelação e não porque as tomaram de
outro. Pois há pessoas que, aficcionadas por determinada perfeição
que lhes pareça excelente, sentem prazer e se empenham para que as
pessoas as imaginem dotadas da mesma, ainda que conscientes de
que carecem totalmente dela — como quando se observa alguém se
pavoneando com um poema alheio, cuja autoria atribui a si próprio;
o que igualmente ocorre com algumas obras de sábios e obras de
conhecimentos diversos, quando este indivíduo invejoso e preguiço
so, que arrebata algo inventado por outro, alega ser o autor de tais
obras. O mesmo acontece com esta perfeição Profética: encontra
mos sujeitos pretensamente Profetas, que proclamaram haver rece
bido uma Profecia e declararam coisas que jamais foram profetiza
das, como é o caso de Tsidkiá.ben Keneána (I Reis 22:11-24). E há
pessoas que presunçosamente se atribuíram a capacidade da Profecia
e anunciaram coisas que, sem dúvida, foram ditas por Deus, ou seja,
fruto de Inspiração D ivina, mas não a eles, como é o caso de Chananía
ben Azur (Jeremias 28:1-5).
SOBRE A
PROFECIA
22Ç)
Eu lhe explicarei tudo isso, ainda que seja manifesto e bastante cla
ro, para que nada fique na penumbra, e que você tenha um critério para
distinguir entre os regimes de leis convencionadas, os da Lei Divina e
os emanados dos homens que usurpam as palavras dos Profetas, apro
priando-se delas com petulância. Quanto às leis cujos autores declara
ram expressamente como produtos de sua reflexão, não há necessidade
de argumentação alguma, pois, se são resultados de reflexão, não neces
sitam de prova. Quero somente lhe informar acerca dos regimes alega
dos como proféticos, pois há os verdadeiramente proféticos, ou seja,
divinos, há os parcialmente legislativos e parcialmente plagiados.
Conseqüentemente, caso ocorra o caso de um governo cuja única
finalidade e propósito do autor que calculou seus efeitos não seja outra
senão ordenar o Estado e seus assuntos, evitar a injustiça e a violência
- sem insistir para nada em coisas teóricas, nem parar para pensar raci
onalmente, nem se preocupar com opiniões, sejam sãs ou mórbidas -
senão que, pelo contrário, seu único objetivo seja quanto às relações
dos homens entre si e a conseqüência de certa felicidade presumível,
de acordo com o legislador — segundo este pressuposto, digo, você
saberá que este governo é puramente legislativo, e seu autor pertence,
como fica dito, à terceira casta, ou seja, à daqueles que têm somente a
perfeição da faculdade imaginativa.
Caso se trate de um governo cujas disposições todas apontam para
a melhora dos interesses materiais acima mencionados, assim como
também da fé, ao dirigir suas intenções no sentido de inculcar princípi
os verdadeiros acerca da Divindade e dos Anjos, com o propósito de
fazer o homem sábio, inteligente e cordial, para que conheça toda a
realidade em sua condição autêntica, então você saberá que este é um
governo que emana de Deus e que esta Lei é divina.
Ainda lhe faltará verificar se quem a proclama é um homem ínte
gro, a quem a verdade lhe foi revelada por Profecia, ou um sujeito que
se vangloria destas revelações e roubou-as de outros. Como compro
vação se impõe um exame da sua integridade: pesquisar e conhecer
suas atividades e observar sua conduta. O melhor critério será sua re
pulsa e desprezo aos prazeres físicos: é a primeira atitude nos homens
de ciência, quanto mais dos Profetas! Particularmente com relação
àqueles prazeres dos sentidos que, como lembrou Aristóteles, consti
tuem-se em vergonha para nós. Isso tudo Deus transmitiu através da
Profecia, para esclarecer a verdade aos que a buscam: que não se desviem
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
e não errem,14Faz bem ver Sedequias (Tsidquiá ben Maássêià) e Acab (Acháv
ben Koláiã), que se outorgaram a Profecia e atraíram seguidores, procla
mando mensagens reveladas a outros, e se entregaram à lascívia a pon
to de cometerem adultério com as mulheres de seus amigos e partidá
rios, até que Deus os desmascarou e foram queimados pelo Rei da
Babilônia, como explica claramente Jeremias: “E será motivada neles
uma maldição sobre todo o Exílio de Judá na Babilônia, qual seja: Faça
em seu nome YH VH o mesmo que com Sedequias e com Acab, aos
quais o Rei da Babilônia queimou no fogo, porque fizeram iniqüida-
des em Israel, cometeram adultério com as mulheres de seus próxi
mos e falaram palavras em Meu nome que eram mentiras, que não os
ordenei dizer. Eu sei e o atesto — Oráculo de YHVH” (Jeremias 29:22-23).
Estude isso com vontade!
14
Maimônides se utiliza de um jogo de palavras em hebraico, ao colocar lado a
lado duas palavras foneticamente idênticas — Ló Itú [desviem], ve-ló Itú [errem] —
cuja única diferença é a troca da letra hebraica Táv da primeira pela letra he
braica Têt na segunda (NT).
SOBRE A
PROFECIA
CAPÍTULO
41
O QUE SE ENTENDE POR VISÁO PROFÉTICA: OS QUATRO MO
DOS BÍBLICOS
Desnecessário explicar o que é o Sonho. Quanto à Visão, como em
Números 12:6: “Eu me revelei a ele em Visão”, conhecida sob a deno
minação de M arêN eviá (Visão Profética), também chamada na Bíblia de
Yad YHVH (Mão de Deus) e M acha^ê15 (Drama, Cena), a Visão é um
estado de agitação e terror que se apodera do Profeta, como se afirma
de Daniel nestas palavras: “E vi esta grande Visão. Minhas forças me
deixaram, a cor do meu rosto fugiu, fiquei desmaiado e sem vigor.” E
prossegue: “Caí com o rosto em terra, adormecido.” (Daniel 10:8-9).
Depois, quando o anjo lhe fala e lhe faz levantar, é no estado de Visão
Profética, em que os sentidos se paralisam e a emanação se derrama
sobre a faculdade racional, e dela para a imaginativa, de tal maneira
que esta se aperfeiçoa e entra em atividade. As vezes, a Profecia se
inicia com uma visão Profética: há uma agitação e emoção intensas,
devido a toda a atividade da faculdade imaginativa, e, depois disso, a
Profecia segue adiante, como ocorreu a Abrão16 antes da Profecia:
1516Veja II Reis 3:15; Ezequiel 1:3 e 3:22; 37:1 e 40:1.
Refere-se a Abrão , e não Abrahão, pois foi antes de ter se selado o pacto entre
ele e Deus, quando foi acrescentada uma letra Hê ao seu nome, transliterada
como hã (NT).
23 2 -
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
“(...) manifestou-se a palavra de YHVH a Abrão na visão (...) (Gênesis
15:1) e no final: “(...) um sono pesado caiu sobre Abrão (...)” (Gênesis
15:12) e: “E disse a Abrão (...)” (Gênesis 15:13).
Saiba que, quando os Profetas falam do fato de terem recebido
uma Profecia, dizem que receberam-na de um anjo ou que Deus se
comunicou com eles, embora tenha sido através de um anjo, sem dú
vida. Os Sábios também escreveram sobre isso nestes termos: “CE
disse-lhe YHVH (...)’ (Gênesis 25:23) através de um anjo {(Talmud —
Bereshit Rabá).” Perceba que todas as vezes que a Bíblia relata que
Deus ou um anjo falou com uma pessoa, isto ocorreu em um Sonho
ou em uma Visão Profética.
O relato sobre a missão que cabe aos Profetas, de acordo com o
que é contado nos Livros dos Profetas, é feito de quatro modos:
Primeiro Modo: Quando o Profeta afirma taxativamente que a pala
vra veio de um anjo em Sonho ou em Visão.
Segundo Modo: Quando o Profeta narra as palavras do anjo, sem escla
recer se foi um Sonho ou Visão, pois ele confia no que já é conhecido — só
há Profecia por uma destas duas maneiras: “Em Visão Eu me revelarei
a ele, e por Sonho Lhe falarei.” (Números 12:6).
Terceiro Modo: Sem se referir de modo algum a um anjo, o Profeta
atribui a palavra a Deus (Exaltado Seja!) que teria se dirigido a ele em
Pessoa, mas menciona que esta palavra veio a ele em Visão ou Sonho.
Q uarto Modo: Quando o Profeta assegura simplesmente que Deus
lhe falou ou lhe ordenou: Faça isto ou Diga isto, sem esclarecer se foi por
mediação de um anjo ou de um sonho, fiando-se no conhecido e esta
belecido: que nenhuma Profecia nem Revelação ocorre senão em So
nho ou Visão e por intermédio de um anjo.
Como exemplo do Primeiro Modo, mencionamos: “E disse-me um
anjo de Deus no sonho (...)” (Gênesis 31:11); “E falou Deus a Israel
em visões da noite (...)” (Gênesis 46:2); “ E veio Deus a Bilám (...)”
(Números 22:9-12). Com respeito ao Segundo Modo, cabe citar os se
guintes exemplos: “E disse Deus a Jacob: ‘Levanta-te, sobe a Bet-El
(...)” (Gênesis 35:1); “E disse-lhe Deus: Teu nome é Jacob (...).” (Gê
nesis 35:10); “E chamou-o Y H V H um anjo dos Céus e disse (...)”
(Gênesis 22:11); “E chamou Y H V H um anjo dos Céus a Abrahão,
pela segunda vez (...)” (Gênesis 22:15); “E falou Deus a Noé (...)”
(Gênesis 8:15). Temos, como exemplo do Terceiro Modo, a seguinte
passagem: “(...) manifestou-se a palavra de Y H V H a Abrão, na visão
(...)” (Gênesis 15:1). Para o Ouarto Modo, encontramos as seguintes:
SOBRE A
PROFECIA
“E disse YH VH a Abrão (...)” (Gênesis 12:1); “E disse YH VH a Ja-
cob: Volta à terra de teus pais (...)” (Gênesis 31:3); “E disse YH VH a
Josué” (Josué 3:7); “E disse YHVH a Gideão (Guidón) ” (Juizes 7:2).
E assim geralmente se expressam os Profetas: “Disse-me YH VH ”
(Isaías 8:1); “Foi-me dirigida a palavra de Y H VH , dizendo” (Ezequi-
el 24:1); “A palavra de YH VH chegara” (II Samuel 24:11 e I Reis
18:1); “E lhe dirigiu YH VH a sua palavra” (I Reis 19:9); “Foi palavra
de Y H V H ” (Ezequiel 1:3); “Começou o falar YH VH a Oséias” (Oséi
as 1:2); “Foi sobre mim a Mão de Y H V H ” (Ezequiel 37:1 e 40:1). Há
muitos exemplos deste teor.
Tudo o que se apresenta em cada um destes quatro modos é Profe
cia, e quem a emite é um Profeta. Pois bem, quando se diz: “Deus veio
a Fulano em sonho noturno”, neste caso não há Profecia em absoluto,
nem esta pessoa é um Profeta; somente se indica que lhe chegou um
aviso da parte de Deus, e nos adverte seguidamente que aconteceu por
meio de um sonho. Com efeito, assim como Deus põe em movimento
uma determinada pessoa para salvar a outra ou para destruí-la, do
mesmo modo suscita, no sonho noturno, certas coisas que deseja rea
lizar. Não duvidamos que Labão ÇLaván), o Arameu, era um malvado
completo, adorador de práticas gentias, e sobre Abiméleq (Avimêlech),
apesar de ser um homem bom para o seu povo, o Patriarca Abrahão
afirmou de sua cidade e seu reino: “(...) talvez não haja temor de Deus
neste lugar (...)” (Gênesis 20:11). Contudo, de um e de outro, Labão e
Abiméleq, se disse, respectivamente: “E veio (a palavra de) Deus a
Abiméleq, no sonho da noite (...)” (Gênesis 20:3), e igualmente com
respeito a Labão: “E veio Deus a Labão, o Arameu, no sonho da noite
(...)” (Gênesis 31:24). Veja isso! Reflita sobre a diferença entre “Veio
Deus” e “Falou Deus”, assim como entre as palavras “em um sonho
noturno” e “em visão noturna”, pois se afirma de Jacob: “E falou
Deus a Israel em visões da noite (...)” (Gênesis 46:2), e para Labão e
Abiméleq: “Deus veio (...) em sonho da noite (...)” (Gênesis 20:3). Por
isso, Onkelos traduz: “E veio palavra da parte de YH VH , e não falou
para estes dois: E Deus se revelou”.
Também se afirmou: “YHVH falou a Fulano”. Este fulano não re
cebeu qualquer visão que não fosse por intermediação de um Profeta,
como nesta passagem: “(...) E foi consultar a YHVH (...)” (Gênesis
25:22), e se esclarece: “na Academia de Ever”. E Deus lhe respondeu,
conforme está escrito: “E disse-lhe YHVH (...)” (Gênesis 25:23). Con
sidere, portanto, estas possibilidades: caso seja verdade que Ever é o
2-34
°
g u ia
d o s
p e rp le x o s
malách {anjo ou mensageiro), chamado tantas vezes de anjo pelo Profeta,
como será explicado; se indica o anjo que veio a Éver naquela Profecia;
ou talvez o objetivo seja esclarecer que, em qualquer lugar onde haja
uma mensagem atribuída simplesmente a Deus, entenda-se através de
um anjo, aplicável a todos os Profetas, como explicamos.
SOBRE A
PROFECIA
CAPÍTULO 4 2
PROFETAS RECEBERAM COMUNICAÇÃO DIRETA APENAS EM
SONHOS OU VISÕES
Como já explicamos, sempre que se menciona a aparição de um anjo e
uma mensagem sua, trata-se de uma Visão ou de um Sonho Profético,
tenha-se ou não declarado isto expressamente. Pouco importa se al
guém afirmou que notou que era um anjo imediatamente ou que este
lhe pareceu primeiramente um ser humano e depois comprovou-se
que se tratava de um anjo. Sempre, que, ao final, você averiguar que
quem foi visto e falou era um anjo, acreditará por certo que, desde o
princípio, era uma Visão ou Sonho. Em ambos os casos, ora o Profeta
percebe Deus falando com ele, como veremos, e ora é um anjo, ou
melhor: ele ouve sem ver quem lhe fala ou contempla um ser humano
que lhe dirige a palavra, e depois verifica que este era um anjo.
Este é um princípio sumamente importante, professado pelos Sá
bios. O maior dos maiores, Rav Chiá Há-Gadol (Rabi Chiá, O Grande),
ao interpretar a seguinte passagem da Torá: “ E apareceu-lhe YHVH
junto a Elonê [planícies de] Mamrê (...)” (Gênesis 18:1), afirma
que,inicialmente, informa-se de maneira sucinta que Deus apareceu a
Abrão e então passa-se a explicar em qual forma Ele surgiu, esclare
cendo que Abrão primeiramente viu três pessoas, e correu. Eles lhe
falaram e ele lhes respondeu. O autor desta interpretação assegura que
23 6
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
as palavras de Abrão: “ (...) Meu Senhor, se tenho achado graça em
teus olhos, rogo-te que não passes longe de teu servo” (Gênesis 18:3)
guardam uma referência ao que Abrão, em Visão Profética, disse a um
dos homens, como pode se constatar na frase: “Falou ao maior entre
eles”1'. E preciso compreender e se aprofundar nisto, porque é o se
gredo entre os segredos.
Ocorre-me, também que, na história de Jacob, quando se diz: “(...)
e lutou um homem com ele (...)” (Gênesis 32:35), trata-se igualmente
de uma Profecia, posto que, ao final (Gênesis 32:29 e ss.), afirma-se
claramente que era um anjo. O mesmo ocorre na história de Abrahão,
em que se declara no princípio, resumidamente, que “Deus lhe apare
ceu (...)” e, em seguida, explica-se como isto sucedeu. Do mesmo modo,
com respeito ajacob, afirma-se: “(...) e encontraram-no anjos de Deus”
(Gênesis 32:2), e narra-se o ocorrido desde então até que se encontra
ram,, conta-se que enviou mensageiros a Esaú e, depois de fazer isto e
aquilo, “E ficou Jacob só (...)” (Gênesis 32:25), porque aí se trata des
tes mesmos anjos de Deus, de quem se disse em princípio: “saíram-lhe
ao encontro anjos de Deus”. Esta luta e o diálogo se desenvolvem em
Visão Profética. Analogamente, todo o ocorrido com Bilám no caminho
(Números 22:22 e ss.), juntamente com o dito pela jumenta, foi em
Visão Profética, posto que, ao final, afirma-se taxativamente (Números
22:32) que “E disse-lhe o anjo de Y H V H (...)”. Igualmente, a propósito
da visão de Josué: “Alçou os olhos e viu que estava um homem diante
dele” (Josué 5:13), acredito que se trata de Visão Profética, dada a conti
nuação claramente especificada: “Sou um ministro do exército de
Y H V H ” (Josué 5:14-15). Pois bem, com respeito a Juizes 2:1-4; “Subiu
um anjo de Y H V H do Guilgál (...) e quando o anjo de Y H V H disse estas
palavras a todos os filhos de Israel (...)” (Juizes 2:1-4), os Sábios afir
mam que o anjo de Deus em questão é Pinchas, nestes termos: “E
Pinchas quem, ao descer sobre ele a Divina Majestade, assemelhava-se
a um anjo de Deus”.
Já esclarecemos que o termo malách, como anjo, é polivalente, e
que o Profeta também é chamado de anjo, como nos textos seguin
tes: “(...) e enviou um anjo e nos tirou do Egito” (Números 20:16);
“Então Ageu, o anjo/enviado de Y H V H , falou a mando de Y H V H ”
(Ageu 1:13); “Mas eles fizeram escárnio dos anjos/mensageiros de
17
Talmud, Gênesis R abá 128.
SOBRE A
PROFECIA
237
Deus” (II Crônicas 36:16). Assim como quando Daniel disse: “E
aquele homem, Gabriel, a quem antes vi na visão voando rapidamen
te, chegou a mim como a hora das orações vespertinas” (Daniel 9:21).
Deste modo, tudo isso sucede em Visão Profética, segundo se depre
ende de Números 12:6: “(...) em visão, a ele Me faço conhecer ou no
sonho falo com ele”. Das referências citadas, separe o que permanece
do que não foi mencionado.
Do declarado anteriormente acerca da necessidade de preparação
para a Profecia18 e sobre o uso multifacetado do termo malách, tenha
claro que Hagár, a Egípcia, não era profetisa, nem Manué (Manôach) e
sua mulher eram Profetas (Juizes 13:2 e ss.),19 pois a palavra que perce
beram ou que chegou a seu conhecimento era algo parecido com a Bát
K ó l(Eco), de que falam os Sábios com freqüência, e designa uma situa
ção externa à pessoa. O que induz a erro a respeito disso é o múltiplo
uso do termo, mas é precisamente esta multiplicidade de significados
que resolve a maioria das dificuldades atinentes à Torá.
Perceba que o texto: “E achou-a o anjo de YHVH sobre a fonte (...)”
(Gênesis 16:7) é similar àquele sobre José, em que se afirma: “E en-
controu-o um homem, e eis que [José] estava perdido no campo (...)”
(Gênesis 37:15). Segundo todas as Midrashót, trata-se de um anjo.
18
19
Veja supra, cap. 32, 3a opinião (Maeso).
Veja Gênesis 17:7 e s. e 21:17. Idem, Juizes 12:3-11 (Maeso).
SOBRE A
PROFECIA
CAPÍTULO 4 3
SOBRE AS PARÁBOLAS DOS PROFETAS
Já expusemos, em obras anteriores [em M isbnê Torá, que os Profetas
às vezes se expressam por parábolas, e a razão para isso é que há
ocasiões em que o Profeta percebe uma coisa nesta forma, seguida da
explicação desta mesma visão. E como alguém que tem um sonho,
nele imagina que está acordado e relata um sonho a outro, o qual lhe
explica o sentido — mas foi todo um sonho. E o que se denomina
“um sonho interpretado dentro de um sonho”. Em outros casos
aprendemos o significado do sonho depois de acordarmos do mes
mo. De modo semelhante, algumas parábolas Proféticas se esclare
cem na própria Visão Profética, como aparece claramente em Zacarias,
após a apresentação de algumas parábolas: “O anjo que falava comi
go veio e me despertou como a um homem que desperta de seu
sonho, e me disse: O que vês? (...)” (Zacarias 4:1-2). Então a parábola
é explicada (Zacarias 4:6 e ss.).
O mesmo se encontra no livro de Daniel, quando “Daniel teve um
sonho e viu visões de sua cabeça enquanto estava em sua cama” (Da
niel 7:1) e, após o relato de todas as parábolas e seu incômodo por
ignorar o significado das mesmas, pergunta ao anjo, que lhe revela o
sentido nesta mesma visão: “Aproximei-me de um dos assistentes e
lhe pedi que me dissesse a verdade acerca de todo isso. Ele me falou e
2 .4 0
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
me declarou a interpretação” (Daniel 7:16). Depois de afirmar que
havia sido um sonho, chamou a este de Visão porque, conforme ele
assegurou, um anjo lhe explicou em sonho profético. Por isso acres
centa: “Eu, Daniel, tive uma Visão, depois daquela tida anteriormente”
(Daniel 8:1). Isto está claro, porque Cha^ón deriva da raiz verbal Cha^á,
como M arê de “Raá” (ver), de modo que não existe diferença entre
Mará, Macha^ê e Cha^ón. Aqui não há um terceiro caminho, mas so
mente os dois caminhos indicados pela Torá: “(...) em visão, a ele Me
faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números 12:6); embora
haja graus, como será explicado. Não obstante, nas parábolas Proféti
cas há muitas cujo sentido não se explica na visão Profética, se bem
que o Profeta reconheça a intenção ao despertar, como é o caso dos
cajados que Zacarias tomou em Visão Profética (Zacarias 11:7 e ss.).
Deve-se saber que, assim como os Profetas vêem coisas que, para
exemplificar certas idéias, aparecem-lhes como parábolas — como as
luminárias (Zacarias 4:2), os cavalos e as montanhas de Zacarias (Zacarias
6:1-7); a M eguihr0 de Ezequiel (Ezequiel 2:9); o muro construído no
nível, visto por Amós (Amós 7:7); os animais observados por Daniel
(Daniel 7 e 8); a panela fervendo vista por Jeremias (1:13) e outras pará
bolas semelhantes —, do mesmo modo eles vêem coisas que tendem a
explicar por uma palavra que lembra, por sua etimologia ou pelo uso
polivalente do nome, a designação do objeto percebido, de modo que
a ação da faculdade imaginativa consiste, até certo ponto, em apresen
tar uma coisa designada por um termo polivalente, em que uma das
acepções leva a outra, o que é uma das características da parábola.
Assim, quando Jeremias afirma ver M aquêl Shakêd, uma “vara de amên
doa”, sua intenção é uma dedução do uso múltiplo do termo Shakêd,
já que acrescenta: “pois eu persistirei (shokêd) (...)” (Jeremias 1:11-12).
Não se trata, portanto, de vara nem de amêndoa. Do mesmo modo,
quando Amós vê Klúv Káits, um “cesto (de frutas) de verão”, é para
deduzir a medida do tempo, porquanto afirma: “e veio o fim (k êts )”
(Amós 8:2). Todavia, é mais surpreendente quando se presta atenção
a um determinado termo cujas letras correspondem a outro, se a ordem
das mesmas for alterada, ainda que não exista entre ambos nenhuma
relação etimológica ou semântica em comum, como nas parábolas de
20
Meguilá (hebraico): livro formado por folhas de pergaminho, enroladas em vol
ta de um cilindro de madeira, que guarda um relato específico (NT).
SOBRE A
PROFECIA
Z 4 I
Zacarias, quando, em uma Visão Profética, ao empunhar os dois caja
dos para pastorear o gado, dando a um o nome de N ôam (Graça ou
Favor) e a outro o de Chovlím (Destruidores). Nesta parábola insinua-
se que a nação, no início, tinha a graça de Deus e era Ele quem a guiava
e dirigia, e ela se regozijava e tinha prazer em Obedecê-lo. Deus a
propiciava e a amava, segundo se declara: “A YH VH glorificaste hoje
(...)” (Deuteronômio 26:17) “E YHVH te separou hoje para ser para
Ele um povo amado (...)” (Deuteronômio 26:18), quando a nação era
conduzida e regida por Moisés e os Profetas que o sucederam.Porém,
depois ela mudou de atitude, até sentir aversão pela obediência a
Deus, de tal modo que Ele também experimentou o mesmo com
respeito a ela e trocou seus chefes para destruidores, tais como Jero-
boão e Menashê. Este é o sentido etimológico, porque Chovlím se
relaciona com M echablím Kramím (Destruidores de Vinhas) (Cânticos
2:15). Depois se deduz, igualmente, com respeito a Chovlím, que eram
renitentes à Lei e a Deus. Mas este sentido não pode ser derivado de
Chovlím senão mediante a transposição das letras (da raiz da palavra)
Chêt (Ch), Vêit (V) e Lámed (L), e, conseqüentemente, relaciona-se à
idéia de aversão e de abominação que encerra a parábola: “Então tomei
aversão ao rebanho, e também suas almas se enfastiaram ('b a ch a lá )21 de
mim” (Zacarias 11:8).
Com este método descobrem-se coisas muito estranhas — que tam
bém são segredos — empregadas na M erk aváf1 com as palavras Nechó-
shet (cobre), kelál (geral), réguel (pé ou pata), éguel (bezerro) e chashmál
(eletricidade).23 Graças a esta advertência, de acordo com essa perspec
tiva, outras palavras de diversas passagens lhe parecerão cristalinas , se
as examinar bem em cada lugar.
212223Em b a ch alá , a letra Bêt (B) é a mesma que a denominada 1 Vêt (V), com o
acréscimo, na primeira, de um ponto no meio da letra (NT).
Merkavá: Maimônides se refere ao Relato da Carruagem, de característica esotéri
ca (NT).
Em Ezequiel 1.
SOBRE
A
PROFECIA
2-43
CAPÍTULO 4 4
SOBRE OS DIFERENTES MODOS ATRAVÉS DOS QUAIS OS PRO
FETAS RECEBEM MENSAGENS DIVINAS
A Profecia somente será por Visão ou Sonho, como já explicamos mui
tas vezes e nunca deixaremos de insistir. Diremos agora que, quando
se sente inspirado, o Profeta percebe às vezes uma parábola, conforme
explanado reiteradamente. Em certas ocasiões, ele acredita contemplar
a Deus (Exaltado Seja!), como quando disse Isaías: “E ouvi a voz do
Eterno, que dizia: A quem enviarei e quem irá de nossa parte?” (Isaías
6: 8). Outras vezes ouve um anjo lhe falar, caso muito comum, como
nas seguintes passagens: “E disse-me um anjo de Deus (...)” (Gênesis
31:11); “E então me respondeu: Não sabes o que é isso? E o anjo que
me falava contestou (...)” (Zacarias 4:5); “Então ouvi falar a um dos
justos” (Daniel 8:13). Isto é tão freqüente que sobram exemplos. Há
ocasiões em que o Profeta dirige-se a um ser humano que lhe fala,
como em Ezequiel: “E um homem de aspecto como de cobre (...)
disse-me aquele homem: Homem! (..,)” (Ezequiel 40:3-4), depois de,
no início, dizer: “Esteve sobre mim a mão de YFIVH” (Ezequiel 40:1).
Há também certos casos em que o Profeta não nota em sua Visão
Profética figura alguma, mas somente ouve palavras, em Visão Profética,
dirigidas a ele, como disse Daniel (Daniel 8:13): “Ouvi uma voz de
homem que me gritava no meio de Ulai”, Elifaz: “E no silêncio ouvi
244
°
GUIA
d o s
p e r p l e x o s
uma voz” (Jó 4:16) e também Ezequiel: “E escutei o que me falava”
(Ezequiel 2:2), pois não se trata de haver alcançado a Visão Profética
[diretamente] por aquele que lhe falou, mas de haver testemunhado,
segundo afirma, o estranho fenômeno, e iniciado sua Profecia da
seguinte forma: “E escutei a quem me falava”.
Além da precedente exposição sobre a divisão, justificada pelos
textos, demonstrarei que as palavras, ouvidas pelo Profeta em Visão
Profética, são, ocasionalmente, por sua imaginação, apresentadas a ele
em termos enérgicos, como aquele que sonha ter ouvido um forte
trovão ou visto um terremoto ou um raio, pois se têm estes sonhos
muitas vezes.
Há ocasiões em que as palavras apreendidas na Visão Profética se
assemelham à fala corrente e familiar, de maneira que nada estranho se
faz ostensivo. É possível comprovar isso claramente na história do
Profeta Samuel, que, ao ser chamado por Deus (Exaltado Seja!) em um
momento de Inspiração Profética, acreditou que quem o chamara por
três vezes consecutivas fora E liH á-C ohên (o Sacerdote Eli). Depois, a
Bíblia explica, e se esclarece a razão disso baseava-se no fato de que o
Profeta Samuel ignorava que a palavra de Deus se manifestava aos
Profetas desta forma, já que este segredo, todavia, não lhe fora revela
do. Assim é explicado: “Samuel não conhecia, todavia, a Y H V H , pois
ainda não se lhe havia sido revelada a palavra de Y H V H ” (I Samuel
3:7). A intenção é indicar o desconhecimento do Profeta, pois não lhe
fora revelado, do modo como se manifestava a palavra de Deus. Quan
do se afirma que não conhecia a Y H V H , significa que não tivera ante
riormente alguma inspiração Profética, posto que se diz de quem pro
fetiza: “(...) em visão, a ele Me faço conhecer (...)” (Números 12:6). A
interpretação deste versículo, atendo-se ao sentido, é do seguinte teor:
Samuel não havia profetizado anteriormente e também não sabia que
assim era a Profecia. Conheça isso!
SOBRE
A
PROFECIA
2 .4 5
CAPÍTULO 4 5
OS DIVERSOS TIPOS DE PROFETAS: ONZE GRAUS DE PROFECIA
OU DE PERCEPÇÃO PROFÉTICA; SEU ESTUDO EM TRÊS GRUPOS
Esclarecido anteriormente o verdadeiro conceito da Profecia, con
forme a especulação exigida e o exposto em nossa Lei, procede enu
merar seus graus, em consonância com estes dois princípios. Ainda que
eu os denomine graus da Proferia, isto não implica que quem ocupe um
grau qualquer já seja um Profeta. Ao contrário, os dois primeiros não
são mais do que passos até ela, e quem alcançou um não figura, por
isso, entre os Profetas anteriormente mencionados. Se em certas ocasi
ões se lhe intitula Profeta, é somente devido à generalização e por se
colocar muito próximo dos Profetas.
Não se engane a propósito destes graus. Caso você leia nos Livros
dos Profetas que um Profeta recebeu inspiração conforme um dos
graus citados, e depois se declara, com referência a ele, que lhe ocorreu
uma revelação sob a forma de outro grau, é possível que este Profeta,
após uma inspiração configurada segundo alguns dos graus que vou
enumerar, tenha logo, em outro momento, uma inspiração distinta, de
grau inferior ao da primeira. Com efeito, assim como o Profeta não
exerce seu ministério durante toda a vida, sem interrupção — ao con
trário, após profetizar em determinado momento, a inspiração Proféti
ca o abandona em outros — também pode ocorrer que o faça em deter
minada circunstância conforme um grau superior e depois, em outra,
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
de acordo com um grau inferior ao primeiro. É possível também que
não alcance tal grau eminente mais do que uma única vez na sua vida e
depois seja privado dele, como também pode se conservar em um
grau inferior até cessar por completo sua inspiração, posto que o sopro
profético necessariamente abandona todos os Profetas mais ou menos
antes de sua morte. Como se disse de Jeremias, da seguinte forma:
“Quando a palavra de YHVH foi cessada na boca de Jeremias (...)”
(Esdras 1:1), e com respeito a David: “Estas são as últimas palavras de
David” (II Samuel 23:1). Conclusão idêntica é aplicável a todos.
Após estas palavras iniciais, passo aos graus nestes termos:
Vrimeiro Grau: O passo inicial para a Profecia é quando uma ajuda
divina acompanha o indivíduo, incitando-o e animando-o para uma
ação boa, grande e relevante, por exemplo, libertar a sociedade dos
malvados, salvar um grande homem virtuoso ou derramar o bem so
bre uma multidão de pessoas, de tal maneira que o sujeito sinta, dentro
de si mesmo, algo que o impulsione e lhe convide a amar. È o que se
chama “o Espírito de YHVH” e se diz, daquele que fica neste estado,
que “o Espírito de YHVH tenha se apossado dele”, “o Espírito de
YHVH o tenha revestido”, “o Espírito de YHVH descansa sobre ele”
ou que “YHVH está com ele”, e outras expressões análogas. Este foi o
grau alcançado por todos os Juizes de Israel, dos quais se afirmou, em
termos gerais: “Quando YHVH lhe suscitava um juiz, estava com ele e
o livrava da opressão” (Juizes 2:18), e assim foi com todos os M eshicbê
Jsraêl (Grandes Líderes de Israel). Particularmente, é constatado em
alguns Juizes e Reis: “O espírito de YHVH foi sobre Jefté (Juizes 11:29).
De Sansão se disse: “Apoderou-se dele o espírito de YHVH” (Juizes
14:19). E ainda: “E apoderou-se o Espírito de YHVH de Saul quando
este ouviu-lhe as palavras” (I Samuel 11:6). Igualmente de Amassá,
movido pelo Santíssimo para ajudar David: “Então Amassá, que era o
chefe dos trinta oficiais, se revestiu do Espírito de YHVH e exclamou: A
ti David e a teu povo, filho de Ishái, shalom (aqui estamos)!(...)” (I Crô
nicas 12:18). Considere que este tipo de força jamais faltou a M oshé
Kabênu, desde que alcançou a maturidade. Por isso se sentiu impulsio
nado a matar o egípcio e a rechaçar os dois adversários24, sem razão
aparente. E essa força era tão pujante nele que mesmo quando fugiu,
24
Provavelmente os dois escravos hebreus que discutiam entre si quando Moisés
se aproximou (NT).
SOBRE
A
PROFECIA
247
presa do temor, ao chegar a Midián, estrangeiro e amedrontado, teste
munhou uma injustiça, não pôde reprimir seu ímpeto, nem se sentiu
capaz de sufocá-lo, conforme se afirmou: “(...) e levantou-se Moisés,
salvou-as (...)” (Exodo 2:17). Igualmente, uma força semelhante se ra
dicava em David depois que f o i tintado com o óleo da unção, como está
escrito: “E desde aquele momento, daí em diante, veio sobre David o
Espírito de Y H V H ” (I Samuel 16:13), por isso se arrojou com valentia
contra o Leão, o Urso e o Filisteu. O mesmo Espírito de Y H V H jamais
inspirou a alguma dessas pessoas, mencionadas acima, a falar sobre
determinado assunto, mas tão somente encorajava a pessoa que o pos
suía a agir. Não o encorajava a fazer tudo, mas sim a socorrer o oprimi
do — quer fosse uma pessoa, uma comunidade ou alguém a ele condu
zido. Assim como nem todos aqueles que tiveram um sonho verdadeiro
são, por isso, Profetas, tampouco poder-se-ia afirmar de qualquer um,
assistido pelo auxílio divino para alcançar algum objetivo (como enri
quecer ou lograr um propósito pessoal), que o Espirito de YHVH o
acompanha, que YHVH esteja com de ou que tenha conseguido seu in
tento em virtude da Presença Divina. Diz-se isso somente de quem
realizou um bem enorme, ou o objetivo que se esperava dele, como o
atingido por José na casa do egípcio,23 origem dos importantes suces
sos acontecidos em seguida, como é notório.
Segundo Grau: E aquele em que um indivíduo sente como se algo
houvesse se infiltrado nele e houvesse uma força nova, que o impulsi
ona a falar de tal maneira que profira palavras de sabedoria, louvores
divinos, conselhos edificantes ou discursos relativos ao regime político
ou a questões divinas. Tudo isso em estado de vigília, quando os senti
dos funcionam como de costume. Diz-se, de tal homem, que fa la pelo
Espírito do Santíssimo. Por obra deste, David compôs os Salmos e Salo
mão, os Provérbios, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Do mes
mo modo foram escritos os livros de Daniel, Jó, Crônicas e os restan
tes Chetuvím (Escritos ou Hagiógrafos), pela virtude do Espírito de Deus,
razão pela qual são denominados Chetuvím, significando que são “Es
critos pelo Espírito do Santíssimo”. Afirma-se expressamente: 0 Eivro
de E ster fo i ditado pelo Espírito do Santíssimo, e, referindo-se a este, disse
25
Refere-se ao episódio de josé na casa de Potifar — im portante oficial na corte
do Faraó e chefe dos tabachim (responsáveis pela cozinha) — quando passou de
escravo a ministro da corte egípcia (NT).
2 .4 8
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
David: “O Espírito de YHVH fala por mim, e suas palavras estão sobre
a minha língua” (II Samuel 23:2), o que significa que foi Ele quem o
fez proferir estas palavras. Assim, o que aconteceu aos S etenta A nciãos é
pertinente à mesma categoria. Deles se afirma: “E quando sobre eles
pousou o Espírito [de YHVH], puseram-se a profetizar e não cessa
vam” (Números 11:25), e o mesmo de Eldál e Medád (Números 11:26).
Igualmente, todo Sumo Sacerdote consultado mediante os Urím e
Tumíffr6 pertence a este grau, ou seja, como afirmam os Sábios: “A
Divina Majestade descansa sobre Ele, e Ele fala pelo Espírito do San
tíssimo”. Também aqui se inscreve Jahziel, filho de Zacarias, do qual
se disse nas Crônicas: “Sobre ele veio o Espírito de YHVH no meio da
Assembléia, e disse: Ouvi, Todo Judá, e vós, os moradores de Jerusa
lém, e tu, Josafát: Assim disse YHVH (...)” (II Crônicas 20:14-15), assim
como Zacarias, filho de Choiadá, o Sacerdote, pois dele se disse: “O
Espírito de YHVH desceu sobre Zacarias, filho do sacerdote Choiadá
que, apresentando-se ante o povo, disse: Assim fala YH VH (...)” (II
Crônicas 24:20). Além deste, Azarias, filho de Oded, do qual se conta:
“Foi o Espírito de YH VH sobre Azarias, filho de Oded, e se apresen
tou diante de Gaza (...)” (II Crônicas 15:1-2). E assim, analogamente,
de quantos se assinale. Quanto a Bilám, enquanto era bom, pertencia a
esta categoria; é o indicam estas palavras: “E pôs YHVH a palavra na
boca de Bilám (...)” (Números 23:5), equivalentes afalava pelo Espírito de
YHVH, e neste sentido ele proclama de si mesmo: “Oráculo daquele
que ouve os ditos de YHVH (...)” (Números 24:4). E importante adver
tir que David, Salomão e Daniel pertencem a esta classe e não alcan
çam a de Isaías, Jeremias, o Profeta Natán, Ahias o Silonita (A chiá há-
Shiloni) e seus amigos, pois aqueles — refiro-me aos primeiros — somente
falavam e proferiam seus ditos por obra do Espírito de YHVH. Quanto
às palavras de David, “ter falado o Deus de Jacob, a Rocha de Israel me
tem dito” (II Samuel 23:3), deve-se entender no sentido de que Ele lhe
fizera promessas por mediação de um Profeta, seja Natán ou outro,
assim como nesta passagem: “E disse-lhe YHVH (...)” (Gênesis 25:
23), ou nesta outra: “E YHVH disse a Salomão: Pois que assim tens
amado e fizeste rota Minha Aliança” (I Reis 11:11), que indubitavel
mente encerra uma ameaça dirigida por Ele, por mediação de Ahías o
Silonita ou outro Profeta. Analogamente, quando se disse de Salomão:
26
Urím e Tumírn-, jogo de pedras oracular (NT).
SOBRE A
PROFECIA
X4Ç
“YHVH
se lhe apareceu em Guivón durante a noite, em sonhos, e lhe
disse (...)” (I Reis 3:5), não é Profecia perfeita, não como: “(...) mani
festou-se a palavra de YH VH a Abrão, na visão, dizendo (...)” (Gênesis
15:1) ou: “Deus falou a Israel em Visão noturna” (I Reis 46:2), nem
como nas Profecias de Isaías e Jeremias, porque ainda que, a cada um
deles, a revelação acontecera por meio de um sonho, nela mesma ha
via a indicação de que se tratava de uma Profecia e de que lhes ocorre
ra uma revelação. Por outro lado, no relato concernente a Salomão,
verifica-se ao final: “Despertou Salomão de seu sonho” (I Reis 3:15) e,
no segundo relato, assim se disse: “Apareceu YHVH pela segunda vez
a Salomão, como se lhe havia aparecido em Guivón” (I Reis 9:2), quan
do ficara claro de que se tratava de um sonho. E um grau inferior
àquele designado por: “(...) no sonho falo com ele” (Números 12:6),
porque aqueles que têm uma inspiração Profética em um Sonho, jamais
o chamam de Sonho depois que a Profecia chegou a eles desta forma.
Na verdade, eles não têm dúvidas de que se trata de uma Profecia, como
expressou o Patriarca Jacob, que, ao despertar de seu sonho profético,
não disse que foi um sonho, mas sim afirmou claramente: “Certamen
te YH VH está neste lugar (...)” (Gênesis 28:16). E disse Jacob a José:
“Deus Todo-Poderoso apareceu-me em Luz, na terra de Canaã (...)”
(Gênesis 48:3), declarando que se tratava de uma Profecia, enquanto
que, a respeito de Salomão, a descrição é: “Despertou Salomão e era
um sonho”. De modo semelhante, observa-se Daniel explicar que ti
vera sonhos e, apesar de neles haver visto um anjo — cujas palavras
ouviu — chamou-os de sonhos, mesmo depois de receber as instruções
que lhe foram confiadas: “Então o mistério foi revelado a Daniel em
Visão noturna” (Daniel 2: 19). Depois se declara: “Em seguida escre
veu o sonho (...) Eu olhava durante a minha Visão noturna (...)” (Da
niel 7:1-2); “E as visões de minha mente me perturbaram” (Daniel
7:15); e desta forma se manifesta: “Estava assombrado pela visão, e
não entendi nada” (Daniel 8:17). Indubitavelmente se trata de um grau
inferior àqueles dos quais se afirmou: “(...) no sonho falo com ele”
(Números 12:6). Por esse motivo, concordou-se, em nosso credo, in
cluir o Livro de Daniel entre os Escritos e não entre os Profetas. Por
isso devo advertir que, mesmo nesta espécie de visão Profética de
Daniel e Salomão, embora tenham visto um anjo no sonho, eles não a
consideraram como Profecia de fato, mas um sonho que permitiria
conhecer a verdade de certas coisas, o qual se inscreve na categoria
dos que falam pelo Espírito de YHVH, e constitui o segundo grau. Assim,
250
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
na classificação dos Chetuvím não se estabelece diferença entre Provér
bios, Eclesiastes, Daniel, Salmos e os livros de Ruth e de Ester, todos eles
escritos pc r mediação do Espírito do Santíssimo e incluídos na deno
minação genérica de Profetas.
Terceiro Grair. É o dos que logo proclamam: Foi-me dirigida a palavra
de YHVH ou se servem de expressões similares. É também quando o
Profeta percebe uma parábola em sonho, com todas as condições já ditas
para a autêntica Profecia e, neste mesmo sonho profético, é lhe explicado
o sentido encerrado na parábola, como ocorre na maioria das Profeci
as de Zacarias.27
Q uarto Grau: Nesta categoria são classificados os sonhos proféticos em
que se percebem palavras claras e distintas, sem ver quem as profere,
como sucedeu a Samuel em sua primeira Profecia, conforme especifi
camente explicado acima, neste Tratado.
Quinto Grau: Neste caso, uma pessoa lhe fala em sonho, segundo se
afirma em uma das Profecias de Ezequiel: “Disse-me aquele homem:
Homem (...)” (Ezequiel 40:4).
Sexto Grair. E quando um anjo lhe fala em sonho, caso mais freqüente
nos Profetas, segundo se afirma: “E disse-me um anjo de Deus no
sonho (...)” (Gênesis 31:11).
Sétimo Grau: Nesta categoria, está o sonho profético, em que parece,
àquele que sonha, que Deus lhe fala, como em Isaías: “Vi Y H V H (...)”
que dizia: “A quem enviarei? (...)” (Isaías 6:1-8), e no texto de Mi
quéias, filho de Imla (Micháiu ben Imlá): “Vi Y H V H ” (I Reis 22:19; II
Crônicas 18:18).
Oitavo Grau: Neste caso, há uma revelação em visão Profética e se
percebem parábolas. E o que acontece, por exemplo, com Abrahão na
visão entre os animais destroçados (Gênesis 15), porque estas parábolas fo
ram Visões diurnas, conforme se explicou.
Nono Grair. Quando se ouvem as palavras em Visão, como relatado
com respeito a Abrahão: “E eis que foi a palavra de Y H V H a ele, dizen
do: Este não será teu herdeiro (...)”” (Gênesis 15:4).
Décimo Grau: Acontece quando é vista, na Visão Profética, uma pessoa
que lhe fala, como ocorreu a Abrahão na planície de Mamré e a Josué,
em Jericó.
27
Veja supra, cap. 43 (Maeso).
SOBRE
A
PROFECIA
2 - 51
Décimo Primeiro Grau: Quando, em Visão Profética, percebe-se um
anjo lhe falando, conforme aconteceu a Abrahão no momento do sa
crifício de Isaac. Julgo que este é o grau mais eminente alcançado
pelos Profetas, segundo testemunho dos Livros Sagrados, desde que
se desconte a perfeição das qualidades mentais do sujeito, conforme
o estabelecido, e faça-se a devida exceção a M oshé Kabênu (A Paz esteja
sobre ele!). Quanto à possibilidade de que, na Visão Profética, o Profeta
escute a palavra de Deus, parece-me inverossímil, pois a potencialidade
da faculdade imaginativa não alcança este ponto; não temos visto nada
semelhante nos demais Profetas. Por isso a Torá esclarece: “(...) em
Visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números
12:6). Portanto, a palavra situa-se exclusivamente em Sonho e na Visão,
a ação e a emanação do intelecto, o que se expressa por eláv etvadá (a
ele Me faço conhecer) que é a forma reflexiva da raiz do verbo Yadá
(conhecer), mas a expressão não indica que, na Visão, ouça-se a pala
vra de Deus.
Quando encontrei escritos proféticos a respeito disso e ficou claro
que se referiam à Visão, indiquei, em uma nota, que provavelmente se
tratava daquilo que fora ouvido em Sonho que, diferente da Visão, faz
com que o Profeta imagine que é Deus mesmo quem lhe fala, em um
sentido literal. Não obstante, poder-se-ia admitir que toda visão que
se refere a palavras ouvidas não seria, efetivamente, uma Visão, pois
depois passa a um torpor, transformando-se em um sonho, como
expusemos a propósito do texto: “(...) um sono pesado caiu sobre
Abrão (...)” (Gênesis 15:12), o qual, asseguram os Sábios, é o torpor da
Profecia. Portanto, sempre que se ouviam palavras, quaisquer que fos
sem elas, tratava-se de um sonho, como na referência tão reiterada de
Números 12:6, enquanto que, na Visão Profética, somente se percebi
am parábolas ou comunicações de ordem intelectual, com mensagens
de coisas específicas, semelhantes às obtidas através da especulação,
segundo expusemos. E é isto que o texto citado sugere. Assim, de
acordo com esta interpretação, os graus de Profecia seriam oito. O
supremo e mais perfeito grau, em termos gerais, é aquele em que o
Profeta é inspirado por uma Visão, ainda que seja somente uma pessoa
quem lhe fala, como esclarecemos.
Talvez você levante a seguinte objeção: “Você conta, entre os graus
da Profecia, aquele em que o Profeta pode ouvir palavras dirigidas a
ele por Deus, como é o caso de Isaías e Miquéias. Porém, como pode
ser assim, se admitimos, em princípio, que todo Profeta somente ouve
2 _ 52 _
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
a palavra de Deus através de um anjo, à exceção de Moshé Rabênu
(Que a Pa? esteja sobre ele!), do qual está escrito: ‘Boca a boca Falei
com Ele (...)’ (Números 12:8)?” É preciso saber que efetivamente é
assim, pois, neste caso, o que atuacomo intermediário é a faculdade
imaginativa, posto que somente em sonho profético o Profeta ouve a pa
lavra de Deus que lhe fala, enquanto M oshé Rabênu a escutava sem a
mediação da faculdade imaginativa, sobre a Kapóret (propiciatório),28
“entre os dois Querubins” (Exodo 25:22). Já explicamos em minha
obra M ishnê Torá as diferenças desta Profecia, pontuando o sentido das
expressões “boca a boca”, “(...) como fala um homem com seu com
panheiro (...)” (Exodo 33:11) e outras. Entenda isso! E não é necessá
rio repetir o que já foi dito.
28
Propiciatório: Lâmina de ouro com que os hebreus cobriam a Arca da Aliança.
SOBRE
A
PROFECIA
253
CAPÍTULO
46
A S P A R Á B O L A SP R O F É T IC A S
DOS PPvOFETAS F A Z E MP A R T E D A S V ISÕ E S
A partir de um único indivíduo é possível se ter uma idéia completa de
toda uma espécie e conhecer as propriedades de cada indivíduo desta
espécie. Com isto quero dizer que, a partir de uma só propriedade dos
relatos dos Profetas, pode-se ter uma visão de todos os relatos do
mesmo tipo.
A partir desta informação prévia, você entenderá que uma pessoa
pode sonhar algumas vezes que viajou a tal país, casou-se e residiu lá,
nasceu-lhe um filho, ao qual colocou tal nome e se encontrava em
determinada situação ou circunstâncias. Do mesmo modo, nas pará
bolas Proféticas são vistos certos objetos, ações são realizadas — se o
estilo da parábola pede isso — coisas são feitas pelo Profeta e nos inter
valos entre uma ação e outra determinadas viagens são feitas de um
lugar a outro. Mas todas estas coisas fazem parte apenas do processo
de uma Visão Profética, não são reais aos sentidos físicos. Algumas des
tas parábolas simplesmente relatam coisas (sem noção de que fazem
parte de uma visão), como se sabe que ocorre nas Visões Proféticas, e é
desnecessário repetir toda vez isso. Assim, o Profeta declara: “E YHVH
me disse”, sem necessidade de mencionar que fora um sonho. No
entanto, o povo pensa que tais ações, viagens, perguntas e respostas,
tudo isso aconteceu através dos sentidos e não em Visão Profética.
254
°
g u ia
d o s
p e rp le x o s
Lembro-lhe de um exemplo, sobre o qual não há equívoco, e acres
centarei outros da mesma espécie, dos quais você poderá deduzir ou
tros mais, não mencionados. Está claro e fora de todo erro possível o
que disse Ezequiel: “Estava em minha casa, e estavam diante de mim
os anciãos de Judá (...) O Espírito me levantou entre a terra e os Céus,
e me levou a Jerusalém em Visões Divinas” (Ezequiel 8:13). Do mes
mo modo, quando afirmou: “Levantei-me e saí a campo” (Ezequiel
3:23), trata-se pura e simplesmente das Visões Divinas, como aconteceu
a Abrão: “(...) e fê-lo sair (...)” (Gênesis 15:5), e foi em Visão. Na pas
sagem: “E descansei no meio da planície” (Ezequiel 37:1), também foi
uma Visão Divina. E Ezequiel lembrou-se da Visão pela qual foi intro
duzido em Jerusalém, expressando-se assim: “E olhando, vi um bura
co no muro, e me disse: Homem, perfure o muro. Perfurei-o e apare
ceu uma porta” (Ezequiel 8:7-8). Assim como compreendeu, nas VisÕesDivinas,
que se lhe ordenava perfurar o muro, a fim de penetrar por ele e con
templar o que ah se operava e, em seguida, — como ele próprio men
ciona nestas mesmas Visões Divinas — entrou pelo buraco e viu o que
viu, tudo isso em Visão Profética, do mesmo modo, quando Deus lhe
disse: “Toma uma barra de argila (...) feche-se depois sobre teu costa
do esquerdo (...) toma também trigo, cevada (...)” (Ezequiel 4:1.4.9), e
também quando se lhe ordena: “E utilize-a como navalha de barbeiro
para fazer-te cabelos e barba” (Ezequiel 5:1), todo isso em Visão Profé
tica, parecia-lhe que realizava atos que lhe foram ordenados. Nada mais
distante de Deus do que fazer, dos Profetas, objeto de riso para os
tolos, motivo de escárnio ou de serem acusados de realizar atos insa
nos. Até porque isso implicaria uma ordem de desobediência da Lei,
pois, sendo sacerdote, se tornaria transgressor duplamente, por cada
lado da barba e do cabelo. Mas todo isso se passou em Visão Profética.
Do mesmo modo, quando se afirma: “Como andava Isaías, meu servo,
desnudo e descalço” (Isaías 20:3), trata-se de Visões Proféticas. Somente
os que têm uma mente débil acreditam que em todas estas passagens
em que o Profeta conta que fora intimado a fazer tal coisa, ele real
mente a executara, se fosse assim, ele relataria que, apesar de se encon
trar na Babilônia, fora-lhe ordenado perfurar o muro, localizado no
Monte do Templo, e acrescentaria que fizera efetivamente a perfuração,
segundo consta. Na verdade, isso corrobora claramente a tese de que
tudo se passou em Visões Divinas. O mesmo ocorre com Abrahão, nes
tes termos: “ (...) manifestou-se a palavra de YHVH a Abrão, na visão,
dizendo (...)” (Gênesis 15:1), e na mesma visão Profética se imprime:
SOBRE
A
PROFECIA
2-55
“E fê-lo sair e disse: Olha para os Céus, e conta as estrelas (...)” (Gêne
sis 15:5), E evidente que na Visão Profética sentia-se transportado para
fora donde se encontrava, até ver o céu, e então se lhe dizia: conta as
estrelas. Este é o relato, como pode perceber. O mesmo digo da intima
ção a Jeremias, a de esconder o “cinturão” no Eufrates. Escondeu-o e,
ao cabo de muito tempo, foi buscá-lo e o encontrou putrefato e desfei
to. Tudo isro são parábolas em Visão Profética, posto que Jeremias não
saiu da Terra de Israel à Babilônia, nem vira o Eufrates. De forma
análoga, o rexro de Oséias: “Toma por mulher uma prostituta e engen
dra filhos da prostituição” (Oséias 1:2), e todo o relato do nascimento
dos filhos e os nomes Este e Este, que lhes foram impostos, tudo isso
sucede em V isão Profética e, uma vez constatado que são simples pará
bolas, não há razão para pensar que qualquer detalhe se concretizou
em realidade, a não ser que se nos aplique o seguinte: “E toda Revela
ção é para vós como palavras de livro selado” (Isaías 29:11). Outros-
sim, parece-me que, no caso de Gideão, o relato do novelo de lã e
outros foram em Visão Profética, seguramente. Contudo, eu não o cha
maria, de um modo absoluto, de Visão Profética, pelo fato de que, não
havendo alcançado Gideão a categoria de Profeta, como poderia fazer
milagres? Seu maior mérito foi figurar entre os juizes de Israel, mas
situado entre os personagens de categoria inferior, como já expuse
mos, Tudo isso ocorreu em sonho, semelhante aos de Labão e de Abi-
meieque, citados anteriormente. Desta forma, o que disse Zacarias:
“Fiz-me, pois, pastor do rebanho da matança, certamente dos mais
pobres, e tomei dois cajados” (Zacarias 11:7), e o que se segue, a saber:
o salário reclamado com suavidade, a aceitação deste, o dinheiro con
tado, arrojado no tesouro (Zacarias 11:12-13); mdo isso lhe aparecia
em Visão Profética, intimando-lhe a fazê-lo, e assim o fez, mas em Sonho
Profético. Isto é algo indubitável, que ninguém pode ignorar, salvo quem
confunda o possível com o impossível.
Do que deixo exposto, você poderá considerar algo não menciona
do: tudo pertence à mesma espécie e método, é Visão Profética. Conse
qüentemente, sempre que se afirma que, em tal Visão, ficou, olhou, saiu,
entrou ou disse, foi-lhe dito, levantou-se, sentou-se, subiu, baixou, viajou, pergun
tou, foi interrogado, tudo Isso se sucede em Visão Profética. Inclusive no
caso de ações descritas como de longa duração e que se refiram a
determinadas épocas, certos indivíduos e lugares específicos. Se averi
guar que tal ação encaixa em uma parábola, pode estar certo de que
esta se realizou em Visão Profética.
S OI S R E A
PROFECIA
2-5 7
CAPÍTULO 4 7
SOBRE O ESTILO METAFÓRICO DOS ESCRITOS PROFÉTICOS
Fica patente e manifesto, sem sombra de dúvida, que a maioria dos
Profetas se expressa por meio de parábolas, porque o instrumento para
isto é a faculdade imaginativa. Deste modo, importa saber algo sobre
as metáforas, hipérboles e alguns exageros, dado que às vezes elas apa
recem nos Livros dos Profetas. Se as tomasse literalmente, sem se dar
conta de que se trata de uma hipérbole ou um exagero, ou se compre
endidas no sentido superficial das palavras, segundo sua acepção origi
nal, sem reparar que se trata de uma metáfora, isto daria lugar a absur
dos. Os Sábios já advertiram: ^4 Torá fa la uma linguagem aproximada, ou
seja, utiliza a hipérbole, e, para demonstrar, eles destacam acertada-
mente estas expressões: “(...) as cidades são grandes e fortificadas até
os Céus (...)” (Deuteronômio 1:28). Na hipérbole se inscreve esta lo
cução: “Porque o pássaro dos Céus leva a notícia” (Eclesiastes 10:20).
Igualmente se diz: “(...) cuja altura se iguala à dos cedros (...)” (Amós
2:9). Estilo semelhante se encontra com freqüência na linguagem de
todos os Profetas, com expressões hiperbólicas e exageradas, em vez
de contidas e exatas.
Sem dúvida, não pertence a este grupo o que a Torá afirma sobre
Og: “(...) Eis que seu leito, um leito de ferro (...)” (Deuteronômio 3:11),
porque o leito é a cama, assim como em Cântico dos Cânticos 1:16:
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
“Nossa cama está cheia de vitalidade”. Pois bem, não há cama que
corresponda à medida de qualquer pessoa — porque não é uma roupa
que a veste — mas a cama será sempre do tamanho do indivíduo que
nela dorme: o costume conhecido é normalmente um terço a mais que
a medida da sua altura. Por conseguinte, se o comprimento de uma
cama é de nove codos,29 a estatura de quem se deita sobre ela, segundo
a proporção habitual, será de uns seis codos ou pouco mais. A expres
são Os codos de um homem considera a medida cubital corrente — entre o
comum dos mortais, e não segundo a de Og — já que normalmente
todo indivíduo tem os membros proporcionais. Dizia-se que a estatura
de Og era o dobro de uma pessoa normal e mais um pouco, o que, de
qualquer forma, não deixa de ser absurdo.
Quanto ao que está escrito na Bíblia referente à idade de certas
pessoas, afirmo que nenhum ser viveu tantos dias, a não ser a pessoa
citada, enquanto as demais viveram a quantidade normal de dias natu
rais. Esta estranha característica de determinado indivíduo tinha moti
vos diversos: sua dieta ou seus hábitos, ou talvez fosse um milagre que
guiou sua conduta. Não cabe outra explicação.
Igualmente se impõe uma grande atenção com respeito à metáfora.
Algmas são claras e patentes, sem dificuldade de interpretação, por
exemplo: “Montanhas e planícies irromperão em gritos de júbilo ante
vós, e todas as árvores do campo baterão palmas” (Isaías 55:12), metá
fora evidente, como em: “Até os ciprestes se alegraram de ti (...)” (Isaías
14:18), interpretado da seguinte forma por Yonatán ben Uziel: A té os
governantes se regozijaram p o r ti, os opulentos, expresso na forma de metáfo
ra, como também a expressão “manteiga das vacas e leite de ovelhas”
(Deuteronômio 32:14). Estas metáforas são extremamente numerosas
nos Livros dos Profetas: umas são óbvias até para o povo, mas outras
não. Assim, nada colocará em dúvida que estas palavras: “Abrirá YHVH
para ti Seu bom tesouro, os Céus, para dar a chuva á tua terra (...)”
(Deuteronômio 28:12) encerram uma metáfora, dado que Deus não
tem um tesouro que contenha a chuva. O mesmo se aplica para as
seguintes: “Abriu as portas dos Céus, e choveu sobre eles o Maná”
(Salmos 78:23-24), ninguém imaginará que haja portões e portas nos
Céus, mas sim que a expressão é usada por meio de associação, sob o
critério de semelhança, uma das modalidades da metáfora. Do mesmo
29
Codo: unidade de medida baseada em meio braço, da mão ao cotovelo (NT).
SOBRE A
PROFECIA
2$g
modo devem ser entendidos os seguintes textos: “Abriram-se os Céus”
(Ezequiel 1:1); “ (...) e se não, risca-me, rogo, do Teu livro, que escre-
veste!” (Êxodo 32:32); “(...) riscá-lo-ei do Meu livro” (Êxodo 32:33);
“Sejam apagados do Livro da Vida” (Salmo 69:29). Tudo isso deve ser
entendido pela aproximação por semelhança e não como se Deus ti
vesse um livro em que escrevesse e apagasse, como se cogita popular
mente, sem se notar que aí existe uma metáfora.
Tudo isso pertence à mesma categoria. Quanto ao que não foi cita
do, classifique conforme o descrito neste capítulo, separe e distinga
detalhadamente as coisas, e compreenderá o que está relatado por pa
rábola, por metáfora, por hipérbole ou, ainda, aquilo que se deve in
terpretar exatamente segundo o teor da acepção literal. Assim, todas as
Profecias se lhe mostrarão claras e patentes, suas crenças lhe parecerão
razoáveis, bem ordenadas e gratas a Deus, pois somente a verdade é
prazerosa a Ele (Exaltado Seja!), assim como a mentira Lhe é odiosa.
Não se confundam idéias e pensamentos de maneira que admita opini
ões inaceitáveis, afastadas da verdade, que você tome por Lei. Os pre
ceitos da Lei são verdade cabal, se devidamente entendidos, conforme
está dito: “Suas idéias são verdadeiras para sempre” (Salmo 119:144), e
também: “Eu sou YHVH, que falo a Verdade” (Isaías 45:19). Por meio
destas considerações, você descartará o conceito de algumas pessoas,
de que Deus não criou, e certas idéias corrompidas, algumas das quais
impelem à irreligião, a admitir em Deus uma deficiência, como são as
circunstâncias de corporeidade, atributos e paixões, conforme explica
mos, ou então a considerar os discursos dos Profetas como mentira;
pois a causa deste mal está justamente na ignorância do que explica
mos. Estas coisas pertencem, assim, aos mistérios da Lei e, embora
tenhamos tratado disso de modo geral, será fácil conhecer seus por
menores depois do que já foi dito.
SOBRE
A
PROFECIA
CAPÍTULO 4 8
A BÍBLIA CO N FERE A D EUS, C O M O P R IM E IR A C A U S A DE T O
D A S A S C O IS A S , OS FEN Ô M EN O S D IR E T A M E N T E O R IG IN A D O S
DE C A U S A S N A T U R A IS
E absolutamente evidente que toda coisa criada tem necessariamente
uma causa próxima que a tenha provocado. Esta, por sua vez, tem
outra, até chegar à Primeira Causa de todas as coisas, ou seja, a von
tade e escolha de Deus. Por esta razão, às vezes os Profetas omitem,
em seus discursos, todas as causas intermediárias, atribuindo a força
pessoal criadora a Deus, afirmando que Ele (Exaltado Seja!) a reali
zou. Tudo isto se sabe, pois já falamos sobre isto — assim como ou
tros entre os que buscam a verdade — e esta é a opinião de todos os
nossos teólogos.
A partir dessa observação preliminar, ouça o que explanarei no pre
sente capítulo e perceba bem, além da atenção geral que se deve pres
tar aos capítulos deste Tratado. O assunto que abordarei é o seguinte:
Saiba que todas as causas próximas que originam o fato, sejam elas
naturais, por acaso, por escolha — entendendo-se por escolha a causa
que se renova: a escolha do Homem, ou até mesmo se a causa é pro
vocada pela vontade de um animal qualquer, todas estas causas são
atribuídas a Deus nos Livros dos Profetas E, em seu estilo, afirma-se,
deste fato, que a atividade de Deus o realizou, ordenou ou disse-o.
1Ô2.
O GUIA
DOS
PERPLEXOS
Para todas estas coisas são empregados os verbos di^er, falar, ordenar,
chamar, enviar — e este é o ponto sobre o qual quis chamar sua atenção
no presente capítulo. Com efeito, segundo o estabelecido, dado que foi
Deus quem moveu o desejo de um determinado animal irracional,
assim como foi Ele quem fez com que o animal racional fosse dotado
de instinto, vontade e escolha, é obrigatório que se diga, de acordo
com isso, o que provocou estas causas: a ordem de Deus de que assim
fosse ou porque Ele disse que seria assim.
Citarei exemplos, a partir dos quais você assimilará aquilo que não
foi explicitado. Falando de coisas naturais que constantemente seguem
seu curso, como a neve, que se derrete quando o ar está quente, e as
águas dos mares, agitadas quando o vento sopra, está escrito: “Manda
Tua palavra e as derreta” (Salmos 147:18); “Ele mandou surgir um
furacão e encrespou as ondas” (Salmos 107:25); e da chuva que cai: “E
ainda mandarei às nuvens que não chovam sobre ela (...)” (Isaías 5:6).So
bre aquilo cuja causa se encontra nas escolhas do Homem — como a
guerra que um povo promove contra outro ou um indivíduo que se
dispõe a prejudicar outro, inclusive injuriando-o — citemos o declarado
sobre o governo do maldoso Nabucodonosor e seus exércitos: “Eu
ordenei o Meu exército consagrado, e também chamei os meus valen
tes para a Minha ira” (Isaías 13:3), e disse: “A uma nação impiedosa os
enviarei” (Isaías 10:6). No episódio de Shimí ben Guerá, lê-se: “Pois
YHVH lhe falou: Amaldiçoe David” (II Samuel 16:10). Sobre o José, o
justo, libertado da prisão, declara-se: “Mandou o rei que o soltassem”
(Salmos 105:20). Dos governos da Pérsia e dos Medos sobre os Cal-
deus, afirma-se: “E mandarei contra Babel estrangeiros que se espa
lhem por lá” (Jeremias 51:2). Na história do Profeta Elias, quando
Deus aconselha uma mulher para que o alimente, diz a ele: “Já ordenei
a uma mulher viúva para que o mantenha” (I Reis 17:9). José, o justo,
esclarece a seus irmãos: “(...) vós não me enviastes aqui, senão Deus”
(Gênesis 45:8).
A propósito do que seria a causa da vontade dos animais e a moti
vação das suas necessidades, lemos: “Falou YHVH ao peixe” (Jonas
2:11). Significa que foi Deus quem nele provocou a vontade, não que
fez, do peixe, Profeta ou lhe enviou a faculdade da Profecia. No episó
dio dos gafanhotos30 que apareceram nos dias de Joel (Yoêl ben Petuêl),
30
Arbk gafanhotos. Traduzido nas versões inglesa e espanhola por “lagostas” (NT).
SOBRE
A
PROFECIA
263
afirma-se também: “Pois é forte o executor de suas palavras” (Joel
2:11). Outrossim, em relação às feras que penetraram na Terra de Edom,
quando esta foi devastada por Senaqueribe: “e Ele lhes lançou o desti
no, e a sua mão repartiu a terra com uma corda” (Isaías 34:17). Ainda
que não se tenha empregado nenhum dos termos di^er, ordenar, enviar, o
sentido é totalmente idêntico e claro.
E quanto aos fatos casuais, de total acaso, mencionemos o caso
de Rebeca: “ (...) e seja a mulher do filho de teu senhor como falou
Y H V H ” (Gênesis 24:51). Na história de David e Jônatas (Yonatán)
foi dito: “Vai, porque Y H V H lhe enviou” (I Samuel 20:22); e na de
José: “E mandou-me Deus adiante de vós (...)” (Gênesis 45:7). En
tão, que fique bem claro: de acordo com o relatado sobre a circuns
tância das causas — independente de como estas ocorreram, sejam
causas reais, acidentais ou por vontade — todas se eqüivalem por meio
das cinco expressões seguintes: ordenar; di^er,falar, enviar e chamar. Com
base nesse conhecimento, aplique-o em todos os pontos do seu inte
resse e serão eliminados muitos absurdos. Assim, a verdade dos fatos
aqui descritos, e dos quais se poderia crer que estivessem longe da
verdade, ser-lhe-á esclarecida.
E esta é a conclusão do que pretendi abordar sobre a Profecia, suas
parábolas e formas de expressão. Tudo o que concerne a este assunto
deverá lhe ser transmitido neste Tratado. E passaremos para outros
assuntos, com a ajuda de Deus.31
31
Com isso M aimônides dá por encerrada a Parte 2 de O Guia dos Perplexos e
anuncia, ao que tudo indica, o início de novas reflexões sobre outros assuntos,
na terceira e última parte deste livro. Sabe-se também que M aimônides havia
iniciado outra obra voltada para o tema da Profecia - o S efer há-N evuá (O Livro
da Profecia). Para M unk, ele estava se referindo a esta obra no final da Segunda
Parte. Parece-me, no entanto, que ele aqui somente indica o encerram ento das
reflexões acerca da Profecia e da Criação do Universo em contraposição ao
conceito aristotélico de Eternidade do Universo e do Tempo — com o objetivo
de dar início a um a nova discussão na Parte 3 (NT).
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66
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Pela prim eira vez o público leitor de língua
portuguesa tem acesso à tradução, do hebraico, de
0 Guia dos Perplexos (P arte 2 ) de M aim ônides, um
dos pilares do pensamento judaico em todos os tem
pos. T rata-se de um a tradução “ao mesmo tempo
precisa e a p aix o n ad a”, que in a u g u ra o projeto
de publicação in teg ral das três partes desta que é
considerada um a das obras m edievais que mais
influenciaram o pensam ento m undial, com parada
em im p o rtân c ia à Suma T eológica de São Tomás
de Aquino e à D ivina Comédia de Dante, cada um a
em seu gênero. E scrita originalm ente em árabe, a
transposição para o hebraico por Shmuêl ibn Tibon,
autorizada pelo próprio Maimônides e considerada
um calco do original, foi a base p ara a trad u ção ,
integral e inédita, de 0 Guia dos Perplexos (P arte 2 ),
para o português.
N esta p a rte , M aim ônides teve p o r m eta esta
belecer um a relação inteligível en tre a sabedoria
judaica e a filosofia clássica grega através de um a
espécie de diálogo entre os discursos dos Sábios de
Israel, por um lado, e os de Aristóteles e dos Peri-
patéticos, por outro.
E sta tradução tra z um a in tro d u ção , u m breve
relato da vida e obra de M aim ônides e um a ap re
sentação da obra, o que certam ente contribui para
enriquecer a leitura desse grande clássico.
M A I M Ô N I D E S (1135-12 0 4 ),
tam bém conhecido como R am bám , nasceu na
Espanha, viveu boa parte de sua vida no Egito e foi
sepultado em Israel. Filósofo, teólogo, m édico,
escritor e líder da com unidade judaica no Egito —
em todas estas atividades foi um verdadeiro mestre.
Tal é o reconhecim ento da sua im portância para o
pensam ento judaico em todos os tempos, que sobre
ele costum a-se dizer: “De Moisés a Moisés, nunca
houve outro como Moisés”. Em bora o M ishnè Torá
tenha sido a sua obra de m aior fôlego, Maimônides
é mais conhecido por seu 0 Guia dos Perplexos , obra
que, há 800 anos, vem influenciando gerações após
gerações de teólogos, filósofos e pessoas interessadas
na compreensão do papel do ser hum ano e de Deus
no mundo.
muitos o maior e mais influente filósofo que
o judaísmo já produziu, viveu na Espanha e
no Egito há oito séculos. Desde a Idade Média até
a atualidade, gerações após geraçõesjamais
deixam de citar O Guia dos Perplexos.
 razão é simples: a obra, além de trazer
mensagens de relevância atual, quando se refere
aos Profetas, á ética e á integridade do homem,
pode inspirar um modelo de postura social que sirva
de exemplo para os nossos dias. E um clássico
que não envelhece. Como os discursos dos profetas,
fala direto ao coração do homem. Como a fala
de Moisés, é íntegro, denso e envolvente.
1
E confirma o antigo dito: de Moisés a Moisés,
I
nunca houve outro como Moisés.
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